segunda-feira, 27 de abril de 2015

Histórias de avoinha: Depois da fama feita, deite na cama

Ensaio 48B – 2ª edição 1ª reimpressão



baitasar



Ali tava o siô da Hora, a cria natural e única do véio Ermo da Hora, um portuga qui chegô das terra da África sem a fortuna qui o seu rei de Portugal prometeu. O mais véio da Hora foi um hôme arrojado e aventuroso, chegô na Villa com uma das mão vazia na frente e a otra cheia atrás. Carregava junto com as história do otro mundo a imprudência e os tombo da vida. Mais a vontade de todo jeito ou manêra tê os dinhêro qui nunca teve. No otro lado da estrada das água teve mais azá qui juízo e o sonho comia o véio Ermo nas tripa, quase fez ele desistí de tê mais vida, chegô confessá qui ia se retirá da luta, mais voltô atrás com tempo, Meu filho, aprendi que desistir é burrice, tava quase me retratando do sonho de fazer riqueza quando uma luz me desceu, e tudo ficô as clara.

Ele nunca conseguiu precisá o lugá da iluminação, o qui importava era a luz qui chegô. Ele foi escolhido pra naquele lampejo vê qui era preciso juntá daqui, roubá dali e num gastá inté tê o qui nunca teve. E fez do nada um armazém na beirada do rio. No começo foi vendedô de galinha, carregava no ombro um sarrafo com as galinha pendurada viva pelos pé. Esse trabáio foi a fundação do seu armazém. Toda galinha vendida era lucro certo, ele num tinha despesa com as depenada. O véio Ermo ordenava pro fiô tirá a liberdade das bicha qui andava solta ciscando. As galinha num tinha marca nem tinha dono declarado. O fiô do véio Ermo, o pequeno Afonsinho, se fez um caçadô de galinha muito bão. Depois qui colocava a tintura verde dos óio na achada de pena, coitada, num tinha mais salvação. Só respeitava o galinhêro. Num entrava, ali tinha dono. Esperava elas saí. O pai ensinô o bote. Ele tinha preocupação com a verdura dos óio do guri, aquela tintura qui veio da mãe era coisa bonita pras moça. Tinha medo de tanta belezura no guri. Na mãe do guri dava encantamento e vontade de desencantá. No guri num tinha necessidade. No seu achado de vida, pensava qui hôme num ganha respeito pela belezura dos óio, mais pela dureza da brabeza. Nunca teve despesa com galinhêro. E o menino era bão na caçada. Agarrava pelo pescoço e apertava o bico. O negócio prosperava. Pensô em guardá uma e otra pra modo de tê ovo pra oferecê. Mais as despesa qui ia tê num deixô a vontade vingá. Num era produtô o seu feitio de fazê riqueza, gostava de buscá nos lugá ermo pra vendê.

Depois da fundação do armazém, o véio Ermo num se acomodô na beirada do rio. Mandava o menino Afonsinho andá nas vizinhança, ele ficô conhecido como guri do armazém. Nas primêra claridade do dia, ele percorria a freguesia recolhendo os pedidos das preta cozinhêra, qui era tudo entregue depois pelo guri do armazém. A freguesia qui morava nas redondeza da rua da praia conhecia bem as cantoria do guri. Os chamado de cantoria com anúncio das compra e da entrega das compra.

O menino cresceu e virô conde com a graça e obra do encantamento do conde Antão com a jogatina. Vendeu o armazém e fez os acerto das dívida de jogo do conde de verdade e ganhô os serviços de cama da siá Casta mais a prataria, os escravo da fazenda e tudo qui tava dentro da fazenda. Enquanto o casamento num fosse desfeito ia gozando. Foi um bão negócio pros dois lado. E siá Casta num teve muito qui reclamá, já tava passando das idade apropriada do casamento. E com o temperamento de brabeza num tinha muito pretendente. Mais faltava tê o acolhimento da fidalguia. O filtro qui separava a ralé da nova vida qui comprô, Vosmecê não pode confiar, meu esposo. É preciso desconfiar, mas não é tempo de fazer inimigos. Tenha a aparência confiante e uma fachada de sabedoria. Ler é bom, e vosmecê sabe ler, o conde respondeu com a cabeça, não faça essa cara, vosmecê não precisa ler o livro de cabo a rabo. Apenas, o suficiente.

Isso ele sabia, mais num era ali qui queria tá, Estou melhor entre as pernas das meninas da Maria Cobra ou no lombo do cavalo ou com o cipó de boi nas mãos, num podia deixá de vê qui tava meió entre as coisa qui montava e desmontava no seu gosto. Num queria acabá como o conde verdadêro, hôme com título documentado e pose de reputação respeitosa, mais qui trocô as dívida do jogo pelas graça da fia. Quando a sorte com as carta do jogo lhe virô as costa, otra veiz, e o siô da Hora recusô a salvação do conde pai, ele teve qui pagá com a vida. Perdeu as mão pra num entregá nenhum anel. Matou-se de desgosto, mais num morreu sozinho. O siô da Hora fez questão de acompanhá suas última palavra, o conde de verdade pareceu tá com um pouco de timidez e embaraço, Viajo para pagar o que não tenho como pagar, mais fez o qui tinha qui fazê

O siô fala como um verdadêro cavalheiro, adeus, o menino qui virô conde aprendia rápido as lição qui a vida ensinava. Cresceu com muitos ensinamento da desconfiança, num podia sê frágil.

Oiô nos arredó do salão, num viu o visconde das lei nem o coroné das corrente, eles tava nalgum lugá qui num era ali. A voz da siá continuava repetindo qui num era tempo de fazê inimigo, era tempo das aparência, Vosmecê vale pelos outros que imaginam vosmecê. Então, faça sua melhor tecedura. Mostre que é mais que um homem de sorte e oportunidades, mostre-se um homem de sabedoria com as palavras e força com as mãos. Leve na memória um ou otro pedacinho das suas leituras inacabadas. E com o olhar seja ambíguo e vago.

Boa noite, meus amigos! Mui dignas autoridades da nossa valorosa Villa, a voz de missa do siô padre lhe retirô os pensamento no finado conde e na sua esposa atenciosa e árida, girô as vista pra lá e cá, usava seu mió disfarce de desinteresse, parecia qui num oiava enquanto oiava. O siô padre tava começando aquela reunião extraordinária da Irmandade. Ele mesmo num era membro, mais seguido amiúde aparecia nas reunião. Num podia sê afiliado, era um bão intermediário.

O conde escutô o barulho da porta se fechando, tava sozinho. Correu as vista no salão. Pela primêra veiz, pensô qui tava numa armadilha, o que vou fazer, se perguntô, cai na armadilha, passô as mão na testa suada, se pelo menos não fosse tão ganancioso, e se esses idiotas não viram nada? As aparências, as aparências, calma, fique sereno, idiota. Não consigo, não consigo. Perdoe-me, Padre! Ajude-me! Eu pequei, oiô o siô padre com seu meió oiá suplicante, não me deixe sozinho, sou teu e do vosso Sinhô, serei a ovelha mais doce do vosso rebanho.

O siô padre num parecia escutá aquelas prece, seus pedidos de socorro. Virô o nariz pra janela. Nada no capinzal. Num tinha movimento de pulícia nem de preto. Num parecia tê nada naquela escuridão. Desvirô. O salão lhe prestava atenção. As perna tremia. As canela suava. Tava sozinho. Foi empurrado naquela armadilha, ouça-me, Padre! Vosmecê é tudo que preciso nas horas do desespero, me sinto atado na tramoia da angústia, juro que meu coração continua casto, sou a mesma criança que rezava em nome do Pai, do Filho e Espírito Santo, Pai-Nosso que estais no céu, cheio de graça, bendito sois vós entre as mulheres...

Sinhô Conde Afonso da Hora, por favor, o intermediário continuava dando início àquela reunião da Irmandade, o começo e o fim de tudo. O recinto qui estocava a fidalguia da Villa ficô com menos da metade da iluminação. As lanterna ia sendo apagada, uma a uma, o conde esperando na fila a sua veiz de subí no palco da forca. Num creditava qui ia ficá com o pescoço esticado, a cova funda como uma montanha. Nunca mais ia vê as coisa do amanhã. O sonho pra sempre acabado, o fedô da carne desmanchando, depois nem mais o chêro ruim fica, tudo desiste de existí, eu juro, sinhô Padre, não matar mais, não roubar mais, viver a minha vida sem as mulheres, me salve! me salve! vosmecê que nunca morre!

Ele tava em posição de ataque caso tivesse ataque, retesado, as vista atenta, as oreia espichada, os dente arreganhado, as unha aumentada. Sentiu vontade de largá devagarinho, sem estalo, sem alardes, o desconforto do intestino, mais segurô a vontade, teve medo qui num fosse só ventania. Num tinha um plano de resgate digno de sê apreciado, agora mais isso. Tava condenado sem nenhuma defesa. Ninguém ia sabê do seu destino sem iluminação ou sabedoria, apenas mais um desaparecido. De repente, tudo foi aclarando, sinhá Casta me aprontou essa vingança, ela fez tanta vontade pro meu aparecimento. Jamais confiar nas mulheres, seu anta. Vosmecê tinha razão, meu pai. Caí como um patinho. Apenas outra puta em minha vida, o conde sentia o aperto da corda no pescoço. Virô as vista pro lado, o siô padre continuava ali, firme ao seu lado, pelo menos isso, pensô enquanto procurava a porta, num via nenhuma porta de fuga

Estamos todos aqui, para ceder às boas razões do nosso anfitrião, sua Excelência Lecomo Denovo, Governadô da nossa Província, o siô conde desvirô a atenção qui jogava sobre as testemunhas do seu desaparecimento, precisava cumprimentá o governadô

Boa noite, sinhô Governador Lecomo Denovo, era um hôme de altura pouca, carregava muitas medalha pendurada do peito inté a cintura. O pequeno todo enfeitado num respondeu de pronto, antes deixô escapá um sorriso misterioso qui desmoronô o castelo de areia do conde, num segurô mais, soltô a ventosidade úmida do cortiço. Pareceu um derretimento das perna, sinhô Padre, me limpe a alma, me faça um Santo, reze por mim, não permita que suje os panos das calças. Reze muito por mim

Tenho escutado muitas coisas sobre o sinhô Conde, suas terras estão para os lados do caminho que leva até a Aldeia dos Anjos? Fui bem informado?

Sim, foi tudo qui conseguiu dizê. Um oiá perigoso e grande tinha aquele hôme pequeno, num carregava só o feitio da ambição. Podia fazê com gosto o ataque mais desalmado e desumano, não é tempo de fazer inimigos, me salve sinhá Casta, me ensine, quero me aprender


O conde está convidado para uma visita na rua da Igreja. Talvez lhe interesse conhecer minha coletânea de chicotes e chibatas. Tenho uma para cada tipo de castigo, lá voltô as lembrança da siá Casta, cuidado, meu esposo, bobagens são só bobagens, não precisa concordar nem lutar com elas. É luta inútil falar de tudo, vosmecê se arrisca falar de nada.

Mifioneto, para tudo desse seu serviço e coloca seu cuidado na avoinha, num é pra entendê agora, é só pra escutá, Se a imaginação dos otro gostá da invenção inventada de ocê, pode inté tá bão pra ocê, mais se num é coisa boa, num tá bão. Ocê ficá sem valô, num vai sê escutado, então o qui era bão fica ruim... se os otro imagina qui ocê é ladrão, ocê vira ladrão sem sê. Num esquece qui nunca é tempo de tê inimigo, eles tem muita imaginação pra lhe metê embaixo da sola das bota. Ocê pode num creditá, mais pra eles ocê é o qui tá na imaginação deles, os inimigo sabe qui é bão sê assim, pra eles, cuidado, muito cuidado pra num gostá de sê do feitio dos otro. Assim ocê fica do tamanho qui cabe na imaginação dos otro, num fique sem a imaginação de ocê mesmo. Depois da fama feita nem se agite, deite na cama.


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Leia também:


O mundo não é um só... nem as leis
Ensaio 47B – 2ª edição 1ª reimpressão


A revanche de siá Casta
Ensaio 49B – 2ª edição 1ª reimpressão

domingo, 26 de abril de 2015

XXI – Mitologia dos Orixás: Iá Mi Oxorongá [204]

Iá Mi Oxorongá



Reginaldo Prandi




Iá Mi chegam ao mundo com seus pássaros maléficos




As Iá Mi Oxorongá são as nossas mães primeiras, raízes primordiais da estirpe humana, são feiticeiras. São velhas-mães feiticeiras as nossas mães ancestrais. As Iá Mi são o princípio de tudo, do bem e do mal. São vida e morte ao mesmo tempo, são feiticeiras. São as temidas ajés, mulheres impiedosas.


As Oxorongá já viveram tudo o que se tem para viver. As Iá Mi conhecem as fórmulas de manipulação da vida, para o bem e para o mal, no começo e no fim.Não se escapa ileso do ódio de Iá Mi Oxorongá. O poder de seu feitiço é grande, é terrível. Tão destruidor quanto é construtor e positivo o axé, que é a força poderosa e benfazeja de Oxorongá.


Um dia as Iá Mi vieram para a Terra e foram morar nas árvores. As Iá Mi fizeram sua primeira residência na árvore do orobô. Se Iá Mi está na árvore do orobô e pensa em alguém, esse alguém terá felicidade, será justo e viverá muito na Terra. As Iá Mi Oxorongá na copa da árvore chamada araticuna-da-areia. Se Iá Mi está na copa da araticuna-da-areia e pensa em alguém, tudo aquilo de que essa pessoa gosta será destruído. As Iá Mi fizeram sua terceira casa nos galhos do baobá. Se Iá Mi está no baobá e pensa em alguém, tudo o que é do agrado dessa pessoa lhe será conferido. As Iá Mi fizeram sua quarta parada no pé de Iroco, a gameleira-branca. Se Iá Mi está no pé de Iroco e pensa em alguém, essa pessoa sofrerá acidentes e não terá como escapar. As Iá Mi fizeram sua quinta residência nos galhos do pé de Apaocá. Se Iá Mi nos galhos do Apaocá e pensa em alguém, rapidamente essa pessoa será morta. As Iá Mi fizeram sua sexta residênciana cajazeira. Se Iá Mi está na cajazeira e pensa em alguém, tudo o que ela quiser poderá fazer, pode trazer a felicidade ou a infelicidade. As Iá Mi fizeram sua sétima moradia na figueira. Se Iá Mi está na figueira e alguém lhe suplica o perdão, essa pessoa será perdoada pela Iá Mi. Mas todas as coisas que as Iá Mi quiserem fazer, se elas estiverem na copa da cajazeira, elas o farão, porque na cajazeira é onde as Iá Mi conseguem seu poder. Lá é sua principal casa, onde adquirem seu grande poder. Podem mesmo ir rapidamente ao Além, se quiserem, quando estão nos galhos da cajazeira. Porque é dessa árvore que vem o poder das Iá Mi e não é qualquer pessoa que pode manter-se em cima da cajazeira. Elas vieram para a Terra. Eram duzentas e uma e cada qual tinha o seu pássaro. Eram as mulheres-pássaros, donas do eié, eram as mulheres-eleié, as donas do eié.


Quando chegaram, foram direto para a cidade de Otá e os babalaôs mandaram preparar uma cabaça para cada uma. Elas escolheram sua ialodê, sua sacerdotisa. Foi a ialodê quem deu a cada eleié uma cabaça para guardar seu pássaro. Então, cada Iá Mi partiu para sua casa com seu pássaro fechado na cabaça e lá cada uma guardou secretamente sua cabaça até o momento de enviar o pássaro para alguma missão. Quando Iá Mi abre a cabaça, o pássaro vai, seja aonde for, aos quatro cantos do mundo ele vai e executa sua missão. Se é para matar, ele mata. Se é para trazer os intestinos de alguém, ele espreita a pessoa marcada para abrir seu ventre e colher seus intestinos. Se é para impedir uma gravidez, ele retira o feto do ventre da mãe. Ele faz o que for ordenado e volta para sua cabaça. Iá Mi, então, recoloca a cabaça em seu lugar secreto. Mas, se a pessoa possui um encantamento contra a feiticeira, ele deve dizer a seguinte fórmula:


“Que aquela que vos enviou para me pegar, não me pegue”.


Assim, por mais que tente, o pássaro não poderá executar sua tarefa. Sua dona terá de ir em busca do auxílio das outras Iá Mi. Ela vai à assembléia e relata seu problema. As ajés, as feiticeiras, devem trabalhar com ela, porque não podem realizar sua tarefa sozinhas. Então, Iá Mi leva um pouco do sangue da pessoa que quer prejudicar. Todas as outras Iá Mi o põem na boca e o bebem. Depois, elas se separam e não deixam dormir a vítima. O pássaro é capaz de carregar um chicote, pegar um cacete, tornar-se alma do outro mundo, e até mesmo pode ter o aspecto de um orixá; tudo para aterrorizar a pessoa à qual foi enviado. Assim são as Iá Mi Oxorongá.

Esta é a sua história.




[204]

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XXII – Mitologia dos Orixás: Ibejis [213] [214]


Reginaldo Prandi, paulista de Potirendaba e professor titular de sociologia da Universidade de São Paulo, é autor de três dezenas de livros. Pela editora Hucitec publicou Os candomblés de São Paulo, pela Edusp, Um sopro do Espírito, e pela Cosac Naify, Os príncipes do destino. Dele, a Companhia das Letras publicou também Segredos guardados: orixás na alma brasileira; Morte nos búzios; Ifá, o Adivinho; Xangô, o Trovão; Oxumarê, o Arco-Íris; Contos e lendas afro-brasileiros: a criação do mundo; Minha querida assombração; Jogo de escolhas e Feliz Aniversário.



Prandi, Reginaldo. Mitologia dos Orixás / Reginaldo Prandi; ilustrações de Pedro Rafael. - São Paulo: Companhia das Letras, 2001.

segunda-feira, 20 de abril de 2015

Nós, latino-americanos

Ferreira Gullar (Brasil)



Somos todos irmãos
mas não porque tenhamos
a mesma mãe e o mesmo pai:
temos é o mesmo parceiro
que nos trai. Somos todos irmãos
não porque dividamos
o mesmo teto e a mesma mesa:
divisamos a mesma espada
sobre nossa cabeça.

Somos todos irmãos
não porque tenhamos
o mesmo braço, o mesmo sobrenome:
temos um mesmo trajeto
de sanha e fome. Somos todos irmãos
não porque seja o mesmo sangue
que no corpo levamos:
o que é o mesmo é o modo
como o derramamos.
 






César Vallejo (Perú)



Masa


Al fin de la batalla,
y muerto el combatiente, vino hacia él un hombre
y le dijo: «No mueras, te amo tanto!»
Pero el cadáver ¡ay! siguió muriendo.

Se le acercaron dos y repitiéronle:
«No nos dejes! ¡Valor! ¡Vuelve a la vida!»
Pero el cadáver ¡ay! siguió muriendo.

Acudieron a él veinte, cien, mil, quinientos mil,
clamando: «Tanto amor, y no poder nada contra la muerte!»
Pero el cadáver ¡ay! siguió muriendo.

Le rodearon millones de individuos,
con un ruego común: «¡Quédate hermano!»
Pero el cadáver ¡ay! siguió muriendo.

Entonces, todos los hombres de la tierra
le rodearon; les vio el cadáver triste, emocionado;
incorporóse lentamente,
abrazó al primer hombre; echóse a andar.






Gabriela Mistral (Chile)



Mis Libros


Libros, callados libros de las estanterías,
vivos en su silencio, ardientes en su calma;
libros, los que consuelan, terciopelos del alma,
y que siendo tan tristes nos hacen la alegría!

Mis manos en el día de afanes se rindieron;
pero al llegar la noche los buscaron, amantes
en el hueco del muro donde como semblantes
me miran confortándome aquellos que vivieron.

¡Biblia, mi noble Biblia, panorama estupendo,
en donde se quedaron mis ojos largamente,
tienes sobre los Salmos las lavas más ardientes
y en su río de fuego mi corazòn enciendo!

Sustentaste a mis gentes con tu robusto vino
y los erguiste recios en medio de los hombres,
y a mí me yergue de ímpetu sólo el decir tu nombre;
porque yo de ti vengo he quebrado al Destino.

Después de ti, tan sólo me traspasó los huesos
con su ancho alarido, el sumo Florentino.
A su voz todavía como un junco me inclino;
por su rojez de infierno fantástica atravieso.

Y para refrescar en musgos con rocío
la boca, requemada en las llamas dantescas,
busqué las Florecillas de Asís, las siempre frescas
¡y en esas felpas dulces se quedó el pecho mío!

Yo vi a Francisco, a Aquel fino como las rosas,
pasar por su campiña más leve que un aliento,
besando el lirio abierto y el pecho purulento,
por besar al Señor que duerme entre las cosas.

¡Poema de Mistral, olor a surco abierto
que huele en las mañanas, yo te aspiré embriagada!
Vi a Mireya exprimir la fruta ensangrentada
del amor y correr por el atroz desierto.

Te recuerdo también, deshecha de dulzuras,
versos de Amado Nervo, con pecho de paloma,
que me hiciste más suave la línea de la loma,
cuando yo te leía en mis mañanas puras.

Nobles libros antiguos, de hojas amarillentas,
sois labios no rendidos de endulzar a los tristes,
sois la vieja amargura que nuevo manto viste:
¡desde Job hasta Kempis la misma voz doliente!

Los que cual Cristo hicieron la Vía-Dolorosa,
apretaron el verso contra su roja herida,
y es lienzo de Verònica la estrofa dolorida;
¡todo libro es purpúreo como sangrienta rosa!

¡Os amo, os amo, bocas de los poetas idos,
que deshechas en polvo me seguís consolando,
y que al llegar la noche estáis conmigo hablando,
junto a la dulce lámpara, con dulzor de gemidos!

De la página abierta aparto la mirada,
¡oh muertos!, y mi ensueño va tejiéndoos semblantes:
las pupilas febriles, los labios anhelantes
que lentos se deshacen en la tierra apretada.

sexta-feira, 17 de abril de 2015

Histórias de avoinha: O mundo não é um só... nem as leis


Ensaio 47B – 2ª edição 1ª reimpressão



baitasar



Josino sentia muitas saudade de durmí com Milagres no feitio qui dava gosto durmí. O banzo das carne da muié ficô amargo em abundância, maió qui a paciência. Precisô das mão pra semeá a terra sem umbigo da senzala. Num tinha alegria aquela semeadura calada e esfomeada. Depois tratô de acalmá as mão. Elas tremia e apertava. Choromingô em silêncio dentro da escravidão
o aborrecimento
o cansaço
o mal-está
o tédio
o incompleto
o desgosto
a incerteza
num podê saí nem entrá
o vazio do mundo qui tinha pra num vivê
a frustração de sabê qui num havia de mudá
a alma sem semente
a desilusão qui num tinha ilusão
acorrentado na maldade
era muita tristeza aquela lonjura da muié com asa nos pé.

Os óio moiado num durmia, espreitava as coisa qui podia e num podia fazê. Só tinha um jeito: fugí pra longe, inté encontrá o lugá de liberdade qui os preto passante anunciava teimoso qui existia. Fugí com sua muié pra durmí as noite com gosto de vida e tê os fiô qui queria tê. Vê crescê as semente de baobá na sua velhice. Esperô inté os óio cansá de espreitá as treva e ficá esquecido

Sua benção, sinhô Padre, o siô da Hora acabô de chegá na reunião da Irmandade, entrô com o siô padre no coração
no estômago
no intestino
na veia da Villa
ele tava com a missão de garantí a porta da frente pro siô da Hora, graça recebida com as doação

Deus lhe abençoe, Conde Afonso da Hora, ele virô conde depois de casá com siá Casta, fia do verdadêro conde qui comprô o documento da sua reputação em negócio direto com a corte portuguesa. O siô da Hora fez negócio direto com o conde. Assim, ele pode num virá santo, mais tem a chance de virá mais otro irmão, isso com as graça das doação pra obra santa. A fidalguia num perdoa intrometido nem metido na porta dos fundo, mais cuida dos dedo qui carrega as jóia. Num corta a propria carne se num tem motivo

Sinhô Padre, me perdoe a tardança, mas foi preciso enfrentar um ou dois negros degenerados, antes do toque do sino da Câmara. De qualquer modo, com sino ou não esses infelizes vivem às nossas custas, esmolando ou fazendo serviços sem importância. Primeiro, querem comprar a carta da própria alforria. Depois, ficam jogados na Villa. Sem uso. Sem trabalho. Fazem filhos, isso sabem fazer esses infelizes. Chega ser nojento esses negrinhos mal cuidados, perambulando nas ruas. A Villa fica feia, suja e mal vista. Desde pequenos não gostam do trabalho, o siô padre lhe ofereceu a mão qui o conde beijô

Não se preocupe com a hora marcada, sinhô Conde. Estamos aguardando o sinhô Governador. Ainda não iniciamos a reunião, a casta dum círculo qui tinha reunião pra fortalecê os laço do negócio de cada um e a convivência com os interesses de todos da Irmandade. As pessoa mais bem-apessoada, gentil, honrada e fina da Villa. Pessoas de bem com laço de parentesco ou negócio.

Sinhô Padre, vou lhe fazer uma confissão e que ninguém nos ouça...

O sinhô Conde não acha melhor esperar o uso do confessionário?

É melhor ser agora, sinhô Padre. Depois... não vou lembrar. 

E que confissão é essa?

Se um dia, espero que nunca aconteça, com a graça de Deus, em nome do Pai Filho e Espírito Santo, que fique bem claro, esses negros ganharem a liberdade de viverem onde quiserem, como quiserem... vou continuar pensando neles como escravos, sem qualidade de uso. Isso não vai ter como mudar.

Não se torture, meu filho... só o Sinhô Deus sabe do futuro.

Eu sei, eu me conheço. Nunca vai passar essa vontade de usar o chicote.

Isso vai passar, meu filho... reze bastante.

Os dois tava conversando bem na entrada do salão. Um a um, conforme o siná do siô padre, os presente na reunião foi oferecê seus cumprimento. O tempo dos cumprimento e das palavra com educação nem foi tanto, mais deu pra ficá sem as mão
as palavra
e o chapéu,
mais num entregô o cipó.

Num era um deles, era deles... o hôme do cipó de boi.

Viu com os próprio óio os aviso qui escutô da boca da siá Casta, é bom ir, vosmecê deve ir, mas cuidado! Tem muito ganancioso no mesmo lugar, ele retrucô qui num tinha medo, sabia qui oferecimento e desfavô tão sempre junto, mais era preciso sabê o meió jeito pra deixá tudo controlado com os dono de tudo.

Uma riqueza qui num vinha das plantação adocicada da cana. Os doce da cana fez a construção dos engenho nas terra de tanta lonjura qui num dá pra medí a distância a passo. Aqui, era terra do boi e do cavalo, num tinha campo pra cana. A planta num vingô nas terra do gado. Os muito rico carrega o costume de muito tempo qui nasceu junto com a Villa: colocá o gado nas terra

Boa noite, sinhô Padre.

Boa noite, Coronel Sião. Quero lhe apresentar o Conde Afonso da Hora.

Seja bem-vindo, Conde.

Obrigado, Coronel Sião, os dois hôme tomava medida um do otro

Sinhô Conde, a confraria cultiva entre si uma amizade afetuosoa e silenciosa, mas estabelece regras rígidas.

Entendi, Coronel, o chefe das pulícia tinha suas dúvidas desse entendimento do conde, num queria deixá dúvida

Regras não podem ser quebradas.

Eu sei, eu sei... unidos pela conquista do chão sem necessidade do grão!

Muito bem, sinhô Conde. A confiança está no começo de tudo, eles num tinha regulação escrita nem achava necessidade tê, os muito rico raramente aparecia nas reunião, deixava com os rico a tarefa de ensiná os menos rico sobre fé, firmeza e respeito com os hábito antigo da Villa, fazemos o necessário para manter a tradição e os nossos costumes.

E se algum costume antigo não for bom?

É simples, mandamos reformar o costume. O jeito de tudo é o nosso. Escrever, falar, contar as histórias, as manias, as memórias são as nossas, num havia a arrogância da bravata, tava ali a profunda crença qui eles pode e sabe tudo. O conde precisava ficá mais atento, com sua licença, sinhô Conde, preciso trocar uma ou duas palavras com o sinhô Visconde Madeiro.

Esteja no seu gosto, Coronel.

O chefe das pulícia deu dois passo de afastamento e parô, voltô os passo, pediu a atenção do conde, mais uma coisinha, Conde...

Pois diga, meu amigo.

Quando se anda com a ralé o cheiro da bosta acompanha. Não sai, mesmo com limpeza refinada.

Otro leve cumprimento com a cabeça e o coroné se soltô na direção do juiz Madêro. O conde recordava os aconselhamento da siá Casta, não esqueça, meu esposo... faça os gestos da boa educação, os fingimentos de sempre, mas não aperte a mão de cada um, a menos que lhe ofereçam a mão para os cumprimentos, e não chame nenhum deles de amigo. Agora, serão seus irmãos.

Já na chegada o conde reparô qui a fidalguia tava toda ali. Num entrô na primeira chegada, o siô padre lhe  recomendô uma meió limpeza nas bota. Saiu e se raspô, bateu as bosta, cherô embaixo dos braço, resmungô, a melhor limpeza é com água, mas onde?, voltô inté o siô padre, tava pensativo, sorria, minha esposa, ainda bem que vosmecê obrigou esse seu marido comparecer nesta concentração das riquezas da Villa, um homem de negócios não pode perder uma oportunidade como essa.

A lembrança da esposa chamô otra inquietação, coisa boba, pensô, mas o que Dona Casta estaria fazendo, naquelas horas, por certo, apressô as resposta qui achava qui sabia ou tinha firmeza de julgamento, se preparando para dormir, sorriu da aparição qui teve, um sorriso de atrevimento, ah, se Dona Casta tivesse uma pequena conversa com Maria Cobra, desmanchô o riso, ficô sério, não, melhor não, esposa é esposa, precisa se preparar para os filhos, é melhor não conhecer Maria Cobra.

O desassossego do conde se misturava com o serviço secreto nas água da praia. Sorriu, tava impaciente com a própria nervura. Num tava rezando, mais inté pensô no feito, queria muito sê atendido, mais num era o causo, queria estar lá, vendo tudo ser feito.

Ele sabia qui num podia vê o desenrolá da própria tramóia nem podia se elogiá, num podia falá da sua esperteza. Isso num podia sê, mais queria notícia do local, queria sabê dos encaminhamento. Aproximô da janela. Num viu nada na esquina das água, isso é bom, o que não é visto não pode ser denunciado nem precisa ser perdoado. Rezô, sorria do costume de rezá, coisa qui aprendeu fazê sem pensá qui tava fazendo, não sei quem é mais casto, quem reza ou quem escuta a reza?

Virô as costa pra janela, oiô o salão com as vista do pirata, desajuizado o bastante pra desembracá a sua gula. Os pensamento do perigo num aplacava o riso, são uns idiotas, fingem que não existo, eu disfarço que não me importo. Eles aparentam, eu me escondo. Parecem tão felizes enquanto estão sendo enganados.

Colocô as vista no juiz das lei, visconde Madêro, destacava a brancura dos próprios cabelo e costeleta imensa enfiado na sua roupa preta. A conversa com o chefe das pulícia, coroné Sião, parecia sê muito desanimada, mais dava pra vê qui eles era da maió importância na Villa.

O prendedô e o julgadô.

Os aviso da siá Casta avivô, tudo de novo, parecia sê a luz dum farol pra lembrá onde ele tava, cuidado, meu esposo. Vosmecê precisa entrar no mundo que está acima do mundo, o mundo das fidalguia, sair debaixo deste mundo. Sei que o sinhô não precisa dos meus conselhos, mas não esqueça que o mundo não é um só, nem as leis. Elas existem para os naturais das classes debaixo, os outros homens da classe de cima têm as leis da Irmandade. As leis aparentam serem iguais, mas é disfarce. Elas têm muito uso para muitos, para outros nem tanto, e alguns, nem sabem que elas existem. Afinal, antes de impor sua vontade, a Irmandade olha a quem quando faz e aplica as leis. Não esqueça quando for escolher seus inimigos.

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Ensaio 48B – 2ª edição 1ª reimpressão

quinta-feira, 16 de abril de 2015

Eu acendi o fogo

Edith Piaf 



Non, je ne regrette rien






Hymne À L'Amour






La Foule






Mon Manège À Moi






La Vie En Rose







Heaven Have Mercy






Edith Piaf 
La vie en rose 
1954





terça-feira, 14 de abril de 2015

Quando dois é um e um são dois

Miles Davis and John Coltrane





Miles Davis and John Coltrane
Konserthuset Stockholm - 1960








Miles Davis
Blue In Green







John Coltrane
A Love Supreme Live








Miles Davis and John Coltrane
So What









John Coltrane
Alabama









Miles Davis and John Coltrane
Round About Midnight - 1957








Miles Davis & Chaka Khan
Human Nature live in Montreux - 1989







Tutu
That's What Happened - Live In Germany - 1987







Portia
That's What Happened - Live In Germany - 1987






sábado, 11 de abril de 2015

Histórias de avoinha: Quanto da terra o baobá carrega, quanto do baobá a terra enraiza

Ensaio 46B – 2ª edição 1ª reimpressão

baitasar



Milagres chegô voando... uma muié voante da brisa. Um sonho doce mascando arruda. Os pensamento com maluquice colocado no seu preto, cheguei! se ocê tivé comendo, não coma; se ocê tivé dormindo, não durma, enquanto arrumo os enfeite pense na sua preta. Os pensamento faz acontecê o qui é ruim e o qui é bão, ocê escolhe. Na dúvida, vô afastá o inimigo e pregá ele no chão pra criá raiz, virá árvore-fruta. Assim, ele vai experimentá a alegria de sê árvore-alimento. No frescô da sua sombra quebra-luz num vai tê mais fome, sede e desgosto, um otro mundo qui as pessoa do mundo devia querê. Tô falando demasiado, né? Quem vai gostá de virá árvore-alimento? Trabaiá pros otro comê é coisa de escravo. É meió tê os escravo, as corrente e os cipó de boi.

Josino sorria. Os óio afogado.

Os pensamento e as mão colocada na muié dos seus sonho, escutava cada palavra qui chegava da brisa. As vista sem vê, num precisava das vista. O coração tava correndo, respirava a brisa qui carregava sua preta inté a rede. Ela lhe entrava pelos caminho do fôlego, adoro ocê, minha preta! gosto demais de sê a tua criatura da terra.

Os pensamentos do baobá flutua. A rede da senzala balança. O escuro é só escuro, a terra é só terra se não existí as cicatrizes, as lágrimas e os contentamentos, teve qui existí um lugá assim, com as lembranças e as saudades da terra qui é muié e da árvore qui é hôme pra vida tê vida...

Ele sabe que a muié num tem só um corpo, ela é tudo que tá na volta. Josino ergue uma das mãos e toca, depois a otra. Encosta nas estrelas. Ela é uma estrela,  anuncia a terra entrada pelo baobá. Tempo penoso para o amor que sonha com a terra sem dono, um lugar para continuar a vida que cabe em sua mão com
tremores
suores
desejos

Agarrado na mão da preta voante volta ao lugar secreto do seu casamento. Tem as lembranças que carrega no sangue e na pele. Voltou à pedra do amor. A cerimônia do seu encantamento. Deixa os olhos fechados. Ela quer ouvir as palavras do seu homem. Uma das mãos no peito do baobá, ele cabe inteiro na terra. Uma raiz forte foi plantada pelos anepassados. A outra mão ajuda derramar o milho, a mandioca, a cana, até a boca engravidar do alimento da terra
cheia
farta
morta de cansaço

O berço de Josino é uma planície. O lugar que faz tudo continuar antes do fim do sonho. Aperta a mão e empurra o alimento farto na embocadura da alma até o fundo da terra

Não se mexa.

Não posso aquietar, minha preta...

Psiu, não se mexa.

Ela masca arruda, junto trás os enfeites. Colares e braceletes de dentes, ossos, nozes e conchas. Depois aproxima o fumo enrolado nas palhas do milho. O homem aceita o charuto que ela acende com sua saliva em brasa. Coloca na volta do seu amor as frutas que escolheu na mata
ananás
banana
caju
mangaba
genipapo
coco
mamão
as flores
os perfumes
as balas
e serve atã

Bebe, meu rei.

Josino pega a cabaça com atã e bebe num gole só. Milagres toca sua flauta de bambu. Dança. Nua.

Masca arruda.

A terra respira, acende a fome da mulher. Uma ventania faz o baobá rolar da rede até ficar por cima da terra. Agora, o baobá deita por cima e desce a raiz na pele da terra até o lugar de continuar a vida. Beija a terra
a grama
as rochas
as águas

Sobe e desce as montanhas. Atiça a fornalha que escorre do rio das profundezas escondidas. Ela canta. Tem vez que assobia. A quentura do rio sobe e chega na flor da pele. Os olhos da terra sorriem
amendoados
negros
a boca morde e caçoa, faz brincadeira com a casca dos pés

São asas! Precisa ter asas. Aprendeu a ter asas.

A lua desavergonhada assiste tudo, brilha delirante e enciumada, não pode ser terra. Bendita terra que tem os olhos da lua. O fogo lambe o baobá embriagado. As labaredas tremeluzem. As mãos cismadas com a cintura da terra não param de agarrar e soltar. Um mundo cósmico e invisível nos quadris.

O baobá não desconfia mais da vida. Voltou à vida. Agarra-se a terra. Passa os olhos nas pastagens da campina ondulada. As mãos sobem sem pressa, leva-as a boca e prova o gosto. Quer do tempo tudo que lhe é devido. De novo, de novo, e de novo. Agora, é a boca que desce para o regaço úmido do capão. Tem sede. Dobra-se, leva a mão em concha e recolhe a bebida transparente
perfumada
e doce

Me prova, me prova.

As mãos se rebelam com o querer e não querer da sede, livres elas roçam os ramos mais delicados em um e outro ponto arrebitado do coração. As abelhas fazem zumzumzum no riacho. A bebida continua escorrendo nas margens. A pelagem encrespada da relva selvagem engravida da saliva

Me entra, me entra.

A lua já não sabe quanto da terra o baobá carrega, quanto do baobá a terra embarriga. As labaredas consumindo o baobá enraizado no lugar que faz tudo continuar. A terra reclama

Não para,  não para.

Ah, meu preto encantado, me carrega na tua boca embruxada, me enfeitiça, me faz apaixonada

Me toma, me toma.

A boca desempapada bebe das águas do rio. A vida se despeja no lago
é milho
batata
mandioca
cachaça

A terra é o sustento, serve o alimento.

Quando uma boca encontra outra boca e as duas fecham os olhos, as pernas da terra se abrem e o baobá enraiza até o fim da terra, até o fim do baobá. A árvore-criança se dobra, sua copa das folhas toca a pele da terra, quer o gosto teso, humano e selvagem dos ponto arrebitado do coração. A terra aleita a árvore-criança.

Não existe afobação, só a vontade de se dar à vida da terra e das raízes. Uma história que conta mais uma história que já foi contada em outra história. Um quer sentir do outro o amor do tempo antigo, quando a criação veio como a mágica da poesia que não tem medo, não tem dono, está sempre no fervedouro arrebitado como dois pontinhos no coração. Existiu um tempo antes de começar tudo onde o homem-mulher era árvore, a árvore-mundo. Foi quando a árvore-mundo se dobrou sobre a terra e a mulher se desatou da árvore. Ela não queria ser árvore, queria ser terra.

A árvore-mundo achava que dominava a terra.

Um dia, o baobá sentiu o amor dos milagres
o gosto da fertilidade
o encantamento dos galhos brotando
as chuvas
o calor
o frio

Viu que na planície arreganhada da terra a vida se renovava. Agora, ela sabe. Mas a árvore-mundo insistia nas histórias antes do começo de tudo, antes de tudo, quando só existia vida sem lembrança, sem saudade. Não existia dor. Até que caiu uma gota da vida carregada com alegria na terra do umbigo. A árvore-mundo levou as mãos à cabeça. A terra sorriu. Engravidou do sorriso e pariu a vida com as lembranças e as lágrimas. Agora, ele sabe. Mas tem medo do esquecimento, e faz de novo, desce até a pele mais funda da terra. Os dois não são mais o que foram, a cada vez que voltam àquela profundeza... é diferente.

A árvore-mundo se dobra sobre a terra, a casca nos pés da mulher encantada são asas.

Ocê voa, minha terra!

Os cabelos crespos tocam as nuvens. Uma mulher-anjo
negra
nua

Ela veio para anunciar a tolice do pecado. Insiste nas histórias antes do começo de tudo. Um tempo sem sonho, um tempo sem pecado.

Josino acordô.

Milagres longe. Grávida dos fiô qui num queria plantá pra tê razão de vivê. Num tinha razão de vivê. Aquela terra de corrente de ferro e chibata num merecia os fiô qui tinha pra oferecê. Queria sonhá com seu orixá, cantá as cantoria, fazê as dança, escutá as história dos espritu. Os preto tava longe das terra do umbigo, mais ficô com a vida das lembrança e das saudade. Um sabô qui deixava o baobá fincado na terra com gosto de vivê. O baobá fazia vivê. Um homem-árvore com fome de tê otra veiz o gosto da muié qui era terra
mata
água

Gostava de se perfumá com as água da terra.

As mão áspera e assanhada tirava Josino do sono sem graça. O baobá se derramava, mais num tinha terra pra enraizá. Carregava no colo os miô, as batata, as mandioca, mais num veio o sopro delicado e doce qui semeava mais fartura. Apertô os óio. Queria tanto sentí as mão da terra lhe mexendo, quanto mais a terra lhe mexia tanto mais crescia. As perna imensa. Os pé gigante. Um preto todo grande. O baobá choramingava. As mão moiada. A lamentação moiada agarrô o sono na pedra do amô dum jeito qui Milagres arredondô

Minha preta, ocê tá linda com esse feitio crescente.

Mentira tua, tô feia.

Bobice, ocê parece lua crescente.

Isso é sonho.

E daí?

No sonho ocê num sabe o qui é verdade.

Nem a vida sabe, ela só sabe qui é vida.

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quinta-feira, 9 de abril de 2015

O Homem Que Lê

Rainer Maria Rilke








O Homem que Lê


Eu lia há muito. Desde que esta tarde
com o seu ruído de chuva chegou às janelas.
Abstraí-me do vento lá fora:
o meu livro era difícil.
Olhei as suas páginas como rostos
que se ensombram pela profunda reflexão
e em redor da minha leitura parava o tempo. —
De repente sobre as páginas lançou-se uma luz
e em vez da tímida confusão de palavras
estava: tarde, tarde... em todas elas.
Não olho ainda para fora, mas rasgam-se já
as longas linhas, e as palavras rolam
dos seus fios, para onde elas querem.
Então sei: sobre os jardins
transbordantes, radiantes, abriram-se os céus;
o sol deve ter surgido de novo. —
E agora cai a noite de Verão, até onde a vista alcança:
o que está disperso ordena-se em poucos grupos,
obscuramente, pelos longos caminhos vão pessoas
e estranhamente longe, como se significasse algo mais,
ouve-se o pouco que ainda acontece.

E quando agora levantar os olhos deste livro,
nada será estranho, tudo grande.
Aí fora existe o que vivo dentro de mim
e aqui e mais além nada tem fronteiras;
apenas me entreteço mais ainda com ele
quando o meu olhar se adapta às coisas
e à grave simplicidade das multidões, —
então a terra cresce acima de si mesma.
E parece que abarca todo o céu:
a primeira estrela é como a última casa.



Rainer Maria Rilke, in "O Livro das Imagens"
Tradução de Maria João Costa Pereira





Álvaro de Campos

Tabacaria





Tabacaria


Não sou nada.
Nunca serei nada.
Não posso querer ser nada.
À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.

Janelas do meu quarto,
Do meu quarto de um dos milhões do mundo que ninguém sabe quem é
(E se soubessem quem é, o que saberiam?),
Dais para o mistério de uma rua cruzada constantemente por gente,
Para uma rua inacessível a todos os pensamentos,
Real, impossivelmente real, certa, desconhecidamente certa,
Com o mistério das coisas por baixo das pedras e dos seres,
Com a morte a por umidade nas paredes e cabelos brancos nos homens,
Com o Destino a conduzir a carroça de tudo pela estrada de nada.

Estou hoje vencido, como se soubesse a verdade.
Estou hoje lúcido, como se estivesse para morrer,
E não tivesse mais irmandade com as coisas
Senão uma despedida, tornando-se esta casa e este lado da rua
A fileira de carruagens de um comboio, e uma partida apitada
De dentro da minha cabeça,
E uma sacudidela dos meus nervos e um ranger de ossos na ida.

Estou hoje perplexo, como quem pensou e achou e esqueceu.
Estou hoje dividido entre a lealdade que devo
À Tabacaria do outro lado da rua, como coisa real por fora,
E à sensação de que tudo é sonho, como coisa real por dentro.

Falhei em tudo.
Como não fiz propósito nenhum, talvez tudo fosse nada.
A aprendizagem que me deram,
Desci dela pela janela das traseiras da casa.
Fui até ao campo com grandes propósitos.
Mas lá encontrei só ervas e árvores,
E quando havia gente era igual à outra.
Saio da janela, sento-me numa cadeira. Em que hei de pensar?

Que sei eu do que serei, eu que não sei o que sou?
Ser o que penso? Mas penso tanta coisa!
E há tantos que pensam ser a mesma coisa que não pode haver tantos!
Gênio? Neste momento
Cem mil cérebros se concebem em sonho gênios como eu,
E a história não marcará, quem sabe?, nem um,
Nem haverá senão estrume de tantas conquistas futuras.
Não, não creio em mim.
Em todos os manicômios há doidos malucos com tantas certezas!
Eu, que não tenho nenhuma certeza, sou mais certo ou menos certo?
Não, nem em mim...
Em quantas mansardas e não-mansardas do mundo
Não estão nesta hora gênios-para-si-mesmos sonhando?
Quantas aspirações altas e nobres e lúcidas -
Sim, verdadeiramente altas e nobres e lúcidas -,
E quem sabe se realizáveis,
Nunca verão a luz do sol real nem acharão ouvidos de gente?
O mundo é para quem nasce para o conquistar
E não para quem sonha que pode conquistá-lo, ainda que tenha razão.
Tenho sonhado mais que o que Napoleão fez.
Tenho apertado ao peito hipotético mais humanidades do que Cristo,
Tenho feito filosofias em segredo que nenhum Kant escreveu.
Mas sou, e talvez serei sempre, o da mansarda,
Ainda que não more nela;
Serei sempre o que não nasceu para isso;
Serei sempre só o que tinha qualidades;
Serei sempre o que esperou que lhe abrissem a porta ao pé de uma parede sem porta,
E cantou a cantiga do Infinito numa capoeira,
E ouviu a voz de Deus num poço tapado.
Crer em mim? Não, nem em nada.
Derrame-me a Natureza sobre a cabeça ardente
O seu sol, a sua chava, o vento que me acha o cabelo,
E o resto que venha se vier, ou tiver que vir, ou não venha.
Escravos cardíacos das estrelas,
Conquistamos todo o mundo antes de nos levantar da cama;
Mas acordamos e ele é opaco,
Levantamo-nos e ele é alheio,
Saímos de casa e ele é a terra inteira,
Mais o sistema solar e a Via Láctea e o Indefinido.

(Come chocolates, pequena;
Come chocolates!
Olha que não há mais metafísica no mundo senão chocolates.
Olha que as religiões todas não ensinam mais que a confeitaria.
Come, pequena suja, come!
Pudesse eu comer chocolates com a mesma verdade com que comes!
Mas eu penso e, ao tirar o papel de prata, que é de folha de estanho,
Deito tudo para o chão, como tenho deitado a vida.)

Mas ao menos fica da amargura do que nunca serei
A caligrafia rápida destes versos,
Pórtico partido para o Impossível.
Mas ao menos consagro a mim mesmo um desprezo sem lágrimas,
Nobre ao menos no gesto largo com que atiro
A roupa suja que sou, em rol, pra o decurso das coisas,
E fico em casa sem camisa.

(Tu que consolas, que não existes e por isso consolas,
Ou deusa grega, concebida como estátua que fosse viva,
Ou patrícia romana, impossivelmente nobre e nefasta,
Ou princesa de trovadores, gentilíssima e colorida,
Ou marquesa do século dezoito, decotada e longínqua,
Ou cocote célebre do tempo dos nossos pais,
Ou não sei quê moderno - não concebo bem o quê -
Tudo isso, seja o que for, que sejas, se pode inspirar que inspire!
Meu coração é um balde despejado.
Como os que invocam espíritos invocam espíritos invoco
A mim mesmo e não encontro nada.
Chego à janela e vejo a rua com uma nitidez absoluta.
Vejo as lojas, vejo os passeios, vejo os carros que passam,
Vejo os entes vivos vestidos que se cruzam,
Vejo os cães que também existem,
E tudo isto me pesa como uma condenação ao degredo,
E tudo isto é estrangeiro, como tudo.)

Vivi, estudei, amei e até cri,
E hoje não há mendigo que eu não inveje só por não ser eu.
Olho a cada um os andrajos e as chagas e a mentira,
E penso: talvez nunca vivesses nem estudasses nem amasses nem cresses
(Porque é possível fazer a realidade de tudo isso sem fazer nada disso);
Talvez tenhas existido apenas, como um lagarto a quem cortam o rabo
E que é rabo para aquém do lagarto remexidamente

Fiz de mim o que não soube
E o que podia fazer de mim não o fiz.
O dominó que vesti era errado.
Conheceram-me logo por quem não era e não desmenti, e perdi-me.
Quando quis tirar a máscara,
Estava pegada à cara.
Quando a tirei e me vi ao espelho,
Já tinha envelhecido.
Estava bêbado, já não sabia vestir o dominó que não tinha tirado.
Deitei fora a máscara e dormi no vestiário
Como um cão tolerado pela gerência
Por ser inofensivo
E vou escrever esta história para provar que sou sublime.

Essência musical dos meus versos inúteis,
Quem me dera encontrar-me como coisa que eu fizesse,
E não ficasse sempre defronte da Tabacaria de defronte,
Calcando aos pés a consciência de estar existindo,
Como um tapete em que um bêbado tropeça
Ou um capacho que os ciganos roubaram e não valia nada.

Mas o Dono da Tabacaria chegou à porta e ficou à porta.
Olho-o com o deconforto da cabeça mal voltada
E com o desconforto da alma mal-entendendo.
Ele morrerá e eu morrerei.
Ele deixará a tabuleta, eu deixarei os versos.
A certa altura morrerá a tabuleta também, os versos também.
Depois de certa altura morrerá a rua onde esteve a tabuleta,
E a língua em que foram escritos os versos.
Morrerá depois o planeta girante em que tudo isto se deu.
Em outros satélites de outros sistemas qualquer coisa como gente
Continuará fazendo coisas como versos e vivendo por baixo de coisas como tabuletas,

Sempre uma coisa defronte da outra,
Sempre uma coisa tão inútil como a outra,
Sempre o impossível tão estúpido como o real,
Sempre o mistério do fundo tão certo como o sono de mistério da superfície,
Sempre isto ou sempre outra coisa ou nem uma coisa nem outra.

Mas um homem entrou na Tabacaria (para comprar tabaco?)
E a realidade plausível cai de repente em cima de mim.
Semiergo-me enérgico, convencido, humano,
E vou tencionar escrever estes versos em que digo o contrário.

Acendo um cigarro ao pensar em escrevê-los
E saboreio no cigarro a libertação de todos os pensamentos.
Sigo o fumo como uma rota própria,
E gozo, num momento sensitivo e competente,
A libertação de todas as especulações
E a consciência de que a metafísica é uma consequência de estar mal disposto.

Depois deito-me para trás na cadeira
E continuo fumando.
Enquanto o Destino me conceder, continuarei fumando.

(Se eu casasse com a filha da minha lavadeira
Talvez fosse feliz.)
Visto isto, levanto-me da cadeira. Vou à janela.
O homem saiu da Tabacaria (metendo troco na algibeira das calças?).
Ah, conheço-o; é o Esteves sem metafísica.
(O Dono da Tabacaria chegou à porta.)
Como por um instinto divino o Esteves voltou-se e viu-me.
Acenou-me adeus, gritei-lhe Adeus ó Esteves!, e o universo
Reconstruiu-se-me sem ideal nem esperança, e o Dono da Tabacaria sorriu.


Álvaro de Campos, 15-1-1928


sábado, 4 de abril de 2015

Mayakovsky - Sou poeta e ansiava o futuro... ressuscita-me!

Estou cravado no papel




Depois de Morto Falarei como um Vivo




Eu mesmo falarei
      sobre o meu tempo
            e sobre mim.






O inimigo
                da grande classe operária
é também meu grande inimigo
                                                 desde muito tempo.





Nós abríamos de Marx
                                      cada volume
como em nossa casa
                                  abríamos
                                                  as janelas;
mas mesmo sem livros,
                                     nós compreendíamos
em que lado estar,
                              em que lado combater.





Com que volúpia
                            a casta policial
me teria açoitado,
                          crucificado,
porque
            eu tenho nas mãos,
                                          trazendo a foice,
trazendo o martelo,
                                 o passaporte
                                                       soviético.




Eterno
            ferido
                       de amor.




Não tenho mais vinte anos,
                                  minha filha,
mas trinta anos
                         passados.




Eu adapto
                 meu passo
ao passo da marcha:
seus
       ini-
             mi-
                   gos,
meus
        ini-
              mi-
                    gos.




É preciso 
                arrancar
                              alegria
                                          ao futuro.




Eu odeio
              tudo que se parece com a morte!
Eu adoro
               tudo aquilo que é vida!




Eu não vivi até o fim a minha quota terrestre,
sobre a Terra
                     eu não vivi minha quota de amor. 




Ressuscitem a mim -
                               mesmo que seja só porque eu esperava isso,
como um poeta,
                         rejeitando o absurdo do cotidiano!
Ressuscite a mim -
                             mesmo que seja só por isso!
Ressuscite a mim-
                             eu quero viver a minha parte! 




Quem já me beijou
pode dizer
se existe bebida mais doce que a minha saliva.




eu afirmei por todos os lugares que Deus não existe,
E das tórridas profundezas
Deus fez com que ela aparecesse,
ela, diante de quem as montanhas tremem,
e ele ordenou:
tu a amarás!




Agora
diante dos olhos de todos
nós faremos
       nós mesmos
              os nossos milagres...