domingo, 31 de dezembro de 2017

Mario Quintana

O Tempo...



para mim o tempo é a invenção que nos permite recomeçar enquanto nos passa sem ser, parece invenção de gente doida









A vida é o dever que nós trouxemos para fazer em casa.
Quando se vê, já são seis horas!
Quando de vê, já é sexta-feira!
Quando se vê, já é natal…
Quando se vê, já terminou o ano…
Quando se vê perdemos o amor da nossa vida.
Quando se vê passaram 50 anos!
Agora é tarde demais para ser reprovado…
Se me fosse dado um dia, outra oportunidade, eu nem olhava o relógio.
Seguiria sempre em frente e iria jogando pelo caminho a casca dourada e inútil das horas…
Seguraria o amor que está a minha frente e diria que eu o amo…
E tem mais: não deixe de fazer algo de que gosta devido à falta de tempo.
Não deixe de ter pessoas ao seu lado por puro medo de ser feliz.
A única falta que terá será a desse tempo que, infelizmente, nunca mais voltará.




... e os doidos

Ariano Suassuna







Não sei o que é o tempo

Fernando Pessoa

Não sei o que é o tempo por JOAQUIM LOPES




"Não sei o que é o tempo. Não sei qual a verdadeira medida que ele tem, se tem alguma. A do relógio sei que é falsa: divide o tempo espacialmente, por fora. A das emoções sei também que é falsa: divide, não o tempo, mas a sensação dele. A dos sonhos é errada; neles roçamos o tempo, uma vez prolongadamente, outra vez depressa, e o que vivemos é apressado ou lento conforme qualquer coisa do decorrer cuja natureza ignoro.

Julgo, às vezes, que tudo é falso, e que o tempo não é mais do que uma moldura para enquadrar o que lhe é estranho. Na recordação, que tenho da minha vida passada, os tempos estão dispostos em níveis e planos absurdos, sendo eu mais jovem em certo episódio dos quinze anos solenes que em outro da infância sentada entre brinquedos.

Emaranha-se-me a consciência se penso nestas coisas. Pressinto um erro em tudo isto; não sei, porém, de que lado está. É como se assistisse a uma sorte de prestidigitação, onde, por ser tal, me soubesse enganado, porém não concebesse qual a técnica, ou a mecânica, do engano.

Chegam-me, então, pensamentos absurdos, que não consigo todavia repelir como absurdos de todo. Penso se um homem que medita devagar dentro de um carro que segue depressa está indo depressa ou devagar. Penso se serão iguais as velocidades idênticas com que caem no mar o suicida e o que se desequilibrou na esplanada. Penso se são realmente sincrônicos os movimentos, que ocupam o mesmo tempo, em os quais fumo um cigarro, escrevo este trecho e penso obscuramente.

De duas rodas no mesmo eixo podemos pensar que há sempre uma que estará mais adiante, ainda que seja fracções de milímetro. Um microscópio exageraria este deslocamento até o tornar quase inacreditável, impossível se não fosse real. E por que não há o microscópio de ter razão contra a má vista? São considerações inúteis? Bem o sei. São ilusões da consideração? Concedo. Que coisa, porém, é esta que nos mede sem medida e nos mata sem ser? E é nestes momentos, em que nem sei se o tempo existe, que o sinto como uma pessoa, e tenho vontade de dormir."



Bernardo Soares / Fernando Pessoa, em "Livro do Desassossego"







TEORIA DA RELATIVIDADE 

- O TEMPO









Alzir Fraga


"A distinção entre passado, presente e futuro é apenas uma ilusão teimosamente persistente A gente lê isso, acha bonito e segue adiante sem maiores cogitações. Já pensaram realmente o que isso quer dizer? Pensaram nas consequências para a física, a filosofia, a religião, a própria vida em si? Isso é de deixar qualquer um tonto e inteiramente desarvorado

Lembrem-se que essa teoria foi formulada antes que fossem constatados os efeitos da Mecânica Quântica. Einstein era determinista, ou seja, se um objeto está em movimento, ele só vai parar ou modificar seu movimento se alguma força externa atuar sobre ele. Por isso Einstein disse "Deus não joga dados". Se um fenômeno for verdadeiro, sempre que ele for repetido var causar o mesmo resultado. Isso é verdade no macrocosmo, mas não no microcosmo. Na mecânica quântica, não existe um resultado sempre determinado pelos componentes físicos. O que existe é apenas uma incerteza. O resultado vai dar uma percentagem de um resultado e outras percentagens de outros resultados diferentes. Admiro muito Einstein e nada de sua teoria da relatividade foi desmentido até hoje, mas eu prefiro olhar para os dois lados quando vou atravessar uma rua. Se o futuro fosse imutável, não poderia ser modificado por minha decisão de esperar um pouco ou atravessar logo a rua, independente de vir um carro ou não."






Viagem no Tempo









Esperando 2018...

Relaxing Jazz Saxophone





não tem nada para dizer... escute













sábado, 30 de dezembro de 2017

40. O Livro dos Abraços - Um músculo secreto - Eduardo Galeano

Eduardo Galeano


40. O Livro dos Abraços




Um músculo secreto

No meio-dia da memória, um meio-dia do exílio. Eu estava escrevendo, ou lendo, ou me aborrecendo em minha casa no litoral de Barcelona, quando o telefone tocou e o telefone me trouxe, cheio de assombro, a voz de Fico. 

Fazia mais de dois anos que Fico estava preso, fora solto no dia anterior. O avião o trouxera da cela de Buenos Aires para o aeroporto de Londres. Do aeroporto ele me telefonava pedindo que fosse vê-lo, venha no primeiro avião, tenho muita coisa para contar, tanta coisa para falar, mas uma coisa eu quero dizer já, quero que você saiba: 

Não me arrependo de nada. 

Naquela mesma noite nos encontramos em Londres. 

No dia seguinte, acompanhei-o ao dentista. Não tinha remédio. Os choques elétricos nas câmaras de tortura afrouxaram seus dentes de cima, e podia dar aqueles dentes por perdidos. 

Fico Vogelius era o empresário que financiara a revista Crísis, e não havia posto somente dinheiro, mas a alma e a vida naquela aventura, e me dera plena liberdade para fazer a revista do jeito que eu quisesse. Enquanto durou, três anos e pouco, quarenta números, Crisis soube ser um teimoso ato de fé na palavra solidária e criativa, aquela que não é nem finge ser neutra, a voz humana que não é eco nem soa só por soar. 

Por causa desse delito, pelo imperdoável delito de Crísis, a ditadura militar argentina sequestrou Fico, e o encarcerou e torturou; e ele salvara a vida por um fio, graças ao fato de ter conseguido gritar o próprio nome enquanto era sequestrado. 

A revista havia caído sem se curvar, e nós estávamos orgulhosos dela. Fico tinha uma garrafa de sei lá qual vinho francês antigo e bem-amado. Com aquele vinho brindamos, em Londres, à saúde do passado, que continuava sendo um companheiro digno de confiança. 

Depois, alguns anos depois, acabou-se a ditadura militar. E em 1985, Fico decidiu que Crísis devia ressuscitar. E estava cuidando disso, outra vez disposto a queimar tempo e dinheiro, quando ficou sabendo que tinha um câncer. 

Consultou vários médicos, em vários países. Uns lhe davam vida até outubro, outros até novembro. De novembro não passa, sentenciavam todos. Ele estava cadavérico, tremendo de operação a operação; mas um brilho de desafio acendia seus olhos. 

Crísis reapareceu em abril de 86. E no dia seguinte ao renascimento de Crísis, meio ano depois de todos os prognósticos, Fico deixou-se morrer.




Outro músculo secreto

Nos últimos anos, a Avó estava se dando muito mal com o próprio corpo. Seu corpo, corpo de aranhinha cansada, negava-se a segui-la. — Ainda bem que a mente viaja sem passagem — dizia. Eu estava longe, no exílio. Em Montevidéu, a Avó sentiu que tinha chegado a hora de morrer. Antes de morrer, quis visitar a minha casa com corpo e tudo. 

Chegou de avião, acompanhada pela minha tia Emma. Viajou entre as nuvens, entre as ondas, convencida de que estava indo de barco; e quando o avião atravessou uma tempestade, achou que estava numa carruagem, aos pulos, sobre a estrada de pedras. 

Ficou em casa um mês. Comia mingaus de bebê e roubava caramelos. No meio da noite despertava e queria jogar xadrez ou brigava com meu avô, que tinha morrido há quarenta anos. Às vezes tentava alguma fuga até a praia, mas suas pernas se enroscavam antes que ela chegasse na escada. 

No final, disse: 

Agora, já posso morrer. 

Disse que não ia morrer na Espanha. Queria evitar que eu tivesse a trabalheira burocrática, o transporte do corpo, aquilo tudo: disse que sabia muito bem que eu odiava a burocracia. 

E regressou a Montevidéu. Visitou a família toda, casa por casa, parente por parente, para que todos vissem que tinha regressado muito bem e que a viagem não tinha culpa. E então, uma semana depois de ter chegado, deitou-se e morreu. 

Os filhos jogaram as suas cinzas debaixo da árvore que ela tinha escolhido. 

Às vezes, a Avó vem me ver nos sonhos. Eu caminho na beira de um rio e ela é um peixe que me acompanha deslizando suave, suave, pelas águas.




A festa

Estava suave o sol, o ar limpo e o céu sem nuvens. Afundado na areia, um caldeirão de barro fumegava. No caminho entre o mar e a boca, os camarões passavam pelas mãos de Zé Fernando, mestre de cerimônias, que os banhava em água-benta de sal e cebolas e alho.

Havia bom vinho. Sentados em roda, amigos compartilhávamos o vinho e os camarões e o mar que se abria, livre e luminoso, aos nossos pés. 

Enquanto acontecia, essa alegria estava já sendo recordada pela memória e sonhada pelo sonho. Ela não terminaria nunca, e nós tampouco, porque somos todos mortais até o primeiro beijo e o segundo copo, e qualquer um sabe disso, por menos que saiba. 




As impressões digitais

Eu nasci e cresci debaixo das estrelas do Cruzeiro do Sul. Aonde quer que eu vá, elas me perseguem. Debaixo do Cruzeiro do Sul, cruz de fulgores, vou vivendo as estações de meu destino. 

Não tenho nenhum deus. Se tivesse, pediria a ele que não me deixe chegar à morte: ainda não. Falta muito o que andar. Existem luas para as quais ainda não lati e sóis nos quais ainda não me incendiei. Ainda não mergulhei em todos os mares deste mundo, que dizem que são sete, nem em todos os rios do Paraíso, que dizem que são quatro. 

Em Montevidéu, existe um menino que explica: — Eu não quero morrer nunca, porque quero brincar sempre.





O ar e o vento

Pelos caminhos vou, como o burrinho de São Fernando, um pouquinho a pé e outro pouquinho andando. Às vezes me reconheço nos demais. Me reconheço nos que ficarão, nos amigos abrigos, loucos lindos de justiça e bichos voadores da beleza e demais vadios e mal cuidados que andam por aí e que por aí continuarão, como continuarão as estrelas da noite e as ondas do mar. Então, quando me reconheço neles, eu sou ar aprendendo a saber-me continuado no vento. 

Acho que foi Vallejo, César Vallejo, que disse que às vezes o vento muda de ar. 

Quando eu já não estiver, o vento estará, continuará estando.





A ventania

Assovia o vento dentro de mim. Estou despido. Dono de nada, dono de ninguém, nem mesmo dono de minhas certezas, sou minha cara contra o vento, a contra-vento, e sou o vento que bate em minha cara.







(“orelhas” do livro)
 
A BELEZA E A EMOÇÃO DOS "PEQUENOS MOMENTOS"



Tratar a memória como coisa viva, bicho inquieto: assim faz Eduardo Galeano quando escreve. Sua memória pessoal e a nossa memória coletiva, da América. Quando escreve, ele mostra que a história pode - e deve - ser contada a partir de pequenos momentos, aqueles que sacodem a alma da gente sem a grandiloqüência dos heroísmos de gelo, mas com a grandeza da vida. Assim é este O livro dos abraços. Em suas andanças incessantes de caçador de histórias, Galeano vai ouvindo tudo. O que de melhor ouviu ele transforma em livros como este, onde lembra como são grandes os pequenos momentos e como eles vão se abraçando, traçando a vida. A memória viva, diz Galeano, nasce a cada dia. Ele diz e demonstra em livros como As veias abertas da América Latina, Dias e noites de amor e guerra, Os nascimentos, As caras e as máscaras, O século do tempo e, agora, neste O livros dos abraços. Nada que possa ser dito numa apresentação é capaz de chegar perto da beleza e da emoção que estas páginas contêm. Abra este livro com cuidado:,ele é delicado e afiado como a própria vida. Pode afagar, pode cortar. Mas seja como for, como a própria vida, vale a pena.





Os editores


Eduardo Galeano nasceu em Montevidéu, Uruguai, em 1940. Em sua cidade natal foi chefe do semanário Marcha e diretor do jornal Época. Em Buenos Aires, Argentina, fundou e dirigiu a revista Crisis. Esteve exilado na Argentina e Espanha desde 1973; no início de 1985 regressou ao Uruguai. Desde então reside em Montevidéu. E autor de vários livros, traduzidos em mais de vinte línguas, e de uma profusa obra jornalística. Recebeu o prêmio Casa das Américas em 1975 e 1978 e o prêmio Aloa dos editores dinamarqueses em 1993. A trilogia Memória do Fogo foi premiada pelo Ministério da Cultura do Uruguai e recebeu o American Book Award (Washington University, USA) em 1989. Em abril de 1999, foi distinguido com o Prêmio a Liberdade da Cultura, outorgado, em sua edição inaugural, pela Fundação Lannan, dos Estados Unidos.

Esta obra foi digitalizada pelo grupo Digital Source para proporcionar, de maneira totalmente gratuita, o benefício de sua leitura ...


http://groups.google.com.br/group/digitalsource

http://groups.google.com/group/Viciados_em_Livros



Fim



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Titulo original: El libro de los abrazos Primeira edição em junho 1991. Tradução: Eric Nepomuceno Revisão: Ana Teresa Cirne Lima, Ester Mambrini e Valmir R. Cassol Produção: Jó Saldanha e Lúcia Bohrer ISBN: 85.254.0306-0 G151L Galeano, Eduardo O livro dos abraços / Eduardo Galeano; tradução de Eric Nepomuceno. - 9. ed. - Porto Alegre: L&PM, 2002. 270p.:il.;21cm 1. Ficção uruguaia. I.Título. CDD U863 CDU 860(895)-3 Catalogação elaborada por Izabel A. Merlo, CRB 10/329. Texto e projeto gráfico de Eduardo Galeano © Eduardo Galeano, 1989


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37. O Livro dos Abraços - Fuga - Eduardo Galeano

38. O Livro dos Abraços - Profissão de fé - Eduardo Galeano

39. O Livro dos Abraços - Crônica da cidade de Manágua - Eduardo Galeano

1.O Livro dos Abraços - O mundo - Eduardo Galeano




sexta-feira, 22 de dezembro de 2017

Todavía Cantamos

Mercedes Sosa



todavía cantamos,
todavía pedimos,
todavía sonãmos,
todavía esperamos...














Víctor Heredia
En vivo en Argentina 
- Silvio Rodríguez y Pablo Milanés - 1984








quarta-feira, 20 de dezembro de 2017

histórias de avoinha: a terra negra de ossadas brancas

mulheres descalças


a terra negra de ossadas brancas 
Ensaio 112B – 2ª edição 1ª reimpressão


baitasar




a vozearia qui se cruzava num parava a villa, nada parava a villa enquanto os dono de tudo num dá a ordem pra pará. a villa tava do seu jeito mais agitado e com seu medo mais alvoroçado, num estancava o desacerto, nem fazia sumí o medo, era mais fácil apagá o sol ou pará a chuva

o abicu junto da liberata perdeu das própria vista o pretu escorrendo da vida de escravizado. oiô na direção dieu cobiçando socorro. eu num tinha salvamento pra dá. os abicu num socorre como é de se pensá, nóis gosta de contá e guiá os passo qui qué se guiado. lembrei ele pra cuidá de oiá daonde vem os grito, Agarra o negro! Não larga! Negro sem-vergonha! Vamos fazer justiça! Vagabundo! Inútil! Bandido! Enforca! Justiça!

os cão da rua, o rabo de tatu, as bengala, as meia de seda, os grito, o gênio civilizadô, a cruiz, o medo, tudo no alcance do uso era usado como arma. os latido e os badalo do sino anunciava salvação da villa e o recoimento do pretu

oiei prus quatro qui num parava as conversa e os entendimento do meió pra villa, mais tumbém num deixava de oiá pru rumo da vozearia

Precisamos de mais armas para os cidadãos do bem.

Isso, Maneco.

essa conversa das arma e da escravidão é assunto qui junta as vontade numa só vontade, num tem trégua nem sossego, nem liberdade, nem paciência, só o cativêro du pretu podia acalmá aquele desacerto

Concordo, está bem... mas os três precisam entender que a nossa riqueza...

A nossa riqueza e o nosso jeito de viver não estão em discussão, Juca!

Mas a cada dia dependemos de mais soldados revestidos de couraça e com a ideia fixa de tomar pé na terra ou morrer pelo imperador. Isso tudo tem um custo muito grande!

E adivinhem quem paga essa conta?

Tudo em nome da nossa raça civilizada.

É isso ou perder o que já conquistamos!

Para quem?

os quatro fez silêncio, parecia tê medo da resposta

Para o demônio e a negrada!

A negrada?

Deus do céu!

os quatro fez o siná da cruiz na testa, na queixada e no peito, resmungando dum jeito qui só deus branco pra entendê

Seriam noites de terror, luto, dores e desespero. Uma história de negros no comando da Villa e seríamos tristes e infelizes para sempre.

Meu Deus! Livrai-nos!

A negrada é terrivelmente contrária à vida humana, iriam nos massacrar como feras. Acabariam as artes e as ciências na Villa. Eles são a parte do mundo com devoção e fé em deuses irados e malditos.

Meus Deus... que desalento!

Estão condenados à cegueira! Blasfemam numa língua que não é língua! São feras famintas por carne humana!

Atormentariam a Villa de luto com seus ídolos de terror e medo.

Meu Deus! Não permitais!

Ídolos de barro, madeira, marfim, ídolos da floresta virgem, espantalhos do demônio. Nossa amada e valorosa Villa se tornaria um cemitério de condenados e infelizes, túmulo para todos os miseráveis!

Meu Deus! Salvai-nos!

tava criada a imagem das treva, um lugá da terra feito tristeza vestida de preto com feitiço pru mal

Tudo tem um custo...

Perfeito, senhor Juca, o viajadô sabia agradá com as palavra e convencê as palavra, sabia anunciá o medo e a valentia, e se necessário for iremos cobrir a terra negra de ossadas brancas. Essa é uma luta do homem civilizador contra o bárbaro africano. Ao nosso lado o poder divino a nos defender das tribos infelizes e deformadas.

o sol iluminava os quatro em cheio, eles parecia sê amarelo com tanta luz, nem branco ou pretu... amarelo. mais uqui destacava era a sombra qui eles abria na sua volta. tem gente qui é assim, num consegue sê maió qui suas própria sombra, otros nem sombra consegue tê. nesse mundo tem gente pra todo gosto, mais o meu desgosto é vê gente qui é só sombra

Se o amigo Domingos Jorge me permite dizer... vosmecê é um herói!

Concordo, Maneco. O homem se parece com o nosso caramuru.

é curioso, é triste, é doloroso vê a maldade tê elogio, encontrá espaço livre e desocupado pra sê um rio de crueldade qui guia pra escuridão

Agradeço a distinção, mas os cavalheiros precisam entender que estamos em meio uma guerra civilizatória. E precisamos sobreviver em terras inóspitas, animais ferozes e ao negro, pavorosamente negro! É preciso pensar no seu aniquilamento!

os trêis se oiô assustado com a força daquelas palavra, tudo ficô em silêncio, inté a vozearia ficô longe, quase um murmúrio. e o juca, de novo, foi quem desmanchô o susto, Mas onde iremos buscar escravos?

Bem pensado, Juca. Com o desaparecimento dos negros quem irá trabalhar? Eu sei que eles não têm capricho, mas sem a negrada vamos todos afundar.

o caramuru das sombra tava com a resposta na boca, parecia qui já tinha tudo medido

Uma negra forte pode parir uma vez por ano. Imagine uma fazenda com negras reprodutoras, um ou dois negros muito bem escolhidos fazendo a cobertura. Aposto que eles gostariam da incumbência. E aposto mais, não teríamos mais os negros fujões. A ideia não é matar, mas criar os bicho como bicho. Um que outro até pode virar da vossa estimação.

Mas toda criação demora para crescer e dar frutos...

as resposta já tava pronta, desde muntu tempo elas tava pensada esperando a purugunta certa, E quem disse que precisamos esperar a molecada crescer? O gosto pelo trabalho começa cedo. É de pequeno que se entorta o pepino.

a gurizada gritava tê visto tudo, O negro fugitivo foi agarrado, lá pelos lado das terras alagadas, tumbém era dito qui ele foi avistado tentando forçá a entrada em casa de família, otras notícia dava conta qui o pretu foi arrancado justo quando se preparava pra agarrá uma pobre moça, mais teve quem jurava qui viu ele miseriando com jeito disfarçado de mendigo

o abicu da liberata qui se perdeu com as vista, agora se guiava pela gritaria, Negrinho atrevido! Deixa eu cuspir no negro!

as mãe num conseguia segurá os fiu em casa. os piá queria tá na caçada com a tropa do moringue. um comboio de gente qui só obedecia uma ordem dada aos grito, Agarrem o fugitivo! Não soltem!

um chamava otro pra cercá, acuá, cuspí, jogá terra. na villa do ódio tudo é ensinado desde piquininino. assim, os muriquinhu branquinho aprende desgostá da vida pra gostá da morte. cresce creditando qui matá vai fazê eles vivê meió, a vida qui importa é só a vida deles: a truculência e o vulcão das vaidade qui aprendeu carregá no peito já muriquinhu. eles cresce gostando da vida com maldade, egoísmo e preguiça

Pegaram! Pegaram!

os quatro qui conversava num chorava, nehum tinha um ôio pra tanta frescura, era pedí muntu prus ôio deles. eles sorria e se oiava, mais com calma. afinal, sê fidalgo, mesmo num sendo mais qui comerciante, é sonho de todo vilêro. e pra sê oiado como fidalgo, veja bem, só pra sê oiado, é preciso aparentá gentileza, dignidade, fingí atenção, simulá educação, a única coisa qui num precisa fazê de conta é tê vontade pru trabáio, isso a fidalguia num tem, mais eles gosta muntu de fazê os villêro trabaiá pra eles. a vida qui os fidalgo tem e num vai deixá de querê tê precisa do trabáio dos escravizado inté a morte

No trapiche!!!

as duas muié preta se oiava, cada uma tinha um ôio qui chorava, elas tava decidida qui chorava com um ôio e num chorava com o otro ôio. é preciso vivê e querê oiá otro feitio de vivê pra num chorá. é preciso achá otra vida, só chorá num vai ajudá fazê essa otra vida vivê

Onde, abicu?!

os pé dos villêro chacoaiava o tabulêro, elas num conseguia rezá nem chamá cavalaria, num conseguia creditá nas coisa acontecida

mais pra cima, os quatro oiava a paisagem truncada dos grito, das correria, das reza, tudo eles oiava com riso nas boca, desses rido qui só espera o despecho pra virá risada, um riso qui ainda num tá pronto

Perguntem ao criolo fujão...

os trêis villêro se voltô pru viajadô das terra dumbigo, mais foi o juca qui levantô a voz do chão

Perguntar o quê, senhor Domingos?

o fidalgo das matança desviô as vista da perseguição, oiô os trêis, um a um, qui no seu modo de vê, é gente boa qui a villa precisa dá relevância e preço, tudo tem preço, Meus amigos, a Villa precisa dos três para ser ainda melhor; e vocês três também precisam da Villa, tenham calma. Ela lhes promete honras e riquezas, mas cuidado com o preço crescente do negro, e acima de tudo, não perdoem as fugas!

Qual é a pergunta, senhor Domingos Jorge?

ele respondeu misturando sorriso, divertimento, deboche com as palavra

Perguntem ao criolo fujão se ele quer morrer tranquilamente escravizado ou em algum tumbeiro cheio de negros afundando...




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professor de ofício

Mercedes Sosa






Mi oficio de profesor es el oficio
De los que tienen guitarras en el alma
Yo tengo mi taller en las entrañas
Y mi única herramienta es la garganta.

Aquí canta un profesor,
que muy mucho ha caminado
y ahora debería vivir tranquilo,
en el Cerro colorado

Trabajando
Trabajando duramente, trabajando sí
Trabajando e va de luto, trabajando sí
Trabajando e no le pagan, trabajando sí
Trabajando e va tosiendo, trabajando sí

Tendrán que parar la lluvia,
tendrán que apagar el sol,
tendrán que matar el canto


tendrán que matar el viento
que dice lucha y amor

Profesor de oficio con 
guitarras en el alma
libranos de aquel que nos domina en la miseria
traenos tu reino de justicia e igualdad
.











Cantor de Oficio


Mi oficio de cantor es el oficio
De los que tienen guitarras en el alma
Yo tengo mi taller en las entrañas
Y mi única herramienta es la garganta.

Mi oficio de cantor es el mas lindo
Yo puedo hacer jardín de los desiertos
Y puedo revivir algo ya muerto
Con solo entonar una canción.

Yo canto siempre a mi pueblo
Porque del pueblo es mi voz
Si pertenezco yo al pueblo
Tan sólo del pueblo será mi canción.

Nadie debe creer que el cantor
Pertenece a un mundo extraño
Donde todo es escenario y fantasía
El cantor es un hombre más que anda
Transitando las calles y los días
Sufriendo el sufrimiento de su pueblo
Y latiendo también con su alegría.

Mi oficio de cantor es tan hermoso
Que puedo hacer amar a los que odian
Y puedo abrir las flores en otoño
Con solo entonar una canción.


Composição: Miguel Ángel Morelli





Chacarera de las piedras





Héctor Roberto Chavero, artísticamente Atahualpa Yupanqui, tuvo a su lado una mujer extraordinaria, Antonieta Paula Pepín Fitzpatrick, que escribió la música de más de cuarenta canciones, firmadas con el seudónimo de Pablo del Cerro. Pero, esta chacarera desgraciadamente no fue profética y el caminante que vivía tranquilo en el Cerro Colorado tuvo que abandonar el tranquilo e idílico refugio cordobés y emigrar a Europa como refugiado político. Tras su muerte en Nimes (Francia) el 23 de Mayo de 1992, sus restos fueron trasladados al lugar que tanto amaba el poeta y donde hoy descansa.

En su casa principal en el Cerro Colorado hoy se conservan los recuerdos del cantor, sus fotos (una dedicada por el propio Che Guevara), sus pergaminos con su propia escritura y premios de toda clase. Dos guitarras descansan en un sillón del salón y la habitación en que dormía permanece igual que en otros tiempos. Lo único que ha cambiado es la cocina, que ahora es una biblioteca con más de tres mil volúmenes.

Mercedes Sosa la interpretó en directo el año 1980 en un recital que tuvo lugar en Lugano, Suiza. Le acompaña a la guitarra Nicolás Brizuela.




CHACARERA DE LAS PIEDRAS


Letra: Paula Pepín
Música: Atahualpa Yupanqui

Aquí canta un caminante, 

que muy mucho ha caminado 
y ahora vive tranquilo, 
en el Cerro colorado

Largo mis coplas al viento, 
por donde quiera que voy. 
Soy árbol lleno de frutos, 
como plantita 'e mistol

Cuando ensillo mi caballo, 
me largo por las arenas 
y en la mitad del camino, 
ya me he olvidado de las penas

Caminiaga, Santa Elena, 
El Churqui, Rayo Cortado: 
no hay pago como mi pago. 
¡Viva el Cerro Colorado!

A la sombra de unos talas 
yo he sentido, de un repente, 
a una moza que decía: 
"-sosiegue que viene gente".

Te voy a dar un remedio, 
que es muy bueno pa' las penas: 
grasita de iguana macho, 
mezcla'ita con yerba buena

Chacarera de las piedras, 
criollita como ninguna: 
no te metas en los montes, 
si no ha salido la luna

Caminiaga, Santa Elena, 
El Churqui, Rayo Cortado: 
no hay pago como mi pago. 
¡Viva el Cerro Colorado!




Vocabulario:

Cerro colorado: localidad cordobesa donde Yupanqui estableció su hogar y descansan sus restos

Largar: (americ) arrojar; tirar con fuerza

Mistol: (quechua) variedad de árbol espinoso, que da unos frutos rojos

Caminiaga, Santa Elena: localidades cordobesas cercanas al Cerro Colorado

El Churqui, Rayo Cortado: localidades cordobesas cercanas al Cerro Colorado

Churqui: (americ) arbusto oxalidáceo, que es una especie de acacia de hasta unos 50 cm. de altura

Tala: (quechua) árbol urticáceo de gran altura, madera fuerte y flores de color verde amarillento

Iguana: reptil saurio provisto de gran papada y una cresta espinosa a lo largo del dorso

Criollo: autóctono; se contrapone a indio y a foráneo.





Duerme negrito





Duerme Negrito

Duerme, duerme, negrito
Que tu mama está en el campo negrito
Duerme, duerme, mobila
Que tu mama está en el campo, mobila

Te va traer codornices
Para ti
Te va a traer rica fruta
Para ti
Te va a traer carne de cerdo
Para ti
Te va a traer muchas cosas
Para ti

Y si el negro no se duerme
Viene el diablo blanco
Y Zas! le come la patita
Chacapumba, chacapumba, apumba, chacapumba
Duerme, duerme, negrito
Que tu mama está en el campo, Negrito

Trabajando
Trabajando duramente, trabajando sí
Trabajando e va de luto, trabajando sí
Trabajando e no le pagan, trabajando sí
Trabajando e va tosiendo, trabajando sí

Para el negrito chiquitito
Para el negrito si
Trabajando sí, trabajando sí
Duerme, duerme, negrito
Que tu mama está en el campo
Negrito, negrito, negrito


Composição: Atahualpa Yupanqui




A Victor





A Víctor

No puede borrarse el canto
con sangre del buen cantor
después que ha silbado el aire
los tonos de su canción.

Los pájaros llevan notas
a casa del trovador;
tendrán que matar el viento
que dice lucha y amor.

Tendrán que callar el río,
tendrán que secar el mar
que inspiran y dan al hombre
motivos para cantar.

No puede borrarse el canto
con sangre del buen cantor,
tendrán que matar el viento
que dice lucha y amor.

Tendrán que callar el río,
tendrán que secar el mar
que inspiran y dan al hombre
motivos para cantar.

Tendrán que parar la lluvia,
tendrán que apagar el sol,
tendrán que matar el canto
para que olviden tu voz.



Composição: Otilio Galíndez / Roberto Todd





Plegaria A Un Labrador




Plegaria A Un Labrador



Levántate y mira la montaña
de donde viene el viento, el sol y el agua,
tú que manejas el curso de los ríos
tú que sembraste el vuelo de tu alma.

Levántate y mírate las manos
para crecer estréchala a tu hermano,
juntos iremos unidos en la sangre
hoy es el tiempo que puede ser mañana.

Libranos de aquel que nos domina en la miseria
traenos tu reino de justicia e igualdad.

Sopla como el viento la flor de la quebrada
limpia como el fuego el cañón de tu fusil,
hágase por fin tu libertad aquí en la tierra
danos tu fuerza y tu valor al combatir,
Sopla como el viento la flor de la quebrada
limpia como el fuego el cañón de tu fusil.

Levántate y mírate las manos
para crecer estréchala a tu hermano,
juntos iremos unidos en la sangre
ahora y en la hora de nuestra muerte amén
a - a - mén, a - a - mén.


Composição: Victor Jara






Canción Con Todos




Canción Con Todos


Salgo a caminar
Por la cintura cósmica del sur
Piso en la región
Más vegetal del viento y de la luz
Siento al caminar
Toda la piel de América en mi piel
Y anda en mi sangre un río
Que libera en mi voz
Su caudal

Sol de alto Perú
Rostro Bolivia, estaño y soledad
Un verde Brasil besa a mi Chile
Cobre y mineral
Subo desde el sur
Hacia la entraña América y total
Pura raíz de un grito
Destinado a crecer
Y a estallar

Todas las voces, todas
Todas las manos, todas
Toda la sangre puede
Ser canción en el viento

¡Canta conmigo, canta
Latinomericano
Libera tu esperanza
Con un grito en la voz!

Todas las voces todas
Todas las manos todas
Toda la sangre puede, ser canción en el viento
Canta con migo canta, hermano americano
Libera tu esperanza con un grito en la voz

Composição: Armando Tejada Gomez




Somos Cinco Mil - Víctor Jara





Poema Escrito por Víctor Jara poco antes de ser asesinado por Oficiales en el Estadio Chile en 1973



Somos cinco mil
Ángel Parra



(Fragmento del poema de Víctor Jara "Estadio Chile")


Somos cinco mil aquí
en esta pequeña parte la ciudad.
Somos cinco mil.
¿Cuántos somos en total
en las ciudades y en todo el país?
Sólo aquí,
diez mil manos que siembran
y hacen andar las fábricas.
Cuánta humanidad
con hambre, frío, pánico, dolor,
presión moral, terror y locura.

Seis de los nuestros se perdieron
en el espacio de las estrellas.
Uno muerto, un golpeado como jamás creí
se podría golpear a un ser humano.
Los otros cuatro quisieron quitarse
todos los temores,
uno saltando al vacío,
otro golpeándose la cabeza contra un muro
pero todos con la mirada fija en la muerte.
¡Qué espanto produce el rostro del fascismo!
Llevan a cabo sus planes con precisión artera
sin importarles nada.
La sangre para ellos son medallas.
La matanza es un acto de heroísmo.
¿Es este el mundo que creaste, Dios mío?
¿Para esto tus siete días de asombro y de trabajo?
En estas cuatro murallas sólo existe un número
que no progresa.
Que lentamente querrá más la muerte.

Pero de pronto me golpea la consciencia
y veo esta marea sin latido
y veo el pulso de las máquinas
y los militares mostrando su rostro de matrona
llena de dulzura.
¿Y México, Cuba y el mundo?
¡Qué griten esta ignominia!
Somos diez mil manos
menos que no producen.
¿Cuántos somos en toda la patria?
La sangre del compañero Presidente
golpea más fuerte que bombas y metrallas.
Así golpeará nuestro puño nuevamente
.


Composição: Angel Parra / Victor Jara





Miguel Angel Morelli: "Cantor de Oficio"





segunda-feira, 18 de dezembro de 2017

Júlio Verne: Viagem ao Centro da Terra / XXX

Júlio Verne



Viagem ao Centro da Terra/XXX





A princípio, nada vi. Meus olhos, desacostumados com a luz, fecharam-se bruscamente. Quando consegui reabri-los, fiquei mais estupefato do que maravilhado. 

- O mar! - gritei.

- Sim - respondeu meu tio -, o mar Lidenbrock, e agrada-me acreditar que não disputarei com nenhum navegador a honra de tê-lo descoberto e o direito de dar- lhe meu nome.

Um vasto lençol de água, o começo de um lago ou de um oceano, estendia-se para além dos limites da visão. Amplamente chanfradas, as margens ofereciam às últimas ondulações das ondas, uma areia fina, dourada, semeada de conchinhas, em que viveram os primeiros seres da Criação. As ondas quebravam-se com aquele murmúrio sonoro típico dos meios fechados e imensos. Uma leve espuma esvoaçava com o sopro de um vento moderado, e alguns respingos alcançavam-me o rosto. Naquela praia levemente inclinada, a mais ou menos cem toesas dos limites das ondas, vinham morrer os contrafortes de enormes rochedos, que se erguiam abrindo-se a uma altura incomensurável. Alguns, rasgando a margem com sua aresta aguda, formavam cabos e promontórios roídos pela ressaca. Mais além, sua massa formava um perfil claramente desenhado sobre o fundo nebuloso do horizonte.

Era um verdadeiro oceano, com o contorno caprichoso das costas terrestres, mas deserto e de aspecto terrivelmente selvagem. Se meus olhos podiam acompanhar aquele vasto mar até bem longe, era porque uma luz "especial" iluminava seus menores detalhes. Não a luz do sol com seus feixes resplandecentes e a esplêndida irradiação de seus raios, nem o clarão pálido e vago do astro das noites, que não passa de um reflexo sem calor. Não. O poder de iluminação dessa luz, sua difusão bruxuleante, sua brancura clara e seca, sua temperatura pouco elevada, seu brilho, na realidade superior ao da lua, acusavam com clareza uma origem elétrica. Aquela caverna capaz de conter um oceano era preenchida como por uma aurora boreal ou um fenômeno cósmico contínuo.

A abóbada suspensa acima de minha cabeça, o céu, de certa forma, parecia constituído de grandes nuvens, vapores móveis e cambiantes, que, sob o efeito da condensação, deviam, em certos dias, resolver-se em chuvas torrenciais. Eu tenderia a acreditar que sob tão forte pressão da atmosfera a evaporação da água era impraticável, e, no entanto, por um motivo físico que não sabia explicar havia grandes aglomerações de nuvens no ar. Naquele momento, "o tempo estava bom". As camadas elétricas produziam surpreendentes jogos de luz em nuvens muito altas. Sombras vivas desenhavam-se em suas volutas inferiores, e, com frequência, um raio esgueirava-se até nós com uma intensidade notável entre duas camadas separadas. Porém, em suma, não era o sol, pois não havia calor junto à luz. O efeito era triste, soberanamente melancólico. Em vez de um firmamento resplandecente de estrelas, sentia sobre aquelas nuvens uma abóbada de granito que me esmagava com todo o seu peso, e aquele espaço não bastaria, por mais imenso que fosse, ao passeio do satélite menos ambicioso. Lembrei-me então da teoria de um capitão inglês que assimilava a Terra a uma ampla esfera oca, no interior da qual o ar se mantinha luminoso em decorrência de sua pressão, enquanto dois astros, Plutão e Proserpina, nele traçavam suas órbitas misteriosas. Teria razão?

Estávamos realmente aprisionados numa enorme escavação. Não era possível avaliar sua largura, já que as margens abriam-se a perder de vista, nem seu comprimento, pois o olhar era logo detido por uma linha de horizonte um tanto indecisa. Quanto à sua altura, podia ultrapassar muitas léguas. Não dava para ver onde aquela abóbada se apoiava nos contrafortes de granito; mas havia um grande aglomerado de nuvens suspenso na atmosfera, cuja elevação podia ser estimada em duas mil toesas, altitude superior à dos vapores terrestres, sem dúvida devido à densidade considerável do ar. É claro que o termo "caverna" não descreve exatamente aquele ambiente imenso. Nenhuma palavra da língua humana é suficiente para quem se aventura nos abismos do globo.

Além disso, não sabia por qual fato geológico explicar a existência de tal escavação. Será que fora produzida pelo resfriamento do globo? Conhecia bem algumas cavernas célebres por relatos de viajantes, mas nenhuma apresentava tais dimensões.

Se a gruta de Guachara, na Colômbia, visitada por Humboldt, não revelara o segredo de sua profundidade ao sábio, que a percorreu por uma extensão de dois mil e quinhentos pés, é provável que ela não se prolongasse muito mais que isso.

A imensa caverna de Mammouth, no Kentucky, tinha realmente proporções gigantescas, pois sua abóbada erguia-se quinhentos pés acima de um lago insondável, e muitos viajantes percorreram-na por mais de dez léguas sem chegar a seus limites. Mas o que eram aquelas cavidades perto da que eu admirava então, com seu céu de vapores, suas irradiações elétricas e um vasto mar encerrado em seus flancos? Minha imaginação sentia-se impotente diante daquela imensidão. Contemplava em silêncio todas aquelas maravilhas. Faltavam-me palavras para transmitir minhas sensações. Acreditava estar assistindo em algum planeta longínquo, Urano ou Netuno, a fenômenos dos quais minha natureza terrestre não tinha consciência. Seriam necessárias palavras novas para novas sensações, mas minha imaginação não era capaz de fornecê-las. Olhava, pensava, admirava com um estupor misturado a uma certa dose de medo.

O imprevisto daquele espetáculo fizera com que as cores da saúde voltassem a meu rosto; estava sendo submetido a um tratamento de surpresa e curado por uma nova terapêutica. Além disso, a vivacidade de um ar muito denso reanimava me, fornecendo mais oxigênio a meus pulmões.

Não é difícil imaginar que, após um aprisionamento de quarenta e sete dias numa galeria estreita, era um prazer imenso aspirar aquela brisa carregada de úmidas emanações salinas.

Não tinha por que me arrepender de ter abandonado minha gruta obscura. Meu tio, já acostumado àquelas maravilhas, não se surpreendia mais.

- Você sente que tem forças para passear um pouco? - perguntou-me.

- Claro, nada mais agradável - respondi.

- Então pegue no meu braço e sigamos as sinuosidades da costa, Axel.

Aceitei com presteza e começamos a caminhar pelas margens daquele novo oceano. À esquerda, rochedos abruptos, uns sobre os outros, formavam um amontoado titanesco de efeito prodigioso. De seus flancos desciam inúmeras cascatas que formavam lençóis límpidos e retumbantes.

Saltando de uma rocha para outra, alguns vapores leves assinalavam o local de fontes quentes, e riachos corriam suavemente em direção à bacia comum, procurando, nas vertentes, a ocasião de murmurar de forma mais agradável. Dentre os riachos, reconheci nosso fiel companheiro de viagem, Hans Bach, que acabara de se perder tranquilamente no mar, como se nunca tivesse feito outra coisa desde o começo do mundo.

- Sentiremos saudades dele! - suspirei.

- Bah! - respondeu o professor. - Tanto faz ele como outro!

Achei sua réplica um tanto ingrata. Naquele momento, contudo, um espetáculo inesperado chamou minha atenção. A quinhentos passos, num meandro de um promontório elevado, apareceu uma floresta alta, cerrada e densa.

Era formada por árvores de tamanho médio, semelhantes a guarda-sóis regulares, contornos claros e geométricos; as correntes atmosféricas pareciam não provocar qualquer efeito em sua folhagem, que, em meio aos sopros, permanecia imóvel como um maciço de cedros petrificados. Apressei o passo, não conseguia encontrar um nome para aquelas essências singulares. Não se situavam entre as duzentas mil espécies vegetais conhecidas até então. Seria preciso atribuir-lhes um lugar especial na flora das vegetações lacustres? Não. Quando chegamos à sua sombra, minha surpresa não foi maior do que minha admiração. Estava diante de produtos da terra, mas de tamanho gigantesco. Meu tio logo chamou-os pelo seu nome.

- Não passa de uma floresta de cogumelos - disse.

Estava certo. Imaginem o desenvolvimento dessas plantas típicas de ambientes quentes e úmidos. Sabia que o Lycoperdon giganteum atinge, segundo Bulliard, oitocentos a novecentos pés de circunferência; aqui, porém, tratava-se de cogumelos brancos de trinta a quarenta pés de altura, com uma cúpula de diâmetro igual. Havia milhares deles. A luz não conseguia varar sua sombra espessa, e a mais completa escuridão reinava sob aqueles domos justapostos como os tetos redondos de uma aldeia africana. Quis prosseguir. Um frio mortal descia daquelas abóbadas carnudas. Erramos por cerca de meia hora entre aquelas trevas úmidas, e foi com um verdadeiro sentimento de bem-estar que voltei à beira do mar.

A vegetação daquela região subterrânea não se limitava àqueles cogumelos. Mais adiante, erguiam-se em grupos um grande número de outras árvores de folhagem descolorida. Eram fáceis de reconhecer: não passavam de humildes arbustos da terra de dimensões fenomenais, licopódios de cem pés de altura, sigilariáceas gigantes, fetos arborescentes, altos como os pinheiros das grandes latitudes, lepidodendráceas com ramos cilíndricos bifurcados, arrematadas por folhas longas e eriçadas, de pelos ásperos, como monstruosas plantas de folhas espessas e carnudas.

- Surpreendente, magnífico, esplêndido! - exclamou meu tio. - Eis toda a flora do segundo período do mundo, a época da transição. Eis as humildes plantas de nossos jardins, que eram árvores nos primeiros séculos do mundo! Olhe, Axel, admire!

Nunca um botânico esteve diante de tamanha festa.

- O senhor tem razão, meu tio. A Providência parece ter tido vontade de conservar nesta estufa imensa as plantas antediluvianas, reconstruídas com tanta precisão pelos sábios.

- Você está certo, filho, é uma estufa; mas seria ainda melhor se acrescentasse que talvez se trate de um museu de plantas raras.

- Plantas raras!

- Com certeza. Veja essa poeira que pisamos, as ossadas espalhadas pelo chão.

- Ossadas! - exclamei. - Claro, ossadas de animais antediluvianos!

Precipitara-me para aqueles restos seculares feitos de uma substância mineral indestrutível. Denominei sem hesitar aqueles ossos gigantescos que pareciam troncos de árvore ressecados.

- Olhe o maxilar inferior do mastodonte - eu disse. - Os molares do dinotério, um fêmur que só pode ter pertencido ao maior de todos esses animais, o megatério. Ora, é exatamente um museu de peças raras, pois essas ossadas com certeza não foram transportadas até aqui por um cataclismo. Os animais aos quais pertencem viveram às margens deste mar subterrâneo, à sombra destas plantas arborescentes. Veja só, há esqueletos completos. E, no entanto...

- No entanto? - disse meu tio.

- Não entendo a presença desses quadrúpedes nesta caverna de granito. - Por quê?

- Porque a vida animal só começou a existir na Terra na era secundária, quando o terreno sedimentar foi formado pelos aluviões e substituiu as rochas incandescentes da era primária.

- É bem fácil esclarecer a sua dúvida, Axel, este terreno aqui é sedimentar.

- Como! A essa profundidade da superfície da terra!

- É possível explicar o fato geologicamente. Num determinado período, a Terra era formada apenas por uma crosta elástica, sujeita a movimentos alternados de cima para baixo em virtude das leis de atração. Provavelmente ocorreram desmoronamentos do solo, sendo que uma parte dos terrenos sedimentares foi arrastada para o fundo dos abismos que se abriram de repente.

- Deve ser isso mesmo. Mas, se essas regiões subterrâneas foram habitadas por animais antediluvianos, quem nos garante que um desses monstros não está errando ainda por estas florestas escuras ou atrás destas rochas escarpadas? Esquadrinhei, não sem temor, os vários pontos do horizonte; mas não havia qualquer ser vivo naquelas costas desertas.

Estava um pouco cansado. Fui sentar-me então na ponta de um promontório, sob o qual as ondas se quebravam ruidosamente. Dali, meus olhos abraçavam toda aquela baía formada por uma chanfradura da costa. Ao fundo, um portinho abrigado por duas rochas piramidais. Suas águas calmas dormiam, protegidas do vento. Receberiam com conforto um brique ou duas ou três escunas. Quase esperava avistar algum navio desfraldando suas velas e alcançando o largo sob a brisa do sul.

Mas aquela ilusão dissipou-se com rapidez. Éramos realmente as únicas criaturas vivas naquele mundo subterrâneo. Às vezes, quando o vento se acalmava, descia um silêncio mais profundo que o silêncio do deserto sobre as rochas áridas que pesavam na superfície do oceano. Tentava então varar as brumas distantes, rasgar a cortina do fundo misterioso do horizonte. Quais as perguntas que me subiam aos lábios? Onde terminava aquele mar?

Para onde levava? Será que um dia abordaríamos as margens opostas? Meu tio não tinha a menor dúvida a esse respeito. Eu desejava e ao mesmo tempo temia isso. Após uma hora de contemplação do maravilhoso espetáculo, tornamos ao caminho da praia para voltar à gruta. Adormeci profundamente sob o domínio dos pensamentos mais estranhos.





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Júlio Verne: Viagem ao Centro da Terra / XXVII

Júlio Verne: Viagem ao Centro da Terra / XXVIII

Júlio Verne: Viagem ao Centro da Terra / XXIX

Júlio Verne: Viagem ao Centro da Terra / XXXI





Cruz e Sousa - Poesias Completas: Outros Sonetos IX

Cruz e Sousa

Obra Completa
Volume 1
POESIA



O Livro Derradeiro
Primeiros Escritos

Cambiantes
Outros Sonetos Campesinas
Dispersas
Julieta dos Santos




OUTROS SONETOS 








SURDINAS
                Às raparigas tristes


Vais partir, vais partir que eu bem te vejo 
Na branca face os gélidos suores, 
Vais procurar as músicas melhores 
Do sol, da glória e do celeste beijo.

Dentro de ti as harpas do desejo 
Não vibram mais – embora que tu chores – 
Nem pelas tuas aflições maiores 
Se escuta um vago e enfraquecido arpejo...

Bem! vais partir, vais demandar esferas 
Amplas de luz, feitas de primaveras, 
Paisagens novas e amplidão florida...

Mas ao chegar-te a lágrima infinita, 
Lembra-te ainda, ó pálida bonita, 
De que houve alguém que te adorou na vida.




IRRADIAÇÕES 
               Às crianças


Qual da amplidão fantástica e serena 
À luz vermelha e rútila da aurora 
Cai, gota a gota, o orvalho que avigora 
A imaculada e cândida açucena.

Como na cruz, da triste Madalena 
Aos pés de Cristo, a lágrima sonora 
Caiu, rolou, qual bálsamo que irrora 
A negra mágoa, a indefinida pena...

Caia por vós, esplêndidas crianças, 
Bando feliz de castas esperanças, 
Sonhos da estrela no infinito imersas;

Caia por vós, às músicas formosas, 
Como um dilúvio matinal de rosas, 
Todo o luar benéfico dos versos!




AMBOS

Vão pela estrada, à margem dos caminhos 
Arenosos, compridos, salutares, 
Por onde, à noite, os límpidos luares 
Dão às verduras leves tons de arminhos.

Nuvens alegres como os alvos linhos 
Cortam a doce compridão dos ares, 
Dentre as canções e os tropos singulares 
Dos inefáveis, meigos passarinhos.

Do céu feliz na branda curvidade, 
A luz expande a inteira alacridade, 
O mais supremo e encantador afago.

E com o olhar vibrante de desejos 
Vão decifrando os trêmulos arpejos, 
E as reticências que produz o vago.




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Sousa, Cruz e, 1861-1898 Obra completa : poesia / João da Cruz e Sousa ; organização e estudo por Lauro Junkes. – Jaraguá do Sul : Avenida ; 2008. v. 1 (612 p.)

Edição comemorativa dos 110 anos de falecimento e do traslado dos restos mortais de Cruz e Sousa para Santa Catarina.


O diferencial mais arrojado desta organização reside na opção por buscar maior aproximação ao evoluir poético do instaurador do Simbolismo no Brasil. Seus poemas inéditos, na absoluta maioria anteriores à sua fase simbolista, foram aos poucos sendo recolhidos e publicados sob o título O Livro Derradeiro, que muitas vezes tem provocado interpretações errôneas. Se o livro foi o derradeiro na sua organização, os poemas não pertencem à última fase do poeta e não representam a madureza do pensamento e da arte poética do autor. Optamos, então, por colocar esse livro em primeiro lugar, antes da sua trilogia de livros simbolistas, que, estes sim, representam a arte madura do poeta.


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Leia também:

Cruz e Sousa - Poesias Completas: Outros Sonetos I

Cruz e Sousa - Poesias Completas: Outros Sonetos II

Cruz e Sousa - Poesias Completas: Outros Sonetos III

Cruz e Sousa - Poesias Completas: Outros Sonetos IV

Cruz e Sousa - Poesias Completas: Outros Sonetos V

Cruz e Sousa - Poesias Completas: Outros Sonetos VI

Cruz e Sousa - Poesias Completas: Outros Sonetos VII

Cruz e Sousa - Poesias Completas: Outros Sonetos VIII

Cruz e Sousa - Poesias Completas: Outros Sonetos X



sábado, 16 de dezembro de 2017

Dom Casmurro: O Velho Pádua


Machado de Assis

Dom Casmurro





CAPÍTULO LII
O Velho Pádua



Já agora conto também os adeuses do velho Pádua. Logo cedo veio à nossa casa. Minha mãe disse-lhe que fosse falar-me ao quarto. 

– Dá licença? perguntou metendo a cabeça pela porta. 

Fui apertar-lhe a mão; ele abraçou-me com ternura. 

– Seja feliz! disse-me. A mim e a toda a minha gente creia que ficam muitas saudades. Todos nós estimamos muito o senhor, como merece. Se lhe disserem outra coisa, não acredite. São intrigas. Também eu, quando me casei, fui vítima de intrigas; desfizeram-se. Deus é grande e descobre a verdade. Se algum dia perder sua mãe e seu tio, – coisa que eu, por esta luz que me alumia, não desejo, porque são boas pessoas, excelentes pessoas, e eu sou grato às finezas recebidas... Não, eu não sou como outros, certos parasitas, vindos de fora para desunião das famílias, aduladores baixos, não; eu sou de outra espécie; não vivo papando os jantares nem morando em casa alheia... Enfim, são os mais felizes! 

– Por que falará assim? pensei. Naturalmente sabe que José Dias diz mal dele. 

– Mas, como ia dizendo, se algum dia perder os seus parentes, pode contar com a nossa companhia. Não é suficiente em importância, mas a afeição é imensa, creia. Padre que seja, a nossa casa está às suas ordens. Quero só que me não esqueça; não esqueça o velho Pádua... 

Suspirou e continuou: 

– Não esqueça o seu velho Pádua, e, se tem algum trapinho que me deixe em lembrança, um caderno latino, qualquer coisa, um botão de colete, coisa que já lhe não preste para nada. O valor é a lembrança. 

Tive um sobressalto. Havia embrulhado em um papel um cacho dos meus cabelos, tão grandes e tão bonitos, cortados na véspera. A intenção era levá-los a Capitu, ao sair; mas tive ideia de dá-lo ao pai, a filha saberia tomá-lo e guardá-lo. Peguei do embrulho e dei-lho. 

– Aqui está; guarde. 

– Um cachinho dos seus cabelos! exclamou Pádua abrindo e fechando o embrulho. Oh! obrigado! obrigado por mim e pela minha gente! Vou dá-lo à velha, para guardá-lo, ou à pequena, que é mais cuidadosa que a mãe. Que lindos que são! Como é que se corta uma beleza destas? Dê cá um abraço! outro! mais outro! adeus! 

Tinha os olhos úmidos deveras; levava a cara dos desenganados, como quem empregou em um só bilhete todas as suas economias de esperanças, e vê sair branco o maldito número, – um número tão bonito!






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Texto de referência:

Obras Completas de Machado de Assis, vol. I,
Nova Aguilar, Rio de Janeiro, 1994.

Publicado originalmente pela Editora Garnier, Rio de Janeiro, 1899.

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Dom Casmurro: Capítulo XLIX / Uma Vela aos Sábados


Dom Casmurro: Capítulo L / Uma Meio-Termo


Dom Casmurro: Capítulo LI / Entre Luz e Fusco


Dom Casmurro: Capítulo LIII / A Caminho!





domingo, 10 de dezembro de 2017

Série: Jazz Para Sempre 20 - Diana Krall / Russell Malone

" Route 66 " 

Diana Krall / Russell Malone




Quando você não sabe o que dizer... escute








Route 66 - a young Diana Krall at the 1996 Montreal Jazz Festival. Bass: Paul Keller, Guitar: Russell Malone





Russell Malone 
Caravan for Duke Ellington








Diana Krall  
- How Deep is the Ocean - 8/15/1998 - Newport Jazz Festival









Diana Krall 
- The Look Of Love






Memórias Póstumas de Brás Cubas: A ponta do nariz

Machado de Assis


Memórias Póstumas de Brás Cubas







CAPÍTULO XLIX / A ponta do nariz







Nariz, consciência sem remorsos, tu me valeste muito na vida... Já meditaste alguma vez no destino do nariz, amado leitor? A explicação do Doutor Pangloss é que o nariz foi criado para uso dos óculos, — e tal explicação confesso que até certo tempo me pareceu definitiva; mas veio um dia, em que, estando a ruminar esse e outros pontos obscuros de filosofia, atinei com a única, verdadeira e definitiva explicação. 

Com efeito, bastou-me atentar no costume do faquir. Sabe o leitor que o faquir gasta longas horas a olhar para a ponta do nariz, com o fim único de ver a luz celeste. Quando ele finca os olhos na ponta do nariz, perde o sentimento das coisas externas, embeleza-se no invisível, apreende o impalpável, desvincula-se da terra, dissolve-se, eteriza-se. Essa sublimação do ser pela ponta do nariz é o fenômeno mais excelso do espírito, e a faculdade de a obter não pertence ao faquir somente: é universal. Cada homem tem necessidade e poder de contemplar o seu próprio nariz, para o fim de ver a luz celeste, e tal contemplação, cujo efeito é a subordinação do universo a um nariz somente, constitui o equilíbrio das sociedades. Se os narizes se contemplassem exclusivamente uns aos outros, o gênero humano não chegaria a durar dois séculos: extinguia-se com as primeiras tribos. 

Ouço daqui uma objeção do leitor: — Como pode ser assim, diz ele, se nunca jamais ninguém não viu estarem os homens a contemplar o seu próprio nariz? Leitor obtuso, isso prova que nunca entraste no cérebro de um chapeleiro. Um chapeleiro passa por uma loja de chapéus; é a loja de um rival, que a abriu há dois anos; tinha então duas portas, hoje tem quatro; promete ter seis e oito. Nas vidraças ostentam-se os chapéus do rival; pelas portas entram os fregueses do rival; o chapeleiro compara aquela loja com a sua, que é mais antiga e tem só duas portas, e aqueles chapéus com os seus, menos buscados, ainda que de igual preço. 

Mortifica-se naturalmente; mas vai andando, concentrado, com os olhos para baixo ou para a frente, a indagar as causas da prosperidade do outro e do seu próprio atraso, quando ele chapeleiro é muito melhor chapeleiro do que o outro chapeleiro... Nesse instante é que os olhos se fixam na ponta do nariz. 

 A conclusão, portanto, é que há duas forças capitais: o amor, que multiplica a espécie, e o nariz, que a subordina ao indivíduo. Procriação, equilíbrio.





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Texto-fonte: 
Obra Completa, Machado de Assis, 
Rio de Janeiro: Editora Nova Aguilar, 1994. 


Publicado originalmente em folhetins, a partir de março de 1880, na Revista Brasileira.


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Memórias Póstumas de Brás Cubas: Capítulo XLVI / A herança

Memórias Póstumas de Brás Cubas: Capítulo XLVII / O recluso

Memórias Póstumas de Brás Cubas: Capítulo XLVIII / Um Primo de Virgília

Memórias Póstumas de Brás Cubas: Virgília casada: Capítulo L / Virgília casada


sábado, 9 de dezembro de 2017

20.O Estrangeiro: E como tal deverá ser castigado - Albert Camus

Albert Camus


SEGUNDA PARTE


Capítulo 4


20. E como tal deverá ser castigado



  MESMO DO LUGAR DOS RÉUS, é sempre interessante ouvir falar de nós mesmos. Durante os arrazoados do procurador e do meu advogado, posso dizer que se falou muito de mim e talvez até mais de mim, que do meu crime. Eram aliás assim tão diferentes, estes discursos? O advogado levantava os braços e pleiteava culpado, mas com atenuantes. O procurador estendia as mãos e pleiteava culpado, mas sem atenuantes. No entanto, uma coisa me incomodava vagamente. Apesar das minhas preocupações, apetecia-me por vezes intervir e o meu advogado dizia-me então: "Cale-se, para seu bem é melhor que se cale". 

De algum modo, tinham todo o ar de tratar deste caso à margem da minha pessoa. Tudo se passava sem a minha intervenção. Jogava-se a minha sorte sem que me pedissem a opinião. De tempos a tempos, tinha vontade de interromper toda a gente e de dizer: "Mas quem é afinal o acusado? É importante ser o acusado. E tenho coisas a dizer!" Mas, pensando bem, não tinha nada a dizer. Devo reconhecer, aliás, que o interesse que se tem em ouvir as pessoas, não dura muito tempo. Por exemplo, o discurso do procurador depressa me fatigou. Apenas me impressionaram ou despertaram a atenção alguns fragmentos, gestos ou tiradas inteiras, mas desligadas do conjunto. 


O fundo do seu pensamento, se bem o compreendi, é que o meu crime fora premeditado. Pelo menos, tentou demonstrá-lo. Como ele próprio dizia: "Darei a prova do que afirmo, meus senhores, e dá-la-ei duplamente. Sob a crua claridade dos factos em primeiro lugar e em seguida sob a iluminação sombria que me será fornecida pelo perfil psicológico desta alma criminosa". Resumiu os fatos a partir da morte da minha mãe, Relembrou a minha insensibilidade, a minha ignorância da idade dela, o meu banho de mar, no dia seguinte, com uma mulher, o cinema, Fernandel e por fim o caso com Maria. Levei tempo a compreender nesse momento, porque dizia "a amante" e para mim, ela chamava-se Maria. Chegou, em seguida, à história de Raimundo. Achei que tinha uma maneira de ver as coisas bastante clara. O que dizia não deixava de ser plausível. Eu escrevera a carta de combinação com Raimundo para atrair a amante deste e a entregar aos maus tratos de um homem "de moralidade duvidosa". Provocara, na praia, os adversários de Raimundo. Este ficara ferido. Eu pedira-lhe o revólver. Voltara atrás para me servir dele, sozinho. Tal como projetara, dera depois cabo do Árabe. Disparara uma vez. Esperara. E, "para ter a certeza de que o trabalho ficara bem feito", disparara mais quatro tiros, calmamente, conscientemente, pela certa. "E aqui está, meus senhores, disse o advogado de acusação. Acabo de traçar o fio dos acontecimentos que levaram este homem a matar com pleno conhecimento de causa. Insisto neste ponto. Pois não se trata de um crime banal, de um ato impensado que poderia ser atenuado por certas circunstâncias. Este homem, meus senhores, é um homem inteligente. Ouviram-no falar, não é verdade? Sabe responder. Conhece o valor das palavras. E não se pode dizer que tenha agido sem dar pelo que estava a fazer". 

Eu ouvia, e percebia que me consideravam inteligente. Mas não compreendia por que motivo as qualidades de um homem vulgar podiam erguer-se esmagadoramente contra um culpado. Era isto, pelo menos, o que mais me impressionava e deixei de ouvir o procurador até ao momento em que o ouvi dizer: "Podemos dizer, em sua defesa, que este homem exprimiu algum arrependimento? Nunca, meus senhores. Nem uma só vez no decurso da instrução do processo, pareceu emocionado com o seu crime abominável". Nesse momento voltou-se para mim e apontou-me com o dedo, continuando a fulminar-me, sem que na realidade eu compreendesse muito bem porquê. Não posso deixar de reconhecer, sem dúvida, que ele tinha razão. Não me arrependia muito do que tinha feito. Mas espantava-me uma atitude tão encarniçada. Gostaria de lhe poder explicar cordialmente, quase com afeição, que nunca me arrependera verdadeiramente de nada. Estava sempre dominado pelo que ia acontecer, por hoje ou por amanhã. Mas evidentemente, no estado a que me haviam levado, não podia falar a ninguém neste tom. Não tinha o direito de me mostrar afetuoso, de ter boa vontade. E tentei continuar a escutar, pois o procurador começou a falar da minha alma. 

Dizia que se debruçara sobre ela e que nada encontrara, senhores jurados. Dizia que, em boa verdade, eu não tinha alma e que nada de humano, nem um único dos princípios morais que existem no coração dos homens, me era acessível. "Não poderíamos sem dúvida censurar-lhe uma coisa destas, acrescentou. O que ele não teria possibilidades de adquirir, não podemos queixar-nos de que lhe falte. Mas no que se refere a este caso, a verdade negativa da tolerância deve transformar-se na virtude menos fácil, mas mais elevada, da justiça. Sobretudo quando o vazio de um coração como o que descobrimos neste homem se torna num abismo onde a sociedade pode sucumbir". Foi então que começou a falar outra vez da minha atitude para com a mãe.

Repetiu o que já dissera durante os debates. Mas falou muito mais longamente nisto, do que a respeito do crime, tão longamente que, a certa altura, passei a sentir apenas o calor do dia. Até ao instante, pelo menos, em que o advogado de acusação se deteve e, depois de um momento de silêncio, continuou numa voz baixa e compenetrada: "Este mesmo tribunal, meus senhores, vai julgar amanhã o mais abominável dos crimes: o assassínio de um pai". Na opinião dele, a imaginação recuava diante deste atroz atentado. Ousava esperar que a justiça dos homens saberia castigar sem piedade. Mas não receava afirmar que o horror que esse crime lhe inspirava quase cedia diante da minha insensibilidade. Ainda na opinião dele, um homem que matava moralmente a mãe devia ser afastado da sociedade dos homens, exatamente como aquele que levantava uma mão criminosa contra o autor dos seus dias. Em todos os casos, o primeiro preparava os atos do segundo, anunciava-os de algum modo e legitimava-os. "Estou persuadido, meus senhores, acrescentou elevando a voz, de que não acharão o meu pensamento excessivamente audacioso, se lhes disser que o homem ali sentado naquele banco é igualmente culpado do crime que o tribunal vai julgar amanhã. E como tal deverá ser castigado". Aqui, o procurador enxugou a cara brilhante de suor. Disse por fim que o seu dever era doloroso, mas que o cumpriria firmemente. Declarou que eu nada tinha a fazer numa sociedade cujas regras mais essenciais desconhecia e que eu não podia apelar para o coração dos homens, cujas reações elementares ignorava. "Peço-vos a cabeça deste homem, disse, e é sem escrúpulos que vos dirijo este pedido. Pois no decurso da minha longa carreira, tem-me acontecido pedir várias penas de morte, mas nunca como hoje, eu senti este penoso dever tão compensado, equilibrado, iluminado pela consciência de um imperativo sagrado e pelo horror que tenho a esta fisionomia humana onde nada leio que não seja monstruoso". Quando o procurador se sentou, houve uns longos momentos de silêncio. Quanto a mim, sentia-me atordoado pelo calor e pelo espanto. O presidente tossiu um pouco e, em voz não muito alta, perguntou-me se eu queria acrescentar alguma coisa. Levantei-me e, como tinha vontade de falar, disse, aliás um pouco ao acaso, que não tinha tido intenção de matar o Árabe. O presidente respondeu que era uma afirmação, que até aqui não percebia lá muito bem o meu sistema de defesa e que gostaria, antes de ouvir o meu advogado, que eu especificasse os motivos que inspiraram o meu ato. Redargui rapidamente, misturando um pouco as palavras e consciente do ridículo, que fora por causa do sol. Houve risos na sala. O meu advogado encolheu os ombros e, logo a seguir, deram-lhe a palavra. Mas ele declarou que era tarde, que precisava de muito tempo e que pedia o adiamento até logo à tarde. O tribunal concordou.






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A Constatação do Absurdo

Nascido e criado entre contrastes fundamentais, Albert Camus desde cedo aprendeu que a miséria engendra uma solidão que lhe é típica, uma austeridade toda sua, uma desconfiança da vida - mas a paisagem desperta uma rica sensualidade, uma eufórica sensação de onipotência, um orgulho desmedido de possuir a beleza inteiramente gratuita. Este aprendizado, feito a meio caminho entre a miséria e o sol, levou-o à consciência do que existe de mais trágico na condição humana: o absurdo, essa irremediável incompatibilidade entre as aspirações e a realidade.


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Camus, Albert, 1913-1960.
              O Estrangeiro
Título Original L'Étranger
Tradução de António Quadros
Edição Livros do Brasil
Lisboa
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