terça-feira, 28 de fevereiro de 2017

histórias de avoinha: a mentira finge melhor que a verdade

mulheres descalças


a mentira finge melhor que a verdade
Ensaio 98B – 2ª edição 1ª reimpressão



baitasar


sentia seus dedos me desenhando ansiosos e atrevidos. num falava nada, apenas bisbilhotava minhas curvas e provava meus gostos. os beijos cada vez mais quentes e molhados. abraços macios e amorosos. seu corpo me procurava cada vez mais duro e confiante

adoro que ele me quer, adoro que ele gosta

afrouxava e apertava o seu rosto no meu, sussurrava para me amar, eu respondia que queria. e ele me comia como o amor deve comer: com os olhos, os cheiros e os gostos enquanto as palavras seguiam cochichando incandescentes indecências. eu respondia que sim, quero mais e mais. ele me amava e descarregava estrelas. elas brilhavam. eu brilhava. uma plêiade de estrelas para bisbilhotar. as águas das estrelas esparramadas dentro de mim desciam dos meus olhos

os pedaços tricotados de meu corpo e os fios das lembranças adormeciam dentro daquele novelo amoroso e cuidadoso. esquecia de mi mesma. num era mais só eu, esse homem acordou todas as mulheres que carrego. ele me entrava sem rancor, sem mágoas, sem medo, me entrava pelos olhos e pelos pés descalços

gostava assim, gosto assim... lá embaixo, a luz e as estrelas acendiam os brilhos na escuridão. os barulhos da villa num subiam o morro, ficava calada e os meus velhos medos podiam ficar em silêncio. um bom tempo de viver antes de morrer. queria que todas as vidas pudessem viver uma boa vida antes de morrer, sem dono e sem castigo de dono

ele num é meu dono

num sou seu gado nem seu campo semeado, apenas me quer. deseja a mulher que eu sou e fica em mim, bem dentro: o homem e a mulher, ele e eu. um colo que num dura para sempre, mas afinal, nada dura para sempre. enquanto durar vou viver esse tempo das águas se derramando do amor, cada vez se despejando até esvaziar sem perder a graça, resistindo sem pessimismo

nos arrastávamos por cima da cama, os barulhos da vida borbulhando sem ensaios ou mentiras fascinantes, os abraços macios, o gosto doce, extenuados e cheios um no outro. acalmados. até que a vontade voltava. um quarto para meia noite. um quarto para uma noite toda. as estrelas. um piquenique de estrelas para sempre. embrulhava os braços na cintura do meu homem e o puxava mais e mais, sempre mais. um homem grande até bem fundo. lá estavam elas, as estrelas me entravam. eu queria mais, sempre agradeci por querer mais, queria o abrigo do frio e o silêncio na escuridão, queria as águas do rio, queria uma infindável noite de estrelas

ele me dava mais dele, sempre mais, e a vida sem fim começava. eu apertava minhas pernas, Quero sentir as coxas de vosmecê, depois abria e sorria. é bom sorrir para as estrelas, ter no amor a vontade de sorrir. é bom fechar os olhos sem sombras, sem medo de se abrir. é bom fechar os olhos para se mostrar, abrir para se descobrir

aprendi piquininina a me esconder atrás dos olhos fechados. os barulhos do silêncio continuam me tocando, num vou jamais esquecer, mas já posso sorrir com outras lembranças. é isso, num posso deslembrar, mas posso querer outras lembranças, Sai da pior das misérias, dizia nas conversas do sonho que se repetia, Eu sei, minha menina, ele respondia. jurava que entendia, mas num podia

encolhia os joelhos até encostar no queixo e o convidava com a janela dos olhos brilhando, as mãos puxavam mais e mais, a língua chamando, Vem... vem... me come, e com as mão trêmulas conversávamos sem falar, chispas acariciando tudo

até que falávamos

Adoro esses seus olhos amêndoados.

eu respondia com as palavras que tinha na boca, Quero mais, puxava mais e mais. ele escutava meus abraços, me entrava mais e mais

o silêncio acabou, mas o medo da escuridão... esse continua

somos uma mistura colorida da preta e do branco, amalgamados do jeito que a terra gosta. o céu das pessoas boas e brancas continua nos resistindo, num gosta da mistura com os miseráveis que elas inventaram com fome e sangue. preferem continuar derramando castigos e correntes para amansarem os pretus e a indiada. um espantoso desperdício de gentes desfeitas em borboletas empalhadas

estava feliz por ter resistido, sempre vale a pena resistir, Tem muito tempo que o barão num me amava do jeito que se entrega todo... sem pressa que termine, ele sorriu. é bom estar na cama do amor com um homem que sorri

Preciso conhecer essa Liberata. Ela me salvou.

sorri para a lembrança da liberata

é bom estar sorrindo junto com o homem da sua cama do amor. um sorriso cuida do outro. já estava deitado ao meu lado, a cabeça em meu peito, os dedos brincando com meus pelos, respondi para sua lembrança, Ela só deu conta de ajudar com o que sabe. E vosmecê deu conta acreditando.

Confiei em vosmecê.

na cama do amor o silêncio num pode ser desperdiçado. muito menos, pode ser tempo perdido, Vem cá...

Não sei...

Num sabe?

Não sei se consigo...

É?

eu mais ele estávamos afundados na alegria atrevida da cama que zela desavergonhada pelas palavras mais indecentes do fogo, cuida para que sejam soltas e repetidas, girando e girando, subindo como piquininos rolos de fumaça, até que um assopro descarrega as faíscas da ventania

olhávamos o rabo dos olhos um do outro com um sorriso que deseja provocar. num queríamos nenhuma trégua, num estávamos prontos para a paz do sono. num víamos nada além das quatro estrelas piquinininas brilhando, Vosmecê bem que pode me dar as últimas gotas do seu amor, E vosmecê vai me dar o quê, Mais um traquejo mágico, misturamos nossas lágrimas de felicidade enquanto os mistérios do novo dia estalavam os alaridos das outras vidas. eu o assanhei assanhei assanhei e estremeci. depois , fechei os olhos sorrindo

queria esse tempo para sempre

o tempo se acaba até que fecha os olhos e parece dormir. sabia tudo que esse homem perdia para me ter em sua cama de esposa. é como ir para outro lugar que num existe, só você vê. um lugar que vejo quando tenho em mim as últimas gotas do seu corpo suado. a cabeça acalmada com o piquininino que já está em mim, semeado por uma força muito mais grande que as correntes, uma fome muito maior que o medo por qualquer castigo. eu sinto que a vida me brota e as raízes me agarram com mais força enquanto os dois dormem agarrados em meu corpo

abri os olhos assustada

quando ficará farto de mim, me pergunto, quando eu engordar? depois que nascer o piquininino? e se for um muriquinho pretu? e se for uma piquininina? até onde irá o seu amor de pai? nunca falei sobre isso, sinto medo. quando sentirá vontade de se livrar de mim e do fio? fecho os olhos para me esconder

caminho pelo porão do negreiro. um pretu afogado nas águas do seu vômito treme e sacode o barco nú

outro pretu perdeu os sentidos da vida na volta da tina com água, quem tem força para ir num tem para voltar

outro e tantos outros

sempre o mesmo sonho, quantos mistérios sobre o destino de homens e mulheres. caminhos de lutas todos os dias contra a fome que acorrenta os miseráveis nas mãos com anéis: bestas desvastadoras e traiçoeiras da doença e da morte. assassinatos cívicos em nome da civilização hipócrita que se finge consciência da realidade

outro forçava com desespero os dentes até os pés: queria arrancar os pés com dentadas para fugir das correntes e se atirar nas águas da estrada

isso num é bem pensar com alegria e divertimento a vida

num quero lembrar mãinha arrastada do porão até o alçapão sem nenhum grito, mas num posso deslembrar. ela já num tinha grito. passou os gritos e as lembranças dentro da minha boca piquininina e assustada, seu último beijo assoprado. a boca cansada e amarelada apertou a minha e se jogou para dentro de mim. o que sobrou dela foi o que aqueles capetas deformados puxavam pelas canelas pretas: tetas murchas, braços caídos, cabeça quicando no chão. um corpo oco foi arrastado e jogado nas águas porque tudo dela já estava em mim

por que eu vivo? eu vivo porque mãinha vive

resisti porque esqueci de mim mesma. minha obrigação é sobreviver. ainda num acordei daquela escuridão, espero poder acordar para bòwò fún ìyá mi

a dor num parece querer se desaproveitar de mim. o sopro molhado de mãinha ainda está quente, as mãos de ìyá mi pararam de ter vida, mas os olhos num se fecharam. ela partiu me olhando, pedindo que eu resistisse. eu num penso no navio porque quero pensar, penso porque num quero esquecer

ainda num desci do negreiro

Esta cama é mais que uma cama, minha preta.

acordei do sono quando alguém me estendia a mão e o olhar. olhei de retorno procurando liberata, sem dureza ou medo, resolvi arriscar e descer do negreiro

A cama... o que ela é?

Uma declaração de amor.

fechei os olhos. enfiei os dedos em seus cabelos, eles num me resistiam. quem estava mentindo? como saber? num sei saber antes de saber. abri os olhos. estava a meio caminho de acreditar e num acreditar. é assim comigo, o anúncio do amor à vida ou a confissão que tudo isso é apenas um desmaio da vida, é tudo ou nada

Te amo, minha preta. Te amo. Não tenho outras palavras para dizer o que sinto. É assim que eu quero, todas as noites vosmecê colada em mim. Te amo, Catita.

num queria fechar os olhos. poderia num ser sempre assim e se num existisse esse homem, Eu quero lhe falar.

ergueu a cabeça do jeito mais sério que já tinha visto ele fazer, respondeu cuidadoso, acho até que a voz lhe tremeu as mãos, Fale, então...

é isso, pedi a palavra e precisava fazer uso das palavras. gostava de ter esse morro todo só para nós. juntos, nesta casa. isso me agradava, mas ainda havia o passado querendo abrir a porta. podia ouvir as conversas, U qui tu qué com esse branquela, e o futuro sem nenhuma garantia

Vosmecê está em mim sem me entender. Eu tenho tantas vidas em mim quantos nomes me chamam: ìyá mi ayomide catita carolina augusta. Choro só de lembrar as vidas de cada nome e me pergunto se terei mais nomes, é tanta saudade destas vidas. Tenho saudade das vidas que num vou viver.

o jeito do amor é doce e amargo. num queria experimentar mais nada amargo, mas o que é alegria ou tristeza? o que é de verdade se a mentira também é verdade? num sei o que vou sentir se tudo isso é mentira

Se for chorar lembra que eu te amo, minha preta.

Esse é o meu nome. Vosmecê acertou o meu nome. Um nome que num pode mudar, num quer mudar. Essa cama num é mais que uma cama, um nome num é só um jeito de chamar, é mais que um jeito de anunciar...

É uma declaração de amor.

Até quando?

Até quando?

Sim... até quando?

Não sei... quem sabe até quando tem amor? Eu quero ter o amor de vosmecê até quando morrer.

E se vosmecê ficar farto desse amor antes de morrer?

Então, estarei morto...

cada um escuta só a si mesmo

... esse amor não pode acabar. Será como ficar com a cabeça, mas sem um coração. O coração nos aparta da vida sem sentido.

olhei para baixo, ele se desamarrou de mim

Tenho medo. Nunca lhe falei, mas tenho medo. Quando sentirá vontade de se livrar de mim e do seu fio pretu? Um fio misturado de pretu num é cinza... é pretu.

num disse nada. levantou do lugar que estava e me escutava. caminhou até a janela, num dava para saber se o dia acordava ou a noite se deitava, num dava para saber o que ele pensava. voltou

deitou do mesmo lado que gosta de dormir e olhou em mim, como eu quero ser olhada, E quem, nesta Villa, não é misturado do negro ou do índio, meu amor? E quem não é... vai ficar. Só tem um jeito de vosmecê se livrar de mim...

num inventei esse medo. eu precisava saber como ele iria embora e quando se iria. num sei se ele vai se ir, acho que vai. num queria, mas fazer o quê? um dia desses ele se vai embora, mas eu disse o que precisava dizer, Num quero perder esse seu paladar doce até a perfeição do sabor nem vou lhe mandar embora, mas preciso lhe avisar que se vosmecê me faltar num vou morrer. Vou continuar resistindo. A solidão me acompanha desde muito piquininina, gosto do colo de vosmecê. Vou chorar muito, mas num vou morrer.

Vosmecê é a ventania, Catita.

Mas, então... vosmecê ainda num disse: Como me livro de vosmecê?

foi a vez dele sentir o medo da solidão da vida na cama, uma cama cheia pode estar vazia

Basta falar...

Falar o quê?

Eu não quero mais.

escutei mais atenta que pude ficar. queria saber se num estava fingindo, mas num tem como saber

o beijei

e num consegui saber do beijo

o abracei

e num consegui saber do abraço se era mentira ou verdade. o amor finge melhor que o ódio. é mais fácil desapegar do amor que do ódio

Simples assim?

Sim.

E vosmecê num vai querer saber por que eu num quero mais vosmecê?

Sim... não... não sei...

Então num vai perguntar?

O quê?

Num vai perguntar por que eu estou indo embora?

Vosmecê está indo embora?

Não, mas se estivesse...

Chega, Carolina Augusta. Eu prometo que vou perguntar.

E vosmecê quer que eu vá embora?

Não, Catita Augusta. Vamos dormir.

Isso num é brincadeira. Vosmecê promete?

Prometo.

a mentira finge melhor que a verdade




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Leia também:

histórias de avoinha: carolina augusta
Ensaio 97B – 2ª edição 1ª reimpressão

histórias de avoinha: o convencimento pela força é a morte da vida
Ensaio 99B – 2ª edição 1ª reimpressão


Florbela Espanca - A Mensageira das Violetas 15

Florbela Espanca



15 - A Mensageira das Violetas





MENDIGA



Na vida nada tenho e nada sou; 
Eu ando a mendigar pelas estradas... 
No silêncio das noites estreladas
Caminho, sem saber para onde vou!

Tinha o manto do sol... quem mo roubou?! 
Quem pisou minhas rosas desfolhadas?! 
Quem foi que sobre as ondas revoltadas 
A minha taça de ouro espedaçou?

Agora vou andando e mendigando, 
Sem que um olhar dos mundos infinitos 
Veja passar o verme, rastejando...

Ah, quem me dera ser como os chacais 
Uivando os brados, rouquejando os gritos 
Na solidão dos ermos matagais!...





SUPREMO ENLEIO


Quanta mulher no teu passado, quanta! 
Tanta sombra em redor! Mas que me importa? 
Se delas veio o sonho que conforta, 
A sua vinda foi três vezes santa!
Erva do chão que a mão de Deus levanta, 
Folhas murchas de rojo à tua porta... 
Quando eu for uma pobre coisa morta, 
Quanta mulher ainda! Quanta! Quanta!
Mas eu sou a manhã: apago estrelas! 
Hás de ver-me, beijar-me em todas elas, 
Mesmo na boca da que for mais linda!
E quando a derradeira, enfim, vier, 
Nesse corpo vibrante de mulher 
Será o meu que hás de encontrar ainda...





TOLEDO


Diluído numa taça de ouro a arder 
Toledo é um rubi. E hoje é só nosso! 
O sol a rir...Viv´alma...Não esboço 
Um gesto que me não sinta esvaecer... 

As tuas mãos tateiam-me a tremer... 
Meu corpo de âmbar, harmonioso e moço, 
É como um jasmineiro em alvoroço 
Ébrio de sol, de aroma, de prazer! 

Cerro um pouco o olhar, onde subsiste 
Um romântico apelo vago e mudo 
- Um grande amor é sempre grave e triste. 

Flameja ao longe o esmalte azul do Tejo... 
Uma torre ergue ao céu um grito agudo... 
Tua boca desfolha-me num beijo...





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A Mensageira das Violetas, de Florbela Espanca

Fonte: ESPANCA, Florbela. A mensageira das violetas: antologia. Seleção e edição de Sergio Faraco. Porto Alegre: L&PM, 1999. (Pocket). 

Texto proveniente de: 
A Biblioteca Virtual do Estudante Brasileiro A Escola do Futuro da Universidade de São Paulo Permitido o uso apenas para fins educacionais. 

Texto-base digitalizado por: 


Luciana Peixoto Silva – Divinópolis/MG
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segunda-feira, 27 de fevereiro de 2017

Júlio Verne: Viagem ao Centro da Terra / XIV

Júlio Verne



Viagem ao Centro da Terra/XIV





Stapi é uma aldeia de cerca de trinta cabanas, construída em plena lava sob os raios de sol refletidos pelo vulcão. Estende-se no fundo de um pequeno fiorde encastrado numa muralha basáltica bastante estranha.

Sabemos que o basalto é uma rocha marrom de origem ígnea. Suas formas regulares surpreendem por sua disposição. Aqui a natureza procede de forma geométrica e trabalha à maneira dos homens, como se manejasse o esquadro, o compasso e o fio de prumo. Em todos os outros lugares, seus trabalhos artísticos consistem em grandes massas jogadas desordenadamente, em cones mal esboçados, em pirâmides imperfeitas, em uma estranha sucessão de linhas; aqui, querendo dar o exemplo de regularidade e precedendo os arquitetos das primeiras eras, criou uma ordem rígida, jamais superada pelos esplendores da Babilônia, nem pelas maravilhas da Grécia antiga.

Já ouvira falar da Calçada dos Gigantes na Irlanda e da gruta de Fingal numa das Hébridas, mas nunca vira o espetáculo de uma substrução basáltica. Em Stapi, esse fenômeno exibia-se em toda a sua magnificência. A muralha do fiorde, assim como toda a costa da península, era composta de uma série de colunas verticais de trinta pés de altura. Esses fustes retos da mais pura proporção sustentavam uma arquivolta feita de colunas horizontais, cujo desaprumo formava uma semi abóbada acima do mar. A intervalos regulares, sob essa cisterna natural, o olhar surpreendia aberturas ogivais de um desenho admirável, através das quais as ondas do mar se precipitavam, espumantes. Alguns pedaços de basalto, arrancados pela fúria do oceano, estendiam-se pelo chão como ruínas de um templo antigo, ruínas eternamente viçosas sobre as quais os séculos passavam sem desgastá-las.

Era a última etapa de nossa viagem terrestre, para onde Hans nos conduzira com inteligência, e eu me sentia tranquilo com o fato de que ele continuaria nos acompanhando.

Ao chegarmos à porta da casa do pároco, cabana simples e baixa, nem mais bela nem mais confortável que as vizinhas, vi um homem ferrando um cavalo, martelo na mão e avental de couro amarrado à cintura.

- Screllvertu - disse-lhe o caçador.

- God dag - respondeu-lhe o ferrador num perfeito dinamarquês.

- Kyrkoherde - murmurou Hans, voltando-se para meu tio.

- O pároco! - repetiu o professor. - Axel, parece que esse bom homem é o pároco.

Enquanto isso, o guia colocava o kirkoherde a par da situação. O pároco parou de trabalhar e deu uma espécie de grito muito usado entre os criadores de cavalos e contratadores de gado; imediatamente uma megera enorme saiu da cabana. Se não tinha seis pés de altura, faltava pouco.

Temi que ela viesse oferecer o beijo islandês aos viajantes; mas nada disso aconteceu e nem se deu ao trabalho de ser mais gentil ao convidar-nos para entrar em sua casa.

O cômodo dos forasteiros pareceu-me o pior do presbitério, estreito, sujo e infecto, mas tivemos de contentar-nos com ele. O pároco, com certeza, não praticava a hospitalidade à antiga.

Longe disso. Antes do final do dia, constatei que estávamos tratando mais com um ferreiro, um pescador, um caçador e um carpinteiro do que com um ministro de Deus. É verdade que era um dia útil. Talvez melhorasse aos domingos.

Não quero falar mal desses pobres padres, que afinal de contas são bem miseráveis; recebem um tratamento ridículo do governo islandês e seu salário consiste num quarto do dízimo de sua paróquia, o que nem chega a sessenta marcos. Daí a necessidade de trabalhar para viver; mas de tanto pescar, caçar e ferrar cavalos, acabam absorvendo as maneiras, o tom e os costumes dos caçadores, pescadores e outras pessoas um tanto rudes; naquela mesma noite, percebi que a sobriedade não era uma das virtudes de nosso anfitrião.

Meu tio logo compreendeu o gênero de homem com que estava lidando; em vez de um cientista ousado e digno, encontrava um camponês difícil e grosseiro. Resolveu, portanto, iniciar quanto antes sua grande expedição, para abandonar aquele cura pouco hospitaleiro. Nem deu atenção a seu cansaço e resolveu ir passar alguns dias nas montanhas.

Começamos, portanto, a preparar a partida no dia seguinte à nossa chegada a Stapi. Hans contratou três islandeses para substituir os cavalos no transporte das bagagens; mas assim que chegássemos ao fundo da cratera, aqueles indígenas deveriam voltar atrás e abandonar-nos à nossa própria sorte, ponto claramente estabelecido.

Naquele momento, meu tio teve de contar ao caçador que sua intenção era explorar o vulcão até seus últimos limites.

Hans contentou-se em inclinar a cabeça. Ir para lá ou para cá, embrenhar-se nas entranhas de sua ilha ou percorrê-la, não via qualquer diferença. Quanto a mim, até então distraído pelos incidentes da viagem, esquecera-me um pouco do futuro; agora, porém, sentia a emoção voltar com toda a força. O que fazer? Tinha de ter tentado resistir ao professor Lidenbrock em Hamburgo e não ao pé do Sneffels.

Uma ideia atormentava-me mais que as outras, ideia aterrorizante e perfeita para abalar nervos menos sensíveis que os meus.

"Bem", dizia para mim mesmo, "vamos escalar o Sneffels. Bem, vamos explorar sua cratera. Bem, outros já fizeram isso e não morreram. Mas tem mais. Se encontrarmos um caminho para descer às entranhas do solo, se esse infeliz do Saknussemm disse a verdade, vamos nos perder entre as galerias subterrâneas do vulcão. Ora, nada prova que o Sneffels esteja extinto! Quem garante que não está preparando uma erupção? Está certo que o monstro está adormecido desde 1229, mas isso não significa que não possa acordar... E, se acordar, o que será de nós?"

Era o caso de se refletir sobre essa hipótese, e eu refletia. Não conseguia dormir sem sonhar com a erupção. E não estava gostando nada de fazer o papel de escória.

Finalmente, não consegui mais me conter. Resolvi submeter o problema a meu tio o mais astuciosamente possível, e sob a forma de uma hipótese absurda. Fui procurá-lo. Desabafei minhas preocupações e recuei para deixá-lo estourar à vontade.

- Estava pensando nisso - respondeu-me com simplicidade. O que significavam aquelas palavras? Será que ouviria a voz da razão? Estava pensando em voltar atrás? Era bom demais para ser verdade. Depois de alguns instantes de silêncio, durante os quais não ousei pronunciar nem uma palavra, recomeçou a falar:

- Estava pensando nisso. Desde que chegamos a Stapi, estou preocupado com esse grave problema, pois não devemos ser imprudentes.

- Não - respondi, convicto.

- O Sneffels não se manifesta há seiscentos anos, mas pode manifestar-se. Ora, as erupções são sempre precedidas de fenômenos muito conhecidos. Assim, fiz perguntas aos habitantes da região, estudei o solo e posso afirmar-lhe, Axel, não haverá erupção.

Fiquei estupefato com essa afirmação, à qual não pude replicar.

- Você duvida do que estou dizendo? Então, acompanhe-me - disse meu tio.

Obedeci maquinalmente. Saindo do presbitério, o professor tomou um caminho reto que, por uma abertura da muralha basáltica, afastava-se do mar. Logo estávamos em campo aberto, se é que se pode chamar assim aquele enorme amontoado de dejecções vulcânicas. A região parecia ter sido esmagada por uma chuva de pedras enormes, de trapp, basalto, granito e todas as rochas piroxênicas.

Via vapores subindo aqui e ali; aqueles vapores brancos, chamados reykir em islandês, vinham das fontes termais e, por sua violência, indicavam a atividade
vulcânica do solo. Aquilo parecia justificar meus temores. Caí das nuvens quando meu tio me disse:

- Está vendo, Axel, esses vapores provam que não temos de temer a fúria do vulcão.

- Essa não! - gritei.

Via vapores vulcânicos subindo aqui e ali.

- Guarde bem isto - continuou o professor: - quando uma erupção está se aproximando, esses vapores tornam-se duas vezes mais ativos, para desaparecer completamente durante o fenômeno, pois, como não têm mais a tensão necessária, os fluidos elásticos escapam pelas crateras e não mais pelas fissuras do globo. Se esses vapores se mantiverem em seu estado normal, se sua energia não aumentar, e ainda, se o vento e a chuva não forem substituídos por um ar pesado e calmo, é possível afirmar que não haverá uma erupção a curto prazo.

- Mas...

- Chega. Quando a ciência fala somos obrigados a calar-nos.

Voltei para a cúria de orelhas baixas. Meu tio vencera-me com argumentos científicos. Ainda assim, alimentava uma certa esperança. Talvez, quando chegássemos ao fundo da cratera, fosse impossível descer mais por falta de galerias, isso a despeito de todos os Saknussemm do mundo. Passei a noite seguinte em pleno pesadelo dentro de um vulcão e das profundezas da terra. Senti que era lançado para os espaços planetários sob a forma de rocha eruptiva.

No dia seguinte, 23 de junho, Hans nos aguardava com seus companheiros, carregados de víveres, ferramentas e instrumentos. Dois bastões de ferro, dois fuzis, duas cartucheiras estavam reservados para meu tio e para mim. Hans, que pensava em tudo, acrescentara à nossa bagagem um odre cheio, que, juntamente com nossos cantis, garantiam um abastecimento de água por oito dias.

Eram nove horas da manhã. O pároco e sua megera enorme aguardavam diante da casa. Com certeza queriam dar aos viajantes o adeus supremo do anfitrião. Mas o adeus assumiu a forma inesperada de uma conta formidável, onde cobraram até o ar da casa pastoral, bem infecto, aliás. O digno casal espoliava-nos como hoteleiros suíços, e o preço de sua hospitalidade era mais do que exagerado.

Meu tio pagou sem regatear. Um homem de partida para o centro da Terra não liga para alguns risdales. Acertado esse ponto, Hans deu o sinal de partida, e poucos instantes depois
deixávamos Stapi.






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31. Pedro Páramo: En el comienzo del amanecer - Juan Rulfo

Juan Rulfo




31. Pedro Páramo: En el comienzo del amanecer





En el comienzo del amanecer, el día va dándose vuelta, a pausas; casi se oyen los goznes de la tierra que giran enmohecidos; la vibración de esta tierra vieja que vuelca su oscuridad.

-¿Verdad que la noche está llena de pecados, Justina?

-Sí, Susana.

-¿Y es verdad?

-Debe serlo, Susana.

-¿Y qué crees que es la vida, Justina, sino un pecado? ¿No oyes? ¿No oyes cómo rechina la tierra?

-No, Susana, no alcanzo a oír nada. Mi suerte no es tan grande como la tuya.

-Te asombrarías. Te digo que te asombrarías de oír lo que yo oigo. Justina siguió poniendo orden en el cuarto. Repasó una y otra vez la jerga sobre los tablones húmedos del piso. Limpió el agua del florero roto. Recogió las flores. Puso los vidrios en el balde lleno de agua.

-¿Cuántos pájaros has matado en tu vida, Justina?

-Muchos, Susana.

-¿Y no has sentido tristeza? -Sí, Susana.

-Entonces ¿qué esperas para morirte?

-La muerte, Susana.

-Si es nada más eso, ya vendrá. No te preocupes.

Susana San Juan estaba incorporada sobre sus almohadas. Los ojos inquietos, mirando hacia todos lados. Las manos sobre el vientre, prendidas a su vientre como una concha protectora. Había ligeros zumbidos que cruzaban como alas por encima de su cabeza. Y el ruido de las poleas en la noria. El rumor que hace la gente al despertar.

-¿Tú crees en el infierno, Justina?

-Sí, Susana. Y también en el cielo.

-Yo sólo creo en el infierno -dijo. Y cerró los ojos.

Cuando salió Justina del cuarto, Susana San Juan estaba nuevamente dormida y afuera chisporroteaba el sol. Se encontró con Pedro Páramo en el camino.

-¿Cómo está la señora?

-Mal -le dijo agachando la cabeza.


-¿Se queja?

-No, señor, no se queja de nada; pero dicen que los muertos ya no se quejan. La señora está perdida para todos.

-¿No ha venido el padre Rentería a verla?

-Anoche vino y la confesó. Hoy debía de haber comulgado, pero no debe estar en gracia porque el padre Rentería no le ha traído la comunión. Dijo que lo haría a hora temprana, y ya ve usted, el sol ya está aquí y no ha venido. No debe estar en gracia.

-¿En gracia de quién?

-De Dios, señor.

-No seas tonta, Justina.

-Como usted lo diga, señor.

Pedro Páramo abrió la puerta y se estuvo junto a ella, dejando que un rayo de luz cayera sobre Susana San Juan. Vio sus ojos apretados como cuando se siente un dolor interno; la boca humedecida, entreabierta, y las sábanas siendo recorridas por manos inconscientes hasta mostrar la desnudez de su cuerpo que comenzó a retorcerse en convulsiones.

Recorrió el pequeño espacio que lo separaba de la cama y cubrió el cuerpo desnudo, que siguió debatiéndose como un gusano en espasmos cada vez más violentos. Se acercó a su oído y le habló: «¡Susana!» . Y volvió a repetir: «¡Susana!».

Se abrió la puerta y entró el padre Rentería en silencio moviendo brevemente los labios:

-Te voy a dar la comunión, hija mía.

Esperó a que Pedro Páramo la levantara recostándola contra el respaldo de la cama. Susana San Juan, semidormida, estiró la lengua y se tragó la hostia. Después dijo: «Hemos pasado un rato muy feliz, Florencio». Y se volvió a hundir entre la sepultura de sus sábanas.




_¿Ve usted aquella ventana
, doña Fausta, allá en la Media Luna, donde siempre ha estado prendida la luz?


-No, Ángeles. No veo ninguna ventana.

-Es que ahorita se ha quedado a oscuras. ¿No estará pasando algo malo en la Media Luna? Hace más de tres años que está aluzada esa ventana, noche tras noche. Dicen los que han estado allí que es el cuarto donde habita la mujer de Pedro Páramo, una pobrecita loca que le tiene miedo a la oscuridad. Y mire: ahora mismo se ha apagado la luz. ¿No será un mal suceso?

-Tal vez haya muerto. Estaba muy enferma. Dicen que ya no conocía a la gente, y dizque hablaba sola. Buen castigo ha de haber soportado Pedro Páramo casándose con esa mujer. -Pobre del señor don Pedro.

-No, Fausta. Él se lo merece. Eso y más.

-Mire, la ventana sigue a oscuras.

-Ya deje tranquila esa ventana y vámonos a dormir, que es muy noche para que este par de viejas andemos sueltas por la calle.

Y las dos mujeres, que salían de la iglesia muy cerca de las once de la noche, se perdieron bajo los arcos del portal, mirando cómo la sombra de un hombre cruzaba la plaza en dirección de la Media Luna.

-Oiga, doña Fausta, ¿no se le figura que el señor que va allí es el doctor Valencia?

-Así parece, aunque estoy tan cegatona que no lo podría reconocer.


-Acuérdese que siempre viste pantalones blancos y saco negro. Yo le apuesto a que está aconteciendo algo malo en la Media Luna. Y mire lo recio que va, como si lo correteara la prisa.

-Con tal de que no sea de verdad una cosa grave. Me dan ganas de regresar y decirle al padre Rentería que se dé una vuelta por allá, no vaya a resultar que esa infeliz muera sin confesión.

-Ni lo piense, Ángeles. Ni lo quiera Dios. Después de todo lo que ha sufrido en este mundo, nadie desearía que se fuera sin los auxilios espirituales, y que siguiera penando en la otra vida. Aunque dicen los zahorinos que a los locos no les vale la confesión, y aun cuando tengan el alma impura son inocentes. Eso sólo Dios lo sabe... Mire usted, ya se ha vuelto a prender la luz en la ventana. Ojalá todo salga bien. Imagínese en qué pararía el trabajo que nos hemos tomado todos estos días para arreglar la iglesia y que luzca bonita ahora para la Natividad, si alguien se muere en esa casa. Con el poder que tiene don Pedro, nos desbarataría la función en un santiamén.

A usted siempre se le ocurre lo peor, doña Fausta, mejor haga lo que yo: encomiéndelo todo a la Divina Providencia. Récele un avemaría a la Virgen y estoy segura que nada va a pasar de hoy a mañana. Ya después, que se haga la voluntad de Dios; al fin y al cabo, ella no debe estar tan contenta en esta vida.

-Créame, Ángeles, que usted siempre me repone el ánimo. Voy a dormir llevándome al sueño estos pensamientos. Dicen que los pensamientos de los sueños van derechito al cielo. Ojalá que los míos alcancen esa altura. Nos veremos mañana.

-Hasta mañana, Fausta.

Las dos viejas, puerta de por medio, se metieron en sus casas. El silencio volvió a cerrar la noche sobre el pueblo.
 



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NO COMEÇO DO amanhecer, o dia vai dando voltas, com pausas; quase dá para ouvir as dobradiças da terra, que giram emboloradas; a vibração desta terra velha que derrama sua escuridão.

— É verdade que a noite está cheia de pecados, Justina?

— É, Susana.

— De verdade?

— Deve ser, Susana.

— E o que você acha que a vida é, Justina, a não ser um pecado? Está ouvindo? Está ouvindo como a terra range?

— Não, Susana, eu não consigo ouvir nada. Minha sorte não é tão grande como a sua.

— Você iria se espantar. Eu digo que você iria se espantar se ouvisse o que eu ouço.

Justina continuou arrumando o quarto. Repassou uma vez e outra a estopa grossa sobre as tabuonas úmidas do assoalho. Limpou a água do floreiro quebrado. Recolheu as flores. Pôs os cacos de vidro no balde cheio d’água.

— Quantos pássaros você matou na vida, Justina?

— Muitos, Susana.

— E não sentiu tristeza?

— Senti, Susana.

— Então, está esperando o quê para morrer?

— A morte, Susana.

— Se é só isso, já, já ela chega. Não se preocupe.

Susana San Juan estava erguida sobre seus travesseiros. Os olhos inquietos, olhando para todos os lados. As mãos sobre o ventre, grudadas em seu ventre como uma concha protetora. Havia ligeiros zumbidos que passavam como asas por cima da sua cabeça. E o ruído das roldanas na madeira do poço. O rumor que as pessoas fazem ao acordar.

— Você acredita no inferno, Justina?

— Sim, Susana. E no céu também.

— Eu só acredito no inferno — ela disse. E fechou os olhos.

Quando Justina saiu do quarto, Susana San Juan estava adormecida de novo e lá fora o sol lançava chispas. Encontrou Pedro Páramo no caminho.

— Como é que a senhora está?

— Mal — ela respondeu agachando a cabeça.

— Ela se queixa?

— Não, senhor, não se queixa de nada; mas dizem que os mortos não se queixam mais. A senhora está perdida para todos.

— O padre Rentería não veio vê-la?

— Veio ontem, e tomou-lhe a confissão. Hoje ela deveria ter comungado, mas não deve estar nas graças, porque o padre Rentería não trouxe a comunhão para ela. Disse que ia fazer isso logo cedo, e o senhor está vendo, o sol já está aqui e ele não veio. Ela não deve estar nas graças.

— Nas graças de quem?

— De Deus, senhor.

— Não seja boba, Justina.

— Como o senhor quiser, patrão.

Pedro Páramo abriu a porta e ficou ao lado dela, deixando que um raio de luz caísse sobre Susana San Juan. Viu seus olhos apertados como quando se sente uma dor; a boca umedecida, entreaberta, e os lençóis sendo percorridos por mãos inconscientes até mostrar a nudez de seu corpo que começou a se contorcer em convulsões.

Percorreu aquele pequeno espaço que o separava da cama e cobriu o corpo nu, que continuou se debatendo como uma minhoca em espasmos cada vez mais violentos. Aproximou-se de seu ouvido e falou: “Susana!” E tornou a repetir: “Susana!”

A porta foi aberta e em silêncio entrou o padre Rentería, movendo brevemente os lábios:

— Vou lhe dar a comunhão, filha minha.

Esperou que Pedro Páramo a levantasse encostando-a sobre o espaldar da cama. Susana San Juan, semiadormecida, estendeu a língua e engoliu a hóstia. Depois disse: “Tivemos um tempo muito feliz, Florencio.” E tornou a se afundar entre a sepultura de seus lençóis.



— A SENHORA ESTÁ vendo aquela janela, dona Fausta, lá na Media Luna, onde a luz sempre ficava acesa?


— Não, Angeles. Não vejo nenhuma janela.

— É que justinho agora ficou escura. Será que aconteceu alguma coisa ruim na Media Luna? Faz mais de três anos que aquela janela está alumbrada, noite a noite. Dizem, quem esteve lá, que é o quarto onde habita a mulher de Pedro Páramo, uma coitadinha louca que tem medo do escuro. E olha só: agora mesmo, a luz apagou. Não será um acontecimento ruim?

— Talvez tenha morrido. Estava muito doente. Dizem que já nem reconhecia as pessoas, e dizem que falava sozinha. Bom castigo deve ter suportado Pedro Páramo casando-se com essa mulher.

— Coitado do senhor dom Pedro.

— Não, Fausta. Ele merece. Isso e muito mais.

— Olha, a janela continua escura.

— Deixa essa janela em paz e vamos dormir, que é noite alta para que nós duas, esse par de velhas, andemos soltas pela rua.

E as duas mulheres, que saíam da igreja muito perto das onze da noite, perderam-se debaixo dos arcos do portal, olhando como a sombra de um homem cruzava a praça na direção da Media Luna.

— Escuta, dona Fausta, não parece que o senhor ali é o doutor Valência?

— Parece mesmo, mas ando tão cega que não conseguiria reconhecê-lo.

— Não se esqueça que ele veste sempre calças brancas e paletó preto. Eu aposto que está acontecendo alguma coisa ruim na Media Luna. E olha só como ele vai rijo, como se a urgência o empurrasse.

— Pode ser de verdade uma coisa ruim. Sinto vontade de voltar e dizer ao padre Rentería que se achegue por lá, vai que essa infeliz morre sem se confessar.

— Nem pense nisso, Angeles. Nem Deus queira. Depois de tudo que ela sofreu neste mundo, ninguém desejaria que se fosse sem os auxílios espirituais e continuasse a penar na outra vida. Embora os bruxos digam que nos loucos a confissão não vale, pois mesmo quando têm a alma impura são inocentes. Isso só Deus sabe... Veja só, já tornaram a acender a luz na janela. Oxalá tudo dê certo. Imagine só em aonde iria dar o trabalho que tivemos todos esses
dias para arrumar a igreja para que pareça bonita agora no Natal, se alguém morrer naquela casa. Com o poder que tem, dom Pedro aguaria a nossa festa num triz.


— A senhora sempre pensa o pior, dona Fausta. Era melhor fazer como eu: encomende tudo à Providência Divina. Reze uma ave-maria à Virgem e tenho certeza que nada vai acontecer de hoje para amanhã. Depois, que seja feita a vontade de Deus; afinal de contas, ela não deve estar tão contente assim nesta vida.

— Acredite em mim, Angeles, a senhora sempre me repõe o ânimo. Vou dormir levando ao sono esses pensamentos. Dizem por aí que os pensamentos dos sonhos vão direto para o céu. Tomara que os meus alcancem esta altura. Amanhã nos vemos.

— Até amanhã, Fausta.

As duas velhas, porta a porta, se meteram em suas casas. O silêncio voltou a fechar a noite sobre o povoado.





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Rulfo, Juan Pedro Páramo / tradução e prefácio de Eric Nepomuceno. — Rio de Janeiro: BestBolso, 2008. Tradução de: Pedro Páramo ISBN 978-85-7799-116-7 1. Romance mexicano. I. Nepomuceno, Eric. II. Título

Pedro Páramo – Romance mais aclamado da literatura mexicana, Pedro Páramo é o primeiro de dois livros lançados em toda a vida de Juan Rulfo. O enredo, simples, trata da promessa feita por um filho à mãe moribunda, que lhe pede que saia em busca do pai, Pedro Páramo, um malvado lendário e assassino. Juan Preciado, o filho, não encontra pessoas, mas defuntos repletos de memórias, que lhe falam da crueldade implacável do pai. Vergonha é o que Juan sente. Alegoricamente, é o México ferido que grita suas chagas e suas revoluções, por meio de uma aldeia seca e vazia onde apenas os mortos sobrevivem para narrar os horrores da história. O realismo fantástico como hoje se conhece não teria existido sem Pedro Páramo; é dessa fonte que beberam o colombiano Gabriel Garcia Márquez e o peruano Mario Vargas Llosa, que também narram odisseias latino-americanas.


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32. Pedro Páramo: Tengo la boca llena de tierra - Juan Rulfo


sexta-feira, 24 de fevereiro de 2017

Charles Dickens: Um Conto de Natal 10

Um Conto de Natal


Charles Dickens

10



TERCEIRA ESTROFE  
O segundo dos três espíritos 


Foram muito longe, viram muitas coisas, visitaram muitos lares, semeando sempre o bem por onde passavam. O espírito parava à cabeceira dos enfermos, e os enfermos sorriam; parava em terra estranha, e os exilados acreditavam estar em sua própria pátria; parava perto daqueles que sofriam e lutavam, e logo a esperança renascia em seus corações; detinha-se perto dos pobres, e os pobres julgavam-se ricos. Nos hospitais, como nos asilos e nas prisões, nestes refúgios da miséria, onde o homem orgulhoso não havia usado de sua efêmera autoridade senão para lhe defender a entrada, o espírito espalhava suas bênçãos, ensinando a Scrooge os preceitos da caridade.

Foi uma longa noite, o que o fez suspeitar de que todos os dias de festa do Natal se tinham condensado no espaço de tempo em que eles peregrinaram juntos.

Coisa curiosa! Enquanto Scrooge permanecia o mesmo, o espírito envelhecia a olhos vistos. Scrooge observou esta mudança sem dizer nada, até ao momento em que, deixando uma reunião de crianças, que estavam festejando o dia de Reis, viu que os cabelos do espírito estavam ficando grisalhos.

– A vida dos espíritos é assim tão breve? – perguntou ele.

– De fato, minha vida aqui na terra é bastante curta, respondeu o fantasma. Ela termina esta noite.

– Esta noite mesmo? – exclamou Scrooge.

– À meia-noite. Ouve! A hora aproxima-se.

No mesmo instante, o carrilhão bateu onze e três quartos.

– Perdoai minha pergunta, se ela é indiscreta, – disse Scrooge com os olhos fixos nas roupas do espírito. Esta coisa esquisita que está saindo por baixo da vossa roupa e que não vos pertence, é um pé ou uma garra?


– Tão leve camada de carne o recobre, – disse o espírito com tristeza, que mais poderia ser uma garra. Olha bem.

Das dobras de seu manto, fez sair duas crianças, duas miseráveis criaturas, hediondas, abjetas e repugnantes, que se ajoelharam diante dele e se agarraram ao seu manto.

– Homem insensível, olha! Olha a teus pés! – exclamou o fantasma.

Eram um menino e uma menina. Pálidos, magros e esfarrapados, tinham uma expressão bravia e odiosa, mas ao mesmo tempo rastejante e humilde. Seus rostos, onde deveria ter desabrochado o frescor da juventude, eram macilentos, encarquilhados, desfeitos, como se a mão do tempo os tivesse tocado. Jamais a criação, em seus insondáveis mistérios, produzira mais feios monstros.

Scrooge recuou espantado. Mas, como era o espírito que os estava apresentando, ia dizer que eram belas crianças; as palavras, porém, lhe morreram na garganta, recusando-se a dizer tão monstruosa mentira.

– Espírito, estas crianças são vossas?...

Scrooge não pôde prosseguir.

– São filhos do Homem, – disse o espírito, baixando o olhar sobre ele. Estão agarrados a mim para pedir justiça contra seus pais. Este é a Ignorância, e aquela, a Miséria. Toma cuidado contra um e outro, mas especialmente contra a Ignorância; pois vejo escrito em sua fronte a palavra “condenação” e se esta palavra não for apagada, a predição se cumprirá. – Negai-o, todos vós! – clamou o espírito com voz forte, estendendo a mão sobre a cidade. Caluniai aqueles que vos avisam! Tolerai e encorajai um flagelo que serve para os vossos negros desígnios!... Mas temei o fim!

– E eles não têm nenhum recurso? Não há para eles nenhum refúgio? – exclamou Scrooge.

– Sim? E não há as prisões? – disse o espírito repetindo-lhe ainda uma vez suas próprias palavras. Não há as casas de correção?

O relógio bateu as doze badaladas.

Scrooge procurou o espírito com os olhos e já não o viu mais.

Quando acabou de bater a última badalada, Scrooge lembrou-se da predição de Jacob Marley, e, erguendo os olhos, avistou uma sombra escura inteiramente velada, que avançava para ele, deslizando como a bruma pela superfície do solo. 




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quinta-feira, 23 de fevereiro de 2017

Série: Jazz Para Sempre 10 - James Carter

James Carter



Quando você não sabe o que dizer... escute




James Carter plays Gottsu Mouthpiece Studio Model








Maravilha tudo no buteku
Late night jam session with James Carter in Samoreau #4
Samois sur Seine 2015









Maravilha amanhece ou anoitece... vai saber...
Jam Session with James Carter in Samoreau #5
Samois sur Seine 2015








Django Reinhardt festival 2015








James Carter Organ Trio
Giant Steps - Jazz à la Villette 2014






Série Ballet - Maya Plisetskaya II

Maya Plisetskaya





ah, o corpo... quanto pecado para hipócritas e quanta graça humana para o ballet... prefiro o ballet aos hipócritas





Ballet CARMEN de BIZET
por MAYA PLISETSKAYA
Teatro Bolshoi de Moscou









Carmen suite "habanera"








SWAN LAKE
Black Swan
(Plisetskaya-Kovtun, 1973)








SWAN LAKE
Black Swan
(Plisetskaya debut, 1947)






NiUnaMenos - Cintia Duarte Montill

Agressão não é só física!








Esconde esse absorvente
Essas espinhas
Arranca esses pelos
Da um jeito nesse seu cabelo duro
Mal cuidada
Porca

Feche esse sorriso
Sua mãe não te ensinou
Sobre o perigo de andar sorrindo na rua?
Abaixa essa cabeça
Para de encarar
Você esta chamando atenção
Assim vão achar que você esta dando mole

Delicia
Gostosa
Oh la em casa
Fecha essa boca e não reclama
Saiu de casa de saia curta
Camisa decotada
Maquiagem
Sem um homem
Tem que aguentar

Como assim não sabe cozinhar?
Você é mulher
Tem que cuidar do lar
Como assim não quer engravidar?
Você é mulher
Tem que engravidar

Faculdade? Viagem?
Mas você é mãe
Tem que cuidar
Abriu as pernas, agora não adianta
Largar na creche
Irresponsável

Mãe solteira?
O pai foi embora?
Não sabe quem é o pai?
Transou sem camisinha
Vai ter que aguentar
Vadia

Esse roxo ai
Tenho certeza que apanhou
Que teu marido te bateu
Mas você mereceu
Provocou ele
Você sabe que não pode se levantar
Mulher tem que ser submissa
O homem é que comanda o lar

Ah, mas que criança linda
É uma menina?
Toma aqui esse vestidinho rosa
Essa coberta de florzinhas
Pinta o quarto de rosa
Um rosa bem bonito
Porquê mulher é monocromática durante a infância

Ih, chegou a menarca
Essa vai dar trabalho
Ensina pra ela a se valorizar
Mulher tem que se dar ao respeito
Fala pra ela não deixar ninguém ver esse absorvente
Esse sangue sujo

Vai ter que começar a usar sutiã
Os mamilos estão aparecendo pela camisa
Que coisa horrível
Adolescente descuidada
A mãe dessa ai não ensinou nada

Foi estuprada?
Morreu no processo?
Devia estar pedindo
Sem sutiã, andava sozinha
Aquele batom vermelho
Aquela bunda enorme
Não sabe que menina tem que ficar em casa?
Deu sorte pro azar

Não foi educada
A mãe era solteira
O pai estava é certo de ir embora
Se ela era assim com a filha, imagine com o marido

Não foi respeitada
Opressão?
Imagine

Olha lá a mãe dela
Na beira do caixão
Olhando pro rosto da filha
Sem cor, sem vida
Um futuro morto antes mesmo do nascimento
Filha de mãe solteira
Sem pai, sem respeito

Morreu tão jovem
Aos 17
Uma menina tão linda
Maldita sociedade
Espero que a mãe dela aprenda a lição
E não tenha mais filhos

Suicídio?
Mas ela poderia ter começado uma vida nova
Agora que tinha perdido a filha
Poderia terminar a faculdade
Arrumar um emprego
Mas era uma fraca
Era mulher
O destino, a vida, as possibilidades
As pessoas
Cavaram a cova e jogaram ela lá dentro

Vitimismo? Preconceito?
Abuso? Agressão?
Cala essa boca e vai lavar uma louça
Você tem uma delegacia só sua
Tem seus direitos
Não luta na vida
(Mas luta na rua)
Não morre na guerra
(Mas morre em casa)


- Cintia Duarte Montill



Um pouco do que a maioria das mulheres sofre no dia a dia.
Agressão não é só física!





quarta-feira, 22 de fevereiro de 2017

caminante no hay camino, se hace camino al andar

Joan Manuel Serrat
Por fin Serrat su vuelta a Chile 1990



Caminante No Hay Camino


Todo pasa y todo queda
Pero lo nuestro es pasar
Pasar haciendo caminos
Caminos sobre la mar

Nunca perseguí la gloria
Ni dejar en la memoria
De los hombres mi canción
Yo amo los mundos sutiles
Ingrávidos y gentiles
Como pompas de jabón

Me gusta verlos pintarse de sol y grana
Volar bajo el cielo azul
Temblar súbitamente y quebrarse
Nunca perseguí la gloria
Caminante son tus huellas el camino y nada más
Caminante, no hay camino se hace camino al andar

Al andar se hace camino
Y al volver la vista atrás
Se ve la senda que nunca
Se ha de volver a pisar
Caminante no hay camino sino estelas en la mar

Hace algún tiempo en ese lugar
Donde hoy los bosques se visten de espinos
Se oyó la voz de un poeta gritar
Caminante no hay camino, se hace camino al andar

Golpe a golpe, verso a verso
Murió el poeta lejos del hogar
Le cubre el polvo de un país vecino
Al alejarse, le vieron llorar
"Caminante, no hay camino, se hace camino al andar"

Golpe a golpe, verso a verso
Cuando el jilguero no puede cantar
Cuando el poeta es un peregrino
Cuando de nada nos sirve rezar
Caminante no hay camino, se hace camino al andar

Golpe a golpe, verso a verso









Tras más de 17 años de ausencia por culpa de la dictadura pinochetista, vuelve Serrat a cantar en Santiago de Chile.

Joan Manuel Serrat paralizó el pasado jueves el trabajo en el palacio presidencial de la Moneda, en Santiago de Chile. Cuando llegó a visitar al presidente Patricio Aylwin, las secretarias y funcionarios de la sede del Gobierno se acercaron a él y, desde los mismos balcones que en 1973 sirvieron para la defensa de la democracia ante el golpe de Estado de la junta militar, saludaron al cantante catalán con pañuelos. Vestido con un formal terno azul, Serrat regaló a Aylwin un libro sobre la historia de Cataluña, después de una reunión con el presidente que se prolongó durante 35 minutos. "Estoy absolutamente dispuesto a colaborar con el Gobierno democrático y con los intereses del pueblo chileno en el momento que se requiera", dijo al término de la visita.Tras 17 años de ausencia, el cantante catalán llegó el jueves a Chile, país en el que tuvo prohibida su entrada durante la dictadura de Pinochet, y lo primero que hizo fue visitar la cárcel de Santiago de Chile, donde, sobre una precaria tarima y con una guitarra prestada, cantó a las víctimas, a los luchadores y a los presos políticos.

Después se reunió con Hortensia Bussi, la viuda del ex presidente Salvador Allende, con dirigentes políticos, sociales y de derechos humanos y con los amigos que dejó en Chile en sus visitas anteriores, en 1968 y 1972, durante la democracia. Ofreció una concurrida conferencia de prensa, visitó Valparaíso; ensayó para sus recitales de hoy y mañana en el estadio Nacional, el mismo que sirvió como campo de concentración para prisioneros políticos en 1973; recorrió algunos barrios, y, sobre todo, revivió sus sueños y nostalgias. "Vengo a recuperar el tiempo perdido y a incorporarme al Chile de 1990", dijo Serrat al bajar del avión que le trajo desde Paraguay. Su relación con Chile ha sido "profunda, amarga, abierta por la herida del pronunciamiento del 11 de septiembre de 1973", confesó a los periodistas.

Después del golpe militar, Serrat evitó viajar a Chile, a diferencia de otros cantantes, "para no dar carta de normalidad a un Gobierno no sólo anormal, sino inconstitucional". Sus temas fueron proscritos en los días del terror represivo y su nombre era estandarte clandestino. Los carteles que inundan hoy Santiago con la imagen del catalán dicen: "¡Por fin! Serrat en Chile". No es un lema casual. En dos ocasiones la dictadura impidió su entrada al país. En 1983, en el primer intento, Serrat firmó en la Embajada chilena en Argentina un documento en el que se comprometió bajo juramento a no intervenir en política durante su estancia en Chile. Aun así, cuando ya estaban anunciados sus recitales, el régimen dictó un decreto prohibiendo la entrada de Serrat por emitir juicios "contrarios al supremo Gobierno". El segundo intento fue durante la concentración final de la oposición en el plebiscito de 1988, cuando Chile votó no a la perpetuación de Pinochet en el poder. En la pista de aterrizaje del aeropuerto de Santiago, Serrat fue informado de que su prohibición de entrada seguía vigente. Serrat mandó un mensaje grabado, que escuchó más de un millón de personas en el acto masivo. "Pronto, muy pronto volveremos a estar juntos de nuevo, cuando Chile sea lo que siempre fue: un país ejemplo de libertad, respeto mutuo y paz", decía.





caminante no hay camino









6.O Estrangeiro: Por cima das colinas - Albert Camus

Albert Camus


Capítulo 1


6. Por cima das colinas




Por cima das colinas que separam Marengo do mar, o céu estava cheio de tonalidades de vermelho. E o vento, que passava por cima delas, trazia um cheiro de sal. Era um bonito dia que se estava a preparar. Há muito tempo que não vinha ao campo e teria tido imenso prazer em passear, se não fosse a mãe. Mas pus-me à espera no pátio, debaixo de uma árvore. Respirava o odor da terra fresca e já não tinha sono. Pensei nos colegas do escritório. A esta hora levantavam-se para ir para o trabalho: para mim, era sempre a hora mais difícil. Pensei um pouco mais nestas coisas, mas um sino que tocava no interior dos edifícios distraiu-me.

Houve uma confusão de movimentos por detrás das janelas, e depois tudo se acalmou. O sol estava um pouco mais alto: principiava a aquecer-me os pés. O porteiro atravessou o pátio e veio dizer que o director estava à minha espera. Fui ao escritório deste.

Mandou-me assinar vários documentos. Reparei que estava vestido de preto, com calças de fantasia. Pegou no telefone e dirigiu-me a palavra: "Os empregados da agência funerária já cá estão. Vou lhes dizer para fecharem o caixão. Quer ver a sua mãe pela última vez?" Disse que não. Baixando a voz, deu uma ordem pelo telefone:

"Bigeac, diga aos homens que podem ir".

Disse-me, em seguida, que assistiria ao enterro..

Agradeci-lhe: Sentou-se por detrás da secretária e cruzou as pernas. Informou-me que estaríamos sós, eu e ele, apenas com a presença da enfermeira de serviço. Em princípio, os pensionistas não deviam assistir aos enterros. Deixava-os apenas velar: "uma questão de humanidade", observou. Mas excepcionalmente, dera autorização para seguir o préstito a um velho amigo da minha mãe: "Tomás Perez". Aqui, o director sorriu. Disse-me: "Não sei se compreende, é um sentimento um pouco infantil. Mas ele e sua mãe andavam sempre juntos.





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A Constatação do Absurdo

Nascido e criado entre contrastes fundamentais, Albert Camus desde cedo aprendeu que a miséria engendra uma solidão que lhe é típica, uma austeridade toda sua, uma desconfiança da vida - mas a paisagem desperta uma rica sensualidade, uma eufórica sensação de onipotência, um orgulho desmedido de possuir a beleza inteiramente gratuita. Este aprendizado, feito a meio caminho entre a miséria e o sol, levou-o à consciência do que existe de mais trágico na condição humana: o absurdo, essa irremediável incompatibilidade entre as aspirações e a realidade.


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Camus, Albert, 1913-1960.
              O Estrangeiro
Título Original L'Étranger
Tradução de António Quadros
Edição Livros do Brasil
Lisboa
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Leia também:

5.O Estrangeiro: Ficamos assim durante longos instantes  - Albert Camus

7.O Estrangeiro: No asilo - Albert Camus

O Brasil nação - v1: § 26 – O Padre Feijó - Manoel Bomfim

Manoel Bomfim



O Brasil nação volume 1





PRIMEIRA PARTE
SEQUÊNCIAS HISTÓRICAS



capítulo 3
o novo malogro






§ 26 – O Padre Feijó




A primeira menção, nos homens de 1831, deve ser a do Padre Feijó, a figura mais viva e mais distinta, mais forte e mais nobre, de toda a política de então, de toda a política nacional no Brasil monárquico. Valeu, de fato, como um homem – caráter, vontade, inteligência e ação. Caráter até o extremo da virtude; inteligência profunda, original, lúcida e culta, mais do que qualquer clérigo do seu tempo;116  vontade – incompleta em recursos de congraçamento, mas definitiva como execução. Foi o ânimo dominante nos transes em que organizava a vitória de 1831, e garantiu, com isso, o poder para os moderados – suplantando, ao mesmo tempo, os exaltados e os restauradores. Isso se dava quando, na primeira linha dos que tinham as vantagens e as responsabilidades


116 O valor intelectual de Feijó está patente nos seus pareceres – casamento dos padres, divórcio..., e, sobretudo, no seu Tratado de Lógica, perfeitamente a par da ciência da época, mesmo na parte biológica. Feijó compreendeu melhor as necessidades econômicas do Brasil do que todas as sucessivas camadas dos nossos estadistas. Mal se anunciou o caminho de ferro, tratou de adotá-lo no país.


do poder estavam esses Limas – chefes militares com um longo prestígio, de campanhas e vitórias. Em face do senado, de bragantistas reacionários, mais marqueses do que brasileiros, se Feijó o não suplantou é porque se viu traído pelos companheiros: os Hermeto que, no momento decisivo, vão combater com o inimigo da véspera; os Evaristo, que lhe defendem a política diminuindo-lhe a força, com o achar inconveniente e mau aquilo mesmo que defendem...

Intrinsecamente democrata, ligado à política dos moderados, Feijó manteve absoluta coerência com o programa do seu partido na revolução. Armitage, que, aliás não morre de amores por ele, ao contemplar-lhe a vida, sintetiza assim o seu feitio moral e político: “Era de costumes ultra republicanos...” A coerência do proceder o levou a atos que parecem exageros: um tratado com a Regência e os colegas, ao entrar para o ministério em 1831; uma ortografia pessoal, em meio ao arbitrário da ortografia comum; explícita oposição, apesar de clérigo, às pretensões da Cúria Romana contra o Estado brasileiro. Coerente com o seu ideal de democracia, chegava a reivindicações de efeitos sociais e francamente republicanos. Clérigo, propôs legislação de divórcio e de casamento para os sacerdotes. Abolicionista de coração, uma vez no governo, executou rigorosamente o ajuste que proibia a entrada de africanos escravizados. “Os portugueses estavam desapoderados”, comenta Austricliano de Carvalho (II 289). Nas cortes, nenhum brasileiro foi mais radical – liberdade política e emancipação nacional. Aceitava a revolução constitucional, com tanto que a aplicassem integralmente ao Brasil, pois que isto significava a nossa liberdade. Por isso mesmo, com os quatro companheiros, teve de sair de Lisboa como perseguido pela portuguesada. De volta, no Rio de Janeiro de 1823, encontrando a Independência atamancada por José Bonifácio, Feijó envia ao imperador uma exposição das suas ideias, quanto ao que lhe parece necessário como organização de um Brasil democrático. José Bonifácio se limita a fazer um resumo da exposição; Feijó insiste, e leva pessoalmente a Pedro I a sua exposição, ao mesmo tempo que pede ao governo permissão para publicá-lo. Aparece o opúsculo, e o monarca o considera republicano. Vai o padre para o seu torrão natal, e, lá chegado, já encontra as autoridades oficialmente prevenidas para vigiá-lo – como republicano e carbonário perigoso. Tudo isto por ordem do imperador, em cuja sinceridade e liberalidade Feijó ainda acredita.117  O embusteiro tira a máscara, e quando, em 1824, se pede o parecer das câmaras municipais a respeito da constituição outorgada, Feijó foi um dos raros que, em nome da câmara do seu Itu, fez reservas e propôs várias emendas, no sentido dos seus ideais – descentralização, abolição das condecorações... Não prevaleceram, é de ver, tais emendas, mas Feijó se mantém democrata, para vir a ser, na Assembleia de 1826, um dos mais decididos oposicionistas à política imperial. Nessa qualidade, com Alencar, Custódio Dias, Lino Coutinho... ele fez parte dos moderados. Pediram-lhe para aceitar um lugar no governo, quando a situação era incerta e arriscada: ele aceitou, e salvou o poder atacado por todos os lados. Então, julgou-se capaz de, em forma legal e moderada, realizar o programa de 7 de abril. Na rua, os exaltados,


117 Varnhagem, empenhado em fazer de grandes brasileiros entusiastas do Bragança, seu amo, recorta três linhas de uma carta de Feijó a Pedro I, antes da dissolução, e afirma que o intemerato regente considerava o príncipe embusteiro o fundador da nação brasileira: “O Brasil deve a existência política a V. M... ao desinteresse, a liberalidade e justiça de V. M...” Naquele momento, em começo de 1823, tais conceitos pareceriam justos a Feijó. Não esqueçamos, no entanto, que, desde 1824, ele foi nítida oposição ao Império de Pedro I e aos seus marqueses. Obcecado – por achar motivos conta os Andradas, o Sr. Porto-Seguro os acusa da perseguição que Feijó sofreu em 1823; mas, no desenvolver dos casos, deixa patente que a iniciativa da portaria inquisitorial foi do próprio imperador, e limita a sua acusação a achar que, defendendo-se, em 1932, – de ser o autor da citada portaria, Martim Francisco devia esconder o verdadeiro autor, e não descobrir a coroa... (Hist. da Independ., pág. 121).


justamente descrentes das formas legais, clamavam sublevados, e Feijó, decidido e vigoroso, deu toda a ação de que era capaz, para restabelecer a ordem e salvar os créditos do seu partido – como partido de governo... Grande erro, que entregou a sorte do Brasil à politicagem dos moderados, para a definitiva vitória do senado dos marqueses.

Por que, esse erro?

Feijó, realmente enérgico e inteiriço, tinha a ilusão das próprias forças, e sentia a necessidade de não transigir nem ceder. Assim, resistiu energicamente, eficazmente, à pressão dos companheiros radicais, quando estes quiseram impor-se pela força. Mas, dirá o mesmo Sr. P. da Silva: “Muitas das ideias e princípios dos exaltados eram do seu programa.” Governo, atacado, ele respondeu vigorosamente, e dominou os adversários. Há, no entanto, sua diferença – no modo como foram atacados, já os exaltados, já os restauradores... Para estes é que Feijó foi o inimigo irreconciliável, ao passo que, uma vez senhor da situação, ele não insiste em perseguir os antigos correligionários. E, por isso, os adversários o acusaram de os proteger, como aconteceu no caso da República de Piratinin.118  Foi assim que, abusando da própria força, Feijó veio a despejar, do ministério, o leal companheiro, França, substituindo-o por Vasconcelos, que, depois, contra ele construiu a sua política de regresso e de degradação. Destarte, quando pretendeu apurar os esforços no sentido de cumprir o prometido pelo 7 de Abril, já se achou inteiramente cercado e à mercê dos marqueses do senado,


118 “...nunca perseguiu sistematicamente os exaltados, limitando-se a desterrá-los, geralmente para outros pontos do território nacional...” (De 1831 a 1840 , cap. I). “... despertaram desconfianças os morosos e mesquinhos socorros enviados a reprimir a revolução do Rio Grande do Sul” (Moreira Azevedo, op. cit., pág. 199). Será por isso a tradição de apego dos republicanos rio-grandenses à sua memória, a ponto de que o jornal de propaganda de Venâncio Ayres se chamava – O Padre Feijó. “Feijó mais parecia favorecer e animar os revoltosos que os defensores da legalidade”, no Rio Grande (De 1831 a 1840 , pág. 195).


que lhe negaram a demissão de José Bonifácio, cujo prestígio animava a campanha reacionária dos caramurus. Foi quando se planejou o golpe de Estado de 30 de julho – para a inteira reforma da Constituição, democratizando-a radicalmente. Tudo demonstra, nessa emergência, que faltava a Feijó visão política, senão, ele teria compreendido que, depois da vitória dos marqueses no caso da tutoria, tudo estava perdido: o apelo para o golpe de Estado, o supremo recurso ilegal, sem a justificativa da revolução, era a confissão explícita da derrota. Agora, a situação era dos reacionários.

Apesar de tudo, o Padre Feijó saiu do governo engrandecido, na auréola que nunca mais se dissipou. Intimamente forte e ativo, quis continuar na política, e concorreu muito para o ato adicional. Como vislumbre das últimas esperanças, elegeram-no regente, e ele foi, nas funções majestáticas, o homem puro, probo e simples – de costumes ultra republicanos. Mas, nada mais havia a fazer: passara o momento, tudo sacrificado à ambição torpe de uns, a explorar a estulta sensatez dos outros. Apesar de tudo, o bom do padre continuou a trabalhar pela realidade da democracia no Brasil. Era, nele, uma necessidade irresistível. Um pobre de espírito, o Sr. Pereira da Silva, dirá de Feijó: “Talento mediano (porque não se exaltava em retórica), doutrinas anárquicas (na medida em que eram liberais e democráticas), incoerência de ideias...” – porque não achava que o regime de liberdade fosse parlamentarismo por fora da constituição, como o pretendia Vasconcelos, como o arremedaram depois, no segundo Império.119  Dentro dos seus princípios, Feijó exigia dos outros a sincera aplicação das leis.

119 O caso do planejado golpe de Estado, de 30 de julho, tem sido mal contado. O Sr. P. da Silva, sem maiores provas, insinua que fora de Feijó a iniciativa respectiva. Aliás, tudo consistia em que a Câmara dos deputados votava a reforma da constituição como se fora constituinte, dispensando o Senado. Nada prova que a mesma proposta fosse de Feijó. Mas certo é que ele a adotou bravamente. Depois em 1837, o traidor Hermeto afirmou que fora Feijó o autor da ideia (De 1831 a 1840 , págs. 77 e 215).


Era intransigentemente pelo sistema representativo – expressão da vontade da nação; mas, na prática, propendia para o regime presidencial. Daí sua manifesta antipatia pela ingerência do legislativo nas funções imediatas do governo. De boa-fé, não se pode achar incoerência na atividade de Feijó, aquele que, absolutamente escoimado de haver preparado o levante de 1842, foi pôr-se à frente dele – porque era um protesto em nome das ideias que ele sempre professara, porque nesse movimento se encontravam os seus amigos de sempre. E por ser inteiramente coerente com os princípios que proclamava, e absolutamente probo, ao sair do lugar de chefe da nação, apenas tinha o necessário para transportar-se ao seu Itu.





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"Morreu no Rio aos 64 anos, em 1932, deixando-nos como legado frases, que infelizmente, ainda ecoam como válidas: 'Somos uma nação ineducada, conduzida por um Estado pervertido. Ineducada, a nação se anula; representada por um Estado pervertido, a nação se degrada'. As lições que nos são ministradas em O Brasil nação ainda se fazem eternas. Torcemos para que um dia caduquem. E que o novo Brasil sonhado por Bomfim se torne realidade."

Cecília Costa Junqueira



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O Brasil nação: vol. I / Manoel Bomfim. – 1. ed. – Rio de Janeiro: Fundação Darcy Ribeiro, 2013. 332 p.; 21 cm. – (Coleção biblioteca básica brasileira; 35).


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Download Acesse:

http://www.fundar.org.br/bbb/index.php/project/o-brasil-nacao-vol-i-manoel-bonfim/


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Leia também:


O Brasil nação - v1: § 25 – A política da degradação – 1831-38-40... - Manoel Bomfim

O Brasil nação - v1: § 27 – De Olinda, por Vergueiro e Holanda, a Montezuma - Manoel Bomfim


15. O Guardador de Rebanhos - XV - As Quatro Canções - Alberto Caeiro

Fernando Pessoa





XV - As Quatro Canções




As quatro canções que seguem
Separam-se de tudo o que eu penso,
Mentem a tudo o que eu sinto,
São do contrário do que eu sou ...

Escrevi-as estando doente
E por isso elas são naturais
E concordam com aquilo que sinto,

Concordam com aquilo com que não concordam ...
Estando doente devo pensar o contrário
Do que penso quando estou são.
(Senão não estaria doente),
Devo sentir o contrário do que sinto
Quando sou eu na saúde,
Devo mentir à minha natureza
De criatura que sente de certa maneira ...
Devo ser todo doente — ideias e tudo.
Quando estou doente, não estou doente para outra cousa.

Por isso essas canções que me renegam
Não são capazes de me renegar
E são a paisagem da minha alma de noite,
A mesma ao contrário ...





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O Guardador de Rebanhos
Alberto Caeiro (heterônimo de Fernando Pessoa)
(Fonte: http://www.cfh.ufsc.br/~magno/guardador.htm)


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Leia também:


14. O Guardador de Rebanhos - XIV - Não me Importo com as Rimas - Alberto Caeiro

16. O Guardador de Rebanhos - XVI - Quem me Dera - Alberto Caeiro

terça-feira, 21 de fevereiro de 2017

Dom Casmurro: Que Susto, Meu Deus!

Machado de Assis

Dom Casmurro





CAPÍTULO XXXVIII
 QUE SUSTO, MEU DEUS!



Quando Pádua, vindo pelo interior, entrou na sala de visitas, Capitu, em pé, de costas para mim, inclinada sobre a costura, como a recolhê-la, perguntava em voz alta: 

— Mas, Bentinho, que é protonotário apostólico? 

— Ora, vivam! exclamou o pai. 

— Que susto, meu Deus! 

Agora é que o lance é o mesmo; mas se conto aqui, tais quais, ou dois lances de há quarenta anos, é para mostrar que Capitu não se dominava só em presença da mãe; o pai não lhe meteu mais medo. No meio de uma situação que me atava a língua, usava da palavra com a maior ingenuidade deste mundo. A minha persuasão é que o coração não lhe batia mais nem menos. Alegou susto, e deu à cara um ar meio enfiado; mas eu, que sabia tudo, vi que era mentira e fiquei com inveja. Foi logo falar ao pai, que apertou a minha mão, e quis saber por que a filha falava em protonotário apostólico. Capitu repetiu-lhe o que ouvira de mim, e opinou logo que o pai devia ir cumprimentar o padre em casa dele; ela iria à minha. E coligindo os petrechos da costura, enfiou pelo corredor, bradando infantilmente: 

— Mamãe, jantar, papai chegou!




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Texto de referência:

Obras Completas de Machado de Assis, vol. I,
Nova Aguilar, Rio de Janeiro, 1994.

Publicado originalmente pela Editora Garnier, Rio de Janeiro, 1899.

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Leia também:

Dom Casmurro: Capítulo XXXVII / A Alma É Cheia De Mistérios