domingo, 30 de setembro de 2012

'Love Of My Life'

Queen

Live at Wembley 1986



Love Of My Life
Queen


Amor da minha vida, você me feriu
Você quebrou meu coração,
e agora você me deixa.
amor da minha vida, você não pode ver?

Traga de volta traga de volta,
Não tire isso de mim,
Porque você não sabe
O que isso significa para mim.

Amor da minha vida, não me deixe,
Você pegou meu amor,
E agora me abandona,
Amor da minha vida, você não pode ver?

Traga de volta traga de volta,
Não tire isso de mim,
Porque você não sabe
O que isso significa para mim.

Você vai se lembrar
Quando isso acabar,
E está tudo no caminho,
Quando eu envelhecer,
eu estarei ao seu lado,
Para lembrá-lo como eu ainda te amo
Eu ainda te amo

Voltar, venha ele de volta
Por favor, traga-o de volta para casa para mim,
Porque você não sabe
O que isso significa para mim
Amor da minha vida
Amor da minha vida
Whoah

Composição: Freddie Mercury


Rock Montreal 1981




Love of my life
Queen

Love of my life, you've hurt me
You've broken my heart and now you leave me
Love of my life, can't you see?
Bring it back, bring it back, don't take it away from me
Because you don't know what it means to me...

Love of my life don't leave me
You've stolen my love* and now desert me
Love of my life, can't you see?
Bring it back, bring it back, don't take it away from me
Because you don't know what it means to me...

You'll remember when this is blown over,
And everything's all by the way
When I grow older, I will be there at your side to remind you
How I still love you, I still love you...

Hurry back, hurry back, don't take it away from me, because
You don't know what it means to me

Love of my life,
Love of my life...
Uhhh... Yeah..


Composição: Freddie Mercury

on Fire Live na bacia 1982



Aula de violão


sábado, 29 de setembro de 2012

Play again, Zé

Zé Ramalho
Beira Mar




Chão de Giz




AVOHAI




Beira-mar
Zé Ramalho

Eu entendo a noite como um oceano
Que banha de sombras o mundo de sol
Aurora que luta por um arrebol
Em cores vibrantes e ar soberano
Um olho que mira nunca o engano
Durante o instante que vou contemplar

Além, muito além onde quero chegar
Caindo a noite me lançou no mundo
Além do limite do vale profundo
Que sempre começa na beira do mar
É na beira do mar

Olhe, por dentro das águas há quadros e sonhos
E coisas que sonham o mundo dos vivos
Há peixes milagrosos, insetos nocivos
Paisagens abertas, desertos medonhos
Léguas cansativas, caminhos tristonhos
Que fazem o homem se desenganar
Há peixes que lutam para se salvar
Daqueles que caçam em mar nebuloso
E outros que devoram com gênio assombroso
As vidas que caem na beira do mar
É na beira do mar

E até que a morte eu sinta chegando
Prossigo cantando, beijando o espaço
Além do cabelo que desembaraço
Invoco as águas a vir inundando
Pessoas e coisas que vão se arrastando
Do meu pensamento já podem lavar
Ah! no peixe de asas eu quero voar
Sair do oceano de tez poluída
Cantar um galope fechando a ferida
Que só cicatriza na beira do mar
É na beira do mar

Composição: Zé Ramalho

Chão de Giz
Zé Ramalho

Eu desço dessa solidão
Espalho coisas sobre
Um Chão de Giz
Há meros devaneios tolos
A me torturar
Fotografias recortadas
Em jornais de folhas
Amiúde!
Eu vou te jogar
Num pano de guardar confetes
Eu vou te jogar
Num pano de guardar confetes...

Disparo balas de canhão
É inútil, pois existe
Um grão-vizir
Há tantas violetas velhas
Sem um colibri
Queria usar quem sabe
Uma camisa de força
Ou de vênus
Mas não vou gozar de nós
Apenas um cigarro
Nem vou lhe beijar
Gastando assim o meu batom...

Agora pego
Um caminhão na lona
Vou a nocaute outra vez
Prá sempre fui acorrentado
No seu calcanhar
Meus vinte anos de "boy"
That's over, baby!
Freud explica...

Não vou me sujar
Fumando apenas um cigarro
Nem vou lhe beijar
Gastando assim o meu batom
Quanto ao pano dos confetes
Já passou meu carnaval
E isso explica porque o sexo
É assunto popular...

No mais estou indo embora!
No mais estou indo embora!
No mais estou indo embora!
No mais!...

Composição: Zé Ramalho

Avôhai
Zé Ramalho

Um velho cruza a soleira
De botas longas, de barbas longas
De ouro o brilho do seu colar
Na laje fria onde quarava
Sua camisa e seu alforje
De caçador...

Oh! Meu velho e Invisível
Avôhai!
Oh! Meu velho e Indivisível
Avôhai!

Neblina turva e brilhante
Em meu cérebro coágulos de sol
Amanita matutina
E que transparente cortina
Ao meu redor...

E se eu disser
Que é meio sabido
Você diz que é meio pior
Mas e pior do que planeta
Quando perde o girassol...

É o terço de brilhante
Nos dedos de minha avó
E nunca mais eu tive medo
Da porteira
Nem também da companheira
Que nunca dormia só...

Avôhai!
Avôhai!
Avôhai!

O brejo cruza a poeira
De fato existe
Um tom mais leve
Na palidez desse pessoal
Pares de olhos tão profundos
Que amargam as pessoas
Que fitar...

Mas que bebem sua vida
Sua alma na altura que mandar
São os olhos, são as asas
Cabelos de Avôhai...

Na pedra de turmalina
E no terreiro da usina
Eu me criei
Voava de madrugada
E na cratera condenada
Eu me calei
E se eu calei foi de tristeza
Você cala por calar
Mas e calado vai ficando
Só fala quando eu mandar...

Rebuscando a consciência
Com medo de viajar
Até o meio da cabeça do cometa
Girando na carrapeta
No jogo de improvisar
Entrecortando
Eu sigo dentro a linha reta
Eu tenho a palavra certa
Prá doutor não reclamar...

Avôhai! Avôhai!
Avôhai! Avôhai!

Composição: Zé Ramalho

O faz-de-conta da fofoca


Becos sem saída - Penumbras e Descartes
II
baitasar
Vencemos outra noite na mais absoluta pertinência de sonhos. E é apenas isso quando o sonho nos pertence, uma delícia que não se desfaz e vira o que a gente gosta. Amanhece.  A vida como ela é recomeça, outras emoções e embolsamos o título de bem-comportados. O coração esfria. A imobilidade do abandono me alcança, enquanto as janelas fechadas conservam as cortinas sem movimentos, com os braços estendidos para os lados, foram deixadas abertas e são tingidas pelo sol com manchas amarelas. O desânimo só faz aumentar. Os véus com estampas de crianças azuladinhas que parecem brincar suam e escorrem ao longo das basculantes. Os panos permanecem em pé, seguros por pequenas roldanas, costuradas em suas malhas. Prisioneiros dos trilhos de alumínio, todos temos nossos caminhos de ferro. A luz passa sem vigor. O cheiro de mofo e o bolor do cotidiano enchem corredores e prateleiras. Isso aqui é muito chato quando as claridades afastam as quixotices. O estalar das manhãs é estilhaçado por passos metódicos, insistentes, miseráveis e desprezados. Parecem cansados. Desmontados. Chegam como árvores desbastadas, só em esqueletos. Paus sem vida. Penso que podem ser estes a pegar-me, haverão de dar-me um fim. Tenho insistência nisso, não consigo evitar, é a consciência do acabamento inevitável. Quando for reaproveitado não serei mais eu, mas outra coisa. Sem memória e sem história, exatamente isso: uma coisa  qualquer, útil e sem graça, terei me perdido a diferença que faço agora. Lixo reciclado.
O primeiro sinal da campainha estridente faz avançar o esquadrão de elite às zonas de combate. Saem das trincheiras com seus mosquetões nas mãos e as baionetas caladas. Avançam silenciosos, os mais cansados pelo tempo perdido já não rezam, nem perderam a fé em dias melhores, que sabem que não viram, os mais recentes – nem por isso, menos cansados – cochicham que daqui para frente essa tal impassibilidade só faz piorar, enquanto aguardam a bala perdida que irá arrancar algo de si, quem sabe a vida. É uma pena, esses jovens deixaram de correr riscos reais pelo tédio da conformidade, da gordura, das doenças, das varizes: envelheceram do coração antes dos músculos e das rugas.
O andamento fantoche cresce e se aproxima. Sei do que é feito: tem o caminhar da meiga senhora que nos detesta, mas precisa conviver com seus desafetos. Foge das crianças como o diabo da cruz, mas precisa manter aparências de carinho. Lê resenhas e faz de conta que leu o livro. Não me lembro de algum contato mais íntimo que o da rejeição desta senhora. Reconheço a voz e a andança, jamais senti um toque amoroso ou nervoso nos seus passos arrastados. Ela vem com as vontades de não vir, pretensões frias ou mortas. Espera aposentação honrosa do serviço oficial. Junte às outras duas organizadoras e temos duas – como se existir fosse não existir – lhe falta a amorosidade que foi perdendo em conta-gotas. Eu sei que meu julgamento é duro e injusto, me sinto mais penoso no início das manhãs. Penso às vezes com agrado nas possibilidades do futuro, mas são raras vezes. Vocês precisam entender o sabor amargoso de tudo que está dito, é difícil olhar o mundo daqui, esquecido nestas estantes. Não quero despedidas nem ficar choramingando, mas é como dormir com os pés para fora da cama e acordar com dor na garganta, irritada por não conseguir evitar de esticar as pernas para fora das cobertas
—        Silêncio! — está bem na horinha da visitante carrerista. Torno a pedir silêncio. Prendo a respiração. A chave entra no fecha portas e gira com esforço, reconheço aquele falar baixo e com mau humor — Merda... ainda descubro quem mudou esta fechadura.
Não é preciso ser um gênio para perceber sem detença que o humor dos resmungos da Marosca não mudou. Num esforço sobrenatural tento erguer-me, mas é tudo em vão. Permaneço deitado de costas, desencostado, fechado e inútil. Não entendo esses que gostam da utilidade ineficiente de ficarem estendidos sem uso de leitura, porcelanas decorativas entocadas em si mesmas, novinhos e intocados, fazendo de conta que resistem ao bolor, prefiro o manuseio que amarrota e me aquece. Não consigo enxergar o jardim sem ver as flores, mesmo que ainda não tenham sido plantadas pelo jardineiro – ele perdeu as mãos e os olhos, foram arrancados pela intolerância da gula descontrolada. Escuto do paisagista suas histórias de amor preparando a terra, os cuidados da semeadura, os carinhos que derramam as águas, a alegria de ver germinar as folhas e flores, sempre com palavras de carinho. O descolorido acabou invadindo bárbaras e donzelas velhas, arrependidas e amargas
—        Bom dia, meus queridos livros. — cinismo, tenho apetite de gritar, mas somente consigo olhar com olhos de enviesado. Pareço jogado as pressas, em qualquer lugar. Sem serventia, nem para uma investigação científica do passado. Estacionado pelo descaso, pronto para ser descartado. O tempo passa para todos, mas parece que alguns conseguem resistir um tempinho a mais. Na prateleira expositora resta à fatalidade de viver resistindo um dia a cada vez — A resistência de alguns consegue mantê-lo em pé... — nem bem chega e me procura sem nenhuma solidariedade, apenas ameaça que o fim se aproxima. Sinto o seu hálito da morte. Mal o dia recomeça e preciso resistir aos maus humores da solidão, preciso da coragem pela vida.
Quase sempre sinto falta de ar, essas cortinas ainda me acabam. Acho que tenho asma. A marosca sem diploma de curiosidade e alegria culpa a luz pelo nosso amarelecimento, vivemos assim, sem direito aos banhos diários de sol, envelhecendo do mesmo jeito. Eu a culpo pela falta de alegria e imaginação. Outras vezes, sinto cócegas na garganta, as poeiras me atacam. Peço a cadeiruda para abrir as janelas e ser tocado pelo macio das manhãs. Ela nem chega até as prateleiras. Não sou ouvido ou se faz de surda — A senhora poderia fazer a gentileza de permitir a ventania do mundo lá fora?
Nunca não me dá ouvidos, e nada acontece. Senta atrás da sua mesa. Tem o olhar perdido na porta, imagina quem lhe perturbará por primeiro, fica imobilizada naquela manhã ensolarada e quente. Mantêm as mãos sobre a mesa, algemadas pelos dedos entrelaçados. Move lentamente um dos pés com pequenas batidas no piso de pedra, acompanha o ritmo lento da batucada do próprio coração. Fica assim, em prontidão inútil, com as costas eretas, respirando abafado pela boca.
O segundo sinal autoriza a horda dos bárbaros entrar na cidadela. Os corredores se avolumam com o som confuso e prolongado de muitas vozes. A nossa guardiã matinal acelera o ritmo das suas batidas no chão. Gritos e assobios. Alegrias. Alaridos. O tempo viaja pelo mundo a fora, até que o silêncio retorna assombrado, os corredores estão esvaziados, outros passos sobem a escadaria. Solto um suspiro e aposto comigo mesmo que vamos ter inspeção bem cedinho — Bom dia, queridinha.
—        Bom dia, Marosca!
—        Passeando tão cedo?
—        Vim fazer uma visitinha. — ui, nunca foram de tantas gentilezas uma com a outra, tem coisa vindo por aqui
—        No troco do quê? — a Marosca até parece que ficou escutando meus resmungos, como criança manhosa que só dá ouvidos ao que lhe interessa
—        Mas menina, calma, não há outro interesse que o prazer da visita. — o cenismo da Focinhuda brota como em jorros de vômitos incontroláveis. Tenho suspeita que o cinismo é o momento supremo da diarréia humana, desmobiliza as inteligências humanas pelo enfraquecimento e a perda dos líquidos da ternura, tudo vira vivência sacana
—        O comenta e não diz às claras, o faz-de-conta da fofoca, é que você quer um lugar na biblioteca. — minha nossa, nunca ouvi a Marosca tão direta, acho que essa daí não vai conseguir acomodamento em alguma estante, sem uma boa guerrilha de vaidades e interesses pessoais, outro bibelô decorativo
—        Não mesmo, isso é fofoca, Marosca. Vim na procura de leitura. — faço essa transcrição para que vocês comprovem que a ficção nem se aproxima das realidades humanas
—        Precisas de ajuda?
—        Não te incomoda, nem levanta desta cadeira confortável, vou seguir ao acaso dos dedos e olhos. — penso que esta pode ser a minha chance. Tento erguer-me das costas e ficar em pé, quem não é visto nunca é lembrado. A danada entra pelo corredor dos portugueses e se põe a bisbilhotar Camões, Fernando Pessoa, Saramago, Abelaira, Lobo Antunes. Essa zinha leva jeito de boa nas leituras. Abandona os lusos e invade com seu aroma os corredores latinos das Américas espanholas, Borges, Garcia Márquez, Vargas Llosa, Benedetti, Onetti, Arturo Uslar, Neruda, Lezema Lima, não parece muito feliz. Sai e volta para os didáticos, tenho calafrios. Desiste. Dou um profundo suspiro. A inspetora das brochuras dirige seus passos para o mundo imaginativo dos brasileiros
—        Estou aqui, estou aqui. — tenho a fantasia de gritar, mas ela está lá, entre Jorge Amado, Bilac, os índios de Iracema e os olhares de Capitu para Bentinho. Os passos são indecisos, mas vêm. Ela vê e me pega. Sinto seus dedos carnudos e seu hálito de álcool. Folheia minhas páginas e me examina, sou o seu alvo. Olho em seus olhos, mas me larga em pé e se põe a elogiar o Clube do Beijo. Não se contém até achá-lo — Vou levar este para minha filha.
—        Boa escolha, as meninas fazem fila para levá-lo.
Bem, não foi desta vez, mas o dia apenas começa. E não engrena, poucas visitas. Já vamos lá pelo meio da manhã quando a chefe jumbeba recebe visita de fofoca da Arlete — Amiga, a Focinhuda tem oferecido muitas palavras sobre a biblioteca.
—        O que essazinha ta falando?
—        Não sei se devo falar...
—        Começou e para pelo meio? Tenha dó, né Arlete?
—        Tem dito que isso aqui é um lugar de livros velhos, jornais do passado, leitores desinteressados e de guarda-livros diminuídas no seu desempenho. Um canto vazio de gente e depósito de velharias. — espicho o olho para Marosca, vejo um pequeno treme-treme ali onde ficam os pés-de-galinha. A tal zinha chegou ao alvo, sabe... e deixa pra tirar os proveitos em outra ocasião, é hora da retirada
—        Mais nada? — insiste a Marosca
—        Bem...
—        Bem o quê? Desembucha logo...
—        Queridinha, deixa pra lá, só pra não sair de mãos abanando, vou levar um livro. — a trombuda faz em leve sorriso de vitória, vai direto para os lados adolescentes. Passa os dedos displicentemente pelos seus corpos, parece entediada. Caminha entre as letras dos adultos e quando me passa sinto um calafrio, essa é alma do outro mundo. Vai em frente até os transnacionais, pega um depois do outro até se decidir
—        Marosca, você já leu?
—        Não, mas já ouvi coisas de bem e outras de mal. — queridinha, essa daí só lê as revistas semanais das fofocas
—        Vou levar este aqui. — vai para fazer o registro, passa bem pertinho, sinto seu perfume congênito de podre. Esta manhã não está rendendo.
Depois do desabrochar do dia, a Marosca dá de mão em mim e sai, nem vê, me coloca embaixo do braço para fechadurar a porta. Deixa um bilhete, Já volto. Minha curiosidade não é maior que o sufoco que estou passando. Penso que vai ao banheiro e vou ajudar o tempo a passar. Caminha em um dos pés, na sua ponta, o outro vai por compromisso, mas é o braço que me leva. Agora estou em uma das mãos. Nunca sei onde fica a direita ou esquerda. Mas de qualquer jeito fico agradecido que me tenha livrado das umidades do sovaco. Vez que outra faz jeito de gemido, o muxoxo não sai, fica na intenção. Lá estão os aposentos com os vasos sanitários. Mas que nada, passa direto no desvio dos banheiros e segue para o prédio dos administrativos. Sigo firme entre suas mãos, um enfeite. Bate levemente em uma das portas e entra
—        Com licença, bom dia!
—        Bom dia, Marosca.
—        O Diretor tem intenção de mudanças lá pela biblioteca? — essa se vai direto ao assunto com propósito de amedrontar. Tem no olhar o sinal de ataque e nas mãos a arma. Rezo para ser largado. A conversa de guerra começa. Minhas preces são atendidas, sou desprezado sobre a mesa da comandância. Respiro em alívio. O sujeito diretor está cheio de coragem, mesmo sendo bem pequenino, acho que são os seus olhos bem grandes e a voz fininha e inaudível que amedrontam. Não há harmonia, tudo nele é desconfortável. A Marosca não se ia nem se vinha, permanecia em pé, em atitude de guerra
—        Sim.
—        Sim, o quê?
—        Sim, vai haver mudança. — fecho os olhos e paro de respirar. Ela não diz nada, sai manca de dor, e nos seus atacamentos atormentados... me esquece. Não bate na porta por detalhe. Fico no desamparo, ao alcance do anão de olhos gigantes. Faço-me de morto. Não sei quanto do meu tempo se passou, até ouvir a voz do desarmônico
—        Focinhuda, entra um instante.
—        Sim?
—        Por que tanta vontade de cuidar de livros?
—        Sonhos de criança.
—        O que tem por lá, além de folhas amarelas e silêncio?
—        Nada demais.
—        Eu não entendo.
—        Temos uma manca de dor, a Marosca; outra cega de visão, a Marvadaluz; e a última, que perde as memórias que esquece, a Memoriosa. Fazem que atendem e todos mentem que acreditam. — e daí, tenho vontade de lhe perguntar
—        E daí... nada. Eu quero ir para a biblioteca!
—        Mas...
—        Esse foi o acordo, Augusto.
—        Um outro cantinho...
—        Não. A biblioteca pelo meu voto, não tem negociação. — e eu com isto, não tenho nada a dizer e nem quero ouvir as confidências. Quero me fazer de surdo, cego e mudo. Continuo imóvel. Esse tal nem se faz de tolo. Jogo de apoios e réplicas. A rapariga gulosa e de focinho grande vai sair quando se põe de olhos e mãos em mim
—        Augusto, este livro é da biblioteca?
—        A Marosca deve tê-lo esquecido.
—        Deixa comigo, vou devolver.
—        Tudo bem, mas sem mais confusão. — quando sinto o aperto da minha carcereira, não posso evitar a lembrança do lobo mau e seu focinho de cheirar e devorar. Apenas, que nessa história não tem nenhuma garotinha de chapéu, muito menos vermelho, mas peçonhas mortais. Coitado do guará será devorado pela avozinha, uma jararaca-verde. Nenhuma chance o coitadinho tem. Morre engolido por inteiro. É bebido e soluçado sem qualquer lágrima. O sol quente penetra, iluminando esse espetáculo de nervos de aço. A lei do bosque desencantado e das bruxas que moram no casarão mal-assombrado prevalece. Sinto calafrios.
Sou agarrado por garras vigorosas, sem chance de reclamar. Lá vou para o sovaco desta outra, sina de livro sem passaporte de serventia imediata, sem textos de autoajuda, sem figuras. Desta vez, antes de voltar sou carregado para o banheiro. Sou largado no apoio do papeleiro. Quero olhar para os lados, mas não posso, a jararaca ergue as duas tampas, sobe as saias, desce a calça e se fica com os pés sobre a louça e urina e geme de aliviada. Bom, pelo menos dos males o menor. Sobe a calça e desce as saias depois das secaduras. Lava as mãos e sai esquecida de mim. Não acredito, fico neste caos de cheiros e umidades. Nem a descarga foi capaz de apertar. Descuidada. Insana. Fofoqueira. Cadeiruda. Focinhuda.

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Leia também: 
42 - Um sarau na biblioteca 

44 - Um sarau no ônibus

quinta-feira, 27 de setembro de 2012

Um sarau na biblioteca

Becos sem saída - Penumbras e Descartes


I
baitasar
Aquela mão manchada e enrugada vindo em minha direção é a única coisa em movimento na biblioteca, não é apenas um deslocamento anatomista, carrega o silêncio que dissimula as vontades. Falsa. Fingida. Ciúmes. Por estas paredes repletas de livros, quase nada se move. Até mesmo o ar, alvorotado em sua teimosia, circula com sobriedade.
Os livros não são rebeldes, queremos apenas fazer as fantasias de mentirinhas ou as alucinações reais sobrevirem no pensamento do belo, meigo e inexperiente leitor. Estamos preocupados com a vida das mentes ingênuas, sem consciência da própria importância: seu papel de guerrilheiras.  Nossa razão de existir é acordar do pesadelo de existir. Mas, por enquanto, estou posto à mesa em atitude de espera. Gosto de me imaginar um operário da consciência. Um livro impresso para ser tocado, observado, até que o meu cheiro de tinta corrompa as entranhas do leitor. É quando somos únicos, vasculhados pelas esquinas e vírgulas, esvaziados dos mistérios analíticos, apenas os dois, frente a frente, sem lutas, uma entrega dialética serena ao pensamento do outro, você e eu. Longe dos críticos e plantões alfandegários.
Hoje, aconteceu a reunião dos descartes e eu fui alvo da discórdia entre as guardadoras de livros. Marosca queria me descartar, Marvadaluz sentia pena de me perder e a Memoriosa não conseguia se decidir. Por agora, não vou para o desmanche da reciclagem, ganho tempo. Mas haverão de me pegar e me dar um fim, mais dia menos dia. A morte é o destino da vida. Por enquanto, no mundo reconhecido do braço-de-ferro, coisa alguma se atreve a azedar a autoridade suprema que decreta a privação de imaginar sonhos impossíveis, não sei o que é pior, se um livro velho e ingênuo desinformado ou velho canalha, mal-intencionado, ou mal-humorado arrependido.
Eu sigo contando a minha própria história que é a biografia de tantos personagens. Gente sem o brilho refletor dos heróis com olhos azuis. Ninguém se inspira nos miseráveis, homens e mulheres desprotegidos, arrepiados de frio e enrugados de fome, desdentados e com os pés nus, meninos e meninas de rua abandonados a sorte dos semáforos. Heróis do quê? Submersão do menos de tudo. Os trabalhadores assalariados e as domésticas não têm espaço na galeria dos protagonistas extraordinários. O cotidiano não produz heróis. O branco do olho se desvia de contemplar de frente a olhada dos pedintes. Os semideuses de hoje usam o microfone e as câmeras para defenderem o direito de consumir tudo e todos. Querem vassalagem. Tudo bem, to me sentindo panfletário.
Fui erguido do móvel de madeira pelas mãos da Marosca, ela me observava. Seus olhos revelavam dúvida, talvez mude de ideia sobre o meu descarte. Abriu minha cobertura e leu — Doado pelo...
Estive em suas mãos até que desistiu e colocou meu corpo na prateleira de aço. Deitado. Destino do acaso. Se eu pudesse eu mudaria meu destino. Viajando de mão em mão sem posse de dono. Emprestado pelo mundo. Servindo de leitura até a exaustão do meu corpo, quando minhas folhas enfeixadas ficariam esparramadas em lugar nenhum. Apenas sonho. Cinzas espalhadas, ideias esparramadas. Uma a uma elas vão saindo. Hora de fechar a biblioteca.
Após a reunião sem decisório terminante, restara apenas aquela biblioclasta que me queria no grande baralho do acervo, sem saber bem por que. As luzes se apagam sempre nos mesmos minutos. Nosso horário de recolher. A fechadura se move e a Marvadaluz pensa que nos tranca. Não tenho vontades de pedir ajuda. Os passos são arrastados de sonolência. Espero o sossego. Vai ficando friozinho. Acomodo-me e tento dormir. Não consigo. Nesta hora em que o dia vai nos deixando aos pouquinhos, existo na ansiedade. A escuridade vem para iluminar as fantasias. O silêncio e a escuridão não são ameaçadores, são oportunidades. Busco assunto com algum acabrunhado pela falta de descanso de sono — Olá, alguém já acordado?
As luzes se acendem como um estalar da língua no céu da boca e o aplauso de triunfo das palmas batidas com as mãos umas nas outras — Aqui!
—        Onde?
—        Olha para o lado...
A porta entreaberta da imaginação se abre de par em par. As cortinas esvoaçam e ameaçam sair voando livres. Sinto a perdição de cobiçar tanta liberdade. Estreito meu olhar para as janelas, elas seguem fechadas. Vem a tentação de andar nas estrelas. Nas noites é mais fácil caminhar e espiar as cenas, as canções de olhar o mundo. Sair da solidão, cantando o que se viu por aí.
Surgem Baltasar Sete-Sóis e Blimunda, saídos das estantes de aço. Ausentam-se do memorial e caminham entre espreguiço e suspiros. O homem, depois de lhe cortarem a mão esquerda pelo nó do pulso, estraçalhada por uma bala, foi mandado embora do exército, já não tinha serventia de soldado, e a mulher, de cada vez que ela o olha a ele sente um aperto na boca do estômago, porque olhos como estes nunca se viram, claros de cinzento, ou verde, ou azul, que com a luz de fora variam ou o pensamento de dentro, e às vezes tornam-se negros nocturnos ou brancos brilhantes como lascado carvão de pedra
—        Se as vontades são nuvens fechadas, quem sabe se não ficaram presas nestas, tão escuras e grossas que nem o próprio sol se vê por trás delas, e Blimunda respondeu, Pudesses tu ver a nuvem fechada que dentro de ti está, Ou de ti, Ou de mim, pudesses tu vê-la, e saberias que é bem pouco uma nuvem do céu comparada com a nuvem que está dentro do homem
—        Hein, vocês dois aí, voltem para as suas páginas desviradas e farelos de pão. Por certo, essa determinação em que estão metidos de construir máquina para o homem voar, haveria de ter alguma lógica se o homem carregasse penas em seus membros. Como não as carrega, não foi feito para voar.
Blimunda e Baltasar o desconhecem. Apenas me lançam um olhar da mais absoluta impertinência, entram nas linhas presas e enfeixadas da obra literária, vão prosseguir com seu itinerário já escrito. Volto meus olhos para o homem que se parece com o mau humor, se fosse o mau humor ter apenas uma cara
—        E depois rezinga da fama de casmurro. — retruco e continuo minha atenção na estante dos brasileiros, está por lá, esse homem metido consigo e com ares em aparato de fidalgo que se transfigura em carne e osso
—        Hein, o senhor não tem problemas caseiros para resolver, contraponho na intenção de fazer o outro se calar
—        Tenho-me feito esquecer — responde esse casmurro quase recitando para si mesmo
—        Não se aborreça, senhor, com essas pequenas coisas, todos passam, em algum dia de suas vidas, pelas mãos de uma Capitu, e elas não escapam das assombrações de um desamor ensimesmado.
Sinto pena do homem. No instante seguinte já estou a acomodar tudo
—        Engraçado como todo corno nos comove, mesmo que seja apenas uma possibilidade. O dito do povo segue sendo realístico, quem tem cu tem medo, repito sempre na minha voz de confidências. Sussurrada. Afinal, nos ouvidos doem mais que nos olhos. Deixo transparecer minha vontade de pacificar. Sou um pacificador com as funções próprias do cargo de devoto da venerável Rita.
Essas noites de biblioteca encantada duram o tempo da irritação ou da feitiçaria, as personagens se desfilam em sequência, vêm e vão, o embarcar e sair é aloucado, às vezes parecem cansados como os viajantes que chegam depois de uma longa caminhada. Pedem por um banquinho e ficam a falar e contar seus causos. Outros tendem para a loucura dos comportamentos desmiolados e exagerados. Não existem regras nem paradas, apenas a redenção porque não há mal que resista ao bem
—        Deixaram os senhores entrarem feito quem entra numa goela de bicho e fecharam a queixada, não foi mesmo?
—        Bem assim, senhor Manuel, respondo ao senhor que versava com o padre Nando, que não é mais padre, sobre fugas e revoluções por dentro e fora da gente. Assustados com minha intervenção saem juntos, pulam o muro, embrenham-se pelo coqueiral do Quarup
—        Vocês falam, falam e falam, mas queria-os sobrevivendo nos cus de Judas! Com balas por todo lado...
A noite noturna está apenas em seu começo e a sala já está abarrotada com os personagens saídos da cachola dos inventores. Voamos invisíveis no aparelho voador de Baltasar Sete-Sóis, enquanto os escultores dos personagens pensam que decifram nossos segredos mais íntimos, em obstinação de entenderem a si próprios. Coitados, a nossa ficção não acompanha o seu mundo de insensatez e delírios, as histórias contadas pela fantasia não acompanham aquilo que existe, não conseguem imaginar no tempo da realidade.
Capitu e Bentinho passam bem pertinhos, ela se recusa dizer mais que os seus olhos de cigana oblíqua e dissimulada. O ex-seminarista continua por esses anos atrás de uma única resposta
—        Afinal, ela o traiu ou não? — eu, da minha parte, Dom Casmurro, há tempos desisti de usar das minhas certezas lógicas quando navego em fluidos fêmeos. Não se perde tão pouco tempo com desconfianças de atormentado. Ninguém me faz dono, nem deveria quer se fazer de dono. Largo o ciumento atormentado, vejo Anton Makarenko e os colonistas gorkianos dobrando uma das esquinas de aço. Corro para chegar no tempo de uma rápida conversa
—        Makarenko! — ele parece não me ouvir, mas não desisto — Makarenko!— para e se volta, eis o homem, esse não se deixa influir por caras feias, vozes aterradoras anunciando o fim da história e que tudo já está decidido. É um professor fisicamente esbelto, com o cabelo cortado rente, os óculos fixados sobre o seu nariz um tanto grande e embora de estatura média, impondo-se aos mais fortes através de gestos exatos.  Sua voz perfeitamente modulada, como a de um bom ator, fala com a maior cordialidade, sem nenhuma vaidade, mantendo um sorriso bondoso nos lábios
—        Professor...
—        Sim, o que o senhor deseja?
—        Tudo em ordem, camarada comandante?
—        Nos nossos campos, as colheitas há muito que já foram recolhidas, a debulha terminada, enterrado para armazenamento o que era necessário, já enchemos as oficinas de matéria-prima, recebemos os novatos. O que mais haveria de querer? de repente, por entre um silêncio momentâneo, que todos juram proposital, Maiakovski faz a sua entrada triunfal
—        E de que outro modo seria, perguntam os que não se escondem, mas não se deixam ver
         Ó delicados!
         Vós que pousais o amor sobre ternos violinos
         ou, grosseiros que o pousais sobre os metais!
         Vós outros não podeis fazer como eu,
         virar-vos pelo avesso
         e ser todo lábios.
Aqui está ele, gigantesco, incompreensível, insolente, com sua blusa amarelo-limão, que lhe caí no meio dos quadris e usa sem cinto com uma grande gravata preta. Hoje, todos estão em alvoroço, quase não se param para um pouco de prosa. Está um entra e sai danado, peço que me perdoem, mas não posso acalmar a efervescência de tantas personalidades e cultura
—        E você?
Chego à frente de um cavaleiro com a armadura toda branca; só uma tirinha negra faz volta pelas bordas; no mais é alva, bem conservada, sem um risco
—        Eu sou Agilulfo Emo Bertrandino dos Guildiverni e dos Altri de Corbentraz e Sura, cavaleiro Selimpia Citeriore e Fez!
—        Aaah...
—        Eu não existo!
—        Cada um que se vê! E como é que está no exército de Carlos Magno, se não existe?
—        Com força de vontade, responde o cavaleiro inexistente, e fé em nossa santa causa!
—        Vou acompanhar-te, respondo ao nobre cavaleiro, num ímpeto de velho guerreiro. Tenho minha santa de devoção e, justamente agora, por certo, minha causa não será descansar esse pouco que me resta. Quero esgotar minhas possibilidades. Virar-me do avesso. Espalho meus pensamentos e me deixo envolver pela amizade da cegueira na falta de luz, quero silenciar as meias-palavras. Sentir o perfume das gardênias. Caminho lado a lado, por aí, abraçado ao escuro. Quero narrar a demência de existir, lutar por poder e morrer por nada. Adoro ver estrelas na escuridão. O provisório realístico da imaginação.
O entra e sai se mantém por toda a vida noturna. Um sarau de pessoalidades sonhadoras e amorosas.

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Leia também: 
41 - Essa coisa de cornos na testa não me cai bem 

43 - O faz-de-conta da fofoca

domingo, 23 de setembro de 2012

Inesquecível

Unforgettable
Natalie & Nat King Cole




Inesquecível
Nat King Cole

Inesquecível, isso é o que você é
Inesquecível, entretanto próximo ou longe
Como uma canção de amor que gruda em mim
Como o pensamento das coisas que você me faz
Nunca antes será alguém a mais
Inesquecível em todos os sentidos
E sempre (e sempre)
Isso é como você ficará (isso é como você ficará)
Isso é por que meu bem, é incrível
Que alguém tão inesquecível
Pense que eu também seja inesquecível.

Trecho Musical

Não, nunca antes será alguém a mais
Ooh inesquecível (inesquecível)
Em todos os sentidos (em todos os sentidos)
E sempre (e sempre)
Isso é como você ficará (isso é como você ficará)
Isso é por que meu bem, é incrível
Que alguém tão inesquecível
Pense que eu também seja inesquecível.



Unforgettable
Nat King Cole

Unforgettable, that's what you are
Unforgettable, though near or far
Like a song of love that clings to me
How the thought of you does things to me
Never before has someone been more
Unforgettable in every way
And forevermore (and forevermore)
That's how you'll stay (that's how you'll stay)
That's why darling, it's incredible
That someone so unforgettable
Thinks that I am unforgettable too

(Musical interlude)

No, never before has someone been more
Ooh unforgettable (unforgettable)
In every way (in every way)
And forevermore (and forevermore)
That's how you'll stay (that's how you'll stay)
That's why darling it's incredible
That someone so unforgettable
Thinks that I am unforgettable too.

sexta-feira, 21 de setembro de 2012

Gremistas ou colorados... misturam-se a realidade

Ensaio 08

baitasar


No quarto há uma cama, sobre a cama um homem, sobre o homem um menino com medo. E quando Sèzar respira boca abaixo, tem o corpo retesado, desesperado engole o ar aos goles, afogado.
O celular de Sèzar dispara um sinal sonoro, retira a máscara do nebulizador e atende — Não posso, Gustavo... não posso. — desliga e o deixa sobre a cama. Daniel e Gustavo modelam as aparências dos seus músculos na academia, uma rotina antiga dos três amigos gremistas: pesos, medidas, espelhos e dietas. Naquela tarde, Sèzar não foi, precisa da máscara do nebulizador, a máscara dos músculos pode esperar.
Muitos anos antes, ele franzino, eles montanhas rochosas. A intuição da sobrevivência do Sèzar aproximou os seus lamentos ao amontoado corpóreo do Daniel-Gustavo, dois gorilas brancos desde os tempos do colégio. Sèzar jamais gostou de esportes, tinha convicção que essas disputas de contato físico apenas reforçavam suas fraquezas, diminuíam suas chances por alguma coisa, qualquer coisa, estava encarcerado e precisava de guarda-costas. As aulas de jogar bola não ajudavam e o medo de fracassar atrapalhava mais. Não podia consolar-se com ninguém. O silêncio frio de palavra nenhuma. 
Ergueu-se sobre as pernas e pediu a sua mãe a primeira camisa de jogar bola — Futebol, Sèzar? — respondeu que ele e outros meninos – treinava os dois para serem seus guarda-costas – estavam fundando a jovem torcida organizada tricolor da escola. Assim, se tornou um torcedor futebolista ocasional e um gremista musculoso – não foi por amor, mas necessidade – agora, era um deles. Com o devido tempo e treino poderia ser transformado em uma máquina de moer carne, ou pelo menos, poderia parecer com um instrumento desses. Esse foi o começo fundador da JTC – Jovem Torcida Tricolor do Colégio.
Depois de anos pesados de chuva chega um vento furioso, se põe a limpar lá por cima e o azul começa se mostrando mais uma vez. E quando Sèzar começou a sentir que era real, não estava mais existindo numa vida que parecia um acidente, ele a levou muito a sério. Não era mais um garoto franzino, o tempo e a academia o deixaram um homem crescido, gostava de escrever, mas escrever não era real, então, sempre que o seu Grêmio – que o salvou das garras da discordância – jogava em seu estádio, ele e a jovem torcida tricolor do colégio, mais velha e pesada que nos tempos do colégio, enfiados dentro de suas camisas gremistas, esticadas nos braços e peitoral, iam para a arquibancada e gritavam e xingavam e cantavam, isso era real. Subiam e desciam correndo as arquibancadas, isso era uma avalanche. Algumas vezes saiam sem saber o resultado do jogo.
Por isso, ficou animado com a ideia do presente para Adelaide: uma camisa futebolística tricolor para sua amiga colorada. Gremistas ou colorados, todos são alguma coisa que não existe, mas quando usam suas cores de torcida misturam-se a realidade, e Teseu, Minotauro, Jasão, Esfinge, Édipo, Hércules, Velocino de Ouro, Midas, entram em campo e correm, e correm, de um lado a outro, como exércitos, soldadinhos de chumbo — Sèzar, a única vida é agora, eu e você... — as palavras da Adelaide sempre produzem um sentimento profundo nele, As outras não são vidas, mas aparências do que aconteceu ou a suspeita no que virá
—        E o que é real na vida, Adelaide, antes ou depois de agora?
—        O meu irmão. — ele não tem irmãos, mas tem a jovem torcida tricolor do colégio.
Esse é o dia, o ingresso para o grenal está no bolso, mas a camiseta vermelha permanece dobrada na gaveta, depois do banho e da barba feita, não pode mais adiar, enfia a camisa por cima dele mesmo — Pronto, está feito! — falta o boné, procura um neutro e maior possível.
A campainha toca, ela está pronta — Está pronto, Sèzar? — ele a pega pelo braço e saem para o Beira-Rio, estádio dos colorados. Lembra que precisa ter mais cuidado com suas brincadeiras e provocações — Você esta linda. —isso não é brincadeira, nem provocação, e deus criou a mulher para que a vista nos doa por horas de contemplação
—        Você também, mesmo com esse boné.
Descem do ônibus e caminham para o estádio. O boné de Sèzar enterrado nas orelhas, enfiado nos olhos, um véu de camuflagem. Nos arredores do estádio cruzam com a jovem torcida tricolor do colégio – desfalcada dele: sócio fundador – recorda o mesmo pavor do menino franzino e enfermiço, seus passos gaguejavam. Adelaide segura firme em sua mão e lhe dá o seu beijo, enquanto os rapazes passam por eles — Vi isso num filme. — ele se pergunta se aquele beijo foi real ou um disfarce.
Os amigos fortões eram todos os gremistas, ele não podia ser diferente - ou não quis - não havia chances. Ficou torcedor que torce e distorce pelo seu time, apaixonado por medo de não ser feliz, seja lá o que isso signifique. Não escolheu, foi empurrado em uma avalanche. Não tem amigos, mas amigos gremistas, as aparências da cor lhe trazem conforto — E eu? — pergunta Adelaide, ele abriu a boca e a alma se abriu de imediato, foi escorrendo da garganta aos tropeços
—        E você é a única que me faz isso... vestir o vermelho em grenal — fingir que se torce é pior que torcer contra; mentir para os amigos gremistas não foi satisfatório – mas com um pouquinho de sorte, eles nem ficam sabendo – mentir para os colorados é coisa de nada – quase uma obrigação – no fim e ao cabo de tudo, nada acontece, o futebol nem é tão importante. A mentira em si é uma covardia do mentiroso, mas ali, naquela multidão, foi apenas uma brincadeira. A paixão em demasia é um dos esconderijos da razão, mas como apaixonar se não for para ser em excessos ingovernáveis da vontade?
Olha na superfície das cores coloradas, naquela multidão silenciosa, Sèzar é apenas outro colorado, mentira ou verdade – quem se importa? – sentado na arquibancada de concreto, sofrendo em silêncio com o golo do rival. Estava enfiado dentro do boné, sem risco de ser encontrado. Triste. Melancólico.
O conforto era a mão de Adelaide na sua. Levanta e grita

quinta-feira, 20 de setembro de 2012

Foi num 20 de setembro... reconciliar o passado com a verdade


O destino dos negros farrapos

Juremir Machado da Silva

História regional da infâmia: o destino dos negros farrapos e outras iniquidades brasileiras (ou como se produzem os imaginários) / Juremir Machado da Silva. - 2 ed. - Porto Alegre, RS: L&PM, 2010.







Guerra dos Farrapos
Batalha do Seival
1ª Parte (Filme: Neto perde sua alma)




Anahy de las Misiones

Verde, Amarelo, Vermelho... é só escolher

América Latina
Dante Ramon Ledesma



América Latina

Dante Ramon Ledesma


Talvez um dia, não mais existam aramados
E nem cancelas, nos limites da fronteira
Talvez um dia milhões de vozes se erguerão
Numa só voz, desde o mar as cordilheiras
A mão do índio, explorado, aniquilado
Do Camponês, mãos calejadas, e sem terra
Do peão rude que humilde anda changueando
É dos jovens, que sem saber morrem nas guerras

América Latina, Latina América
Amada América, de sangue e suor

Talvez um dia o gemido das masmorras
E o suor dos operários e mineiros
Vão se unir à voz dos fracos e oprimidos
E as cicatrizes de tantos guerrilheiros
Talvez um dia o silêncio dos covardes
Nos desperte da inconsciência deste sono
E o grito do sepé na voz do povo
Vai nos lembrar, que esta terra ainda tem dono

E as sesmarias, de campos e riquezas
Que se concentram nas mão de pouca gente
Serão lavradas pelo arado da justiça
De norte a sul, no Latino Continente

Composição: Francisco Alves / Humberto Zanatta


Céu, Sol, Sul, Terra e Cor
Leonardo



Céu, Sol, Sul, Terra e Cor
Leonardo


Céu, sol, sul, terra e cor
Leonardo (gaúcho)

Eu quero andar nas coxilhas
Sentindo as flexilhas das ervas do chão,
Ter os pés roseteados de campo,
Ficar mais trigueiro com o sol de verão.
Fazer versos cantando as belezas
Desta natureza sem par.
E mostrar para quem quiser ver
Um lugar pra viver sem chorar
(E mostrar para quem quiser ver
Um lugar pra viver sem chorar!)

Refrão:
É o meu Rio Grande do Sul
Céu, sol, sul, terra e cor!
Onde tudo o que se planta cresce
E o que mais floresce é o amor.
É o meu Rio Grande do Sul
Céu, sol, sul, terra e cor!
Onde tudo o que se planta cresce
E o que mais floresce é o amor.
(Onde tudo o que se planta cresce
E o que mais floresce é o amor!)

Eu quero me banhar nas fontes
E olhar horizontes com Deus,
E sentir que as cantigas nativas
Continuam vivas para os filhos meus.
Ver os campos florindo e
Crianças sorrindo felizes a cantar!
E mostrar para quem quiser ver
Um lugar pra viver sem chorar
(E mostrar para quem quiser ver
Um lugar pra viver sem chorar!)

Refrão

(gaita)

Eu quero me banhar nas fontes
E olhar horizontes com Deus,
E sentir que as cantigas nativas
Continuam vivas para os filhos meus.
Ver os campos florindo e
Crianças sorrindo felizes a cantar!
E mostrar para quem quiser ver
Um lugar pra viver sem chorar
(E mostrar para quem quiser ver
Um lugar pra viver sem chorar!)

Refrão


Guri
Cesar Passarinho



Guri
César Passarinho


Das roupas velhas do pai queria que a mãe fizesse
Uma mala de garupa e uma bombacha e me desse

Queria boinas e alpargatas e um cachorro companheiro
Pra me ajudar a botar as vacas no meu petiço sogueiro

Hei de ter uma tabuada e o meu livro "Queres Ler"
Vou aprender a fazer contas e algum bilhete escrever
Pra que a filha do seu Bento saiba que ela é meu bem querer
E se não for por escrito eu não me animo a dizer

Quero gaita de oito baixos pra ver o ronco que sai
Botas feitio do Alegrete e esporas do Ibirocai
Lenço vermelho e guaiaca compradas lá no Uruguai
Pra que digam quando eu passe saiu igualzito ao pai

E se Deus não achar muito tanta coisa que eu pedi
Não deixe que eu me separe deste rancho onde nasci
Nem me desperte tão cedo do meu sonho de guri
E de lambuja permita que eu nunca saia daqui

Composição: João Batista Machado / Júlio Machado da Silva Filho


NEGRO DA GAITA
Cesar Passarinho



Negro da gaita
César Passarinho


Mata o silêncio dos mates, a cordeona voz trocada
E a mão campeira do negro, passeando aveludada
Nos botões chora segredos, que ele juntou pela estrada

(Quando o negro abre essa gaita
Abre o livro da sua vida
Marcado de poeira e pampa
Em cada nota sentida)

Quando o pai que foi gaiteiro, desta vida se ausentou
O negro piá solitário, tal como pedra rolou
E se fez homem proseando, com a gaita que o pai deixou

E a gaita se fez baú para causos e canções
Do negro que passa a vida, mastigando solidões
E vai semeando recuerdos, por estradas e galpões

Composição: Gilberto Carvalho / Airton Pimentel


Castelhana
Elton Saldanha



Castelhana
Elton Saldanha


Eu Hoje me Vou pra Fronteira
Pois Queira ou Não Queira Vou Ver Meu Amor
Esperei Toda a Semana
Pra Ver a Castelhana Minha Linda Flor
Tá Frio na Minha Cidade
A Bem Da Verdade Está Frio Demais
Ao Sul Do Meu Coração
Quero Tempo Bom, Só Você Me Traz
Ao Sul Do Meu Coração
Quero Tempo Bom, Só Você Me Traz

Larga Tudo e Vem Comigo,
Vamo Encarar o Perigo
Larga Tudo e Vem Comigo,
Vamo Encarar o Perigo

Castelhana Se Você Me Ama,
Me Ama, Me Ama, Me Diz
Castelhana Se Você Me Ama,
Me Ama, Me Ama
A Gente Pode Ser Feliz

Tá Frio na Minha Cidade
A Bem Da Verdade Está Frio Demais
Ao Sul Do Meu Coração
Quero Tempo Bom, Só Você Me Traz
Ao Sul Do Meu Coração
Quero Tempo Bom, Só Você Me Traz

Larga Tudo e Vem Comigo,
Vamo Encarar o Perigo
Larga Tudo e Vem Comigo,
Vamo Encarar o Perigo

Castelhana Se Você Me Ama,
Me Ama, Me Ama, Me Diz
Castelhana Se Você Me Ama,
Me Ama, Me Ama
A Gente Pode Ser Feliz

Composição: Rui Biriva e Elton Saldanha


Lanceiros Negros
João Quintana Vieira e Grupo Parceria



Ainda não ouviu a história desses negros?
Ta esperando o quê?


quarta-feira, 19 de setembro de 2012

O futebol nem é tão importante, mas os personagens...

Ensaio 07

baitasar

Adelaide sempre foi desde que nasceu coisa nenhuma, nas conferências com o seu analista psicólogo, espírita, além-túmulo, subconsciente, inconsciente, místico, histérico, confessou que ainda na barriga da mãe tinha decidido: se aqui nesta província só existem vermelhos e azuis, maragatos e chimangos, brancos e pretos, cavalos e vacas, não seria nem isso, nem aquilo, muito antes pelo contrário, serão todos ou ninguém.
Brincava de mocinho e bandido com os meninos, mas não era o mocinho ou o bandido, gostava de ser o juiz para ordenar o enforcamento — Quantas vezes me senti menino.
Brincava de médica com as meninas, mas não era a doutora ou a paciente, gostava de ser a enfermeira para ajudar a salvar vidas. Até o dia que a Inês, uma garotinha de 6 anos, estava mais doente que brincando, vomitou em seus pés, nesse dia desistiu de salvar vidas — Quantas vezes me senti menina.
Então, dormiu e passaram a experimentar bonecas, carrinhos, tambores, cornetas, soldadinhos de chumbo – perdeu um exército inteiro do pai – saladinhas, sopinhas, o que interessava era o divertimento do seu menino e da sua menina. Adelaide ficou em risco exposta no dia em que seu irmão, mais velho por um ano – nas conferências de aparições telepáticas confessou que gostaria de ter nascido um ano antes do irmão, Isso teria feito muita diferença. – intrometeu-se nas brincadeiras. O chato do irmão é real e azul, ela decidiu que também teria uma cor da paixão: vermelha. Aceitou o jogo daquelas forças supremas. Seria um espinho atravessado no pé daquele guri chato e abelhudo. A felicidade dos colorados frustrava o contentamento do irmão — Adoro! — enquanto o irmão rezava pela infelicidade dos colorados, ela também torcia fervorosamente pela desdita dos gremistas, não queria o pai triste, mas não tinha como suportar o irmão com seus gritos de felicidade — Odeio!
Por essa e outras mais razões, a camiseta azul, presente do Sèzar, está estendida em sua cama. Está sufocada por esta realidade que não é real porque só existe nas aparências — Se eu pudesse mudaria o nome do Brasil para Inter! — respondeu quando à professora do 2º ano perguntou o que ela gostaria de mudar no mundo.
E, no entanto, ali estava com a camisa azul, É bem bonita, sempre lembra que o pai foi gremista, mas aquele ano antes do irmão fez muita diferença.
Olha para o relógio, já quase lhe chega a hora marcada, coisas de nada. Desveste suas roupas e vai para o banho, gosta de caminhar nua. Gozava com sinceridade aquele passeio sem importância até o chuveiro. Sem suas roupas sente-se real, não se distrai com as aparências.
O perfume das águas aliviam suas tensões.
Está pronta, mas falta a camiseta azul. Pensa no pai melancólico com sua escolha pelo colorado, sorriu para ele e vestiu a camiseta gremista. Não se viu no espelho.
O Sèzar estava parado à porta, as mãos nos bolsos da calça, os olhos sorrindo, a boca se abrindo com sua alma — Está pronta?
Ela está pronta.
Os colorados não se lembraram de abraçar os Eucaliptos – ou não quiseram, apenas venderam as memórias – faltou acarinhar o velho estádio colorado, agora não é mais possível mudarem as aparências.
Saem para abraçar o estádio Olímpico, um abraço de despedida e reencontro com as histórias memórias, um último abraço no velho pai.
Ele está lá.
—        Eu fui!

Gremistas ou colorados, todos são alguma coisa que não existe, como um sono morto, quase um desassossego.


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Leia também: 
Ensaio 06 - As cabras-cegas, as aparências e a bolsa tiracolo 
Ensaio 08 - Gremistas ou colorados... misturam-se a realidade