sábado, 28 de maio de 2016

9. Do Livro do Desassossego - Bernardo Soares

Fernando Pessoa



9. Do Livro do Desassossego - Bernardo Soares 




101.


INTERVALO DOLOROSO

"Tão supérfluo tudo! Nós e o mundo e o mistério de ambos."

* * * 


104.

" O pensamento colectivo é estupído porque é colectivo: nada passa as barreiras do colectivo sem deixar nelas, como real de água, a maior parte da inteligência que traga consigo.


Na mocidade somos dois: há em nós a coexistência da nossa inteligência própria, que pode ser grande, e a da estupidez da nossa inexperiência, que forma uma segunda inteligência inferior. Só quando chegamos a outra idade se dá em nós a unificação. Daí a acção sempre fruste da juventude - devida, não à sua inexperiência, mas à sua não-unidade."

* * * 


107.

" Sou daquelas almas que as mulheres dizem que amam, e nunca reconhecem quando encontram, daquelas que, se elas as reconhecessem, mesmo assim não as reconheceriam. Sofro a delicadeza dos meus sentimentos com uma atenção desdenhosa. Tenho todas as qualidades, pelas quais são admirados os poeta românticos, mesmo aquela falta dessas qualidades, pela qual se é realmente poeta romântico. Encontro-me descrito (em parte) em vários romances como protagonista de vários enredos; mas o essencial da minha vida, como da minha alma, é não ser nunca protagonista."

"O cais, a tarde, a maresia entram todos, e entram juntos, na composição da minha angústia. As flautas dos pastores impossíveis não são mais suaves que o não haver aqui flautas e isso lembrar-mas."

* * * 


110.

" Cada qual tem o seu álcool. Tenho álcool bastante em existir. Bêbado de me sentir, vagueio e ando certo. Se são horas, recolho ao escritório como qualquer outro. Se não são horas, vou até o rio fitar o rio, como qualquer outro. Sou igual. E por detrás de isso, céu meu, constelo-me às escondidas e tenho o meu infinito." 

* * * 


112.

" Nunca amamos alguém. Amamos, tão-somente, a ideia que fazemos de alguém. É a um conceito nosso - em suma, é a nós mesmos - que amamos.

Isto é verdade em toda a escala do amor. No amos sexual buscamos um prazer nosso por intermédio de um corpo estranho. No amor diferente do sexual, buscamos um prazer nosso dado por intermédio de uma ideia nossa. O onanista é objecto, mas, em exacta verdade, o onanista é a perfeita expressão lógica do amoroso. É o único que não disfarça nem se engana.

As relações entre uma alma e outra, através de coisas tão incertas e divergentes como as palavras comuns e os gestos que se empreendem, são matéria de estranha complexidade. No próprio ato em que nos conhecemos, nos desconhecemos. Dizem os dois «amo-te» ou pensam-no e sentem-no por troca, e cada um quer dizer uma ideia diferente, uma vida diferente, até, porventura, uma cor ou um aroma diferente, na soma abstracta de impressões que constitui a actividade da alma."

"É de compreender que sobretudo nos cansamos. Viver é não pensar."



* * * 




113.

"Para o esteta, as tragédias são coisas interessantes de observar, mas incomodas de sofrer. O próprio cultivo da imaginação é prejudicado pelo da vida. Reina quem não está entre os vulgares.

Afinal, isto bem me contentaria se eu conseguisse persuadir-me que esta teoria não é o que é, um complexo barulho que faço aos ouvidos da minha inteligência, quase para ela não perceber que, no fundo, não há senão a minha timidez, a minha incompetência para a vida."





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Do Livro do Desassossego - Bernardo Soares
Bernardo Soares (heterônimo de Fernando Pessoa)
Fonte: http://www.cfh.ufsc.br/~magno/


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Leia também:


10. Do Livro do Desassossego - Bernardo Soares: A vida prejudica a expressão da vida

Sólo le pido... Mercedes

Mercedes Sosa



étempo de lutar, étempo de resistir, sempre étempo de ouvir La Negra




Sólo le pido a Dios (Con León Gieco)







Solo Le Pido A Dios (part. Leon Gieco)


Sólo le pido a Dios
Que el dolor no me sea indiferente
Que la reseca muerte no me encuentre
Vacía y sola sin haber hecho lo suficiente

Sólo le pido a Dios
Que lo injusto no me sea indiferente
Que no me abofeteen la otra mejilla
Después que una garra me arañó esta suerte

Sólo le pido a Dios
Que la guerra no me sea indiferente
Es un monstruo grande y pisa fuerte
Toda la pobre inocencia de la gente
Es un monstruo grande y pisa fuerte
Toda la pobre inocencia de la gente

Sólo le pido a Dios
Que el engaño no me sea indiferente
Si un traidor puede más que unos cuantos
Que esos cuantos no lo olviden fácilmente

Sólo le pido a Dios
Que el futuro no me sea indiferente
Desahuciado está el que tiene que marchar
A vivir una cultura diferente

Sólo le pido a Dios
Que la guerra no me sea indiferente
Es un monstruo grande y pisa fuerte
Toda la pobre inocencia de la gente
Es un monstruo grande y pisa fuerte
Toda la pobre inocencia de la gente


Composição: León Gieco




Eu Só Peço A Deus


Eu só peço a Deus
Que a dor não me seja indiferente
Que a seca morte não me encontre
Vazio e só sem ter feito o suficiente

Eu só peço a Deus
Que o injusto não me seja indiferente
Que não me esbofeteiem a outra face
Depois que uma garra me arranhou essa por sorte

Eu só peço a Deus
Que a guerra não me seja indiferente
É um monstro grande e pisa forte
Em toda pobre inocência desta gente
É um monstro grande e pisa forte
Em toda pobre inocência desta gente

Eu só peço a Deus
Que o engano não me seja indiferente
Se um traidor pode mais que uns muitos
Que estes muitos não o esqueçam facilmente

Eu só peço a Deus
Que o futuro não me seja indiferente
Desenganado é o que tem que fugir
Pra viver uma cultura diferente

Eu só peço a Deus
Que a guerra não me seja indiferente
É um monstro grande e pisa forte
Em toda pobre inocência desta gente
É um monstro grande e pisa forte
Em toda pobre inocência desta gente

Rayuela - Julio Cortázar: Capítulo 21

Capítulo 21

    A todo el mundo le pasa igual, la estatua de Jano es un despilfarro inútil, en realidad después de los cuarenta años la verdadera cara la tenemos en la nuca, mirando desesperadamente para atrás. Es lo que se llama propiamente un lugar común. Nada que hacerle, hay que decirlo así, con las palabras que tuercen de aburrimiento los labios de los adolescentes unirrostros. Rodeado de chicos con tricotas y muchachas deliciosamente mugrientas bajo el vapor de los cafés créeme de Saint-Germain-des-Prés, que leen a Durrell, a Beauvoir, a Duras, a Douassot, a Queneau, a Sarraute, estoy yo un argentino afrancesado (horror horror), ya fuera de la moda adolescente, del cool, con en las manos anacrónicamente Etes-vous fous? De René Crevel, con en la memoria todo el surrealismo, con en la pelvis el signo de Antonin Artaud, con en las orejas las Ionisations de Edgar Varèse, con en los ojos Picasso (pero parece que yo soy un Mondrian, me lo han dicho).

-Tu sèmes des syllabes pour récolter des étoiles –me toma el pelo Crevel.

-Se va haciendo lo que se puede –le contesto.

-Y esa fémina, n´arretera-t-elle donc pas de secouer l´arbre à sanglots?

-Sos injusto –le digo-. Apenas llora, apenas se queja.

    Es triste llegar a un momento de la vida en que es más fácil abrir un libro en la página 96 y dialogar con su autor, de café a tumba, de aburrido a suicida, mientras en las mesas de al lado se habla de Argelia, de Adenauer, de Mijanou Bardot, de Guy Trébert, de Sydney Bechet, de Michel Burtor, de Nabokov, de Zao-Wu-Ki, de Louison Bobet, y en mi país los muchachos hablan, ¿de qué hablan los muchachos en mi país? No lo sé ya, ando tan lejos, pero ya no hablan de Spilimbergo, no hablan de Justo Suárez, no hablan del Tiburón de Quillá, no hablan de Bonini, no hablan de Leguisamo, Como es natural. La joroba está en que la naturalidad y la realidad se vuelven no se sabe por qué enemigas, hay una hora en que lo natural suena espantosamente falso, en que la realidad de los veinte años se codea con la realidad de los cuarenta y en cada codo hay un gillette tajeándonos el saco. Descubro nuevos mundos simultáneos y ajenos, cada vez sospecho más que estar de acuerdo es la peor de las ilusiones. ¿Por qué esta sed de ubicuidad, por qué esta lucha contra el tiempo? También yo leo a Sarraute y miro la foto de Guy Trébet esposado, pero son cosas que me ocurren, mientras que si soy yo el que decide, casi siempre es hacia atrás. Mi mano tantea en la biblioteca, saca a Crevel, saca a Roberto Arlt, saca a Jarry. Me apasiona el hoy pero siempre desde el ayer (¿me hapasiona, dije?), y es así como a mi edad el pasado se vuelve presente y el presente es un extraño y confuso futuro donde chicos con tricotas y muchachas de pelo suelto beben sus cafés créme y se acarician con una lenta gracia de gatos o de plantas.

Hay que luchar contra eso.

Hay que reinstalarse en el presente.

Parece que yo soy un Mondrian, ergo...

Pero Mondrian pintaba su presente hace cuarenta años.

(Una foto de Mondrian, igualito a un director de orquesta típica ((¡Julio de Caro, ecco!)), con lentes y el pelo planchado y el cuello duro, un aire de hortera abominable, bailando con una piba disquera. ¿Qué clase de presente sentía Mondrian mientras bailaba? Esas telas suyas, esa foto suya...Habismos.)

Estás viejo, Horacio. Quinto Horacio Oliveira, estás viejo, Flaco. Estás flaco y viejo, Oliveira.

-Il verse son vitriol entre les cuisses des faubourgs –se mofa Crevel.

    ¿Qué le voy a hacer? En mitad del gran desorden me sigo creyendo veleta, al final de tanta vuelta hay que señalar un norte, un sur. Decir de alguien que es un veleta prueba poca imaginación: se ven las vueltas pero no la intención, la punta de la flecha que busca hincarse y permanecer en el río del viento.

    Hay ríos metafísicos. Sí, querida, claro. Y vos estarás cuidando a tu hijo, llorando de a ratos, y aquí ya es otro día y un solo amarillo que no calienta. J`habite à Saint-Germain-des-Prés, et chaque soir j’ai rendez-vous avec Verlaine. / Ce gros pierrot n`a pas changé, et pour ocurrir le guilledou... Por veinte francos en la ranura Leo Ferré te canta sus amores, o Gilbert Bécaud, o Guy Béart. Allá en mi tierra: Si quiere ver la vida color de rosa / Eche veinte centavos en la ranura... A lo mejor encendiste la radio (el alquiler vence el lunes que viene, tendré que avisarte) y escuchás música de cámara, probablemente Mozart, o has puesto un disco muy bajo para no despertar a Rocamadour. Y me parece que no te das demasiado cuenta de que Rocamadour está muy enfermo, terriblemente débil y enfermo, y que lo cuidarían mejor en el hospital. Pero ya no te puedo hablar de esas cosas, digamos que todo se acabó y que yo ando por ahí vagando, dando vueltas, buscando el norte, el sur, si es que lo busco. Si es que lo busco. Pero si no lo buscara, ¿qué es esto? Oh mi amor, te extraño, me dolés en la piel, en la garganta, cada vez que respiro es como si el vacío me entrara en el pecho donde ya no estás.

-Toi –dice Crevel- toujours prèt à grimper les cinq étages des pythonisses faubouriennes, qui ouvrent grandes les portes du futur...

    Y por que no, por qué no había de buscar a la Maga, tantas veces me había bastado asomarme, viniendo por la rue de Seine, el arco que da al Quai de Conti, y apenas la luz de ceniza y oliva que flota sobre el río que dejaba distinguir las formas, ya su silueta delgada se inscribía en el Pont des Arts, nos íbamos por ahí a la caza de sombras, a comer papas fritas al Faubourg St. Denis, a besarnos junto a las barcazas del canal Saint-Martin. Con ella yo sentía crecer un aire nuevo, los signos fabulosos del atardecer o esa manera como las cosas se dibujaban cuento estábamos juntos y en las rejas de la Cour de Rohan los vagabundos se alzaban al reino medroso y alunado de los testigos y los jueces... Por qué no había de amar a la Maga y poseerla bajo decenas de cielos rasos a seiscientos francos, en camas con cobertores deshilachados y rancios, si en esa vertiginosa rayuela, en esa carrera de embolsados yo me reconocía y me nombraba, por fin y hasta cuándo salido del tiempo y sus jaulas con monos y etiquetas, de sus vitrinas Omega Electron Girard Perregaud Vacheron & Constantain marcando las horas y los minutos de las sacrosantas obligaciones castradoras, en un aire donde las últimas ataduras iban cayendo y el placer era espejo de reconciliación, espejo para alondras pero espejo, algo como un sacramento de ser a ser, danza en torno al arca, avance del sueño boca contra boca, a veces sin desligarnos, los sexos unidos y tibios, los brazos como guías vegetales, las manos acariciando aplicadamente un muslo, un cuello...

-Tu t`accorches à des histories –dice Crevel-. Tu ètreins des mots...

-No, viejo, eso se hace más bien del otro lado del mar, que no conocés. Hace rato que no me acuesto con las palabras. Las sigo usando, como vos y como todos pero las cepillo muchísimo antes de ponérmelas.

    Crevel desconfía y lo comprendo. Entre la Maga y yo crece un cañaveral de palabras, apenas nos separan unas horas y unas cuadras y ya mi pena se llama pena, mi amor se llama mi amor... Cada vez iré sintiendo menos y recordando más, pero qué es el recuerdo sino el idioma de los sentimientos, un diccionario de caras y días y perfumes que vuelven como los verbos y los adjetivos en el discurso, adelantándose solapados a la cosa en sí, al presente puro, entristeciéndonos o aleccionándonos vicariamente hasta que el propio ser se vuelve vicario, la cara que mira hacia atrás abre grandes los ojos, la verdadera cara se borra poco a poco como en las viejas fotos y Jano es de golpe cualquiera de nosotros. Todo esto se lo voy diciendo a Crevel pero es con la Maga que hablo, ahora que estamos tan lejos. Y no le hablo con las palabras que sólo han servido para no entendernos, ahora que ya es tarde empiezo a elegir otras, las de ella, las envueltas en eso que ella comprende y que no tiene nombre, auras y tensiones que crispan el aire entre dos cuerpos y llenan de polvo de oro una habitación o un verso. ¿Pero no hemos vivido así todo el tiempo, lacerándonos dulcemente? No, no hemos vivido así, ella hubiera querido pero una vez más yo volví a sentar el falso orden que disimula el caos, a fingir que me entregaba a una vida profunda de la que sólo tocaba el agua terrible con la punta de pie. Hay ríos metafísicos, ella los nada como esa golondrina está nadando en el aire, girando alucinada en torno al campanario, dejándose caer para levantarse mejor con el impuso. Yo describo y defino y deseo esos ríos, ella los nada. Yo los busco, los encuentro, los miro desde el puente, ella los nada. Y no lo sabe, igualita a la golondrina. No necesita saber como yo, puede vivir en el desorden sin que ninguna conciencia de orden la retenga. Ese desorden que es un orden misterioso, esa bohemia del cuerpo y el alma que le abre de par en par las verdaderas puertas. Su vida no es desorden más que para mí, enterrado en perjuicios que desprecio y respeto al mismo tiempo. Yo, condenado a ser absuelto irremediablemente por la Maga que me juzga sin saberlo. Ah, dejame entrar, dejame ver algún día como ven tus ojos.

    Inútil. Condenado a ser absuelto. Vuélvase a casa y lea Spinoza. La Maga no sabe quién es Spinoza. La Maga lee interminables novelas de rusos y alemanes y Pérez Galdós y las olvida enseguida. Nunca sospechará que me condena a leer a Spinoza. Juez inaudito, juez por sus manos, por su carrera en plena calle, juez por sólo mirarme y dejarme desnudo, juez por tonta e infeliz y desconcertada y roma y menos que nada. Por todo eso que sé desde mi amargo saber, con mi podrido rasero de universitario y hombre esclarecido, por todo eso, juez. Dejate caer, golondrina, con esas filosas tijeras que recortan el cielo de Saint-Germain-des-Prés, arrancá estos ojos que miran sin ver, estoy condenado sin apelación, pronto a ese cadalso azul al que me izan las manos de la mujer cuidando a su hijo, pronto la pena, pronto el orden mentido de estar solo y recobrar la suficiencia, la egociencia, la conciencia. Y con tanta ciencia una inútil ansia de tener lástima de algo, de que llueva aquí dentro, de que por fin empiece a llover, a oler a tierra, a cosas vivas, sí, por fin a cosas vivas.                                                    

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sexta-feira, 27 de maio de 2016

02. A Metamorfose - À medida que tudo isto lhe passava pela mente - Franz Kafka

Franz Kafka


Capítulo 1

02. A Metamorfose - À medida que tudo isto lhe passava pela mente - Franz Kafka




À medida que tudo isto lhe passava pela mente a toda a velocidade, sem ser capaz de resolver a deixar a cama — o despertador acabava de indicar um quarto para as sete, ouviram-se pancadas cautelosas na porta que ficava por detrás da cabeceira da cama.

— Gregório — disse uma voz, que era a da mãe, é um quarto para as sete. Não tem de apanhar o trem?

Aquela voz suave! Gregório teve um choque ao ouvir a sua própria voz responder-lhe, inequivocamente a sua voz, é certo, mas com um horrível e persistente guincho chilreante como fundo sonoro, que apenas conservava a forma distinta das palavras no primeiro momento, após o que subia de tom, ecoando em torno delas, até destruir-lhes o sentido, de tal modo que não podia ter-se a certeza de tê-las ouvido corretamente. Gregório queria dar uma resposta longa, explicando tudo, mas, em tais circunstâncias, limitou-se a dizer:

— Sim, sim, obrigado, mãe, já vou levantar.

A porta de madeira que os separava devia ter evitado que a sua mudança de voz fosse perceptível do lado de fora, pois a mãe contentou-se com esta afirmação, afastando-se rapidamente. Esta breve troca de palavras tinha feito os outros membros da família notarem que Gregório estava ainda em casa, ao contrário do que esperavam, e agora o pai batia a uma das portas laterais, suavemente, embora com o punho.

— Gregório, Gregório — chamou — , o que você tem?

E, passando pouco tempo depois, tornou a chamar, com voz mais firme:

— Gregório! Gregório!

Junto da outra porta lateral, a irmã chamava, em tom baixo e quase lamentoso:

— Gregório? Não se sente bem? Precisa de alguma coisa?

Respondeu a ambos ao mesmo tempo:

— Estou quase pronto — e esforçou-se o máximo por que a voz soasse tão normal quanto possível, pronunciando as palavras muito claramente e deixando grandes pausas entre elas. Assim, o pai voltou ao breve almoço, mas a irmã segredou: — Gregório, abre esta porta, anda.

Ele não tencionava abrir a porta e sentia-se grato ao prudente hábito que adquirira em viagem de fechar todas as portas à chave durante a noite, mesmo em casa. 


A sua intenção imediata era levantar-se silenciosamente sem ser incomodado, vestir-se e, sobretudo, tomar o breve almoço, e só depois estudar que mais havia a fazer, dado que na cama, bem o sabia, as suas meditações não levariam a qualquer conclusão sensata. Lembrava-se de muitas vezes ter sentido pequenas dores enquanto deitado, provavelmente causadas por posições incômodas, que se tinham revelado puramente imaginárias ao levantar-se, e ansiava fortemente por ver as ilusões desta manhã desfazerem-se gradualmente. Não tinha a menor dúvida de que a alteração da sua voz outra coisa não era que o prenúncio de um forte resfriado, doença permanente dos caixeiros-viajantes. 

Libertar-se da colcha era tarefa bastante fácil: bastava-lhe inchar um pouco o corpo e deixá-la cair por si. Mas o movimento seguinte era complicado, especialmente devido à sua invulgar largura. Precisaria de braços e mãos para erguer-se; em seu lugar, tinha apenas as inúmeras perninhas, que não cessavam de agitar-se em todas as direções e que de modo nenhum conseguia controlar. Quando tentou dobrar uma delas, foi a primeira a esticar-se, e, ao conseguir finalmente que fizesse o que ele queria, todas as outras pernas abanavam selvaticamente, numa incômoda e intensa agitação. Mas de que serve ficar na cama assim sem fazer nada, perguntou Gregório a si próprio. 

Pensou que talvez conseguisse sair da cama deslocando em primeiro lugar a parte inferior do corpo, mas esta, que não tinha visto ainda e da qual não podia ter uma ideia nítida, revelou-se difícil de mover, tão lentamente se deslocava; quando, finalmente, quase enfurecido de contrariedade, reuniu todas as forças e deu um temerário impulso, tinha calculado mal a direção e embateu pesadamente na extremidade inferior da cama, revelando-lhe a dor aguda que sentiu ser provavelmente aquela, de momento, a parte mais sensível do corpo.

Visto isso, tentou extrair primeiro a parte superior, deslizando cuidadosamente a cabeça para a borda da cama. Descobriu ser fácil e, apesar da sua largura e volume, o corpo acabou por acompanhar lentamente o movimento da cabeça. Ao conseguir, por fim, mover a cabeça até à borda da cama, sentiu-se demasiado assustado para prosseguir o avanço, dado que, no fim de contas caso se deixasse cair naquela posição, só um milagre o salvaria de magoar a cabeça. E, custasse o que custasse, não podia perder os sentidos nesta altura, precisamente nesta altura; era preferível ficar na cama. 


Quando, após repetir os mesmos esforços, ficou novamente deitado na posição primitiva, suspirando, e viu as pequenas pernas a entrechocarem-se mais violentamente que nunca, se possível, não divisando processo de introduzir qualquer ordem naquela arbitrária confusão, repetiu a si próprio que era impossível ficar na cama e que o mais sensato era arriscar tudo pela menor esperança de libertar-se dela. Ao mesmo tempo, não se esquecia de ir recordando a si mesmo que era muito melhor a reflexão fria, o mais fria possível, do que qualquer resolução desesperada. Nessas alturas, tentava focar a vista tão distintamente quanto podia na janela, mas, infelizmente, a perspectiva da neblina matinal, que ocultava mesmo o outro lado da rua estreita, pouco alívio e coragem lhe trazia. Sete horas, disse, de si para si, quando o despertador voltou a bater, sete horas, e um nevoeiro tão denso, por momentos, deixou-se ficar quieto, respirando suavemente, como se porventura esperasse que um repouso tão completo devolvesse todas as coisas à sua situação real e vulgar. 

A seguir, disse a si mesmo: Antes de baterem as sete e um quarto, tenho que estar fora desta cama. De qualquer maneira, a essa hora já terá vindo alguém do escritório perguntar por mim, visto que abre antes das sete horas. E pôs-se a balançar todo o corpo ao mesmo tempo, num ritmo regular, no intuito de rebocá-lo para fora da cama. Caso se desequilibrasse naquela posição, podia proteger a cabeça de qualquer pancada erguendo-a num ângulo agudo ao cair. O dorso parecia ser duro e não era provável que se ressentisse de uma queda no tapete. A sua preocupação era o barulho da queda, que não poderia evitar, o qual, provavelmente, causaria ansiedade, ou mesmo terror, do outro lado e em todas as portas. Mesmo assim, devia correr o risco.


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Universidade da Amazônia
A Metamorfose
de Franz Kafka de Franz Kafka

NEAD – NÚCLEO DE EDUCAÇÃO A DISTÂNCIA Av. Alcindo Cacela, 287 – Umarizal CEP: 66060-902 Belém – Pará Fones: (91) 210-3196 / 210-3181 www.nead.unama.br

E-mail: uvb@unama.br

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Leia também:

01. A Metamorfose -  Numa manhã, ao despertar de sonhos inquietantes - Franz Kafka

03. A Metamorfose - Quando estava quase fora da cama  - Franz Kafka

Gracias, Mercedes

Mercedes Sosa



étempo de lutar, étempo de resistir, sempre étempo de ouvir La Negra




Gracias a La Vida







Gracias A La Vida


Gracias a la vida que me ha dado tanto
Me dio dos luceros que cuando los abro
Perfecto distingo lo negro del blanco
Y en el alto cielo su fondo estrellado
Y en las multitudes el hombre que yo amo

Gracias a la vida que me ha dado tanto
Me ha dado el oído que en todo su ancho
Graba noche y día grillos y canarios
Martillos, turbinas, ladridos, chubascos
Y la voz tan tierna de mi bien amado

Gracias a la vida que me ha dado tanto
Me ha dado el sonido y el abecedario
Con él, las palabras que pienso y declaro
Madre, amigo, hermano
Y luz alumbrando la ruta del alma del que estoy amando

Gracias a la vida que me ha dado tanto
Me ha dado la marcha de mis pies cansados
Con ellos anduve ciudades y charcos
Playas y desiertos, montañas y llanos
Y la casa tuya, tu calle y tu patio

Gracias a la vida que me ha dado tanto
Me dio el corazón que agita su marco
Cuando miro el fruto del cerebro humano
Cuando miro el bueno tan lejos del malo
Cuando miro el fondo de tus ojos claros

Gracias a la vida que me ha dado tanto
Me ha dado la risa y me ha dado el llanto
Así yo distingo dicha de quebranto
Los dos materiales que forman mi canto
Y el canto de ustedes que es el mismo canto
Y el canto de todos que es mi propio canto
Gracias a la vida, gracias a la vida


Composição: Violeta Parra




Graças À Vida


Graças à vida que me deu tanto
Me deu dois olhos que quando os abro
Distinguo perfeitamente o preto do branco
E no alto céu seu fundo estrelado
E nas multidões o homem que eu amo


Graças à vida que me deu tanto
Me deu o ouvido que em todo seu comprimento
Grava noite e dia grilos e canários
Martírios, turbinas, latidos, aguaceiros
E a voz tão terna de meu bem amado


Graças à vida que me deu tanto
Me deu o som e o abecedário
Com ele, as palavras que penso e declaro
Mãe, amigo, irmão
E luz iluminando a rota da alma do que estou amando


Graças à vida que me deu tanto
Me deu a marcha de meus pés cansados
Com eles andei cidades e charcos
Praias e desertos, montanhas e planícies
E a casa sua, sua rua e seu pátio


Graças à vida que me deu tanto
Me deu o coração que agita seu marco
Quando olho o fruto do cérebro humano
Quando olho o bom tão longe do mal
Quando olho o fundo de seus olhos claros


Graças à vida que me deu tanto
Me deu o riso e me deu o pranto
Assim eu distinguo fortuna de quebranto
Os dois materiais que formam meu canto
E o canto de vocês que é o mesmo canto
E o canto de todos que é meu próprio canto


Graças à vida, graças à vida

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Bom dia, Mercedes





quinta-feira, 26 de maio de 2016

1. Contos de Lima Barreto - Três gênios de secretaria

Lima Barreto


Três gênios de secretaria


O meu amigo Augusto Machado, de quem acabo de publicar uma pequena brochura aliteratada – Vida e morte de M. J. Gonzaga de Sá – mandou-me algumas notas herdadas por ele desse seu amigo, que, como se sabe, foi oficial da Secretaria dos Cultos. Coordenadas por mim, sem nada pôr de meu, eu as dou aqui, para a meditação dos leitores: 


“ESTAS MINHAS memórias que há dias tento começar, são deveras difíceis de executar, pois se imaginarem que a minha secretaria é de pequeno pessoal e pouco nela se passa de notável, bem avaliarão em que apuros me encontro para dar volume às minhas recordações de velho funcionário. Entretanto, sem recorrer a dificuldade, mas ladeando-a, irei sem preocupar-me com datas nem tampouco me incomodando com a ordem das coisas e fatos, narrando o que me acudir de importante, à proporção de escrevê-las. Ponho-me à obra. 

Logo no primeiro dia em que funcionei na secretaria, senti bem que todos nós nascemos para empregado público. Foi a reflexão que fiz, ao me julgar tão em mim, quando, após a posse e o compromisso ou juramento, sentei-me perfeitamente à vontade na mesa que me determinaram. Nada houve que fosse surpresa, nem tive o mínimo acanhamento. Eu tinha vinte e um para vinte e dois anos; e nela me abanquei como se de há muito já o fizesse. Tão depressa foi a minha adaptação que me julguei nascido para ofício de auxiliar o Estado, com a minha reduzida gramática e o meu péssimo cursivo, na sua missão de regular a marcha e a atividade da nação. 

Com familiaridade e convicção, manuseava os livros – grandes montões de papel espesso e capas de couro, que estavam destinados a durar tanto quanto as pirâmides do Egito. Eu sentia muito menos aquele registro de decretos e portarias e eles pareciam olhar-me respeitosamente e pedir-me sempre a carícia das minhas mãos e a doce violência da minha escrita. 

Puseram-me também a copiar ofícios e a minha letra tão má e o meu desleixo tão meu, muito papel fizeram-me gastar, sem que isso redundasse em grande perturbação no desenrolar das coisas governamentais. 

Mas, como dizia, todos nós nascemos para funcionário público. Aquela placidez do ofício, sem atritos, nem desconjuntamentos violentos; aquele deslizar macio durante cinco horas por dia; aquela mediania de posição e fortuna, garantindo inabalavelmente uma vida medíocre – tudo isso vai muito bem com as nossas vistas e os nossos temperamentos. Os dias no emprego do Estado nada têm de imprevisto, não pedem qualquer espécie de esforço a mais, para viver o dia seguinte. Tudo corre calma e suavemente, sem colisões, nem sobressaltos, escrevendo-se os mesmos papéis e avisos, os mesmos decretos e portarias, da mesma maneira, durante todo o ano, exceto os dias feriados, santificados e os de ponto facultativo, invenção das melhores da nossa República. 

De resto, tudo nele é sossego e quietude. O corpo fica em cômodo jeito; o espírito aquieta-se, não tem efervescências nem angústias; as praxes estão fixas e as fórmulas já sabidas. 

Pensei até em casar, não só para ter uns bate-bocas com a mulher, mas, também, para ficar mais burro, ter preocupações de “pistolões”, para ser promovido. Não o fiz; e agora, já que não digo a ente humano, mas ao discreto papel, posso confessar porque. Casar-me no meu nível social, seria abusar-me com a mulher, pela sua falta de instrução e cultura intelectual; casar-me acima, seria fazer-me lacaio dos figurões, para darem-me cargos, propinas, gratificações, que satisfizessem às exigências da esposa. Não queria uma nem outra coisa. Houve uma ocasião em que tentei solver a dificuldade, casando-me, ou coisa que o valha, abaixo da minha situação. É a tal história da criada... Aí foram a minha dignidade pessoal e o meu cavalheirismo que me impediram. 

Não podia, nem devia ocultar a ninguém e de nenhuma forma, a mulher com quem eu dormia e era mãe dos meus filhos. Eu ia citar Santo Agostinho, mas deixo de fazê-lo para continuar a minha narração... 

Quando, de manhã, novo ou velho no emprego, a gente se senta na sua mesa oficial, não há novidade de espécie alguma e, já da pena, escreve devagarinho: “Tenho a honra”, etc., etc.; ou, republicanamente, “Declaro-vos, para os fins convenientes”, etc., etc. Se há mudança, é pequena e o começo é já bem sabido: “Tenho em vistas”... – ou “Na forma do disposto”... 

Às vezes o papel oficial fica semelhante a um estranho mosaico de fórmulas e chapas; e são os mais difíceis, nos quais o doutor Xisto Rodrigues brilhava como mestre inigualável. 

O doutor Xisto já é conhecido dos senhores, mas não é dos outros gênios da Secretaria dos Cultos. Xisto é estilo antigo. Entrou honestamente, fazendo um concurso decente e sem padrinhos. Apesar da sua pulhice bacharelesca e a sua limitação intelectual, merece respeito pela honestidade que põe em todos os atos de sua vida, mesmo como funcionário. Sai à hora regulamentar e entra à hora regulamentar; não bajula, nem recebe gratificações. 

Os dois outros, porém, são mais modernizados. Um é “charadista”, o homem que o diretor consulta, que dá as informações confidenciais, para o presidente e o ministro promoverem os amanuenses. Este ninguém sabe como entrou para a secretaria; mas logo ganhou a confiança de todos, de todos se fez amigo e, em pouco, subiu três passos na hierarquia e arranjou quatro gratificações mensais ou extraordinárias. Não é má pessoa, ninguém se pode aborrecer com ele: é uma criação do ofício que só amofina os outros, assim mesmo sem nada estes saberem ao certo, quando se trata de promoções. Há casos muito interessantes; mas deixo as proezas dessa inferência burocrática, em que o seu amor primitivo a charadas, ao logogrifo e aos enigmas pitorescos pôs-lhe sempre na alma uma caligem de mistério e uma necessidade de impor aos outros adivinhação sobre ele mesmo. Deixo-a, dizia, para tratar do “auxiliar de gabinete”. É este a figura mais curiosa do funcionalismo moderno. É sempre doutor em qualquer coisa; pode ser mesmo engenheiro hidráulico ou eletricista. Veio de qualquer parte do Brasil, da Bahia ou de Santa Catarina, estudou no Rio qualquer coisa; mas não veio estudar, veio arranjar um emprego seguro que o levasse maciamente para o fundo da terra, donde deveria ter saído em planta, em animal e, se fosse possível, em mineral qualquer. É inútil, vadio, mau e pedante, ou antes, pernóstico. 

Instalado no Rio, com fumaças de estudante, sonhou logo arranjar um casamento, não para conseguir uma mulher, mas, para arranjar um sogro influente, que o empregasse em qualquer coisa, solidamente. Quem como ele faz de sua vida, tão-somente caminho para o cemitério, não quer muito: um lugar em uma secretaria qualquer serve. Há os que vêem mais alto e se servem do mesmo meio; mas são a quintessência da espécie. 

Na Secretaria dos Cultos, o seu típico e célebre “auxiliar de gabinete”, arranjou o sogro dos seus sonhos, num antigo professor do seminário, pessoa muito relacionada com padres, frades, sacristães, irmãs de caridade, doutores em cânones, definidores, fabriqueiros, fornecedores e mais pessoal eclesiástico. 

O sogro ideal, o antigo professor, ensinava no seminário uma física muito própria aos fins do estabelecimento, mas que havia de horripilar o mais medíocre aluno de qualquer estabelecimento leigo. 

Tinha ele uma filha a casar e o “auxiliar de gabinete”, logo viu no seu casamento com ela, o mais fácil caminho para arranjar uma barrigazinha estufadinha e uma bengala com castão de ouro. 

Houve exame na Secretaria dos Cultos, e o “sogro”, sem escrúpulo algum, fez-se nomear examinador do concurso para o provimento do lugar e meter nele “o noivo”. 

Que se havia de fazer? O rapaz precisava. 

O rapaz foi posto em primeiro lugar, nomeado e o velho sogro (já o era de fato) arranjou-lhe o lugar de “auxiliar de gabinete” do ministro. Nunca mais saiu dele e, certa vez, quando foi, pro formula se despedir do novo ministro, chegou a levantar o reposteiro para sair; mas, nisto, o ministro bateu na testa e gritou: 

– Quem é aí o doutor Mata-Borrão? 

O homenzinho voltou-se e respondeu, com algum tremor na voz e esperança nos olhos: 

– Sou eu, excelência. 

– O senhor fica. O seu “sogro” já me disse que o senhor precisa muito. 

É ele assim, no gabinete, entre os poderosos; mas, quando fala a seus iguais, é de uma prosápia de Napoleão, de quem se não conhecesse a Josefina. 

A todos em que ele vê um concorrente, traiçoeiramente desacredita: é bêbedo, joga, abandª a mulher, não sabe escrever – “comissão”, etc. Adquiriu títulos literários, publicando a Relação dos Padroeiros das Principais Cidades do Brasil; e sua mulher quando fala nele, não se esquece de dizer: “Como Rui Barbosa, o Chico ou “Como Machado de Assis, meu marido só bebe água.” Gênio doméstico e burocrático, MataBorrão, não chegará, apesar da sua maledicência interesseira, a entrar nem no inferno. A vida não é unicamente um caminho para o cemitério; é mais alguma coisa e quem a enche assim, nem Belzebu o aceita. Seria desmoralizar o seu império; mas a burocracia quer desses amorfos, pois ela é das criações sociais aquela que mais atrozmente tende a anular a alma, a inteligência, e os influxos naturais e físicos ao indivíduo. É um expressivo documento de seleção inversa que caracteriza toda a nossa sociedade burguesa, permitindo no seu campo especial, com a anulação dos melhores da inteligência, de saber, de caráter e criação, o triunfo inexplicável de um Mata-Borrão por aí”. 

Pela cópia, conforme.


Brás Cubas, Rio, 10-4-1919. 



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Leia também:

2. Contos de Lima Barreto - O único assassinato de Cazuza


4.O Livro dos Abraços - Definição da arte - Eduardo Galeano

Eduardo Galeano


4.. O Livro dos Abraços


Definição da arte  




Portinari saiu — dizia Portinari. Por um instante espiava, batia a porta e desaparecia. Eram os anos trinta, caçada de comunistas no Brasil, e Portinari tinha se exilado em Montevidéu. 

Ivan Kmaid não era daqueles anos, nem daquele lugar; mas muito tempo depois, ele espiou pelos furinhos da cortina do tempo e me contou o que viu: 

Cândido Portinari pintava da manhã à noite, e noite afora também. — Portinari saiu — dizia. 

Naquela época, os intelectuais comunistas do Uruguai iam tomar posição frente ao realismo socialista e pediam a opinião do prestigiado camarada. 

— Sabemos que o senhor saiu, mestre — disseram, e suplicaram: 

— Mas a gente não podia entrar um momento? Só um momentinho. 

E explicaram o problema, pediram sua opinião. 

— Eu não sei não— disse Portinari. E disse: 

— A única coisa que eu sei é o seguinte: arte é arte, ou é merda.





A linguagem da arte



Chinolope vendia jornais e engraxava sapatos em Havana. Para deixar de ser pobre, foi-se embora para Nova Iorque. 

Lá, alguém deu de presente a ele uma máquina de fotografia. Chinolope nunca tinha segurado uma câmara nas mãos, mas disseram a ele que era fácil: 

— Você olha por aqui e aperta ah. 

E ele começou a andar pelas ruas. Tinha andado pouco quando escutou tiros e se meteu num barbeiro e levantou a câmara e olhou por aqui e apertou ali. 

Na barbearia tinham baleado o gângster Joe Anastasia, que estava fazendo a barba, e aquela foi a primeira foto da vida profissional de Chinolope. 

Pagaram uma fortuna por ela. A foto era uma façanha. Chinolope tinha conseguido fotografar a morte. A morte estava ali: não no morto, nem no matador. A morte estava na cara do barbeiro que a viu.





A fronteira da arte



Foi a batalha mais longa de todas as lutadas em Tuscatlán ou em qualquer outra região de El Salvador. Começou à meia-noite, quando as primeiras granadas caíram da montanha, e durou a noite toda e foi até a tarde do dia seguinte. Os militares diziam que Cinquera era inexpugnável. Os guerrilheiros tinham atacado quatro vezes, e quatro vezes tinham fracassado. Na quinta vez, quando foi erguida a bandeira branca no mastro do quartel-general, os tiros para o alto começaram os festejos. 

Julio Ama, que lutava e fotografava a guerra, andava caminhando pelas ruas. Levava seu fuzil na mão e a câmara, também carregada e pronta para ser disparada, pendurada no pescoço. Andava Julio pelas ruas poeirentas, procurando os irmãos gêmeos. Esses gêmeos eram os únicos sobreviventes de uma aldeia exterminada pelo exército. Tinham dezesseis anos. Gostavam de combater ao lado de Julio; e nas entre-guerras, ele os ensinava a ler e a fotografar. No turbilhão daquela batalha, Julio tinha perdido os gêmeos, e agora não os via entre os vivos ou entre os mortos. 

Caminhou através do parque. Na esquina da igreja, meteu-se numa viela. E então, finalmente, encontrou-os. Um dos gêmeos estava sentado no chão, de costas contra um muro. Sobre seus joelhos jazia o outro, banhado em sangue; e aos pés, em cruz, estavam os dois fuzis. 

Júlio se aproximou, e talvez tenha dito alguma coisa. O gêmeo que vivia não disse nada, nem se moveu: estava lá, mas não estava. Seus olhos, que não pestanejavam, olhavam sem ver, perdidos em algum lugar, em nenhum lugar; e naquela cara sem lágrimas estavam a guerra inteira e a dor inteira.

Júlio deixou o fuzil no chão e empunhou a câmara. Rodou o filme, calculou num instante a luz e a distância e colocou a imagem em foco. Os irmãos estavam no centro do visor, imóveis, perfeitamente recortados contra o muro recém mordido pelas balas.

 Júlio ia fazer a foto da sua vida, mas o dedo não quis. Júlio tentou, tornou a tentar, e o dedo não quis. Então baixou a câmara, sem apertar o botão, e se retirou em silêncio. A câmara, uma Minolta, morreu em outra batalha, afogada pela chuva, um ano mais tarde. 





A função da arte/2 



O pastor Miguel Brun me contou que há alguns anos esteve com os índios do Chaco paraguaio. Ele formava parte de uma missão evangelizadora. Os missionários visitaram um cacique que tinha fama de ser muito sábio. O cacique, um gordo quieto e calado, escutou sem pestanejar a propaganda religiosa que leram para ele na língua dos índios. Quando a leitura terminou, os missionários ficaram esperando. 

O cacique levou um tempo. Depois, opinou: 

— Você coça. E coça bastante, e coça muito bem. E sentenciou: 

— Mas onde você coça não coça.




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Titulo original: El libro de los abrazos Primeira edição em junho 1991. Tradução: Eric Nepomuceno Revisão: Ana Teresa Cirne Lima, Ester Mambrini e Valmir R. Cassol Produção: Jó Saldanha e Lúcia Bohrer ISBN: 85.254.0306-0 G151L Galeano, Eduardo O livro dos abraços / Eduardo Galeano; tradução de Eric Nepomuceno. - 9. ed. - Porto Alegre: L&PM, 2002. 270p.:il.;21cm 1. Ficção uruguaia. I.Título. CDD U863 CDU 860(895)-3 Catalogação elaborada por Izabel A. Merlo, CRB 10/329. Texto e projeto gráfico de Eduardo Galeano © Eduardo Galeano, 1989


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Leia também:

3.O Livro dos Abraços - A função do leitor - Eduardo Galeano



Bom dia, Mercedes

Mercedes Sosa



étempo de lutar, étempo de resistir, sempre étempo de ouvir La Negra




Yo vengo a ofrecer mi corazón





Yo Vengo a Ofrecer Mi Corazón

Mercedes Sosa


¿Quién dijo que todo está perdido?
Yo vengo a ofrecer mi corazón,
Tanta sangre que se llevó el río,
Yo vengo a ofrecer mi corazón

No será tan fácil, ya sé qué pasa,
No será tan simple como pensaba,
Como abrir el pecho y sacar el alma,
Una cuchillada del amor.

Luna de los pobres siempre abierta,
Yo vengo a ofrecer mi corazón,
Como un documento inalterable
Yo vengo a ofrecer mi corazón.

Y uniré las puntas de un mismo lazo,
Y me iré tranquilo, me iré despacio,
Y te daré todo, y me darás algo,
Algo que me alivie un poco más.

Cuando no haya nadie cerca o lejos,
Yo vengo a ofrecer mi corazón.
Cuando los satélites no alcancen,
Yo vengo a ofrecer mi corazón.

Y hablo de países y de esperanzas,
Hablo por la vida, hablo por la nada,
Hablo de cambiar ésta, nuestra casa,
De cambiarla por cambiar, nomás
¿Quién dijo que todo está perdido?
Yo vengo a ofrecer mi corazón.



Composição: Fito Páez




Eu Venho Oferecer Meu Coração
Quem disse que tudo está perdido?
Eu venho oferecer meu coração.
Tanto sangue que levou o rio!
Eu venho oferecer meu coração.



Não será tão fácil, já sei o que está acontecendo.
Não será tão simples quanto pensava!
Como abrir o peito e tirar a alma...
Uma facada de amor!



Lua dos pobres sempre aberta,
Eu venho oferecer meu coração.
Como um documento inalterável,
Eu venho oferecer meu coração.



E unirei as pontas de um mesmo laço,
E irei tranquilo, irei devagar.
E te darei tudo, e me darás algo...
Algo que me alivie um pouco mais.



Quando não houver ninguém, perto ou longe,
Eu venho oferecer meu coração.
Quando os satélites não alcançarem,
Eu venho oferecer meu coração.



E falo de países e de esperanças,
Falo pela vida, falo pelo nada!
Falo de mudar esta nossa casa...
De mudar por mudar, mais nada
.


Quem disse que tudo está perdido?
Eu venho oferecer meu coração.
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quarta-feira, 25 de maio de 2016

11. Pedro Páramo: Fulgor Sedano, hombre de 54 años, soltero - Juan Rulfo

Juan Rulfo




11. Pedro Páramo: Fulgor Sedano, hombre de 54 años, soltero





«Fulgor Sedano, hombre de 54 años, soltero, de oficio administrador, apto para entablar y seguir pleitos, por poder y por mi propio derecho, reclamo y alego lo siguiente...» 

Eso había dicho cuando levantó el acta contra actos de Toribio Aldrete. Y terminó: «Que conste mi acusación por usufruto». 

-A usted ni quien le quite lo hombre, don Fulgor. Sé que usted las puede. Y no por el poder que tiene atrás, sino por usted mismo. 

Se acordaba. Fue lo primero que le dijo el Aldrete, después que se habían estado emborrachando juntos, dizque para celebrar el acta: 

-Con ese papel nos vamos a limpiar usted y yo, don Fulgor, porque no va a servir para otra cosa. Y eso usted lo sabe. En fin, por lo que a usted respecta, ya cumplió con lo que le mandaron, y a mí me quitó de apuraciones; porque me tenía usted preocupado, lo que sea de cada quien. Ahora ya sé de qué se trata y me da risa. Dizque «usufruto». Vergüenza debía darle a su patrón ser tan ignorante. 

Se acordaba. Estaban en la fonda de Eduviges. Y hasta él le había preguntado: 

-Oye, Viges, ¿me puedes prestar el cuarto del rincón? 

-Los que usted quiera, don Fulgor; si quiere, ocúpenlos todos. ¿Se van a quedar a dormir aquí sus hombres? 

-No, nada más uno. Despreocúpate de nosotros y vete a dormir. Nomás déjanos la llave. 

-Pues ya le digo, don Fulgor -le dijo Toribio Aldrete-. A usted ni quien le menoscabe lo hombre que es; pero me lleva la rejodida con ese hijo de la rechintola de su patrón. 

Se acordaba. Fue lo último que le oyó decir en sus cinco sentidos. Después se había comportado como un collón, dando de gritos. «Dizque la fuerza que yo tenía atrás. ¡Vaya!» 



Tocó con el mango del chicote la puerta de la casa de Pedro Páramo. Pensó en la primera vez que lo había hecho, dos semanas atrás. Esperó un buen rato del mismo modo que tuvo que esperar aquella vez. Miró también, como lo hizo la otra vez, el moño negro que colgaba del dintel de la puerta. Pero no comentó consigo mismo: «¡Vaya! Los han encimado. El primero está ya descolorido, el último relumbra como si fuera de seda; aunque no es más que un trapo teñido». 

La primera vez se estuvo esperando hasta llenarse con la idea de que quizá la casa estuviera deshabitada. Y ya se iba cuando apareció la figura de Pedro Páramo. 

-Pasa, Fulgor. 

Era la segunda ocasión que se veían. La primera nada más él lo vio; porque el Pedrito estaba recién nacido. Y ésta. Casi se podía decir que era la primera vez. Y le resultó que le hablaba como a un igual. ¡Vaya! Lo siguió a grandes trancos, chicoteándose las piernas: «Sabrá pronto que yo soy el que sabe. Lo sabrá. Y a lo que vengo». 

-Siéntate, Fulgor. Aquí hablaremos con más calma. 

Estaban en el corral. Pedro Páramo se arrellanó en un pesebre y esperó: 

-¿Por qué no te sientas? 

-Prefiero estar de pie, Pedro. 

-Como tú quieras. Pero no se te olvide el «don». 

¿Quién era aquel muchacho para hablarle así? Ni su padre don Lucas Páramo se había atrevido a hacerlo. Y de pronto éste, que jamás se había parado en la Media Luna, ni conocía de oídas el trabajo, le hablaba como a un gañán. ¡Vaya, pues! 

-¿Cómo anda aquello? 

Sintió que llegaba su oportunidad. «Ahora me toca a mí», pensó. 

-Mal. No queda nada. Hemos vendido el último ganado. 

Comenzó a sacar los papeles para informarle a cuánto ascendía todavía el adeudo. Y ya iba a decir: «Debemos tanto», cuando oyó: 

-¿A quién le debemos? No me importa cuánto, sino a quién. 

Le repasó una lista de nombres. Y terminó: 

-No hay de dónde sacar para pagar. Ése es el asunto. 

-¿Y por qué? 

-Porque la familia de usted lo absorbió todo. Pedían y pedían, sin devolver nada. Eso se paga caro. Ya lo decía yo: «A la larga acabarán con todo». Bueno, pues acabaron. Aunque hay por allí quien se interese en comprar los terrenos. Y pagan bien. Se podrían cubrir las libranzas pendientes y todavía quedaría algo; aunque, eso sí, algo mermado. 

-¿No serás tú? 

-¡Cómo se pone a creer que yo! 

-Yo creo hasta el bendito. Mañana comenzaremos a arreglar nuestros asuntos. Empezaremos por las Preciados. ¿Dices que a ellas les debemos más? 

-Sí. Y a las que les hemos pagado menos. El padre de usted siempre las pospuso para lo último. Tengo entendido que una de ellas, Matilde, se fue a vivir a la ciudad. No sé si a Guadalajara o a Colima. Y la Lola, quiero decir, doña Dolores, ha quedado como dueña de todo. Usted sabe: el rancho de Enmedio. Y es a ella a la que tenemos que pagar. 

-Mañana vas a pedir la mano de la Lola. 

-Pero cómo quiere usted que me quiera, si ya estoy viejo. 

-La pedirás para mí. Después de todo tiene alguna gracia. Le dirás que estoy muy enamorado de ella. Y que si lo tiene a bien. De pasada, dile al padre Rentería que nos arregle el trato. ¿Con cuánto dinero cuentas? 

-Con ninguno, don Pedro. 

-Pues prométeselo. Dile que en teniendo se le pagará. Casi estoy seguro de que no pondrá dificultades. Haz eso mañana mismo. 

-¿Y lo del Aldrete? 

-¿Qué se trae el Aldrete? Tú me mencionaste a las Preciados y a los Fregosos y a los Guzmanes. ¿Con que' sale ahora el Aldrete? 

-Cuestión de límites. Él ya mandó cercar y ahora pide que echemos el lienzo que falta para hacer la división. 

-Eso déjalo para después. Note preocupen los lienzos. No habrá lienzos. La tierra no tiene divisiones. Piénsalo, Fulgor, aunque no se lo des a entender. Arregla por de pronto lo de la Lola. ¿No quieres sentarte? 

-Me sentaré, don Pedro. Palabra que me está gustando tratar con usted. 

-Le dirás a la Lola esto y lo otro y que la quiero. Eso es importante. De cierto, Sedano, la quiero. Por sus ojos, ¿sabes? Eso harás mañana tempranito. Te reduzco tu tarea de administrador. Olvídate de la Media Luna.



«¿De dónde diablos habrá sacado esas mañas el muchacho? -pensó Fulgor Sedano mientras regresaba a la Media Luna-. Yo no esperaba de él nada. "Es un inútil", decía de él mi difunto patrón don Lucas. "Un flojo de marca." Yo le daba la razón. "Cuando me muera váyase buscando otro trabajo, Fulgor." "Sí, don Lucas." "Con decirle, Fulgor, que he intentado mandarlo al seminario para ver si al menos eso le da para comer y mantener a su madre cuando yo les falte; pero ni a eso se decide." "Usted no se merece eso, don Lucas." "No se cuenta con él para nada, ni para que me sirva de bordón servirá cuando yo esté viejo. Se me malogró, qué quiere usted, Fulgor." "Es una verdadera lástima, don Lucas."» 

Y ahora esto. De no haber sido porque estaba tan encariñado con la Media Luna, ni lo hubiera venido a ver. Se habría largado sin avisarle. Pero le tenía aprecio a aquella tierra; a esas lomas pelonas tan trabajadas y que todavía seguían aguantando el surco, dando cada vez más de sí... La querida Media Luna... Y sus agregados: «Vente para acá, tierrita de Enmedio». La veía venir. Como que aquí estaba ya. Lo que significa una mujer después de todo. «¡Vaya que sí!», dijo. Y chicoteó sus piernas al trasponer la puerta grande de la hacienda.



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El mexicano Juan Rulfo (1918-1986) figura, a pesar de la brevedad de su obra, entre los grandes renovadores de la narrativa hispanoamericana del siglo XX. De formación autodidacta, trabajó como guionista para el cine y la televisión. Con sólo dos obras de ficción publicadas -el libro de relatos El llano en llamas y la novela Pedro Páramo-, ha ejercido una decisiva influencia en la literatura en castellano del último medio siglo. En 1983 recibió el premio Príncipe de Asturias de las Letras.


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11. Pedro Páramo: Fulgor Sedano, homem de 54 anos, solteiro




Fulgor Sedano, homem de 54 anos, solteiro, de profissão administrador, apto para apresentar e acompanhar pleitos, por poder e por meu direito próprio, reclamo e alego o que segue...” 

Tinha dito isso quando levantou a ata contra os atos de Toribio Aldrete. E terminou: “Que conste minha acusação por usufruto.” 

— Não há quem lhe renegue a macheza, dom Fulgor. Sei do que o senhor é capaz. E não por causa do poder que tem atrás, mas por mérito próprio. 

Lembrava-se. Foi a primeira coisa que Aldrete disse, depois que tinham andado se embebedando juntos, dizendo que era para celebrar a ata: 

— Com este papel vamos nos limpar, o senhor e eu, dom Fulgor, porque não vai servir para outra coisa. E disso o senhor sabe muito bem. Enfim, pelo que lhe diz respeito, já cumpriu com o mandato, e me tirou de apuros; porque o senhor tinha me deixado preocupado, verdade seja dita. Agora já sei do que se trata, e dou risada. Quer dizer que “usufruto”. Vergonha, isso sim, é o que o seu patrão deveria sentir, por ser tão ignorante. 

Lembrava-se. Estavam na pensão de Eduviges. E até ele tinha perguntado a ela: 

— Escuta aqui, Viges, você pode me emprestar o quarto do canto? 

— Todos que o senhor quiser, dom Fulgor; se quiser, pode ocupar todos. Seus homens vão ficar para dormir? 

— Não, só um. Não se preocupe com a gente, vá dormir. É só deixar a chave. 

— Pois é o que eu digo, dom Fulgor — disse Toribio Aldrete. — Ninguém aqui vai diminuir a hombridade do homem que o senhor é; mas fico fulo é com esse malparido do seu patrão. 

Lembrava-se. Foi a última coisa que o ouviu dizer com os seus cinco sentidos. Depois tinha se comportado como um poltrão, dando gritos. “Dizer a força que eu tinha atrás de mim. Arre!” 



Com o cabo do chicote bateu na porta da casa de Pedro Páramo. Pensou na primeira vez que tinha feito aquilo, duas semanas atrás. Esperou um bom tempo da mesma forma que precisou esperar daquela vez. Olhou também, como tinha feito da outra feita, o laço negro dependurado no dintel da porta. Mas não comentou consigo mesmo: “Que coisa! Puseram um em cima do outro. O primeiro já está descolorido, o último reluz como se fosse de seda; embora não passe de um trapo tingido.” 

A primeira vez ficou esperando até ser tomado pela ideia de que a casa talvez estivesse desabitada. E já ia indo embora, quando apareceu a figura de Pedro Páramo. 

— Entra, Fulgor. Era a segunda vez que se viam. A primeira só ele viu; porque Pedrinho era um recém-nascido. E esta. Quase se podia dizer que era a primeira vez. E acabaram falando de igual a igual. Que coisa! Seguiu-o a grandes trancos, chicoteando as próprias pernas: “Num instante ele vai saber que quem sabe das coisas aqui sou eu. Vai saber. E saber o que vim fazer.” 

— Sente-se, Fulgor. Aqui podemos falar com mais calma. 

Estavam no curral. Pedro Páramo se esparramou numa manjedoura e esperou: 

— Por que não senta? 

— Prefiro ficar de pé, Pedro. 

— Como você quiser. Mas não se esqueça do dom. Dom Pedro. 

Quem aquele moleque achava que era para falar desse jeito? Nem o pai dele, dom Lucas Páramo, tinha se atrevido a tanto. E de repente ele, que jamais tinha parado na Media Luna, e que não conhecia o trabalho nem de ouvir falar, se dirigia a ele como se ele fosse um peão qualquer. Ora essa! 

— Como está aquilo lá? 

Sentiu que chegava a sua oportunidade. “Agora é a minha vez”, pensou. 

— Mal. Não sobrou nada. Vendemos a última cabeça de gado. 

Começou a tirar os papéis para informar a quantas andava a sua dívida. E já ia dizer: “Estamos devendo tanto”, quando ouviu: 

— Para quem estamos devendo? Não me interessa quanto, mas a quem. 

Passou uma lista de nomes. E terminou: 

— Não tem de onde tirar para pagar. Essa é que é a questão. 

— E por quê? 

— Porque a família do senhor absorveu tudo. Pediam e pediam, sem devolver nada. E isso se paga caro. Eu bem que dizia: “Com o tempo, vão acabar com tudo.” Pois bem, agora acabaram. Embora exista por lá quem se interesse por comprar os terrenos. E pagam bem. Dava para cobrar as promissórias pendentes e ainda sobrava alguma coisa; mas, isso sim, bem diminuído. 

— E não será você o interessado? 

— Como é que o senhor pode acreditar que eu faria isso? 

— Eu creio até no espírito santo. Amanhã vamos começar a arrumar os nossos assuntos. Vamos começar pelas Preciados. Você diz que devemos mais a elas? 

— Digo. E é para quem a gente menos pagou. O pai do senhor sempre as deixou para o último lugar. Soube que uma delas, Matilde, foi morar na cidade. Não sei se em Guadalajara ou em Colima. E Lola, quer dizer, dona Dolores, ficou sendo dona de tudo. O senhor sabe: o rancho de Enmedio. E é a ela que temos de pagar. 

— Amanhã você vai pedir a mão de Lola. 

— E o senhor acha que ela vai me aceitar, velho desse jeito? 

— Vai pedir é para mim. Afinal das contas, ela tem lá sua graça. Você vai dizer que estou muito apaixonado por ela. E que ela leve isso muito em consideração. Aproveita e peça ao padre Rentería que arranje o nosso trato. Quanto dinheiro você tem aí? 

— Nenhum, dom Pedro. 

— Pois prometa dinheiro. Diga a ele que assim que a gente tiver, a gente paga. Tenho quase certeza que ele não vai pôr nenhuma dificuldade. Faça isso amanhã logo de manhã. 

— E o Aldrete? 

— Qual o problema de Aldrete? Você mencionou as Preciados e os Fregosos e os Guzmanes. E agora me aparece com Aldrete? 

— Uma questão de divisa. Ele já mandou cercar e agora pede que a gente ponha o que falta para fazer a divisão. 

— Deixa isso para depois. Não se preocupe com cercas. Não haverá cerca. A terra não tem divisões. Pense nisso, Fulgor, mas não deixe ele saber. Agora resolva rápido e de uma vez a questão da Lola. Você não quer sentar? 

— Quero, dom Pedro. Palavra que estou gostando de negociar com o senhor. 

— Você vai dizer a Lola isso e aquilo e que gosto dela. Isso é importante. Aliás, Sedano, gosto mesmo. Pelos olhos dela, sabe? Isso é o que você vai fazer amanhã de manhãzinha. Estou reduzindo suas tarefas de administrador. Esquema a Media Luna.



De onde diabos aquele rapaz tinha tirado aquelas manhas?” pensou Fulgor Sedano, enquanto regressava à Media Luna. “Eu não esperava nada dele. ‘É um inútil’, dizia meu finado patrão dom Lucas. ‘Um frouxo de marca maior.’ Eu dava razão a ele. ‘Quando eu morrer, pode ir começando a procurar outro trabalho, Fulgor.’ ‘Está bem, dom Lucas.’ ‘Pois eu digo a você que tentei mandá-lo ao seminário para ver se pelo menos ele conseguia para comer e manter sua mãe quando eu faltar; mas nem isso ele se decidiu a fazer.’ ‘O senhor não merece isso, dom Lucas.’ ‘Não se pode contar com ele para nada, nem para servir de bengala quando eu estiver velho. Fracassei com ele, fazer o quê, Fulgor?’ ‘É uma verdadeira pena, dom Lucas.’ 

E agora, essa. Se eu não fosse tão encarinhado pela Media Luna, nem teria vindo ao encontro dele. Teria me largado sem avisar. Mas sentia apreço por aquelas terras; por aquelas colinas calvas tão trabalhadas e que continuavam aguentando o sulco do arado, dando cada vez mais de si... Querida Media Luna... E os agregados: “Venha para cá, terrinha do Enmedio.” E via como ela vinha. Como já estava aqui. O tanto que uma mulher, afinal de contas, significa. “Claro que sim!”, disse. E chicoteou suas pernas ao traspassar a porta grande da fazenda.




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Rulfo, Juan Pedro Páramo / tradução e prefácio de Eric Nepomuceno. — Rio de Janeiro: BestBolso, 2008. Tradução de: Pedro Páramo ISBN 978-85-7799-116-7 1. Romance mexicano. I. Nepomuceno, Eric. II. Título

Pedro Páramo – Romance mais aclamado da literatura mexicana, Pedro Páramo é o primeiro de dois livros lançados em toda a vida de Juan Rulfo. O enredo, simples, trata da promessa feita por um filho à mãe moribunda, que lhe pede que saia em busca do pai, Pedro Páramo, um malvado lendário e assassino. Juan Preciado, o filho, não encontra pessoas, mas defuntos repletos de memórias, que lhe falam da crueldade implacável do pai. Vergonha é o que Juan sente. Alegoricamente, é o México ferido que grita suas chagas e suas revoluções, por meio de uma aldeia seca e vazia onde apenas os mortos sobrevivem para narrar os horrores da história. O realismo fantástico como hoje se conhece não teria existido sem Pedro Páramo; é dessa fonte que beberam o colombiano Gabriel Garcia Márquez e o peruano Mario Vargas Llosa, que também narram odisseias latino-americanas.

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