segunda-feira, 29 de agosto de 2011

III - Memórias

Olho para o corpo defunto de uma barata
Recreio
baitasar

Já íamos além da metade de março, mas ainda não havia caído a ficha. Estou saindo. Esse é meu último ano na escola. Poucas coisas mudaram de verdade, diria mesmo que nada mudou. Acho que coisa nenhuma muda de verdade. Tudo bem, a gente na volta das férias sempre comenta
(Guria, como você cresceu!)
Ou
(Júnior, o que te deu na cabeça de pendurar esse piercing?)
Ou ainda
(Você está ótima.) (Isso mesmo, você tá lindinha!) (Tu é gata assim ou tu te faz?) (Olha a minha cara de apaixonada!)
Mesmo que a verdade seja diferente do que se diz. Eu mesmo to quase sempre fazendo isso. Não tenho cara de chamar ninguém de ridículo. Eu sou o mais bufo de todos. Nem me deixo mostrar naquela aflição indiferente que estou sentido da pobre criatura. Não que eu ache que assim faço alguma diferença, eu e nada é a mesma coisa. Não que eu não seja ridículo, também, mas eu me toco e fico na minha, puxando o ar garganta abaixo. É uma guerra permanente. Eu sou a mais indigente e miserável das criaturas
(Coitado, não melhora.)
As mudanças não acontecem comigo, mas deixar a escola, ai meu Deus. Isso é um troço que o tempo não vai parar. Continuará me engolindo. A minha vida é a água servida dentro do copo. Às vezes, tenho a sensação que eu sou bebido aos goles. A mão que segura o copo parece mais aflita que a própria sede. Dá calafrios e tremores na barriga. E a temporada desta despedida chegou. Galera, eu confesso, não sei do que vou sentir falta, mas o medo parece o meu fim
(Não estou preparado, sinto frios e tremores na barriga.)
Vou ao banheiro, todas as manhãs, e fico por lá. Dor de barriga direto. Cólicas. No sábado e no domingo estou ótimo, chega segunda-feira começa a correria. Outro dia, meu pai fez um comentário acidental, que de casual não tinha nada
(E aí filho, preparado para o vestibular da federal?)
Aumentaram minhas cólicas. Dores ocas de uma sede insaciável. Nunca usei tanto a bombinha. Ser aprovado no vestibular da federal significa muita poupança nas contas da família.
Mas não abro a boca, estou assustado. Estou caminhando com os pés descalços e a sede se mistura com a ilusão das aquarelas de letras que lutam por mim. A minha voz vem escrita nestas folhas coloridas de preto e branco. Estou construindo meu mundo com pequenos cacos que recolho nas praias ou nos lixões. E precisa ser com um passo de cada vez. Sou uma carcaça reciclável. O ar entra e a barriga sai, o ar sai e a barriga entra. O quarto fica escuro, e tenho medo, e o quarto se ilumina. É difícil, preciso me segurar ou andar por aí com rolos de papel higiênico ou bombinhas de inalação, perguntando
(O que será feito de mim?)
Recebendo como resposta olhares piedosos e conselhos de conforto resignado
(A vida é assim mesmo, meu filho, tira de uns e oferece demais a outros.)
Último ano na escola e venho querendo tudo com olhos de despedida. Uns malucos já notaram que eu to meio de canto. Mas não quero ficar dizendo
(Já estou com saudades.)
Coisas do tipo
(Vamos manter contato.) (A gente se vê, por aí!)
Vou ter que conviver na boa com tudo isso. As minhas dúvidas e o desejo inevitável de mudar o mundo. Virar o meu mundo de cabeça para baixo. Outras coisas vão acontecendo. Ninguém para. Nada empaca. Vou para um canto medir o pico do fluxo respiratório. Pra mim esse aparelho medidor é tão importante quanto um termômetro ou o aparelho de medir a violência arterial do papai, pois assim como a temperatura e a pressão, a minha asma pode ser mais bem controlada quando é medida. O medidor do pico do fluxo avalia o fluxo de ar no momento da expiração
(Vocês sabem o que é isto de expiração?)
É a expulsão do ar dos pulmões
(É como soprar uma vela.)
O PFE esperado para cada um, tem por base a idade, sexo e altura
(Já sei, ninguém sabe o que é PFE.)
Paro de falar com o espelho, procuro respirar com mais tranqüilidade. Preciso voltar para a aula
(Ë uma forma curta e fácil de dizer Pico do Fluxo Expiratório.)
Quando a asma está sob controle, o fluxo de ar é normal ou muito próximo do valor esperado. Porém, mesmo antes da percepção dos sintomas de uma crise de asma, o pico do fluxo expiratório pode estar diminuído, evidenciando a obstrução das vias aéreas. A desconfiança que uma crise se aproxima.
O sistema de semáforo foi estabelecido para ser um guia de ajuda para os pacientes no manejo da asma.
Assim que o meu PFE foi estabelecido, todos os meus esforços devem ser feitos para manter os valores no mínimo em torno de 80% deste valor. Cada cor do “semáforo” indica:
pfeverde Zona verde - PFE entre 80% e 100% do melhor PFE esperado: SIGA - Você deve estar relativamente livre de sintomas e pode manter os medicamentos em uso.
pfeamarelo  Zona amarela - PFE entre 50% e 80% do PFE esperado: ATENÇÃO - A asma está piorando. Um aumento temporário na medicação para a asma é indicado. Se você usa medicação crônica, a terapia de manutenção irá provavelmente precisar ser aumentada. Entre em contato com seu médico para ajustar seu tratamento.
pfevermelho Zona vermelha - PFE abaixo de 50% do PFE esperado: PERIGO - O controle da asma está falhando. Use seu broncodilatador inalatório. Se o PFE não retornar à zona amarela, entre em contato com seu médico imediatamente, ou inicie o tratamento orientado para os momentos de exacerbação da asma.
Este sistema de semáforo é apenas uma recomendação para simplificar o manejo da asma. O sucesso do controle da asma depende da parceria entre o paciente e o médico
(E os pais, é o que sempre repete o Dr. Paulo.)
Nenhuma novidade com a mensalidade da escola que subiu. O PFE permanece na zona verde.
As paredes pichadas foram pintadas de branco. Ingênua perda de tempo. O PFE se sustenta na zona verde.
O professor de filosofia é novo. O PFE não passa da zona amarela.
O dia amanhece frio e a funcionária passou cera no piso da sala de aula. O PFE se embrenha na zona vermelha.
E assim, fui construindo um mundo verde, amarelo e vermelho.
Olho para o corpo defunto de uma barata. Não sei do que esse estúpido e nojento animal morreu, mas está ali, deitada de costas. Imóvel. Não sinto compaixão nem piedade. Uma trilha de formigas começa a desconjuntar aquele esqueleto marrom inerte. É rápido. Aquelas piranhas da cidade apenas deixam os rastros do seu carreiro. Desistir é fácil, basta perder a vontade de sonhar. Talvez, essa barata tenha se percebido apenas uma barata e desistiu. Não conseguiu imaginar-se diferente
(Eu não sou uma barata!)
É isso, talvez a morte seja apenas uma coisa de desistir e ficar imóvel pela eternidade. Desconsertando cada uma das partes, esperando a poeira. Tudo vira pó. Somos um quebra-cabeças sendo desmontado peça por peça, todos os dias. Não tem como ressuscitar, pelo menos, do mesmo jeito.
Os computadores ganharam tela plana. Eu continuo arredondando o peito. Parece que ando na contramão da ciência e da tecnologia. Tudo está se aplainando e enquanto eu sigo arredondando o peito. É tudo um grande plano de ingestão de porcarias desnecessárias. Quero ser um grande escritor, desses que fazem alguma diferença na vida das baratas.
Desenharam uma quadra de handebol no pátio da escola. Desperdício, porque aqui na escola só treinam voleibol. O esporte da televisão, das medalhas, das vitórias, as pessoas não querem saber de derrotados
(Quantas das nossas vidas serão desperdiçadas?)
A única mudança pra valer foi a chegada da Júlia. Gente, essa menina é corajosa. Sair do colégio público, no último ano do médio, e vir pro nosso, não é pra qualquer um, muito mais difícil pras meninas. Lá ela tem as amigas e amigos de muito tempo, aqui é um recomeço, desde as amizades até a maneira dos professores ensinarem ou fingirem. E guri vive nas ruas, conhece todo mundo, cada um é mais maluco que o outro
(Escola pública nivela por baixo.)
Mas ela é muito boa. Em todos os sentidos, e costumes, e olhares. Tem uma cor maravilhosa. Por essa menina eu poderia me apaixonar
(Não sei se quero.)
Recreio!
Puxa, tenho que parar de ficar viajando com essa mania – ou obsessão? - de escrever um diário. Parece ladainha de papel e caneta. Já estamos no intervalo livre e não lembro o que aconteceu na sala de aula. É minha obrigação me concentrar mais quando estou dentro da tenda dos milagres. Do contrário, esse não será meu último ano na Imaculada Sagrada. E a universidade federal terá que esperar mais para contar com a minha inteligência artificial.
A fila do barzinho é imensa. Nem sei como cheguei aqui. A lógica diz que foi caminhando, mas me refiro ao tempo entre sair da sala de aula e chegar à fila do barzinho, tudo feito no piloto maquinal. É como estar lendo um livro, e lá na página trinta, não lembrar o que se leu nas vinte e nove páginas anteriores. Somos máquinas
(Sou um mecanismo locomotor de pensar, sentir e respirar imperfeito.)
Tanto tempo nesta escola e nenhum amigo. Nenhuma amiga. Apenas conhecidos e colegas.
Mais na frente está a Cândida e a sua turma, insatisfeita com a fila. Não, eu estou insatisfeito com a fila. Mas reconheço o meu lugar
(A Cândida?)
Bem, essa está provocada a tomar parte naquela disputa por lugares. Demonstrar o seu poder de influência
(Meninas, se ficarmos nesta renga vamos perder o recreio.) (Isso eu sei, mas o que fazer?)
Pergunta Pati.
A fria e vaidosa Cândida, quando responde, tem o olhar decidido e raivoso
(Vamos estabelecer novas regras.)
(Como?)
Quer saber Leila
(Meninas nós somos ou não as gossip girls do terceiro ano?) (É isso mesmo.) (Ninguém separa nossa amizade!) (Nem a língua...)
Respondem harmoniosas as duas babonas ao chamado da líder. Acho que a Cândida funciona para as meninas mais como um ídolo do que uma liderança. Ela as magnetiza e as deixa amareladas da própria vontade. Seguidoras não querem pensar. Eu não quero pensar na minha falta de ar. Baratas não pensam, só reagem por instinto.
Cândida dá uma piscadela e as meninas se vão para o começo da fila. Tomam uma vaia estrondosa. Passam por suas cabeças cheias de vento, balas, bolinhas de papel, chicles cuspidos. A gritaria é gigante. As câmaras de vídeo espalhadas pelo pátio alarmam o disciplinador. O controlador chega e quer entender
(Gente, vocês me contam o que está acontecendo ou vou ter que pedir as imagens das câmaras?)
As meninas do primeiro ano começam as acusações que chegam de todos da fila. O disciplinador aponta para as três
(Elas são metidas à besta.)
Repetem em coro as demais meninas. Claro, que o tumulto estava estabelecido. Todos chegavam para saber o que acontecia
(As gurias vão brigar.)
O disciplinador na intenção de acabar com aquele desequilíbrio, decreta
(Meninas, vocês têm duas opções. Continuam na fila onde estavam ou saem e vão para o pátio.) (Isso não é justo.)
Procura argumentar Leila
(Escolham!)
Cândida pega no braço das duas e saem sob os gritos e vaias. Foram escolhidas para saírem. Não escolheram sair. Lançam um olhar de ódio e promessas às meninas do primeiro ano
(Essas baratas, não perdem seu tempo por esperar.) (Vamos dar o troco.) (Merda, elas não conhecem hierarquia?) (Meninas, cuidado com os palavrões.) (Quando a gente estava no primeiro ano cedia o lugar.)
Cândida salivava a ofensa sofrida, no olhar apenas ódio às mortais
(Não lembro.) (Cala a boca Pati, você não lembra de nada.) (Elas não têm respeito.) (Vamos ensinar consideração às meninas.) (Quem não ta com a gente... ta contra)
Resolvi sair de perto dessas meninas da roupagem de figurino. Parecem bichinhos de estimação. O cérebro e o coração delas se comportam como se tudo fosse um desfile de moda. Preconceituosas. Caminham e sonham com as cores e o brilho dos vestidinhos plissados e babados em camadas. Eu posso não ter ar para respirar, mas não perdi o cérebro ou o coração, ainda
(Ta... e ai, o que ta olhando?)
As bermudas não têm o volume do corte, mas o calibre do corpo. Para essas meninas tudo é uma passarela de marcas. Saio de fininho.
Vou atrás de outros ares. É preciso mudar. Até penso em firmar o olhar delas com o meu, mas pergunto pra mim se vale à pena, e não vale. Não é que eu seja um covarde, não tenho medo dessas barraqueiras de rosa, mas me pergunto no que isso iria dar. A gente se estranha e eu não vou bater em mulher, no final de tudo vou ter que duelar com o Gustavo e o Dalton. Eu não sou grandão nem fortão, então, eu vou ter que achar soldados do mesmo tamanho. Acho melhor, não. Elas lá e eu aqui. Vou fazer uma vingança literária. Não é o que vocês estão pensando, sem mentiras ou calúnias. Nada de baixaria. Serão suplex, sabem como é, bonequinhas de reserva. Mas chega desse papo.
Lá estavam Júlia, Tamires e o Charles. Esses três não se conheciam, mas perceberam que a simpatia do início pode se transformar em amizade. Precisam apenas dar uma chance para o dia-a-dia. Rirem juntos, fazerem confidências e, também, por que não, chorarem juntos. O convívio quase diário está deixando marcas de estima e confiança. Ninguém se declara amigo de alguém, como algo que vem de um contrato unilateral. Uma frase que vem de um lado só. Eu sou teu amigo e pronto. Nem é suficiente convidar a outra pessoa para serem amigos ou amigas. A confiança e a estima precisa ser construída nos detalhes, nos suspiros e na verdade das intenções. A camaradagem precisa de tempo para se tornar algo real. A inimizade, pelo contrário, pode surgir inesperadamente, sem nenhuma razão aparente. Às vezes, as pessoas olham e não gostam do que vêem ou não sabem o quê ver e dizer. Repetem, apenas, o que lhes foi ensinado. Com esses três, não está acontecendo assim. Estão se dando o tempo de conhecer um ao outro, sem pressa
(Júlia, como vai com o trabalho de língua estrangeira?) (Tamires, é muito diferente lá da minha outra escola.) (Vai te acostumando, por aqui, a maioria faz cursinho de alguma língua exótica.) (Charles, é só um pouco mais complicado, mas eu vou conseguir.) (Precisando ajuda é só fazer sinal de fumaça.) (Vou precisar de muita ajuda em física.) (Ih, nessa daí, a gente se ferra junto.) (Ai, meu Deus, vocês também?) (Sufoco todos os anos.)
Coitados, eu também.
Como são pouco prováveis as ideias, os conceitos, os assuntos da física na minha vida. Uma caretice só. E gente, eu não quero ser físico. Eu vou ser escritor. Já estou fazendo literatura. O problema é que ainda não me encontraram. E estou me desperdiçando com essas teorias quânticas e amarrações químicas. Eu curto o mundo das semânticas. Por ora, só quero decifrar a química do amor. Adoro brincar com as palavras e seus significados. Não quero demonstrar teoremas. Escolho que os professores de língua portuguesa e literatura me revirem ao avesso. É fácil. Que todos os outros professores joguem esse meu corpo num calabouço a pão e água. Mandem livros todos os dias para minha prisão. Quando me libertarem vão descobrir que nunca estive preso. Prefiro o mundo das palavras e intenções gramaticais. Renego o planeta dos senos e co-senos, dos recordes e marcas esportivas. Não gosto de futebol, o mundo não espera nada de mim além das notas
(E daí, o que eu posso fazer? Não gosto do cheiro de suor!) (Será que tenho algum problema?)
Meu mundo gira na volta do lápis e mergulha no papel. Gosto de escrever, outros gostam de esportes, namorar. Esperem aí, não tirem conclusões apressadas, eu também gostaria de namorar, mas o problema é que não namorei ninguém, ainda. É meio complicado de explicar que eu gosto de uma coisa que nunca provei, mas é isso, to louco pra botar em prática o meu romantismo. Eu sou muito romântico
(Vocês não acreditam?)
Deixa pra lá, volto ao que interessa,
(Júlia, por que você veio pra cá?) (Meus pais não podem pagar um cursinho pré-vestibular.) (E daí?) (Aqui, será o meu cursinho.) (Júlia!) (O que foi, Tamires?) (Por um ano você vai perder a chance de disputar no vestibular com os alunos da escola pública!) (Hein!) (Menina, você não sabe que agora tem a tal das cotas pelo Enem?) (Cotas?) (Não sei bem como funciona, mas aqui na escola no ano passado foi uma bateção de boca.) (É?) (Júlia, na discussão rolou muito ódio.) (Por quê?) (Vagas, minha amiga.) (Preconceito, meninas.) (Mas elas não vão por fim às injustiças que você experimentou na carne.) (Não há um remédio definitivo.) (Gente, não sei muito bem do que vocês falam, mas as duas escolas são muito diferentes.) (Nós sabemos, por isso escolhemos estar aqui.) (Será que eu posso me inscrever nesse ProUni?)
Acho que estão todos confusos. Aqui, é assunto tabu.
Enem, prouni, cotas e mais siglas e abreviamentos. Nem vou tentar ajudar.
Escutamos o sinal de término do recreio. Todos nos dirigimos para as salas de aula. Parecemos um bando de resignados. O ruído da sirene foi substituído pelo canto Gregoriano, música de velho. Continuamos nossas conversas caminhando para o remate. Ninguém atrasa. Somos o adereço que embeleza e finaliza essa obra de disciplina. É muito bala observar a nós mesmos. No final, também, não sei se deveria ser diferente. De qualquer jeito, escolhi estar aqui.
Apenas, que em alguns lugares a desilusão é maior que em outros. Sei lá, é que eu queria que fosse diferente. Mais gostoso, com mais vida. As aulas de história, por exemplo, aprendo mais nos filmes que vejo no cinema, quase nada com os trabalhinhos copiados da internet. Não se tem o que fazer. É isso, faltam os debates, as disputas das ideias sem chiliques. Preciso de professores que me façam falar sem ter um faniquito de ar comprimido. Discutir as minhas ideias. Mostrar o que pensamos e o que achamos disso ou daquilo. Parece que os professores têm medo da nossa língua e dos seus ouvidos. Queremos nos mostrar para quem quiser ver.
Em todo caso, já estou no brete da porta, uso a bombinha, mais um passo e pronto, preciso sentar. As patricinhas também entram e o mundo irreal vem com elas. Ainda discutem o lance da fila. Os guris caminham pela sala e fazem troça um com o outro
(O Gustavo amarelou!) (Garfão, dá um tempo.) (Amarelou!) (O que foi?)
Quer saber o Paulo Ricardo, já se deliciando com a brincadeira
(Não tem nada.) (Gustavo, te conheço mais que qualquer um.) (A Lúcia do segundo ano encarou de frente e ele esfumaçou.) (Não acredito.) (Garfão, vai caminhar, vai!) (Gustavo foi alvejado.)
Aquela caçoada só tinha um jeito de acabar, e não adiantava paciência, e não adiantava abuso
(Bem, queridos alunos, o recreio já acabou. Vamos sentar.)
Essa é a irmã Delcina, professora de ensino religioso. Logo, já estaremos rezando. Ela entra com a sua malinha marronzinha escura, bem velhinha, caindo aos pedaços. Passinhos pequeninos e mudos.
Olha na volta, tem um pequeno sorriso nos lábios.
Pede silêncio.
Não entende que vivemos a vida de pernas pro ar. Acho que não entende, mas de qualquer maneira calamos. A vida para.

sábado, 27 de agosto de 2011

O amor

Maiakovski




Não acabarão nunca com o amor

Não acabarão nunca com o amor,
nem as rusgas,
nem a distância.
Está provado,
pensado,
verificado.
Aqui levanto solene
minha estrofe de mil dedos
e faço juramento:
Amo
firme,
fiel
e verdadeiramente.

O amor
(Tradução de Haroldo de Campos)

Um dia, quem sabe,
ela, que também gostava de bichos,
apareça
           numa alameda do zoo,
sorridente,
          tal como agora está
          no retrato sobre a mesa,.
Ela é tão bela,
         que, por certo, hão de ressuscitá-la.
Vosso Trigésimo Século
ultrapassará o exame
de mil nadas,
         que dilaceravam o coração.
Então,
         de todo amor não terminado
seremos pagos
         em enumeráveis noites de estrelas.
Ressuscita-me,
nem que seja só porque te esperava
         como um poeta,
repelindo o absurdo quotidiano!
Ressuscita-me,
         nem que seja só por isso!
Ressuscita-me!
         Quero viver até o fim o que me cabe!
Para que o amor não seja mais escravo
de casamentos,
concupiscência,
          salários.
Para que, maldizendo os leitos,
          saltando dos coxins,
o amor se vá pelo universo inteiro.
Para que o dia,
          que o sofrimento degrada,
não vos seja chorado, mendigado.
E que, ao primeiro apelo:
          - Camaradas!
Atenta se volte a terra inteira.
Para viver
           livre dos nichos das casa.
Para que
          doravante
a família
           seja
o pai,
           pelo menos o Universo;
a mãe,
           pelo menos a Terra.

(1923)

Vladimir Maiakovski ( 1893 - 1930 ) - Poeta -
música: O Amor - Gal Costa - composição: Caetano Veloso ( baseada em poema de Vladimir Maiakovski )

VIII (1ª) - No se puede hacer la revolucion sin las mujeres

Enganação nos bagos do assustado
Os topetes e as espigas de milho

baitasar


Naquela Montaña de mestiços invisíveis, la chola leporina era vista como um sinal de bondade dos deuses com todas as outras mujeres de Piedras Altas, Blanca foi escolhida para lembrar nossa própria perfeição. Assim, a memória habitual de abandonos e desistências seria derrotada pelas marcas a esa mujer, fariam las cholas sorrirem apesar da dor; amar apesar do cansaço; cantar apesar das fomes; dançar apesar dos silêncios; acreditar apesar das mentiras e das promessas nunca prometidas.
Blanca é uma mulher sagrada. E ali, entre os mestiços da Montaña, o sagrado era o lindo e o homem que a tocou: um beija-flor perfumado com o cheiro da laranjeira, do pessegueiro, amoreira, abacateiro; um cuitelo de vôos nervosos, mergulhos atrevidos, aqui e ali, acima e abaixo, parado no ar, no topo, enfiado até a raiz; suspenso no gozo que nos salva e permite morrer para ressuscitar nas virilhas complacentes do desejo. As mãos do colibri passaram a guardar na memória as umidades do sagrado, o buço retinha o gosto bom de estar vivo enquanto ela vive. Gemia de contentamento ao entrar pelo convite dos olhos, se derramava em súplicas de beijos e línguas. É isso, os beijos e as línguas só deveriam existir para acalmar a alma, sem tempo para tremores vulgares. Falatórios desnecessários. O beija-flor, a sua alma e os desejos
(Blanca, minha querida, os beijos avisam as carnes aquecidas, tua e minha: a língua se aproxima em lambidas perdidas entre as virilhas. Adora as rachaduras úmidas, fendas maliciosas, róseas perfumadas.)
Os vôos do beija-flor não arredavam dos olores da leporina. As mãos do colibri não soltavam das entranhas da chola sagrada. O homem pequeno pairava no ar para tomar o suco doce e graúdo que se arreganhava. As canelas tremiam e a cara se enfiava mais, adornada por gemidos e promessas
(come até acabar)
Não preciso lembrar que no meio daquela escuridão e penumbra, tocos de velas e chamas amareladas, cheiros de cera e suor, silêncios, sussurros e zumbidos, meu rosto queimava de curiosidade e medo, e vergonha. Os pés coçavam pelos embuás, mas não movia uma unha para caçá-los, que se divertissem comigo. Creio que Blanca, nos seus dias de menina, também olhava papá y su madre, papá y mi madre. Parecia-me ouvir rumores da sua boca
(Aprendes, mi hermana... aprendes.)
Não existe maldição, não existem bruxas no coração apaixonado, apenas a solidão que ama ainda mais que ontem, e por toda vida, sempre um pouquinho a mais. Até cansar e desmaiar de exaustão. A Montaña esperava resignada, sabia que o mundo não é o bastante para o gozo: ele se termina e ela está lá, olhando por cima do ombro, com uma das mãos repousadas sobre as nádegas amolecidas, nádegas adormecidas, por instantes: mortas! para aqueles dois corpos caídos.
Minha irmã não se queria sagrada, apenas se desvelou: a caverna degenerada do seu homem, arreganhada até o fundo pela espada que se juntava às suas dores. Quis o homem pequenino por seus atrevimentos de beija-flor, foi escolhido e feito amante por ela, um homem separado da manada e da Montaña. Distante como la chola leporina, sobressaltado como ela mesma, atrevido, ignorante de qualquer aberração, doce, diferente
(Adoro namorar tuas carnes, assim: enfiado, suave, abusado)
O meio-homem por baixo da minha irmã, deitado de costas, a barriga subindo e descendo indecente, até que desaparecia dentro da Blanca: o sumiço lhe arrancava gemidos, mas não eram os gemidos assustados dos cachorros, nem os gemidos perdidos das galinhas, podia jurar que eram os zumbidos das cigarras, atrevidas cantorias da desocupação. Sabemos domesticar abelhas, convivemos com baratas e ratos; esmagamos as formigas com solas cascudas, mas continuamos assustados com o canto das cigarras e os estalos dos grilos. Não entendemos as cigarras e a sua vontade de cantar para sempre.
As cantorias e estalos do anão e da leporina pareciam dizer que a vida é esse barulhamento de entrar e sair um do outro. Então, vi os cabelos do Juzé entrando na terra, como se estivessem enraizando o meio-homem na mãe de todas as mães. Até que ele se derramou para dentro daquele útero do chão
(Eu vi.) (¿Lo que vio, mi amor?) (Onde o touro esteve pode ainda estar.)
O aviso foi disparado
(O anão viu o touro.) (Onde?) (Não sei, mas ele viu.)
Antes de o galo cantar e Blanca seguir con papá para espremer as leiteiras, decidiram que o serviço precisava de ligeireza. Descoberto o esconderijo do animal o plano era simples: entrar no campo, amarrar o bicho e trazer para acobertar as leiteiras.
Na noite seguinte, no instante em que o sol retirou suas pegadas da Montaña, a lua escureceu para deixar que o brilho das estrelas flutuasse sobre seus largos cabelos e repicasse em cada pedrinha do caminho, desenhando outra via láctea leitosa de terras e pedras, uma trilha imaginária de rabiscos.
E lá se foram Juzé, Jaquín e José. O meio-homem preto ia à frente, caminhava em silêncio na estrada do pensamento, ideava a trilha com esperança para as leiteiras das Piedras Altas. O negrume daquela noite só deixava passar para as vistas a brancura da camisa, o anão era invisível, sem cabeça, sem braços, sem pernas, apenas uma camisa branca flutuava na escuridão. Aquela madrugada seria um esconderijo perfeito. O anão no circo: os olhares curiosos, os risos de afronta, os insultos, as bocas retorcidas, o cheiro da pipoca, do suor, estrumes, as risadas
(Psiu...)
Os dois maiores se entreolharam e pararam, estreitaram o olhar e alargaram os ouvidos, mas nada podia ser visto ou escutado. O pequeno ergue o queixo: farejava pelas ventanas de la nariz
(É aqui.)
Foi quando um negrinho todo marcado de apanhar apareceu com um toco de vela e abriu o caminho entre a escuridão e as trevas
(O xucro está lá no meio do campo.)
Os três seguiram no encalço do negrinho.
Os invasores mais o toco da vela e o negrinho, naquela escuridão não se viam, entraram no cercado e foram às cercanias do animal. O bicho era exagerado: de longe metia medo; de perto, aumentava a covardia.
O anão deu um passo mais à frente e arriscou uma olhadela nas virilhas do touro, queria certeza que o resultado valia o risco da missão. Primeiro, examinou com os olhos, depois, para se assegurar que as vistas não estavam se enganando, segurou as partes do bicho nas mãos.
Virou-se pensativo para sua comitiva de captura e sussurrou apreensivo
(Se o bicho não for delicado, tenho medo por Plantera.) (Tenho medo por nós, não vamos obrigar esse imbecil a nada, nem mesmo vai nos seguir.) (Calma, para tudo tem um jeito.)
Juzé enfiou uma das mãos por dentro da sua camisa branca, pegou três pequenas sacolas de pano
(Dom Carmelo disse que podíamos voltar com as mãos abanando... confiando apenas na sorte.) (O que tem dentro destes saquinhos de pano?) (O mistério da vida.) (Fala tudo de vez, homem-pequeno.)
Jaquín e José estavam ansiosos, a jornada de levar e trazer o touro, não podia com qualquer desperdício de tempo
(Esses panos carregam os cheiros das leiteiras.)
Juzé explicou: papá passou os panos entre as virilhas traseiras das leiteiras e recomendou que usassem os panos quando o touro estivesse no alcance do cheiro
(Preparem o laço.) (Começamos com qual das leiteiras?)
Primeiro a Plantera, depois a Pastora. O bicho não se abalou, não pareceu interessado, nem disposto a arredar-se daquele canto de conforto. O mistério se mostrou quando o cheiro da Tormenta balançou el toro. O animal saiu a passo, seguindo o pano branco que se mostrava na escuridão. Apenas, o lenço e a camisa branca do anão flutuavam naquele negrume.
Passaram o laço no pescoço do pretendente e saíram do cercado. Caminhavam sobre seus passos até Piedras Altas. Voltavam sobre as próprias pegadas.
Juzé levava sobre os ombros, um tempo pouco de cada lado, uma haste desbastada de árvore. No final da vara, ia pendurada a bandeira com os cheiros da Tormenta. A flâmula branca das tréguas balançava pendurada sobre o ombro invisível, esparramando os cheiros do cio da Tormenta: promessas de ficar arrebatada, como uma fenda profunda de la tierra, um abismo em que poucos mergulham pelo prazer dos mistérios escondidos, um manto de lava dos seus subterrâneos.
No fim de todas as desculpas, é apenas isto: me enteré de que los hombres tienen miedo de no sobrevivir tantos deseos; miedo de el beso robado con la fantasia de una perra, miedo, miedo... el toro es castrado, porque el patrón tiene miedo que va a comer a todas las vacas. Los misterios del amor necesita sabores y fragancias. As brincadeiras dos cheiros são os temperos que agradam às vistas e nos fazem ficar na ponta dos pés, mas precisam das mãos, das palavras, dos silêncios
(Blanca, adoro teus temperos.) (Los misterios del amor.) (As brincadeiras dos cheiros.) (Amores necesitan sabores y fragancias.) (E temperos que agradam às vistas.) — O que te passa Juzé? — os companheiros daquela viagem não entendiam os resmungos do anão no escuro. — Nada rapazes, apenas o pensamento me escapando pela boca.
O caminho na volta se usado com pressa é mais curto. Num instante, eles estavam no cercado das leiteiras. Quando o macho entrou na pousada as bichanas reagiram aos seus instintos, cada uma em seu quarto da hotelaria
As três já estavam amarradas pelo pescoço ao cercado da baia, os traseiros voltados para a porteira
(Juzé, de este modo más aburrido.) (Mas com esse touro o jeito é sem jeito, tudo às pressas.) (Qué lástima, coitadinhas.) (Você queria deixá-las mugindo e rolando pela grama do pasto? E o coronel? Sentado... vigiando o desempenho do xucro?)
O anão mantinha o brutamonte preso por las ventanas: os cheiros das gurias. O cafetão caricaturista, o touro, as fêmeas, uma a uma o macho cheirava e lambia, mas não aparentava vontade de trepar nos costados. O tempo da escuridão encurtava la paciencia de los hombres, o bichano seguia amarrado no pescoço
(O filho-da-puta do touro não se anima.) (Coitado de bicho.)
Macho de pau-de-carga mole é certeza de insubordinação. Ordens são ordens, precisavam ser cumpridas
(¿Y el amor, mi querido?) (Amor, amor... o touro só precisava endurecer as ideias e enfiar algumas delas nas leiteiras.)
Foi quando Dom Carmelo chegou para massagear o úbere das leiteiras. Pediu bacia com água morna. Molhava as mãos na água aquecida e esfregava as tetas, uma a uma. Depois se erguia e empurrava o próprio punho dentro da primeira, depois a outra, e a outra. Olhou para o anão e ordenou que o pequeno colocasse as mãos na água e esfregasse os bagos do desinteressado
(Mi amor, hermoso.) (Bem mostras que teu pai é Dom Carmelo.) (Apuesto que dio cierto.) ((Deu...) (Sus manos son magia, mi amor.)
O pequenino olhou para sua comitiva. José e Jaquín ergueram os ombros e pediram licença do serviço. O velho voltou a ordenar ao homenzinho uma esfregação de enganação nos bagos do assustado
(O que tinha que ser feito... será feito.)
O anão chamou Jaquín e José. Os dois colocaram o imprestável frente ao traseiro da Tormenta, enquanto Dom Carmelo alisava com água morna o úbere da leiteira-moça: depois arremessava o punho na fenda da leiteira; o anão mergulhava as mãos amornadas nos bagos do pretendente. Nada parecia adiantar.
Repetiram com a Pastora sem nenhum resultado prático.
Na vez da Plantera, o anão pareceu sentir nas mãos sinais de interesse do envergonhado. O interesse cresceu até que o exagerado soltou um berro imenso, ergueu as patas dianteiras e se acomodou nervoso nas ancas da leiteira. O anão foi jogado embaixo do revigorado. A missão estava se completando rápida, nervosa e intensa.
No instante que o touro se desvencilhou da Plantera, o anão gritou que Jaquín e José o colocassem na garupa da Pastora. O bicho reagiu bem e voltou a desabrochar
(¡Lo mismo con la Tormenta!)
Mas quando o xucro atirou as patas dianteiras sobre a garupa da leiteira e alongou tudo para se enfiar, aconteceu o imprevisto. A vaca empinou sobre as dianteiras e com as duas patas traseiras esmurrou o bufão endurecido.
O urro do animal acordou a Montaña.
O bicho se acovardou e deitou enroscado sobre os bagos

domingo, 21 de agosto de 2011

Ode ao Rei de Harlem

Federico García Lorca

Uma pequena apresentação

Pequeno Poema Infinito - Abertura






ODE AO REI DE HARLEM

Com uma colher,
arrancava os olhos dos crocodilos
e batia no traseiro dos macacos.
Com uma colher.

Fogo de sempre dormia nos pedernais
e os escaravelhos embriagados de anis
olvidavam o musgo das aldeias.

Aquele velho coberto de setas
ia ao lugar onde choravam os negros
enquanto rangia a colher do rei
e chegavam os tanques de água podre.

As rosas fugiam pelos fios
das últimas curvas do ar,
e nos montões de açafrão
os meninos machucavam esquilinhos
com um rubor de frenesi manchado.

É preciso cruzar as pontes
e chegar ao rubor negro
para que o perfume do pulmão
nos golpeie as fontes com o seu vestido
de quente pinha.

É preciso matar o ruivo vendedor de aguardente,
todos os amigos da maçã e da areia,
e é necessário dar com os punhos fechados
nas pequenas judias que tremem cheias de borbulhas,
para que o rei de Harlem cante com a sua multidão,
para que os crocodilos durmam em longas filas
sob o amianto da lua,
e para que ninguém duvide da infinita beleza
dos espanadores, raladores, os cobres e caçarolas das cozinhas.

Ai, Harlem! Ai, Harlem! Ai, Harlem!
Não há angústia comparável a teus olhos oprimidos,
a teu sangue estremecido dentro do eclipse escuro,
a tua violência rubra surda-muda na penumbra,
a teu grande rei prisioneiro com um traje de porteiro!

*

Tinha a noite uma fenda e quietas salamandras de marfim.
As moças americanas levavam meninos e moedas no ventre,
e os rapazes desmaiavam na cruz do espreguiçamento.

Eles são.
Eles são os que bebem o whisky de prata perto dos vulcões
e tragam pedacinhos de coração, pelas geladas montanhas do urso.

Aquela noite o rei de Harlem
com uma duríssima colher
arrancava os olhos dos crocodilos
e batia no traseiro dos macacos.
Com uma colher.
Os negros choravam confundidos
entre guarda-chuvas e sóis de ouro,
os mulatos esticavam gomas, ansiosos por chegar ao torso branco,

e o vento empapava espelhos
e quebrava as veias dos bailarinos.

Negros, Negros, Negros, Negros.

O sangue não tem portas em vossa noite boca acima.
Não há rubor. Sangue furioso por baixo das peles,
vivo na espinha do punhal e no peito das paisagens,
sob as pinças e retamas da celeste lua de câncer.

Sangue que busca por mil caminhos mortes esfarinhadas e cinza de nardo,
céus hirtos em declive, onde as colônias de planetas
rodam pelas praias com os objetos abandonados.

Sangue que olha lento com o rabo do olho,
feito de espartos espremidos, néctares de subterrâneos.
Sangue que oxida o alísio descuidado em um rastro
e dissolve as mariposas nos vidros da janela.
É o sangue que vem, que virá
pelos telhados e açotéias, por todas as partes,
para queimar a clorofila das mulheres loiras,
para gemer ao pé das camas ante a insônia dos lavabos

e esfacelar-se numa aurora de tabaco e baixo amarelo.

É preciso fugir,
fugir pelas esquinas e encerrar-se nos últimos andares,
porque o tutano do bosque penetrará pelas frinchas
para deixar em vossa carne um leve rastro de eclipse
e uma falsa tristeza de luva desbotada e rosa química.

*

É pelo silêncio sapientíssimo
quando os camareiros e os cozinheiros e os que limpam com a língua
as feridas dos milionários
buscam o rei pelas ruas ou nos ângulos do salitre.

Um vento sul de madeira, oblíquo no negro lodo,
cospe nas barcas partidas e crava pontilhas nos ombros;
um vento sul que leva
colmilhos, girassóis e alfabetos
e uma pilha de Volta com vespas afogadas.

O olvido estava expresso por três gotas de tinta sobre o monóculo,
o amor por um só rosto invisível à flor da pedra.
Medulas e corolas compunham sobre as nuvens
um deserto de talos sem uma única rosa.

*

À esquerda, à direita, pelo Sul e pelo Norte,
levanta-se o muro impassível
para o topo, a agulha da água.
Não busqueis, negros, sua greta
para achar a máscara infinita.
Buscai o grande sol do centro
como se fôsseis uma pinha zumbidora.
O sol que se desliza pelos bosques
certo de não encontrar uma ninfa,
o sol que destrói números e não cruzou nunca com um sonho,
o tatuado sol que baixa pelo rio
e muge seguido de caimães.

Negros, Negros, Negros, Negros.

Jamais serpente, nem zebra, nem mula
empalideceram ao morrer.
O lenhador não sabe quando expiram
as clamorosas árvores que corta.
Aguardai sob a sombra vegetal de vosso rei
que cicutas e cardos e urtigas turbem postremas açotéias.

Então, negros, então, então,
podereis beijar com frenesi as rodas das bicicletas,
pôr pares de microscópios nas tocas dos esquilos
e dançar, finalmente, sem dúvida, enquanto as flores eriçadas
assassinam nosso Moisés quase nos juncos do céu.

Ai, Harlem disfarçada!
Ai, Harlem, ameaçada por gente de trajes sem cabeça!
Chega-me teu rumor,
chega-me teu rumor atravessando troncos e ascensores,
através de lágrimas cinzentas,
onde flutuam teus automóveis cobertos de dentes,
através dos cavalos mortos e dos crimes diminutos,
através de teu grande rei desesperado,
cujas barbas chegam ao mar.
 
publicado no livro:
"Federico Garcia Lorca - Obra Completa"
traduzido por William Agel de Melo
Editora Universidade de Brasília
Livraria Martins Fontes Editora
http://www.culturapara.art.br/opoema/garcialorca/garcialorca_poema.htm

sábado, 20 de agosto de 2011

VII (1ª) - No se puede hacer la revolucion sin las mujeres

Seu meio-homem parecia querer lutar com as mãos, e pedras, e bagos de touro
Lábio leporino

baitasar 


Dois dias, dois meses, dois anos ou duas madrugadas, o anão nos braços e apertado entre as coxas vermelhas da vila. Os cães vagabundos latindo, assustados com todos que passavam escalando a Montaña para acutilar as covas de maíz. As mujeres vagabundas em cima de seus tamancos assustando los hombres que desciam debulhados pela Montaña, elas cobravam seu preço de homens para continuar gestando o que nunca ficava por ali: o gozo. Vila de mortos-vivos que gozam metidos em fardos para os armazéns da família Moravia.
Os intrometidos dos cães sempre fazendo alaridos, as malditas putas sempre batendo os tamancos nas pedras dos arredores de Piedras Altas.
Quando os homens de milho, cansados daquela barafunda de latidos e suspiros, usavam as forças que lhes restavam para protestar e mandar que se calassem, a maioria enfiava o rabo entre as pernas, os tamancos na sacola, se enroscava em algum canto, lambendo as feridas e mordendo moscas; outros, propensos a recusar obedecer à autoridade legítima daqueles hombres de maíz, precisavam que lhes jogassem pedras para terem alguma calmaria ou enfiassem sabugos em suas sacolas.
Parecia que a gritaria daqueles cachorros só se contentava em deszangar quando a violência lhes fazia ter em conta o perigo que corriam. Disposição para brigar, a ocasião é quem dá.
Depois que se acomodavam, desistidos de ladrar, apareciam as putas com seus passeios sem destino. Cacarejos para cima e para baixo, ciscando e esgravatando com os pés amarelados e unhas de garra, procurando restos, catando vermes e larvas no chão, nas pedras, nos galhos, destroçando baratas, formigas, minhocas, parecendo tontas, andando de um lado para o outro. Sem outro destino que cacarejar e esgravatar. Tagarelavam de maneira indigesta enquanto rasgavam o mármore de terra, parecidas com o anão, um juzé qualquer.
E foi assim, que o anão virou Juzé Qualquer.
Homem sincero com a Blanca, com a Montaña. Passou a subir e descer as carnes daqueles sublimes amores, la tierra con el alma o el alma a la tierra, montanha com noites escuras, alma com relâmpagos nervosos, saltitantes, coléricos: sempre disposto a se mostrar com encantamentos.
Eu continuava olhando aquelas iluminuras de Lua, me pareciam como um mistério de amores e promessas estranhas. Sabia e não sabia o que acontecia enquanto olhava minha irmã mergulhada no arroio apressado daquele homem. Cresci imaginando por onde andaria o meu zé qualquer, não importava como fosse o qualquer José: mas que me descobrisse sem as tiranias da escravidão da alma con la tierra. Sonhava com seu feitio puro e duro de afeto, como um trovão, longe daquela ilha de terra amontoada por cima dos nossos corpos e sonhos. A vida é o que é, o milho é o que é, nós somos o que somos, as coisas não se cambian contra a vontade da Montaña de covas: a poeira quente e cinza continua queimando, se enfiando em nossas gargantas como o punhal do assassino, o ar que se respira é o ar da escravidão. E a escravidão é o que é: apenas escravidão, donde esperança não se tem, dum lado queima e do outro assa.
Não acredito em milagres, acredito nas putas: Sen bejos, sen carños, sen las manos, apenas lo cuerno, que venha o próximo.
As putas se desmancham junto com as primeiras claridades, durante a vigília noturna aguardavam ao redor da fogueira conversando e desconversando aos cochichos. Pareciam sem nenhum destino que esgravatar por alento. As caras redondas e vermelhas assavam como fogo, enquanto os homens lhes subiam e desciam. Todas as manhãs são assim: os homens Montaña acima, os galgos insatisfeitos, as galinhas bebericando a terra, as mujeres no redor do fogo y las putas descidas dos tamancos caminham para su lecho de piedra. Isso não se desmancha do passado, otras mujeres las putas mismo. O paraíso e o destino não mudam para quem dorme em cama de pedra.
As chamas que ardiam nas entranhas da Blanca faziam a revelação do futuro, bastou poucos dias para Juzé Qualquer dizer que aceitava a missão. Foi dada por papá a ordem de buscar e trazer o touro. Uma ordem dirigida ao anão Juzé Qualquer.
O pequenino aceitou a tarefa. Estufou o peito, agradeceu a confiança e anunciou uma reunião de planejamento da missão
(Dom Carmelo, não vamos desapontar as leiteiras.) (Não precisam usar da força.) (Dom Carmelo, não acredito que um touro xucro e indomável...) (Não usem da força, mas do convencimento.)
O anão convocou os assaltadores da missão anterior: José e Jaquín. Ordenou que as mulheres não iriam. Os perigos estavam aumentados e as matrizes da vida ficavam na segurança de Piedras Altas. Não haveria argumentos para convencê-lo ao contrário. A decisão estava tomada: em terra de gavião, galinha não vinga pinto.
Primeiro, tinham missão de reconhecimento para descobrir o lugar de descanso do animal reprodutor
(Vamos prontos para achar o bicho e pôr as mãos.) (Es peligroso.) (Tudo tem perigo, mas se faz tudo na primeira viagem, se der no jeito.)
Quando o esquadrão foi para as despedidas con sus mujeres, minha irmã chamou o pequeno às falas, reclamou que estavam fazendo castelos no ar y el miedo comia por dentro: flor caída não volta ao galho
(Mas eu vou voltar.) (¿Qué es esto?) (Não posso mais desistir.) (No seas loco, te van arrastrar a fuerza.) (Subo a Montaña e não me acham.) (¿Y vamos a vivir a escondidas?) (Sim.) (¿Y por qué eso ahora?)
Blanca sabia que depois do sequestro do touro não bastava ao juzé esconder-se, ela precisava ser asilada. A fúria do exército pelo confisco do touro recairia sobre todos na vila. Nunca mais sairiam daquela Montaña de choros e lamentos, cachorros e galinhas, ratos e baratas, o começo do fim de tudo, naquele chão de latidos e cacarejos. Seu meio-homem parecia querer lutar com as mãos, e pedras, e bagos de touro. As coxas se afrouxaram e não lhe deixaram escapar a umidade despejada. As carnes perderam o interesse
(O que foi Blanca?) (Tienes que volver a tu puesto de amante.) (A vontade não me falta.) (¿Qué esperas de esta montaña?)
Via escapar por entre os dedos a estrada de saída para outro mundo. Um mundo de vestidos novos e cheirosos, água abundante e perfumes, conversas alegres, comida farta na mesa, escolas para os filhos, sem cachorros ou galinhas; uma casa com pisos de madeira e telhados de barro cozido, sem palhas, piolhos. Banheiros de louça branca, sem buracos no chão, longe das mordidas das peçonhas. Calçadas para caminhar no ir e vir do mercado de alimentos. Tanta coisa para ir ao encontro e o outro lhe quer deixar escapar. Sonha em ficar. O sonho dele é o pesadelo para ela. É isso: quem não ficou acorrentado por conta da vontade do seu dono, não dá tamanho de importância à liberdade. Gente assim é um perigo, brinca de faz de conta, jurando que é de verdade porque sempre tem uma escolha que não seja a morte: quem nasceu na liberdade, não lhe sabe o cheiro. O pequeno lhe assegurava que não existe liberdade, todos têm que obedecer um patrão, todos têm um dono. O mais difícil é descobrir isso, pois uma decisão precisa ser tomada: dizer, sim senhor, ou gritar que não tem dono, sair pelo mundo das ruas, ou lutar. Fazer o que estavam fazendo
(O respeito que nunca terei no mundo da brancura, me acreditam pela metade.) (La montaña no respecta a nadie, sólo toma lo que necesita.) (É uma vida mais natural.) (Lo que hay de natural em abonar la tierra con el propio cuerpo.) (Todos vamos adubar, mais cedo ou tarde.) (Por acá, siempre es muy pronto cuando uno sirve de abono.) (Aqui é o paraíso!) (Un paraíso que manca, juega con la vida.)
Para Blanca, isso não era justo, sabia que a Montaña não queria lhe retirar daquele mundo de covas, adubos, tiranias e mortes injustas. Su hombre estava enfraquecido por sonhos encantados. Ela me sussurrava, enquanto cantarolava cantigas para afastar as vozes da Montaña: se pode viver sin la hermosura, la gracia, la simpatía o el talento, mas o encantamento dos sonhos pode enfraquecer a verdade dos dias na Montaña: jamais desmerecer o duro esforço de sobreviver.
Sonhar sem esconder a própria realidade, desinventar a mentira que nos faz enfiadas em tocas, medrosas da própria vida. Somos assim, mariposas noturnas.
Dizia que tinha direito a uma vida, pois esta sua vida ela não reconhecia como vida, reconhecia como um contrabando de vida. Estava desconfortada com sua sorte, seus lamentos ladravam o desilusório com a Montaña de maíz. Uma religião de trabalho e morte. Todos são abafados e asfixiados até que o pescoço se quebra.
Os tempos sempre foram duros aos camponeses, o amor nunca foi deixado em paz por moscas, cachorros, galinhas e putas. A quentura ardente está ali para lembrá-los da sua aparência de raiz e adubo. A poeira quente avisa quando o campo está sendo pintado de cinza, tempo em que o verde das folhas e o amarelo do milho se reduzem a escórias, enquanto são feitos os preparos do plantio. O jeito de cultivar na Montaña é cortar e queimar, deixar a terra no descanso e quando a vida sobrevive sobem para jogar o milho dentro das covas. É das cinzas que renasce a fertilidade das covas.
Minha irmã gostava do companheiro: faz rir e se mete de um jeito que lhe apetecia ficar arriada ao seu lado na esteira, nua, sonhando viver longe da aguardente de milho e dos bailes suados no pátio, mas metia medo aquele jeito de procurar confusão com gente grande. Já bastavam os suores do dia após dia.
A transpiração da Montaña prometia apenas fumaça e morte cinza
(O meu mundo é apenas de aparências.) (¿Qué crees que se pasa por acá?) (As pessoas são mais puras.) (Simple. Simple.) (É mais que isso, são ingênuas e desconhecem a maldade.) (Qué tontería dices, somos calaveras criaturas.)
O anão já estava em pé, parado na porta, olhando para a trilha de águas negras que escorregava entre os cães das galinhas, as crianças dos velhos. Precisava concordar com Blanca, ali não estavam seguros, além dessas garantias de sobrevivência de camponês desnecessário, destes que existem em abundância: nascem às pencas como bananas e não duram tanto.
Juzé desgrudou o ombro da porta e se virou. A penumbra das velas se aliviava com o escurecimento da noite e com a dor da sua descoberta. Seus olhos estavam grudados um ao outro. Caminhou letargicamente para aquela mulher de pele avermelhada, sem pelos escondidos, olhos tristes e desafiadores. Até estar ajoelhado ao seu lado
(Queres mesmo se ir?) (Sí, quién se queda solamente tiene um destino, escalar la montaña.) (Sinto que este é o meu destino.) (No, quizás sea mi destino.) (Quero você.) (Yo también, pero lejos de esta montaña de maíz.)
As estrelas já lhe requentavam as costas. O vozerio de cantoria das mulheres caminhava entre as paredes e o invadia.
Os ratos em correria atravessam os sítios e as palhas correndo, sempre nervosos. Não, Blanca não queria mais aquele jeito de luto: uma vida injusta e carregada com os rastros da sonolência, com suas vozes de colibri. Sonhava com as senhoras finas e delicadas.
O seu homem se foi e quando la escuridade embelleció la tierra, subindo como manchas negras pelas paredes de barro, até transformar homens e mulheres em borrões sombrios, ela se amaldiçoou, mas já estava sozinha
(Imbécil, vive por él, calla y muere.)
Só na saudade, só na solidão. Lutando contra mosquitos que se avivam roubando o sangue dos campesinos para suas barrigas.
As ratazanas, as baratas e as formigas seguiam seus caminhos de rastros. As moscas cansadas das trevas dormiam, ela sonhava com a claridade que sempre retorna. Os seus zumbidos cessaram para retornar com a zoada da pobreza. O descaso da menor valia. O que já é ruim pior ainda fica. Las putas sobem nos tamancos, se aproximam com suas caras redondas e vermelhas para assar junto ao fogo: los dientes amarillos y las uñas corroídas con el color de la tierra. Raparigas roliças, ausentes.
São razões que diziam para Blanca partir daquela morte de agonia.
Las mujeres angustiadas têm os olhos cansados de olhar a Montaña acima, esperando para ver seu homem descendo. Até que caem de joelhos pedindo perdão. E assim, agachadas, agarradas em suas pernas, adormecem de olhos abertos. Oram baixinho, agradecem a benção da volta dos maridos. Estão grudadas naquela terra como as suas pegadas. Amamentam enrugadas enquanto os rastros vão de lá para cá: de um lugar a outro, sem jamais sair da terra. Sabem do seu calor ou do seu frio. Entendem quando a terra adoece, não há o que fazer além de ficar esperando, como sombras que se vão e voltam sobre as próprias pisadas.
Los hombres desciam com os olhos cansados de olhar através da terra a Montaña de maíz, até que caiam de joelhos agradecendo a própria vida miserável. Conformados com o que sempre tiveram. A Montaña é dos ricos e pensa como os ricos, ela é desconfiada como os ricos, ambiciosa como os ricos, têm suspeição que os pobres mais um dia, menos um dia, vão enganar os ricos. Esse é o seu destino: adoecer pelo medo de ser tapeada pelos miseráveis. É prática, não tem idealismo de humanidade, solidariedade, ela é só em sua solidão de avareza. Não se comove com desesperos patéticos.
A luz amarelona da vela iluminava o rosto de Blanca, frente a frente, naquele caco de espelho, o lábio leporino aparecia rasgado pela falha da transparência
(No me gusta las noches de verano.)

Festa De Arromba

Roberto Carlos e quase toda turma


quarta-feira, 17 de agosto de 2011

VI (1ª) - No se puede hacer la revolucion sin las mujeres

Tudo entre os dois foi tesão

O anão
baitasar


O anão era um hombre preto, pobre, e atarracado, com um sorriso estranho pendurado abaixo dos seus dois olhos verdes. E ele nem era tão preto assim. Os cabelos não eram de gente preta, mas de cholo, caídos até os ombros. Minha irmã contava que ele enxergava com os olhos fechados. O homem pequeno sentia as dores do mundo, antes do galo cantar e a cachorrada gemer assustada; antes de olhar para o dia que rasga a escuridão e vai escondendo a Via Láctea leitosa; antes de fazer sair do sono qualquer pedacinho de si mesmo, antes de brotar nas cobertas de dormir da mestiça. Via o que não conseguia com os olhos abertos. Cada vez mais, mas somente depois de reunir suas carnes com as carnes amorosas da Blanca, depois de misturarem suas águas, bebidas com desejo veemente, o sono chegava de maneira generosa, fazendo suas raízes rasgarem a esteira e enfiadas no plano simples de la tierra, amanhavam o anão na Montaña. Desde a primeira madrugada, como em tantas outras, ali, longe das lidas no circo, enroscado en las piernas de la chola de mais um amanhecer amareleço, ele se deixava a exaustão pela mandinga da sensualidade da leporina e as forças do chão que agarravam os seus cabelos até transformá-los en raíces que cresciam em direção inversa a la de la cabeza.
Seus segredos entravam na cabeça com cabelos enfiados en la tierra e faziam crescer mais, enquanto os pelos de seu corpo sumiam. O homem ficava lisinho nas virilhas, no rasgo entre as bundas, nos braços, nos peitos. E assim, com o couro cabeludo cheio ao exagero, cabelos pendurados até os pés, o anão perdia o gosto caminante e virava índio, único jeito de se enfiar nas virilhas da Blanca e voltar vivo, gente de todas as gentes. Desaparecia el payaso ensinado a matar con sus dichos o hechos, renascia o homem desmanchado no colo da mãe Blanca. Reaparecia no sono, em seu ventre, com os olhos de enxergar o mundo que veio e já se foi, acordava e não sabia o que viria, apenas o passado do ainda não acontecido. O futuro que já tinha ido sem passado.
E assim ia e vinha de acontecido enxergado e fato atravessado en sus ojos. O milagre daquele feitiço se dava para sus ojos en las piernas mestiças de Blanca, os olhos verdes eram acordados pelo feitiço encantado en las piernas. A ternura daquela paixão tinha mais força que o bruxedo das ervas. Quando entrava en la joven Blanca o mundo do homem pequeno se aquietava, os barulhos da montanha silenciavam as guerras, acabavam as dores que se aproveitavam do medo, os sofrimentos ficavam encantados em uma nuvem cinzenta assoprada pelos espíritos para longe, ao redor do mundo, descobrindo e ouvindo, cantando e sorrindo, assim, quando retornassem, estariam com as feridas cicatrizadas. Não evitou um sorriso irreprimível, um sorriso malicioso.
Carregava sempre na cintura o nariz del payaso. Tinha o capricho na feitura das pinturas coloridas, elas deixavam o seu rosto com jeito triste e tímido. Brincava de risadas, a verdadeira profissão do anão. Depois que acabaram suas tintas, el payaso usava as cores da Blanca descarregadas dos seus líquidos de amor
(Gosto de acordar nos abraços da minha gente.) (No somos tu gente, nosotros crecemos hacia abajo, dentro de la tierra.) (Estou aprendendo o jeito de aprofundar-me dentro de la tierra.)
Blanca tinha razão: éramos feito um povo oculto de criados, invisíveis no serviço natural de servir, acostumados com o proveito de adubo para o milho. Desenterrados de la tierra ficavam os viejos, esqueletos sem dentes ou boca, los ojos de llorar. Os jovens não envelheciam e se envelheciam ficavam mudos, desdentados, enrugados. Estrelas decadentes de un tiempo viejo, desfigurado de humanidade amorosa, esvaziado de pássaros, lírios vermelhos, madressilvas cheirosas, mas repletos de víboras encantadoras com veneno charmoso.
O próprio anão era um desconjuntado. Levantava suas vergonhas antes do amanhecer e saia caminhando entre las construcciones rústicas pequeñas y toscas, cubiertas de ramas, viviendas de gente humilde, povoado de resignação. Na certa, lembrava da sua vila, todas são tão parecidas. Pastores, lavradores, pescadores: pobres mortos todos os dias do mesmo jeito e pela mesma espada. Invisibles a sus amos. Blancos.
As luzes das lamparinas se ofuscavam com as claridades do dia, enfeitiçadas com sua beleza estonteante, resignadas por sua força desumana. Ficava no ar o cheiro do esgoto, vertendo ao léu a teimosia daquele sangue preto, escorrendo pelos trilhos de la tierra até se enfiar chão adentro. Córrego com as imundices humanas sem esperança, mortas no tédio, desprezadas. Cagadas até serem enfiadas chão adentro.
Os cachorros não pareciam cães de guardar vigília. Não, não naquelas horas da madrugada; nem velório; nem arruaça, nem ladrão. Moviam as orelhas e espantavam suas moscas. Flagelavam o rabo, o próprio costado, o azado suplício. Não tinham alma, nem dono, nem patrão, apenas aquelas moscas que nunca fugiam. Acostumadas com os mesmos movimentos: cholos caiporas saindo das suas viviendas de barro como moscas, um a um. Esvoaçando descalços pelo chão de tierra, descalçados, encardidos nas confusões das vozes.
Os moinhos da roda d’água não paravam en las tierras del Coronel estavam siempre girando suas pás rolantes, triturando, machucando os grãos de milho, esfarelando, pero en Piedras Altas o fubá grosso e o mimoso seguiam sendo apertados en las piedras das mãos, as pás eram seus braços. A canjica e a pamonha morna eram fermentadas no fogão com tijolos de barro. O fogo ardia por toda à noite e seguia queimando os gravetos nas claridades do dia, siempre. Tripas cinzentas e miseráveis se erguiam preguiçosas acima da pequena vila, a picumã esfarrapada escapava em pequenos tubos de chaminé e sumia com os assopros tênues dos espíritos da Montaña.
O preto sem tamanho de homem sentia vontades que se cumpriam naquela Montaña. Enfeitiçado por mulher amorosa, permitiu ao espírito do seu corpo pequeno esparramar-se feito o picumã cinzento. Os pequeños assopros em suas virilhas aprontavam suas vontades, sentia que precisava marchar e subir a Montaña para os seus afazeres de viver e morrer.
O circo de lona lhe chegava às memórias como uma baforada quente, mas era o hálito amanhecido daqueles hombres abandonando sus mujeres, sus hijos, subindo e subindo na direção del cielo, no endereço da morte, Montaña acima, que lhe provocava clareza: un hombre cariñoso se realiza en un solo lugar, con su mujer amorosienta.
Virou as costas para os cachorros, moscas e cholos desacordados, andando na missão de morrer pela Montaña do Coronel. Voltou para su mujer amorosa. Entrou pela cortina de bambus protegendo a porta. Caminhava pelo chão de palha entrelaçada, uma trilha sobre la tierra que latejava para ser fecunda, domesticada por los pies, ojos y manos, submetida ao hálito caloroso da boca suspirando
(te amo) (te quiero)
E lá estava Blanca com seus cabelos negros e longos, na volta do milho domesticado. La tierra esperava até ser colhida na haste del maíz, enquanto la mujer cantava e sorria
(¿Por que me miras?) (A inocência da vida.) (¿Qué es esso?)
Não respondeu enquanto se acercava. Os olhos estavam miúdos. Cinzas. Parou ao seu lado, su pierna tocava o ombro esquerdo da joven.  Ela ergueu su cabeza en fuego, ela era o fogo, e enfrentou os olhos daquele hombre empapado em sortilégios. Ele dobrou-se, ficando agachado em frente en la mujer, ergueu as duas mãos e segurou seu rosto apimentado. Estava cheio do desejo e da natividade daquela Montaña. La mujer amorosa era su amor, su Montaña.
O hombre sentou na esteira e esperou Blanca que se aconchegou sobre o colo. Sentia a simplicidade da vida se derramando toda líquida, ela era o pântano das águas. Ele foi empurrado para trás até ficar todo estendido e nu, as ordens de permanecer deitado chegavam pelos dedos mágicos da mulher em reboliço. O pelo emaranhado do cabo roçando na pele avermelhada, fez la joven sorrir de cócegas e mostrar seus dentes brancos com a cera do leite. Talvez ele não merecesse aquela mujer atrevida com suas carnes, talvez ela nunca andasse a cavalo, mas agora que sentia gozo da montaria os olhos do preto chamejavam. Os lábios se enchiam avermelhados e úmidos, como beijos desaforados. Sabia que as cercas só existem para os vivos, colocou a mão do coração nos cabelos daquela mujer, eram negros como a noite da coruja. Ela desgrudou os cabelos da nuca e num movimento para trás se fincou mais fundo, queria que este hombre não sentisse falta da aguardiente nem de subir la Montaña del maíz. Não precisavam escapar-se dali. E como um bicho domado la sonrisa se ensanchó.
Ficavam assim, parados, montados em silêncio, sem medo e alargados. Ele enfiado en la tierra
(¿Qué es?) (A menina corre perigo...) (¿Qué pasa?) — fez silêncio.
Blanca jogou os seus longos cabelos para trás, passou as mãos pelo rosto e juntou todos os fios negros num rabo, deu voltas em si mesmo, o sorriso lhe escapava satisfeito. Ela estava feliz. Os caminhos estranhos, deste mundo, lhe haviam entregue este hombre de cabelos estranhos e que ficava tão bem de sombrero. Não havia como entender tantos mistérios. Por ora, lhe bastava subir em sua montaria de pelo eriçado e galopar entre os milhos de ouro. Braços abertos e os dedos tocando aquelas hastes erguidas de covas rasas Montaña acima. O vento quente queimando seu rosto avermelhado. Suas águas lhe descendo como nunca antes lhe acontecia.
Lembro da primeira noite que o anão passou acampado em nossa casinha. Ali, deitada, assustada, fingindo dormir, espreitava Blanca e seu homem-metade, iluminados por um pequeno toco de vela. Meu coração acelerava até estremecer e sair em galopes por minha garganta. Eu parecia um tambor enfeitiçado, pum, pum, pumpumpum. Meus olhos fingidos de dormidos puderam ver minha irmã se tornando mujer, sentada em cima de seu homem. Escolhendo o jeito, escolhendo o tempo, primeiro ela pareceu fazer um muxoxo de dor, como um desassossego que precisava desvelar, romper, para depois se arredondar num sorriso de confiança e entrega. Nem que passe toda minha vida, irei esquecer a sua voz de contentamento, o seu jeito de entregar, mas querendo tudo
(me enfia te enfia)
Levou as mãos ao fogo e as devolveu aos olhos, manchadas
(Hombre, estoy sangrado.) (Doeu?) (No, me besas de alegría.) (Agora, também temos a nos prender um ao outro... o sangue.) (¿No te causa enfado?) (Estou a beber tuas águas, não me importa a cor.)
Blanca se acomodava na montaria daquele hombracho. As curvas e retas desenham caminhos imaginários de êxtase e movimentos intocáveis de beleza. Ele afundava perdido dentro da mujer entregada, toda arreganhada, numa intimidade que nunca tive em minha vida
(¡Dios mio, no tengo como pagarle!) (O que foi mulher?) (Gemidos, mi hombre, solamente lamentos.)
Jamais sentira assim seu corpo, despojado de todos os líquidos que voltavam e voltavam a se derramar. Todos seus pedacinhos de mujer que este hombre tocava, atiçavam vertigens insuportáveis de prazer que lhe percorriam, queriam escapar. Tremia e pedia que parasse, gemia e suplicava que continuasse. Queria o que não mais podia e se abandonava àquela luxúria de pecados: se for para pecar que o proveito venha sem o remorso de não ter-se aproveitado até a raiz daquele caule de homem, de santo, de pai nosso
(Vaya hombre! No me dejes!)
A montaria empinava e continuava galopando aquela estrada avermelhada. Blanca aparecia e desaparecia do caminho com seus cabelos longos e negros, uma mujer montada em galopes pelos ventos da montanha, com seus vestidos obscenos de sangue e gozo, silêncio e gemidos, súplica e rezas, rejeição e dúvidas
(Gostas assim?)
Dizia que sim sem abrir os lábios. Suas carnes ardiam como aquele fogo de ventos e pântanos. Ele sabia que sim, ela gostava assim, bem fundo e mais lento. Em tudo ele devia estar vigilante, empenhar-se até o seu encantamento, e assim preenchida, subida de pernas abertas, a mujer sentia as mãos atrevidas do anão payaso, apertando a maciez das carnes de suas ancas, afastando e aproximando.
De súbito, aprumada, abria os braços, levava as mãos aos cabelos, abraçava a si mesma e estremecia pela seiva do caule, deixava-se cair deitada sobre o peito desacomodado daquele hombre ofegante. Afogados.
Ficavam-se assim, um dentro do outro, escorrendo e desaparecendo. As águas voltando mansas para o seu curso. O coração corredor retornando manso para dentro da alma da Montaña. Ele se enraizando.
Quando o hombre acordava, Blanca lhe passava pelo corpo um pano úmido, com as lágrimas que lhe vinham dos olhos amendoados
(O que te passa?) (La tristeza de la alegría que se há ido.)
Ficava ali, deitado, o cuerpo adormecido pelas águas derramadas, os olhos fechados, sendo lavado aos pedaços, puesto en la tierra soñando.
Os velhos enrugados, agachados, com seus cigarrinhos de palha na mão ou na boca, esperavam a fumaça lhes encher os pulmões, para depois jogá-la para fora pela boca pequena, quase escondida, quase cerrada. O sombrero enfiado sobre suas cabeças desenhava um círculo de sombra em seus pés. Tinham os olhos parados como um moribundo no deserto, sedentos e desobrigados da própria vida. Entregues ao alquebramento. A falta de esperança é como a água quando se derrama e nos escapa das mãos, entre os dedos. Resultava que os velhos ficavam quietos até que a sede se tornava insuportável, erguiam o corpo até o cocho das mulas e mergulhavam a cabeça na água estocada. Ninguém falava, apenas seguiam seu caminho enquanto os cães ladravam: as galinhas andavam de um lado a outro, esgravatando nervosas, procurando en la tierra algum conforto miserável, até que sem queixas eram degoladas. Os niños brincavam entre alaridos na terra, cresciam olhando sem ver. Jogando bola con sus cabezas cortadas.
A cidade faz o hombre e a mujer perderem o sentido da naturalidade porque seus pés não tocam mais a terra, o húmus suculento está esquecido e abandonado sob toneladas de pedras e construções. As gentes de milho daquela vila, também espiam à vida, não são hombres y mujeres singelos, estão mortos na submissão. Precisam de heróis para empunhar suas espadas de pedra. Não cortam las cabezas, sus gallinas no tiene cabezas.
As mujeres, por aquelas horas, já subiam e desciam com o vasilhame d’ água sobre suas cabeças. Recolhiam das valas e canos refeitos depois da última enxurrada. A pequena vertente na montanha podia se tornar um córrego, depois num rio vigoroso, Montaña abaixo, na estação das chuvas. Nenhuma das mujeres falava, apenas seguiam seu caminho enquanto os niños ladravam e os cães faziam alaridos.
O calor já era quase igual ao fogo que descia dos milhos, não havia muito que fazer, talvez descer a Montaña e caminhar pela cidadela até o mar. Os montanhistas não se sentem bem sem a pura vida da terra sob os pés, perdem a naturalidade da obediência, então não descem. Ficam em silêncio, lá por cima, brotando resignados do chão. Rezando e cantando para os deuses da Montaña. Sacrificando seus jovens para aplacar sua ira ofendida. Sem reclamar ou duvidar das intenções divinas
(Vá até o teu outro hombre e diga que quero a vaca!)
A quietude dos alaridos costumeiros fora estilhaçada, ouviam os reclames de um hombre
(O que é isto, Blanca?) (No te molestes, quedate echado encuanto te limpio.) (Esses gritos...) (Es Jacinto, cobrando su vaca.) (Vaca?)
Ali, na Montaña dos milhos, era costume: se um hombre encontra sua esposa deitada com outro, que a perdoe, mas exija do rival, como castigo, que lhe dê uma vaca
(Blanca, não faça isso comigo, não tenho onde enfiar uma vaca!) (Tonto! Imbécil!)
As ingenuidades da vida são desta maneira, vem e vão com as ocasiões, para aqueles dois se acercavam de novo. Não perdiam tempo com encenações. Estavam de novo abraçados. O anão se acomodava de vez na montaria daquela mujer. Estava montando Montaña acima. Por isso, por essa vontade de comerem um ao outro, o dia de descer ia e vinha sem decisão tomada.
Mesmo depois do tempo passado e seguindo já acostumados um com o outro, o medo se aproximava e escurecia os olhos da minha irmã, sabia que o fim de tudo já estava na estrada, viajando para dar-lhe notícia
(¿Por que mi amante?) (O que foi querida?) (¿Por que te penso e te quero a cada instante?) (Não sei, amor.) (Supongo que ambos deseamos lavar la alma.) (Te amo.) (Tu amor es como um puñal.)
Os espaços de minha meia-irmã Blanca estavam loucos para serem ocupados, o meio-homem dedilhava seu corpo, a canção tocava em seu coração, cantavam palavras amorosas, faziam poesia olhando-se em sorrisos, abraços, carinhos, tudo entre os dois foi tesão.
¿Cómo pueden dos miserables tanto amor? Não sei, minha amiga, não sei. Não é natural. Não é adequado amar tanto entre tanta desgraça.