quarta-feira, 30 de abril de 2014

Entre a esperança e a razão, magia negra e sedução

Fagner



Porque vivemos em um mundo de loucos
precisamos ficar abrigados no sol da manhã
esperando a chuva nos braços outra e outra vez
que suavemente vem e se vai.
Aprender com os olhos
pertencer a uma porta com alma perfeita
como o amor das guitarras,
violões e palavras, que é preciso aprender



Borbulhas de amor



Borbulhas de Amor
Fagner


Tenho um coração
Dividido entre a esperança
E a razão
Tenho um coração
Bem melhor que não tivera

Esse coração
Não consegue se conter
Ao ouvir tua voz
Pobre coração
Sempre escravo da ternura

Quem dera ser um peixe
Para em teu límpido
Aquário mergulhar
Fazer borbulhas de amor
Pra te encantar
Passar a noite em claro
Dentro de ti

Um peixe
Para enfeitar de corais
Tua cintura
Fazer silhuetas de amor
À luz da lua
Saciar esta loucura
Dentro de ti

Canta coração
Que esta alma necessita
De ilusão
Sonha coração
Não te enchas de amargura

Esse coração
Não consegue se conter
Ao ouvir tua voz
Pobre coração
Sempre escravo da ternura

Quem dera ser um peixe
Para em teu límpido
Aquário mergulhar
Fazer borbulhas de amor
Pra te encantar
Passar a noite em claro
Dentro de ti

Um peixe
Para enfeitar de corais
Tua cintura
Fazer silhuetas de amor
À luz da lua
Saciar esta loucura
Dentro de ti

Uma noite
Para unir-nos até o fim
Cara-cara, beijo a beijo
E viver
Para sempre dentro de ti

Quem dera ser um peixe
Para em teu límpido
Aquário mergulhar
Fazer borbulhas de amor
Pra te encantar
Passar a noite em claro
Dentro de ti

Um peixe
Para enfeitar de corais
Tua cintura
Fazer silhuetas de amor
À luz da lua
Saciar esta loucura
Dentro de ti

Um peixe
Para enfeitar de corais
Tua cintura
Fazer silhuetas de amor
À luz da lua
Saciar esta loucura
Dentro de ti

Um peixe
Para enfeitar de corais
Tua cintura
Fazer silhuetas de amor
À luz da lua
Saciar esta loucura
Dentro de ti

Para sempre
Dentro de ti

Composição: Juan Luiz Guerra / Versão: Ferreira Gullar


O amor e o poder





The Power Of Love
Jennifer Rush





A beleza de tudo e o amor dos anos 70...


Al Green-Lets Stay Together




Eric Clapton - Wonderful Tonight




Joe Cocker - You are so beautiful




Cheap Trick - The Flame




Kansas - Dust In The Wind




Air Supply - All Out Of Love




The Commodores - Brick House




The Hollies - The Air That I Breathe




Rose Royce - Wishing On A Star




Billy Paul - Me And Mrs. Jones




Nazareth - Love Hurts




O Amor Machuca

O amor machuca, o amor deixa cicatrizes, o amor fere e prejudica
Qualquer coração que não seja resistente ou forte o suficiente
Para aguentar muita dor, aguentar muita dor.
O amor é como uma nuvem, contém muita chuva.
O amor machuca, oh, oh, o amor machuca

Sou jovem, eu sei, mas mesmo assim
Eu sei que uma coisa ou duas, que eu aprendi com você.
Eu realmente aprendi muito, realmente aprendi muito.
O amor é como uma chama: ele te queima quando é ardente.
O amor machuca... Ooh, ooh, o amor machuca.

Alguns tolos pensam em felicidade, suprema alegria, união.
Alguns tolos enganam a si mesmos, eu acho,
Mas eles não estão enganando a mim.
Eu sei que não é verdade, eu sei que não é verdade.
O amor é apenas uma mentira criada para te deixar triste.
O amor machuca... Ooh, ooh, o amor machuca...
Oh, oh, o amor machuca (3x)
Oh, oh

Composição: Bryant / B.Bryant



Queen - Love Of My Life




Cat Stevens - Wild World




Lynyrd Skynyrd - Free bird




Peter Frampton - Baby I Love Your Way




The Bee Gees - Words




Dolly Parton - I Will Always Love You




Boz Scaggs - We're All Alone




Bee Gees - I Started A Joke




Carole King & James Tyalor - So Far Away




Bee Gees - How Deep Is Your Love



terça-feira, 29 de abril de 2014

O pescadô e os dois amô

Dorival Caymmi



O bem do mar



O BEM DO MAR

De Dorival Caymmi


"O pescador tem dois amor
Um bem na terra, um bem no mar

O bem de terra é aquela que fica
Na beira da praia quando a gente sai
O bem de terra é aquela que chora
Mas faz que não chora quando a gente sai
O bem do mar é o mar, é o mar
Que carrega com a gente
Pra gente pescar"


É doce morrer no mar



O mar





sexta-feira, 25 de abril de 2014

histórias davóinha: ôneinho, rezá é bão - dá conforto e esperança 08cp

casarão canela preta


ôneinho, rezá é bão - dá conforto e esperança
Ensaio 08cp – 2ª edição 1ª reimpressão


baitasar




acordei na metade da noite, atirado na cama. vestido com as vestimentas do dia. dormir com os olhos abertos é o mesmo que não tirar do sono os pensamentos do dia. as lembranças continuam latejando. não é descanso o abatimento na cama com os pés latejando dentro das botinas. lembrei um palavrão grande e imoral, levantei para desvestir a indumentária do cobrador de passagens. quando arranquei as botinas descobri que não tinha feito nenhum descanso. senti os pés prisioneiros da minha própria prisão. larguei as preocupações com o tiuzin Manoel junto com as vestimentas suadas e fedidas, ao lado da cama, no chão. tomei meu banho do descarrego do dia morto e continuei os preparativos de dormir. até que enfiei o sono embaixo das cobertas. deitei nu de mim mesmo, Neinho, ocê sabe qual o costume qui uspretu, branco, pobre e rico tem igualzinho?

Agora não, avóinha... preciso desse cochilo de poucas horas.

É só respondê qui avéia toma chá de sumiço.

quase sentei na cama, frente a frente. mas olhei com as vistas quase fechando os cabelos brancos cheios das miçangas coloridas, a pele lisinha, os olhos bem abertos. avóinha tava cada vez mais reparada, eu cada vez mais quase desadormecido, Não sei, avóinha.

E mifiuneto qué sabê?

esfreguei as vistas da visão, depois lhe mostrei meu riso de saudade misturado com minha resposta de atrevimento. ela parecia não ter vontade de fechar os olhos, eu não queria abrir, Por que avóinha pergunta? Avóinha vai dizer de um jeito ou de outro...

ela continuava sentada na cama, as duas mãos apoiadas no colo. depois que as vistas entraram na minha cabeça eu subi no colo da avóinha, mas parecia que era davó que tava no meu colo, cansada da lonjura de ficar de uma cidade até a outra. da cidade dos vivos pra cidade dos mortos e de lá pra cá, Ocê prestenção no jeito de escutá.

fechei as vistas e deixei aquela visão encher o meu quarto até me abraçar, Estou escutando, avóinha.

a aparição colocou a mão em meu queixo e me fez erguer mais as vistas até não avistar mais nada, tava olhando pelos ouvidos. a cabeça parecia virada pra cima e as vistas reviradas pra trás até ficar na posição de abano das orelhas, A estupidez, miúdo davó.

Será, avóinha?

ela balançou a cabeça e fez um ruído com a boca que mais se parecia com uns estalos da língua, Sandice e burrice é coisa quisó os humano tem, bicho não tem.

fechei os olhos e pedi que ela se fosse, queria ser recebido com sossego pelo adormecimento. Avóinha não parecia querer me obedecer, sua voz chegava de longe até mais perto. o bafo do desassossego entrava como sussurro arrastado. a cantoria virava ensinamento, No começo, a estupidez chega com modo educado, cheia de gentileza. Depois, ocê querendo ou não, ela fica forte e durativa. É quando o inhenho começa perdê a vigilância sobre o amontoado da tontice qui engoliu. Num sabe, mais tá desarranjado. A cabeça se perdeu do curação, o curação si perdeu do corpo e o corpo si perdeu da cabeça. O curação, o corpo e a cabeça fica separado, dei um sorriso e fiz sinal com o dedo na boca pra ficar quietinha. larguei meu corpo de volta na cama, precisava dormir, mas tinha medo de encerrar a conversa com avóinha do jeito errado. queria que ela voltasse

Eu rezo para não perder o mando do meu pensamento.

Rezá é bão, dá conforto e esperança, mais é preciso praticá entendimento, enfrentá a burrice. Praticá amô na casa e lá fora... mostrá amô de vivê com amô.

concordei, sempre concordo. repeti que precisava dormir e revirei-me na cama. ela foi mais um tempinho conversando, parecia contando alguma história de dormir. eu continuava deitado no colo da avóinha, ela enfiava os dedos nos meus cabelos até me adormecer. o sono chegava rápido. rezava e cantava. tinha histórias de contar lindas que mais se pareciam com rezas e cantorias. terminou bem na hora marcada de levantar, Acorda, moleque... é hora de desaninhá!

o mais difícil de fazer era sair dos abraços da cama. tirar o meu corpo entorpecido do ninho quentinho. abrir os olhos para os assuntos do tiuzin Batata. na hora de levantar, as vistas estavam grudadas e dormentes, inchadas com a vontade de dormir. o sono tem um apetite que precisa ser saciado. não gosto de ficar esfomeado de sono, Fumaça!

pulei da cama. esse grito não foi do tiuzin Batata, mas da tiazin Vanda que não tinha o costume de deixar os assuntos do seu interesse sem resposta. pelo tamanho do chamamento, tava claro que continuava sem motivo de alegria com a minha desobediência. não aceitava o tamanho da importância e atenção que eu dava à Viação Anônima e nenhuma para a escola, Não esquece a escovação dos dentes, precisa fazer brilhá, resmunguei qualquer coisa e revirei para o outro lado, tava todo encolhido

— Fumaça!

esse é o tiuzin com o seu toque de corneteiro no quartel. convocação no volume mais alto. não tinha jeito de não escutar e obedecer. o susto levantou primeiro, bem depois foi a vez do fantasminha do corpo. o último que se desafiou sair das cobertas foi o hálito do meu espírito. chegamos juntos no tempo de reunião no quarto higiênico. um anão sonâmbulo. água fria. café preto, forte e amargo. o gorro. calça de brim. botina militar. casaco de lona por cima de tudo, Estou pronto, tiuzin, no bolso da camisa azul guardava a guia da roleta do 69, a outra levava no pescoço. jamais tirei.

saímos.

eu galopava ao lado do tiuzin, dois passos meus e um dele, enquanto a madrugada amanhecia desembestada. até que ele reduziu a fome e o feitio de comer o caminho das ruas. cada caminhada se parecia com a mordida no pão, uma necessidade da vida chegar ao seu destino. parou o chão da estrada, Por que parou, tiuzin? Estamos perto...

Fumaça, antes de cada um ir pro seu canto, quero avisá que vô puxá o corujão, a estrada embaixo da botina continuava parada. o corujão é o último horário da madrugada. o horário que recolhe todos e depois se recolhe

Por que, tiuzin?

ele virou o nariz de batata e me ficou de frente. os olhos de um nas vistas do outro. vi que o tiuzin experimentou o gosto do dinheiro e não tinha intenção de queimar aquela esperança de ganhar uma lasquinha a mais, Mais hora, mais dinheiro...

a assombração do dinheiro come tudo e todos, tem uma fome descontrolada. come a vida, depois lambe os beiços. o apetite não diminui, então com os dedos lambuzados de sangue e carne, chupa os ossos da carcaça, um a um, até não restar mais nada que comer os próprios dedos, já sem gosto de ossos, sem sabor de carnes. é quando o apetite da cobiça descobre que comer a vida não lhe dá vida, dá de ombros e segue se lambuzando

olhei para o lado, avóinha não desgrudava os olhos do tiuzin, tinha o olhar mais doce e triste que jamais fez. o filho mais novo, o último descuido do estertor da paixão sendo comido pelo dinheiro do patrão, É bem assim, neinho. Ocê nunca tem o dinheiro, ele é qui tem ocê, olhei avóinha com olhar de reprovação

Vavó faz parecer que viver é uma ilusão.

ela desgrudou os olhos do tiuzin e me fez o mesmo olhar, olhar de remédio amargo, Quem num tem modo de suportá o ilusório qui é a vida... — fez pausa de suspense e seriedade — ... esconde a vida no dinheiro.

fechei os olhos e pedi que a assombração da avóinha pudesse desaparecer dali, não era uma boa hora, queria colocar minha atenção no tiuzin, Bobagem, ocê esperá pela hora certa, assim nunca faz nada. Fica sempre esperando a hora certa.

Falar é mais fácil que fazer. A sabedoria da avóinha esperou avóinha morrer pra aparecer, pensei que tinha ultrapassado algum limite do que se deve dizer ou não deve deixar sair da boca, no caso de manter conversa de vivo com aparição do espírito. e se não tem espírito? eu fiquei louco? anão, preto e louco

Ocê sabe?

fiquei em silêncio, não quero endoidecer de vez, nada de respostas ou perguntas com gente que não é mais gente, não é mais deste mundo. não respondi. ela voltou a perguntar. insisti no silêncio. não vou responder, Siocê num responde, num sabe.

lá tava a avóinha com o palheiro nos dedos. não vi ela preparar o fumo nem acender a palha. puxava o fumo e me assoprava, O que eu não sei, avóinha?

resolvi perguntar antes de me afogar naquela assopração de fumaça

Ocê sabe quem acerta a hora certa do zanzo da vida?

não sabia. queria poder dizer que o relojoeiro do mundo é Deus, não acredito num único relojoeiro, mas posso aceitar que existem muitos relojoeiros, Sabia qui ocê num sabia.

— E avóinha sabe?

ela continuou com os joelhos dobrados, agachada ali, entre o filho e o neto, jogando a tragada do fumo naquela bruma que me envolvia num abraço de mistério e intenções, O neinho diz qui num é hora da assombração aparecê, pode sê ou pode num sê, então... pode sê, essa conversa continua na hora mais certa.



___________________________

Leia também:


sempre chega a vez de sentá pra conversá
Ensaio 01cp – 2ª edição 1ª reimpressão

Sô a favô de vendê, pegá no dinheiro e cuidá de vivê
Ensaio 02cp - 2ª edição 1ª reimpressão 

é mais fácil não tê alguma coisa qui tê
Ensaio 03cp – 2ª edição 1ª reimpressão

Quero ocê, até depois qui a vida se acabá
Ensaio 04cp - 2ª edição 1ª reimpressão 

Ele não é bicho, neinho. É mifio!
Ensaio 05cp - 2ª edição 1ª reimpressão
 
A cavalaria está saindo!
Ensio 06cp - 2ª edição 1 reimpressão 

Neinho, fazê o desamô é uma escolha... o ódio é um gosto
Ensaio 07cp - 2ª edição 1ª reimpressão 
 
João Torto do 69!
Ensaio 09cp – 2ª edição 1ª reimpressão


quarta-feira, 23 de abril de 2014

Pealo de Sangue

Raul Ellwanger





Pealo de Sangue
Raul Ellwanger


Que mistérios trago no peito
Que tristezas guardo comigo

Se meu sangue é colono, é gaúcho
Lá no campo é que tenho abrigo
O cheirinho da chuva na mata
Me peala, me puxa pra lá

Quero só um pedaço de terra
Um ranchinho de santa fé

Milho verde, feijão, laranjeira
Lambari cutucando no pé
Noite alta o luzeiro alumiando
Um gaúcho sonhando de pé

Quando será
Este meu sonho

Sei que um dia será novo dia
Porém não cairá lá do céu
Quem viver saberá que é possível
Quem lutar ganhará seu quinhão

Velho Rio Grande
Velho Guaíba

Sei que um dia será novo dia
Brotando em teu coração
Quem viver saberá que é possível
Quem lutar ganhará seu quinhão


Composição: Raul Ellwanger



Mercedes Sosa
Lazo de sangre






quinta-feira, 17 de abril de 2014

Um escritor de Fábulas

Gabriel García Márquez


La soledad de América Latina








Discurso por la obtención del Premio Nobel de Literatura (1982)



La soledad de América Latina
[Discurso de aceptación del Premio Nobel 1982. Texto completo.]

Gabriel García Márquez


Antonio Pigafetta, un navegante florentino que acompañó a Magallanes en el primer viaje alrededor del mundo, escribió a su paso por nuestra América meridional una crónica rigurosa que sin embargo parece una aventura de la imaginación. Contó que había visto cerdos con el ombligo en el lomo, y unos pájaros sin patas cuyas hembras empollaban en las espaldas del macho, y otros como alcatraces sin lengua cuyos picos parecían una cuchara. Contó que había visto un engendro animal con cabeza y orejas de mula, cuerpo de camello, patas de ciervo y relincho de caballo. Contó que al primer nativo que encontraron en la Patagonia le pusieron enfrente un espejo, y que aquel gigante enardecido perdió el uso de la razón por el pavor de su propia imagen.

Este libro breve y fascinante, en el cual ya se vislumbran los gérmenes de nuestras novelas de hoy, no es ni mucho menos el testimonios más asombroso de nuestra realidad de aquellos tiempos. Los Cronistas de Indias nos legaron otros incontables. Eldorado, nuestro país ilusorio tan codiciado, figuró en mapas numerosos durante largos años, cambiando de lugar y de forma según la fantasía de los cartógrafos. En busca de la fuente de la Eterna Juventud, el mítico Alvar Núñez Cabeza de Vaca exploró durante ocho años el norte de México, en una expedición venática cuyos miembros se comieron unos a otros y sólo llegaron cinco de los 600 que la emprendieron. Uno de los tantos misterios que nunca fueron descifrados, es el de las once mil mulas cargadas con cien libras de oro cada una, que un día salieron del Cuzco para pagar el rescate de Atahualpa y nunca llegaron a su destino. Más tarde, durante la colonia, se vendían en Cartagena de Indias unas gallinas criadas en tierras de aluvión, en cuyas mollejas se encontraban piedrecitas de oro. Este delirio áureo de nuestros fundadores nos persiguió hasta hace poco tiempo. Apenas en el siglo pasado la misión alemana de estudiar la construcción de un ferrocarril interoceánico en el istmo de Panamá, concluyó que el proyecto era viable con la condición de que los rieles no se hicieran de hierro, que era un metal escaso en la región, sino que se hicieran de oro.

La independencia del dominio español no nos puso a salvo de la demencia. El general Antonio López de Santana, que fue tres veces dictador de México, hizo enterrar con funerales magníficos la pierna derecha que había perdido en la llamada Guerra de los Pasteles. El general García Moreno gobernó al Ecuador durante 16 años como un monarca absoluto, y su cadáver fue velado con su uniforme de gala y su coraza de condecoraciones sentado en la silla presidencial. El general Maximiliano Hernández Martínez, el déspota teósofo de El Salvador que hizo exterminar en una matanza bárbara a 30 mil campesinos, había inventado un péndulo para averiguar si los alimentos estaban envenenados, e hizo cubrir con papel rojo el alumbrado público para combatir una epidemia de escarlatina. El monumento al general Francisco Morazán, erigido en la plaza mayor de Tegucigalpa, es en realidad una estatua del mariscal Ney comprada en París en un depósito de esculturas usadas.

Hace once años, uno de los poetas insignes de nuestro tiempo, el chileno Pablo Neruda, iluminó este ámbito con su palabra. En las buenas conciencias de Europa, y a veces también en las malas, han irrumpido desde entonces con más ímpetus que nunca las noticias fantasmales de la América Latina, esa patria inmensa de hombres alucinados y mujeres históricas, cuya terquedad sin fin se confunde con la leyenda. No hemos tenido un instante de sosiego. Un presidente prometeico atrincherado en su palacio en llamas murió peleando solo contra todo un ejército, y dos desastres aéreos sospechosos y nunca esclarecidos segaron la vida de otro de corazón generoso, y la de un militar demócrata que había restaurado la dignidad de su pueblo. En este lapso ha habido 5 guerras y 17 golpes de estado, y surgió un dictador luciferino que en el nombre de Dios lleva a cabo el primer etnocidio de América Latina en nuestro tiempo. Mientras tanto 20 millones de niños latinoamericanos morían antes de cumplir dos años, que son más de cuantos han nacido en Europa occidental desde 1970. Los desaparecidos por motivos de la represión son casi los 120 mil, que es como si hoy no se supiera dónde están todos los habitantes de la ciudad de Upsala. Numerosas mujeres arrestadas encintas dieron a luz en cárceles argentinas, pero aún se ignora el paradero y la identidad de sus hijos, que fueron dados en adopción clandestina o internados en orfanatos por las autoridades militares. Por no querer que las cosas siguieran así han muerto cerca de 200 mil mujeres y hombres en todo el continente, y más de 100 mil perecieron en tres pequeños y voluntariosos países de la América Central, Nicaragua, El Salvador y Guatemala. Si esto fuera en los Estados Unidos, la cifra proporcional sería de un millón 600 mil muertes violentas en cuatro años.

De Chile, país de tradiciones hospitalarias, ha huido un millón de personas: el 10 por ciento de su población. El Uruguay, una nación minúscula de dos y medio millones de habitantes que se consideraba como el país más civilizado del continente, ha perdido en el destierro a uno de cada cinco ciudadanos. La guerra civil en El Salvador ha causado desde 1979 casi un refugiado cada 20 minutos. El país que se pudiera hacer con todos los exiliados y emigrados forzosos de América latina, tendría una población más numerosa que Noruega.

Me atrevo a pensar que es esta realidad descomunal, y no sólo su expresión literaria, la que este año ha merecido la atención de la Academia Sueca de la Letras. Una realidad que no es la del papel, sino que vive con nosotros y determina cada instante de nuestras incontables muertes cotidianas, y que sustenta un manantial de creación insaciable, pleno de desdicha y de belleza, del cual éste colombiano errante y nostálgico no es más que una cifra más señalada por la suerte. Poetas y mendigos, músicos y profetas, guerreros y malandrines, todas las criaturas de aquella realidad desaforada hemos tenido que pedirle muy poco a la imaginación, porque el desafío mayor para nosotros ha sido la insuficiencia de los recursos convencionales para hacer creíble nuestra vida. Este es, amigos, el nudo de nuestra soledad.

Pues si estas dificultades nos entorpecen a nosotros, que somos de su esencia, no es difícil entender que los talentos racionales de este lado del mundo, extasiados en la contemplación de sus propias culturas, se hayan quedado sin un método válido para interpretarnos. Es comprensible que insistan en medirnos con la misma vara con que se miden a sí mismos, sin recordar que los estragos de la vida no son iguales para todos, y que la búsqueda de la identidad propia es tan ardua y sangrienta para nosotros como lo fue para ellos. La interpretación de nuestra realidad con esquemas ajenos sólo contribuye a hacernos cada vez más desconocidos, cada vez menos libres, cada vez más solitarios. Tal vez la Europa venerable sería más comprensiva si tratara de vernos en su propio pasado. Si recordara que Londres necesitó 300 años para construir su primera muralla y otros 300 para tener un obispo, que Roma se debatió en las tinieblas de incertidumbre durante 20 siglos antes de que un rey etrusco la implantara en la historia, y que aún en el siglo XVI los pacíficos suizos de hoy, que nos deleitan con sus quesos mansos y sus relojes impávidos, ensangrentaron a Europa con soldados de fortuna. Aún en el apogeo del Renacimiento, 12 mil lansquenetes a sueldo de los ejércitos imperiales saquearon y devastaron a Roma, y pasaron a cuchillo a ocho mil de sus habitantes.

No pretendo encarnar las ilusiones de Tonio Kröger, cuyos sueños de unión entre un norte casto y un sur apasionado exaltaba Thomas Mann hace 53 años en este lugar. Pero creo que los europeos de espíritu clarificador, los que luchan también aquí por una patria grande más humana y más justa, podrían ayudarnos mejor si revisaran a fondo su manera de vernos. La solidaridad con nuestros sueños no nos haría sentir menos solos, mientras no se concrete con actos de respaldo legítimo a los pueblos que asuman la ilusión de tener una vida propia en el reparto del mundo.

América Latina no quiere ni tiene por qué ser un alfil sin albedrío, ni tiene nada de quimérico que sus designios de independencia y originalidad se conviertan en una aspiración occidental.

No obstante, los progresos de la navegación que han reducido tantas distancias entre nuestras Américas y Europa, parecen haber aumentado en cambio nuestra distancia cultural. ¿Por qué la originalidad que se nos admite sin reservas en la literatura se nos niega con toda clase de suspicacias en nuestras tentativas tan difíciles de cambio social? ¿Por qué pensar que la justicia social que los europeos de avanzada tratan de imponer en sus países no puede ser también un objetivo latinoamericano con métodos distintos en condiciones diferentes? No: la violencia y el dolor desmesurados de nuestra historia son el resultado de injusticias seculares y amarguras sin cuento, y no una confabulación urdida a 3 mil leguas de nuestra casa. Pero muchos dirigentes y pensadores europeos lo han creído, con el infantilismo de los abuelos que olvidaron las locuras fructíferas de su juventud, como si no fuera posible otro destino que vivir a merced de los dos grandes dueños del mundo. Este es, amigos, el tamaño de nuestra soledad.

Sin embargo, frente a la opresión, el saqueo y el abandono, nuestra respuesta es la vida. Ni los diluvios ni las pestes, ni las hambrunas ni los cataclismos, ni siquiera las guerras eternas a través de los siglos y los siglos han conseguido reducir la ventaja tenaz de la vida sobre la muerte. Una ventaja que aumenta y se acelera: cada año hay 74 millones más de nacimientos que de defunciones, una cantidad de vivos nuevos como para aumentar siete veces cada año la población de Nueva York. La mayoría de ellos nacen en los países con menos recursos, y entre éstos, por supuesto, los de América Latina. En cambio, los países más prósperos han logrado acumular suficiente poder de destrucción como para aniquilar cien veces no sólo a todos los seres humanos que han existido hasta hoy, sino la totalidad de los seres vivos que han pasado por este planeta de infortunios.

Un día como el de hoy, mi maestro William Faullkner dijo en este lugar: "Me niego a admitir el fin del hombre". No me sentiría digno de ocupar este sitio que fue suyo si no tuviera la conciencia plena de que por primera vez desde los orígenes de la humanidad, el desastre colosal que él se negaba a admitir hace 32 años es ahora nada más que una simple posibilidad científica. Ante esta realidad sobrecogedora que a través de todo el tiempo humano debió de parecer una utopía, los inventores de fábulas que todo lo creemos, nos sentimos con el derecho de creer que todavía no es demasiado tarde para emprender la creación de la utopía contraria. Una nueva y arrasadora utopía de la vida, donde nadie pueda decidir por otros hasta la forma de morir, donde de veras sea cierto el amor y sea posible la felicidad, y donde las estirpes condenadas a cien años de soledad tengan por fin y para siempre una segunda oportunidad sobre la tierra.

Agradezco a la Academia de Letras de Suecia el que me haya distinguido con un premio que me coloca junto a muchos de quienes orientaron y enriquecieron mis años de lector y de cotidiano celebrante de ese delirio sin apelación que es el oficio de escribir. Sus nombres y sus obras se me presentan hoy como sombras tutelares, pero también como el compromiso, a menudo agobiante, que se adquiere con este honor. Un duro honor que en ellos me pareció de simple justicia, pero que en mí entiendo como una más de esas lecciones con las que suele sorprendernos el destino, y que hacen más evidente nuestra condición de juguetes de un azar indescifrable, cuya única y desoladora recompensa, suelen ser, la mayoría de las veces, la incomprensión y el olvido.

Es por ello apenas natural que me interrogara, allá en ese trasfondo secreto en donde solemos trasegar con las verdades más esenciales que conforman nuestra identidad, cuál ha sido el sustento constante de mi obra, qué pudo haber llamado la atención de una manera tan comprometedora a este tribunal de árbitros tan severos. Confieso sin falsas modestias que no me ha sido fácil encontrar la razón, pero quiero creer que ha sido la misma que yo hubiera deseado. Quiero creer, amigos, que este es, una vez más, un homenaje que se rinde a la poesía. A la poesía por cuya virtud el inventario abrumador de las naves que numeró en su Iliada el viejo Homero está visitado por un viento que las empuja a navegar con su presteza intemporal y alucinada. La poesía que sostiene, en el delgado andamiaje de los tercetos del Dante, toda la fábrica densa y colosal de la Edad Media. La poesía que con tan milagrosa totalidad rescata a nuestra América en las Alturas de Machu Pichu de Pablo Neruda el grande, el más grande, y donde destilan su tristeza milenaria nuestros mejores sueños sin salida. La poesía, en fin, esa energía secreta de la vida cotidiana, que cuece los garbanzos en la cocina, y contagia el amor y repite las imágenes en los espejos.

En cada línea que escribo trato siempre, con mayor o menor fortuna, de invocar los espíritus esquivos de la poesía, y trato de dejar en cada palabra el testimonio de mi devoción por sus virtudes de adivinación, y por su permanente victoria contra los sordos poderes de la muerte. El premio que acabo de recibir lo entiendo, con toda humildad, como la consoladora revelación de que mi intento no ha sido en vano. Es por eso que invito a todos ustedes a brindar por lo que un gran poeta de nuestras Américas, Luis Cardoza y Aragón, ha definido como la única prueba concreta de la existencia del hombre: la poesía. Muchas gracias.

histórias davóinha: Neinho, fazê o desamô é uma escolha... o ódio é um gosto 07cp

casarão canela preta


o redemoinho da vida
Ensaio 07cp – 2ª edição 1ª reimpressão


baitasar


desgraça pouca é bobagem, basta uma desdita bem pequena para arrancar do conforto o bem-estar habitual, comum, cotidiano: transportar-se ao seu senhoril para um dia cheio de aventuras ou a felicidade de voltar para casa depois de um dia completo de serviços ao patrão. assim, para aquelas pessoas que se deixam sacudir por qualquer anormalidade, o sonho da bem-aventurança vira pesadelo

essa é a tarefa dos reservistas da Viação Anônima estacionados na garagem: regularizar e normalizar os itinerários interrompidos. precisamos agir rapidamente, mas com calma e segurança. devolver ao paraíso das suas casas - ou trabalho, vai saber se não estar em casa pode ser o olimpo -, amontoados para o gradil da engorda e do abate, desgraçadas leitoas e desgraçados leitões

eu e o João Torto fizemos história como o conjunto homem-máquina que mais prestou socorro de transtrocas do carregamento. nossa missão era recolher os passageiros e finalizar o percurso com os menores danos possíveis. substituímos com o 69 as faltas dos colegas ou o quebra-quebra dos ônibus velhos. uma ou outra vez, iniciamos a rota desde a primeira viagem. isso acontecia quando o conjunto titular não comparecia no horário da largada. o 69 era o décimo segundo jogador convocado para entrar em campo desde o início ou chamado para substituir e tranquilizar os usuários. o quebra-galho titular

um emprego sem maiores dificuldades. sentado. contando. cobrando. olhando. reparando. conversando. sem arrependimentos. o banco do cobrador foi feito para mim. para o meu gosto faltava sair da reserva. o João Torto, eu e o 69 com uma rota fixa. um casamento. estabilidade. um enredo ou uma armadilha? gosto do costume de conhecer a rota, mas também não me desagrada o imprevisto

o João Torto já teve percurso de motorista titular. o nome cravado no quadro do horário. o desvio dele foi causo parecido com o tiuzin Jorge. jogatina. pediu emprestado e não pagou. a jogatina é uma desgraça, pelo menos, para o tiuzin Jorge que não consegue se livrar de ganhar menos e perder mais na mesa das cartas. a desconsideração da jogatina com os perdedores é uma agonia para quem fica na felicidade das suas casas esperando a volta do jogador-perdedor

a tragédia pode parecer evitável quando olhamos de perto, comovidos como testemunhas dos dramas pessoais, inadvertidamente desinformados pela proximidade. parece que quanto mais perto estamos menos conseguimos entender o que se passa. a desdita não começa no momento do buraco sem fundo dos acasos, mas bem antes, quando os caminhos vão se construindo até se cruzarem inexplicáveis, misteriosos e obscuros, chamamos de rota de sorte ou azar. precisamos classificar e nomear tudo a nossa volta para o conforto do bem-estar habitual

o João jogou nas cartas mais do que tinha e perdeu. pediu emprestado ao largador. jogou nas cartas o que já devia, e perdeu. jogou o que perdeu, e perdeu. foi quando o largador passou o seu caso para o setor da disciplina na Anônima. os controladores do pânico, desordem, bem-aventurança e obediência, deuses na Anônima, como podemos perceber, se reuniram com o João na sala fechada da correição. o João nunca quis falar. parece que levou alguns tapas. na cara ou onde pudessem acertar. virou o torto da jogatina. o João Torto. era o tempo da ditadura. a sala dos controladores na Anônima era o sovaco das suas práticas amenas, Era um tempo de faroeste, Batatinha.

foi a única vez que o João Torto voltou ao assunto. era motivo da sua vergonha e medo. apanhou sem reagir. entortou quieto, Guri, o patrão manda além do emprego.

saiu do banco de horários. foi enfiado na empresa de mineração do patrão. foi outra coisinha que aprendi. o patrão nunca tem uma só empresa. tem outras que se ajudam, principalmente, na hora de aumentar as despesas da Viação e pedir o aumento das tarifas. mas isso é outro pedaço dessa conversa. voltemos ao João Torto mandado longe. anônimo. o João Torto tinha seu protetor forte.

as forças da mudança se colocaram à caminho para reforçar sua proteção. o largador, para quem o João devia da jogatina, morreu no acaso de um atropelo. é isso, o largador era um sujeito trancando os caminhos, quando perdeu o reforço da força forte se perdeu da vida. dizem que se foi com muito desgosto atravessado na garganta. quem lhe devia favor acabou lhe virando as costas ou passando por cima

o novo largador foi eleito pelos motoristas com a missão de ser igualitário. não funcionou. o patrão da Anônima não gostou de perder a força de escalar o time titular e os reservas. tanto fez e desfez que mudou o largador. precisava ser da sua confiança. há males que vêm para o bem. o João Torto voltou e começou a sentar no banco dos reservas. aos poucos, vez que outra, saia em socorro

lembrei as recomendações davó, Mifiuneto, sempre dá ditê pra quem se socorrê. É só prestá tenção e sabê pedí.

foi quando entrei como cobrador das passagens do 69. logo, nos tornamos a primeira opção da reserva. os primeiros a serem chamados. o conjunto mais rápido. mais forte. mais valente. éramos a esmola do patrão aos passageiros. ele não queria renovar sua frota de ônibus. não via necessidade. alheio a essa discussão, eu me sentia quase titular. o João amansava minha euforia, Calma, moleque. Presta atenção, a mão que dá é a mesma que tira, retruquei que não tinha essa preocupação. ele, é claro, me olhou com a consideração de um pai mais velho e experiente, que o filho não escuta

João, a minha preocupação, se é que se pode chamar de preocupação, é com o cacete embaixo do seu banco, ele carregava uma espécie de marreta, ficava deitada escondida sob o banco do motorista

Não é nada, Batatinha. Apenas, cautela de resguardo. Uma maneira para conquistar corações e mentes. Não vou mais apanhar sem dar o troco.

Já usou?

caminhávamos pelo pátio da garagem até o 69. ele parou, dobrou os joelhos e ficou agachado, me olhava frente a frente, senti o seu hálito de café abraçado em voz macia, Isso importa?

Acho que não, foi minha resposta.

ele levantou e continuamos caminhando, Nunca foi preciso desembalar do pacote.

apressei meus passos, Assim fique, Amém.

o comentário na Viação Anônima era que o humor do João Torto estava de volta. queria que a vocação da tiazin Vanda de achar graça em tudo tivesse um jeito qualquer de voltar, na mesma feição que parecia ter voltado ao João Torto. o jeitão sisudo daqueles dias não lhe pertencia. até o tiuzin Manoel tinha feito anotação do novo feitio da tiazin, O que se dá com a Vanda?

Desembestou-se...

tão de pronto respondi mais depressa senti arrependimento, Bobagem da nêga. Não tem precisão de querê se colocá no lugá da mãinha.

não queria essa conversa de julgamento da tiazin Vanda. dá uma nostalgia, uma vontade de escutar as conversas davó, as risadas da tiazin, e outras coisinhas. a vida ensina a querer viver, não ensina o contrário. a saudade da vida que passou não tem cura, não tem como perder a ternura e abandonar o início carregando tanto amor, A força não é boa conselheira. O tempo ensina melhó, o tiuzin Manoel pareceu adivinhar meus pensamentos de tristeza, a saudade das caras e bocas da avóinha, os seus jeitinhos de sorrir, enrugar a testa e mostrar brabeza.

quando tirei os olhos de mim mesmo entestei o tiuzin Manoel. ele parecia engasgado com alguma coisa que tinha precisão de dizer, mas não desembuchava. impertinente de não parar em nenhum lugar. desceu até a senzala, fez vistoria no lugar dos meus festejos solitários com a professora da geografia e voltou à cozinha, Misobrinho, to lembrando da mãinha, fiquei do jeito que tava, não era a minha hora das lembranças, precisava respeitar as pegadas davó que deixaram marcas no tiuzin, mãinha falava do seu gosto pelo bão e da vontade que tinha de amaldiçoá o ruim, lembra?

fiz cara e imitação davó, a voz até que saiu parecida, Mifioneto, saí dizendo, por aí, o qui é bão e o qui não é bão, é bão, mais é fácil. O trabalhoso é praticá a prática do qui é dito, o tiuzin abriu a sua cara preta num riso gostoso que vem junto das lembranças boas, fez a sua imitação davó

Mifiu, lê livro, escrevê livro, num é sorteamento do destino, é uma escolha. Sabê lê não pode sê uma escôia, é otra obrigação qui os preto precisa ensiná pros fio, eu me animei com a alegria do tiuzin. as lembranças davó acenderam o casarão Canela Preta, ela tava de volta na nossa volta

Miúdo, fazê o desamô é uma escolha, odiá é um gosto.

expliquei ao tiuzin que tava sentindo avóinha. ela entrou murmurando como um assopro. o hálito dos espíritos é lé cum cré se o tiuzin não sabe escutar os assopros da continuação da vida. rezava para continuar escutando os espíritos e avóinha, Neinho, num caminha o caminho das ofensa. O ódio afunda tudo e ocê junto. O rancô odiento tem gosto amarguento da correnteza da morte. Num é gosto bão.

o tiuzin não escutava. a imitação davó foi uma brincadeira das memórias que guardamos com carinho. é assim, para o tiuzin Manoel o que passou é passado. acabou. não volta. é preciso seguir em frente, O moleque já recebeu o primeiro pagamento?

O tiuzin Manoel quer saber o quê?

ele respirou fundo e esfregou as mãos. olhou na volta, um assopro de vento bateu uma das janelas. não tinha vento. arreganhou a dentadura, uma olhadinha pra trás, depois fechou os olhos. um pequeno estremecimento como um arrepio de medo, tentava espantar alguma assombração de aviso, depois das formalidades, seguiu em frente, Quero sabê se o moleque já provô o gosto do primeiro salário...

tanto volteio deve ser o preparatório para algum pedido de favor, ajutório de emergência

Não provei do gosto... parece que amanhã...

E a folga do guri?

Domingo.

bateu as mãos com satisfação e girou o corpo sobre os calcanhares. meia-volta, volver, Perfeito!

não entendi da perfeição de receber o pagamento no sábado e folgar no domingo. uma conversa sem pé nem cabeça, Até amanhã, moleque!

Boa noite, tiuzin.

quando ele abriu a porta, um assopro entrou na sua saída, o hálito era avóinha. ela foi se chegando sem cerimônias de apresentação, Mifiuneto, cuidado com as conversa fácil. Elas tem as palavra qui esconde a vontade escondida. O Capitão só foi achá o valô da nêga Laetitia quando já tava nas corrente e era levado pra longe, o lugá do nunca mais.

foi assim que davó me voltou depois do sumiço do tiuzin João. gostei da sua aparição, precisava das lembranças, aliviar a saudade de não poder ver. não quero esquecer, quero continuar escutando, Bobagem, mifiuneto. A mudeza num qué dizê qui tá ruim nem a tagarelice é aparição do gosto bão. Tem coisa qui só parece, mais num é uqui parece.

abri os olhos e dormi.



________________

Leia também:

sempre chega a vez de sentá pra conversá
Ensaio 01cp – 2ª edição 1ª reimpressão

Sô a favô de vendê, pegá no dinheiro e cuidá de vivê
Ensaio 02cp - 2ª edição 1ª reimpressão

é mais fácil não tê alguma coisa qui tê
Ensaio 03cp – 2ª edição 1ª reimpressão

Quero ocê, até depois qui a vida se acabá
Ensaio 04cp - 2ª edição 1ª reimpressão

Ele não é bicho, neinho. É mifio!
Ensaio 05cp - 2ª edição 1ª reimpressão
Ensaio 08cp – 2ª edição 1ª reimpressão


domingo, 13 de abril de 2014

Eu só peço a Deus / Sólo le pido a Dios

O que você pediria ou agradeceria?


Você agradeceria?

Gracias A La Vida










Pediria para voltar aos 17?

Volver a los 17





Volver a los 17
después de vivir un siglo
es como descifrar signos
sin ser sabio competente
volver a ser de repente
tan frágil como un segundo
volver a sentir profundo
como un niño frente a Dios
eso es lo que siento yo
en este instante fecundo.

Se va enredando, enredando
como en el muro la hiedra
y va brotando, brotando
como el musguito en la piedra
como el musguito en la piedra
Ay, si, si, si.

Mi paso ha retrocedido
cuando el de ustedes avanza
el arco de las alianzas
ha penetrado en mi nido
con todo su colorido
se ha paseado por mis venas
y hasta la dura cadena
con que nos ata el destino
es como un diamante fino
que alumbra mi alma serena.

Lo que puede el sentimiento
no lo ha podido el saber
ni el más claro proceder
ni el más ancho pensamiento
todo lo cambia el momento
cuál mago condescendiente
nos aleja dulcemente
de rencores y violencias
solo el amor con su ciencia
nos vuelve tan inocentes.

El amor es torbellino
de pureza original
hasta el feroz animal
susurra su dulce trino
detiene a los peregrinos
libera a los prisioneros
el amor con sus esmeros
al viejo lo vuelve niño
y al malo sólo el cariño
lo vuelve puro y sincero.

De par en par la ventana
se abrió como por encanto
entró el amor con su manto
como una tibia mañana
al son de su bella diana
hizo brotar el jazmín
volando cual serafín
al cielo le puso aretes
y mis años en 17
los convirtió el querubín.




Sólo le pido a Dios

Que a morte não me encontre um dia
Solitário sem ter feito o que eu queria





Eu só peço a Deus
Que a dor não me seja indiferente
Que a morte não me encontre um dia
Solitário sem ter feito o que eu queria

Eu só peço a Deus
Que a dor não me seja indiferente
Que a morte não me encontre um dia
Solitário sem ter feito o que eu queria

Eu só peço a Deus
Que a injustiça não me seja indiferente
Pois não posso dar a outra face
Se já fui machucada brutalmente

Eu só peço a Deus
Que a guerra não me seja indiferente
É um monstro grande e pisa forte
Toda fome e inocência dessa gente

Eu só peço a Deus
Que a mentira não me seja indiferente
Se um só traidor tem mais poder que um povo
Que este povo não esqueça facilmente

Eu só peço a Deus
Que o futuro não me seja indiferente
Sem ter que fugir desenganando
Pra viver uma cultura diferente



Mais ou menos assim...

Por siempre joven...








XVI – Mitologia dos Orixás: Euá [114] [115]

Euá
Reginaldo Prandi
Euá transforma-se numa fonte e sacia a sede de seus filhos
Havia uma mulher que tinha dois filhos, aos quais amava mais do que tudo. Levando as crianças, ela ia todos os dias à floresta em busca de lenha, lenha que ela recolhia e vendia no mercado para sustentar os filhos. Euá, seu nome era Euá e esse era seu trabalho, ia ao bosque com seus filhos todo dia.
Uma vez, os três estavam no bosque entretidos quando Euá percebeu que se perdera. Por mais que procurasse se orientar, não pode Euá achar o caminho de volta. Mais e mais foram os três se embrenhando na floresta. As duas crianças começaram a reclamar de fome, de sede e de cansaço.
Quanto mais andavam, maior era a sede, maior a fome. As crianças já não podiam andar e clamavam à mãe por água. Euá procurava e não achava nenhuma fonte, nenhum riacho, nenhuma poça d’água. Os filhos já morriam de sede e Euá se desesperava.
Euá implorou aos deuses, pediu a Olodumare.
Ela deitou-se junto aos filhos moribundos e, ali onde se encontrava, Euá transformou-se numa nascente d’água. Jorrou da fonte água cristalina e fresca e as crianças beberam dela. E a água matou a sede das crianças. E os filhos de Euá sobreviveram. Mataram a sede com a água de Euá.
A fonte continuou jorrando e as águas se juntaram e formaram uma lagoa. A lagoa extravasou e as águas mais adiante originaram um novo rio. Era o rio Euá, o Odô Euá.
[114]

Euá transforma-se na névoa
Euá era filha de Nanã.
Também filhos de Nanã eram Obaluaê, Oxumarê e Ossaim. Esses irmãos regiam o chão da Terra. A terra, o solo, o subsolo, era tudo propriedade de Nanã e sua família.
Nanã queria o melhor para seus filhos, queria que Euá casasse com alguém que a amparasse. Nanã pediu a Orunmilá bom casamento para Euá.
Euá era linda e carinhosa.
Mas ninguém se lembrou de oferecer sacrifício algum para garantir à empreitada. Vários príncipes ofereceram-se prontamente a desposar Euá. E eram tantos os pretendentes que logo uma contenda entre eles se armou. A concorrência pela mão da princesa transformou-se em pugna incessante e mortal.
Jovens se digladiavam até a morte. Vinham de muito longe, lutavam como valentes para conquistar sua beleza. Mas a cada vencedor, Euá não se decidia.
Euá não aceitava o pretendente. Vinham novos candidatos e outros combates. Euá não conseguia decidir-se, ainda que tão ansiosa estivesse para casar-se e acabar de vez com o sangrento campeonato.
Tudo estava feio e triste no reino de Nanã; a terra seca, o sol quase se apagara. Só a morte dos noivos imperava. Euá foi então à casa de Orunmilá para que ele a ajudasse a resolver aquela situação desesperadora e pôr um fim àquela mortandade.
Euá fez os ebós encomendados por Ifá.
Os ventos mudaram, os céus se abriram, o sol escaldava a terra e, para o espanto de todos, a princesa começou a desintegrar-se. Foi desaparecendo, perdendo a forma, até evaporar-se completamente e transformar-se em densa e branca bruma.
E a névoa radiante de Euá espalhou-se pela Terra. E na névoa da manhã Euá cantarolava feliz e radiante. Com força e expressões inigualáveis cantava a bruma. O Supremo Deus determinou então que Euá zelasse pelos indecisos amantes, olhasse seus problemas, guiasse suas relações.
[115]
_________________
Leia também:
XV – Mitologia dos Orixás: Oxumarê [109] [110]
XVII – Mitologia dos Orixás: Xangô [123] [124]

Reginaldo Prandi, paulista de Potirendaba e professor titular de sociologia da Universidade de São Paulo, é autor de três dezenas de livros. Pela editora Hucitec publicou Os candomblés de São Paulo, pela Edusp, Um sopro do Espírito, e pela Cosac Naify, Os príncipes do destino. Dele, a Companhia das Letras publicou também Segredos guardados: orixás na alma brasileiraMorte nos búziosIfá, o AdivinhoXangô, o TrovãoOxumarê, o Arco-ÍrisContos e lendas afro-brasileiros: a criação do mundoMinha querida assombraçãoJogo de escolhas e Feliz Aniversário.


Prandi, Reginaldo. Mitologia dos Orixás / Reginaldo Prandi; ilustrações de Pedro Rafael. - São Paulo: Companhia das Letras, 2001.

sábado, 12 de abril de 2014

La manca

Gabriela Mistral







Que mi dedito lo cogió una almeja,
y que la almeja se cayó en la arena,
y que la arena se la tragó el mar.
Y que del mar la pescó un ballenero
y el ballenero llegó a Gibraltar;
y que en Gibraltar cantan pescadores:
«Novedad de tierra sacamos del mar,
novedad de un dedito de niña:
¡la que esté manca lo venga a buscar!»


Que me den un barco para ir a traerlo,
y para el barco me den capitán,
para el capitán que me den soldada,
y que por soldada pide la ciudad:
Marsella con torres y plazas y barcos,
de todo el mundo la mejor ciudad,
que no será hermosa con una niñita
a la que le robó su dedito el mar,
y los balleneros en pregones cantan
y están esperando sobre Gibraltar...



quinta-feira, 10 de abril de 2014

04 – General Calçacurta

O Cadáver do Calçacurta – 3ª edição revisada
Um armário na parede
baitasar
Peguei a caneta carregada de tinta vermelha em meu bolso, mirei as duas pequenas buchas nas ventas do defunto. Espiava as duas bolinhas de papel, não queria que as ventas entupidas fossem notadas nem deixassem alguma rota de fuga para o animalzinho
—        Chupa-racha!
—        Sim senhor, General!
Não conseguia evitar a posição retesada do respeito à sua autoridade. Não adianta, nunca vou esquecer este hábito de obedecer. Não adianta, alguns nascem para comandar, os reis; outros, para obedecer, esses brotam como musgos, boi e boiada. Não adianta. Eu tenho uma teoria. O senhor gerou-se do medo e do cacoete depois das primeiras sessões de tortura. A desgraça lhe invadiu o coração e o senhor não conseguiu mais contrariar os sentimentos da tirania, emoções irreconciliáveis com a vida
—        Estou entregue nas mãos de um soldado que não consegue sumir com duas bolinhas de papel. Imagine se eu largo um corpo em seus braços e a missão de fazer o desaparecimento do falecido. Já pensou nisso, chupa-racha?
Forcei as buchinhas, novamente. Fui até os pés do defunto. Olhei desconfiado para os lados, tive a sensação de estar sendo vigiado. Fiquei com os pelos do corpo arrepiados. Cacoete de soldado. Sentinela de prontidão. Sentimento de culpa. Fui até a porta da capela, amanhecia suavemente. A beleza daquele amanhecimento colorido e a certeza da morte nas costas. Como se a madrugada não quisesse entregar-se para o acordar do dia seguinte, cansada daquela invariável angústia de chegar e partir. Não havia o que fazer. Envergonhada ela tenta ficar longe, mas descobre que não consegue. Passou do tempo de desistir. Acumula a tristeza e a saudade de tantas madrugadas sozinha. Uma capela fantasma. Nada de estranho. Voltei aos pés do General. Fixei minha mira nas duas ventas. Sorri satisfeito. Quem não soubesse não ia desconfiar. E ninguém mais sabia. Olhei à volta. Parei as vistas através da porta da capela. Lá fora, um mundo de mortos aguardava o General. Voltei para o morto. Mais uma pequena espetadinha e nem a curiosidade desmedida iria desconfiar do outro corpo dentro do finado. Duas lágrimas escorregaram deslizando em minhas bochechas. O sentimento do dever se cumprindo.
Guardei a caneta.
Relaxei da posição de ataque, mas não conseguia afrouxar do posto de vigilância. Franzi o nariz e desembarquei os olhos. Foi quando vi um pequeno vulto se mexendo dentro da boca quase fechada do defunto
—        A mosca, General!
—        Faça alguma coisa, soldado! Isso é uma ordem!
Não tinha tempo para discutir as ordens de um defunto, o inimigo estava pronto para fugir. Foi instinto, eu juro. Nenhum plano de ataque pelos flancos, movimento em pinça, paraquedistas, etc. Ergui a mão e como um míssil ela foi na direção do animal. Acertei em cheio
—        O que foi isso, soldado!
—        A mosca, General!
Ela tentou recuar, estonteada, outro tapa na come-come defunto. Peguei o animalzinho nojento. Sabe-se lá, o que ele encontrou ou deixou por dentro do General. Imaginei um ninho com muitos bebês-mosca. E agora, senhor
—        Desaparece com o corpo!
Ergui a canhota e fiz continência de saudação e obediência
—        Com essa mão, chupa-racha?
—        A outra mão tá segurando o verme!
Desenfiei a mão esquerdista retesada da testa, ela desceu toda empolgada até a perna com uma batida seca e firme. Ficamos os três parados. Imóveis. O cadáver, a mosca e a mão do soldado. O cadáver do General ficava mais duro conforme a madrugada desaparecia. Perdia as reações. A mão da continência começava amolecer. A mosca não se debatia mais, submissa na palma da outra mão. Eu havia recuperado o controle da situação, me sentia magnífico. Consegui. Olhei para o General, ele parecia me sorrir benevolente, um sorriso ausente da ternura, amargo e aborrecido
—        Ainda não acabou, General.
Eu sabia. Nem tudo é rosa na vida de um soldado motorista de general. Acho que se ele pudesse sentava no ataúde e emendava uma última noite de prosa. Uma conversa de pai para filho. Uma fantasia macabra que resuscita os mortos
—        O soldado ainda tem um corpo na mão.
—        Eu sei, General.
Um morto preocupado com corpos, gritos e disfarces. Não parecia olhar a própria desgraça, medo do sono? Ou do lugar e do tempo que lhe estava reservado? Sem que ele pedisse o ajudei a sentar
—        Obrigado, soldado.
Ficamos ali, comandante e comandado. Não passava aquele instante constrangedor em que não sabíamos o que dizer um ao outro, além do silêncio. Até que o galope da morte arrancou o General do sigilo a que tinha se imposto. Ninguém lhe ordenara ficar calado. Apenas, cortesia entre irmãos
—        Eu fui devorado, meu filho. Não pelas culpas, isso nunca, mas pelos excessos. Sempre fui um homem de abusos. A começar pelo contentamento de ter duas pernas diferentes, uma mais curta que a outra ou mais comprida. Entendeu? Tudo é uma questão de perspectiva. Nunca tive a silhueta do mocinho, pelo contrário, gostava de ser o monstro que enjaula. Isso me excitava. O desejo de soltar ou não, decidir quem vive ou morre. O ato é solitário, mas precisava de testemunhas.
—        Senhor, permissão para sentar.
—        À vontade, soldado.
Olhei na volta, escolhi uma cadeira com estofamento. Coloquei ao lado do ataúde. A mão continuava fechada com o verme aprisionado. Fiz um breve cumprimento com a cabeça e sentei. Não tenho a sua idade nem sou desmedido e insalubre como o senhor, mas quis soltar um suspiro de alívio, um capricho de submissão. Conformidade com a sua situação de morto e a minha condição de guarda da sua honra à cabeceira da morte. Sempre fui correto com o General, mas isso não quer dizer que continuarei fechando os olhos aos seus desatinos
—        Pulando do navio, chupa-racha?
—        Estou aqui, não estou?
O General se achava uma vítima dos burocratas, ele tem certeza que a Revolução foi para o brejo por causa dessa gente que nunca matou ou viu alguém ser morto
—        Já morri, chupa-racha. Não é educado falar mal do morto, me esqueçam!
Mas não se convencia, não parecia estar sofrendo, tão pouco me convencia
—        O senhor é um morto que não descansa e não sente as urgências de estar em paz com a vida.
Enrubesci timidamente
—        Afinal, qual o lado do chupa-racha?
Percebi que a voz vinda do ataúde ficara seca e ríspida, queria amedrontar. Em outros tempos, quem sabe sucumbisse ao duelista manejador do medo
—        Eu fico do seu lado, General. É meu dever de soldado e desejo de gratidão. — ele fingia acreditar — Afinal, foi o senhor que ofereceu meu primeiro e único emprego. Tenho casa e uma vida, graças ao senhor. Ninguém fez por mim o que o senhor fez. Escutei, mas não vi suas atrocidades. Graças ao senhor, não senti o gosto da maldade. Vi de longe.
Quando o General reaparecia na porta do Porão, a braguilha desabotoada, as sentinelas perfilavam duras e estaqueadas como mastro da sua bandeira
—        Aquela bandeira não é só minha.
Todos sabemos, senhor. Uns não conseguem acreditar, outros negam, mas, no fundo da solidão de cada um, todos sabemos a resposta
—        Que resposta, soldado?
—        Não lembra mais, General?
A voz do morto abaixou, sussurrava ao pé do meu ouvido, uma macabra navalha golpista... fria e afiada
—        Não esqueça qual o seu lado, o mundo é redondo. A pelota do jogo é sobre a vida e a morte.
Nunca lhe importunei com perguntas que o senhor não quer responder. Eu o conheço melhor que a mim mesmo
—        Cuidado, soldado...
Virei de frente. Senti a voz e a navalha chegando por trás. Uma xerenga em mãos habilidosas é uma guilhotina decapitadora. Nada. Sorri debilmente. Reconheci o medo em mim. A vontade desabotoada do corpo. Cai de joelhos e rezei. Fervorosamente. Pedi ao Pai que perdoasse meus pecados. O vinho é tinto, mas tive que lhe confessar: sabia que era de sangue. O cálice continua cheio.
Lá estava o senhor, no portal do Porão, depois das continências seguia para o estacionamento. Conforme o jeito do seu alisamento vinha o humor. À missão quase sempre favorável e do seu agrado. Eu descia do carro, corria para abrir sua porta. O senhor entrava e sentava alargado. Sem apetite. Um sorriso farto e folgado de esperteza. Acariciava o bigode com o polegar e o dedo fura-bolo, depois cheirava as duas garras. Acho que devia ser para lhe reavivar as memórias das perguntas e das respostas
—        Resposta, soldado? Mas que conversa de morto é essa?
—        A resposta para sua pergunta.
Cutucava o bicho sem olhar o tamanho da vara
—        Porra, chupa-racha! Fala!
O medo enterrou meu coração, congelou minhas veias e meus pés criaram raízes, não conseguia fugir. Mas fugir para onde
—        Nomes! Eu quero nomes!
Fechei as mãos com força. Precisava resistir. A cadeira estofada. As velas. A carne apodrecendo. O cheiro da morte. A indiferença. O capuz. A solidão. As fezes. O mijo. O sangue. O meu corpo nu naquela cela úmida com outros sangues, outras fezes, Ave Maria cheia de graça, Pai nosso que estais no céu
—        E o torturador vai pra onde?
Parou o punho no ar, aquele soco nunca chegou no meu queixo, meus dentes não se partiram, não bebi meu sangue, não morri em suas mãos
—        O que foi isso, chupa-racha?
Glória ao Pai, ao Filho e Espírito Santo
—        A sua pergunta, senhor. Lembra? Eu rezo para que o senhor encontre a resposta.
Se me permite, gostaria de dizer que não gostei desta posição sentada. Pareço mais um convidado que a sentinela dos seus festejos fúnebres. Vigiar sentado é a mesma coisa que olhar com desatenção. O senhor é um defunto que precisa de muito cuidado
—        Soldado, o que vem a ser isso?
Levantei. A boa vigilância não pode gostar da acomodação do serviço
—        Licença para levantar, General!
—        Parece que o soldado já levantou...
Em posição de sentido
—        Conheço o meu dever, senhor. Soldado bom é aquele que cumpre às ordens.
Olhei em volta. Como já perceberam eu tenho o cacoete de olhar em volta, examinar o perímetro. Nunca pensei que o senhor fosse acabar como uma morte lenta e gradual. Não foi tombo ou golpe do azar, muito menos, resultado de alguma navalha golpista. Seu pescoço sem nenhum arranhão. Nenhuma doença, nenhum acidente vascular cerebral. Foi velhice. Os traumas foram sendo temperados com paciência para o entorpecimento da memória até serem engolidos
—        Muito bem, chupa-racha. Soldado apenas mira e aperta o gatilho.
O general Calçacurta nem precisou ter preocupação, tudo foi ensaiado. O piadista e a piada. Os subversivos mais inconformados gritam contra a lei das anistias. Não sabem ou não querem esquecer. Estúpidos. Aposto que o senhor já esqueceu e perdoou todos
—        Nem depois de morto! Não fale merda!
É melhor esquecer, senhor. Acredite. Virar a página e recomeçar das vidas interrompidas. Curar as feridas, lamber os esfolamentos
—        Um jardim de rosas, soldado.
—        Isso, General. Devemos cultivar flores... perfumadas... vermelhas... amarelas...
—        E você, cabo?
—        O que tenho eu, General?
—        Virá cuidar do meu jardim?
Fiz um minuto de silêncio, destes que se fazem nos estádios e parecem intermináveis, as vozearias dos pipoqueiros, sorveteiros, os apitos, os apupos incomodados, bêbados inconformados com o jogo parado. Examinei o perímetro. Ninguém. Os amigos do General ainda estão dormindo. Mas tenho certeza que virão
—        Desculpe-me, General. — fiz um ínfimo intervalo, mas que me pareceu a eternidade do minuto — Acho que o senhor não entendeu. Não tem jardim para o senhor. O seu destino é um armário na parede.
Todos que estavam na curva do rio foram devorados pelos excessos do General. Ele sabe disso, eu e o Jacaré fingimos que não sabemos. Acho melhor mudar o rumo dessa conferência do passado
—        General...
—        Fala, soldado. — ele pareceu sentir o golpe. Ficar em um armário não era sua intenção, queria o chão para alimentar outras ervas daninha. Virar o húmus das vegetações vindouras
—        Outro dia, o soldado Jacaré... o senhor lembra dele?
—        Não, mas continue.
—        Pois bem, ele voltou aos estudos. Lá na escola ouviu do professor de história, um rapazinho recém-saído das fraldas, que a imaginação saudosista e mistificada inventa um passado romântico e constrói o caráter do povo.
Nenhuma reação. Acho que esperei demais desse general
—        E daí, chupa-racha? O povo não queria saber se foi golpe ou revolução. Precisava sentir que a sua vida melhorava. Falhamos nisso.
Esse é o problema, General. O povo. Os subversivos gritam que querem quem governe para ele, o povo. Não nos querem. Berram que produzimos a riqueza com o suor, o sangue e as mãos do povo, mas essa riqueza fica nas mãos dos poucos amigos do General
—        Chupa-racha!
—        Sim, senhor!
—        Não sabe mais o lado da cerca que pode subir?
Não tem lado, General. Pelo menos, não deveria ter. É tudo um povo só
—        Chupa-racha! E o corpo na sua mão?
Lembrei do verme

—        To pensando...
 ________________________
Leia também:
O Cadáver do Calçacurta – 3ª edição revisada / 03 - Eu sei, General

O Cadáver do Calçacurta – 3ª edição revisada / 05 - Sal grosso