domingo, 30 de abril de 2017

Obrigado, Belchior!

Adeus...





apesar de termos feito tudo que fizemos
ainda somos os mesmos
e vivemos
como os nossos pais






Apenas Um Rapaz Latino Americano
Festival de Sucessos, 1976






Apenas Um Rapaz Latino-americano


Eu sou apenas um rapaz
Latino-Americano
Sem dinheiro no banco
Sem parentes importantes
E vindo do interior

Mas trago de cabeça
Uma canção do rádio
Em que um antigo
Compositor baiano
Me dizia
Tudo é divino
Tudo é maravilhoso

Mas trago de cabeça
Uma canção do rádio
Em que um antigo
Compositor baiano
Me dizia
Tudo é divino
Tudo é maravilhoso

Tenho ouvido muitos discos
Conversado com pessoas
Caminhado meu caminho
Papo, som, dentro da noite
E não tenho um amigo sequer
Que ainda acredite nisso não
Tudo muda!
E com toda razão

Eu sou apenas um rapaz
Latino-Americano
Sem dinheiro no banco
Sem parentes importantes
E vindo do interior

Mas sei
Que tudo é proibido
Aliás, eu queria dizer
Que tudo é permitido
Até beijar você
No escuro do cinema
Quando ninguém nos vê

Mas sei
Que tudo é proibido
Aliás, eu queria dizer
Que tudo é permitido
Até beijar você
No escuro do cinema
Quando ninguém nos vê

Não me peça que eu lhe faça
Uma canção como se deve
Correta, branca, suave
Muito limpa, muito leve
Sons, palavras, são navalhas
E eu não posso cantar como convém
Sem querer ferir ninguém

Mas não se preocupe meu amigo
Com os horrores que eu lhe digo
Isso é somente uma canção
A vida realmente é diferente
Quer dizer
Ao vivo é muito pior

E eu sou apenas um rapaz
Latino-Americano
Sem dinheiro no banco
Por favor
Não saque a arma no "saloon"
Eu sou apenas o cantor

Mas se depois de cantar
Você ainda quiser me atirar
Mate-me logo!
À tarde, às três
Que à noite
Tenho um compromisso
E não posso faltar
Por causa de vocês

Mas se depois de cantar
Você ainda quiser me atirar
Mate-me logo!
À tarde, às três
Que à noite
Tenho um compromisso
E não posso faltar
Por causa de vocês

Eu sou apenas um rapaz
Latino-Americano
Sem dinheiro no banco
Sem parentes importantes
E vindo do interior
Mas sei que nada é divino
Nada, nada é maravilhoso
Nada, nada é secreto
Nada, nada é misterioso, não

Na na na na na na na na


Composição: Belchior




Como Nossos Pais







Elis Regina







Velha Roupa Colorida





Velha Roupa Colorida


Você não sente nem vê
Mas eu não posso deixar de dizer, meu amigo
Que uma nova mudança em breve vai acontecer
E o que há algum tempo era novo jovem
Hoje é antigo, e precisamos todos rejuvenescer

Nunca mais meu pai falou: She's leaving home
E meteu o pé na estrada, Like a Rolling Stone
Nunca mais eu convidei minha menina
Para correr no meu carro (loucura, chiclete e som)
Nunca mais você saiu a rua em grupo reunido
O dedo em V, cabelo ao vento, amor e flor, quê de um cartaz

No presente a mente, o corpo é diferente
E o passado é uma roupa que não nos serve mais
No presente a mente, o corpo é diferente
E o passado é uma roupa que não nos serve mais

Você não sente nem vê
Mas eu não posso deixar de dizer, meu amigo
Que uma nova mudança em breve vai acontecer
E o que há algum tempo era jovem novo
Hoje é antigo, e precisamos todos rejuvenescer

Como Poe, poeta louco americano
Eu pergunto ao passarinho: Black bird, Assum-preto, o que se faz?
Haven never haven never haven never haven never haven
Assum-preto, passáro preto, black bird, me responde, tudo já ficou atrás
Haven never haven never haven never haven never haven
Black bird, passáro preto, passáro preto, me responde
O passado nunca mais

Você não sente não vê
Mas eu não posso deixar de dizer, meu amigo
Que uma nova mudança em breve vai acontecer
O que há algum tempo era jovem novo
Hoje é antigo
E precisamos todos rejuvenescer
E precisamos rejuvenescer
E precisamos rejuvenescer



Composição: Antonio Carlos Belchior




Analisando a letra Velha Roupa Colorida






ano passado eu morri
mas esse ano eu não morro




Sujeito De Sorte
(Ao Vivo - 1988)







viver é que é
o grande perigo




Como o diabo Gosta / Antes do Fim






amar e mudar as coisas
me interessa mais



Alucinação




Alucinação


Eu não estou interessado
Em nenhuma teoria
Em nenhuma fantasia
Nem no algo mais
Nem em tinta pro meu rosto
Ou oba oba, ou melodia
Para acompanhar bocejos
Sonhos matinais

Eu não estou interessado
Em nenhuma teoria
Nem nessas coisas do oriente
Romances astrais
A minha alucinação
É suportar o dia-a-dia
E meu delírio
É a experiência
Com coisas reais

Um preto, um pobre
Uma estudante
Uma mulher sozinha
Blue jeans e motocicletas
Pessoas cinzas normais
Garotas dentro da noite
Revólver: cheira cachorro
Os humilhados do parque
Com os seus jornais

Carneiros, mesa, trabalho
Meu corpo que cai do oitavo andar
E a solidão das pessoas
Dessas capitais
A violência da noite
O movimento do tráfego
Um rapaz delicado e alegre
Que canta e requebra
É demais!

Cravos, espinhas no rosto
Rock, Hot Dog
"Play it cool, Baby"
Doze Jovens Coloridos
Dois Policiais
Cumprindo o seu duro dever
E defendendo o seu amor
E nossa vida
Cumprindo o seu duro dever
E defendendo o seu amor
E nossa vida

Mas eu não estou interessado
Em nenhuma teoria
Em nenhuma fantasia
Nem no algo mais
Longe o profeta do terror
Que a laranja mecânica anuncia
Amar e mudar as coisas
Me interessa mais
Amar e mudar as coisas
Amar e mudar as coisas
Me interessa mais

Um preto, um pobre
Uma estudante
Uma mulher sozinha
Blue jeans e motocicletas
Pessoas cinzas normais
Garotas dentro da noite
Revólver: cheira cachorro
Os humilhados do parque
Com os seus jornais

Carneiros, mesa, trabalho
Meu corpo que cai do oitavo andar
E a solidão das pessoas
Dessas capitais
A violência da noite
O movimento do tráfego
Um rapaz delicado e alegre
Que canta e requebra
É demais!

Cravos, espinhas no rosto
Rock, Hot Dog
"Play it cool, Baby"
Doze Jovens Coloridos
Dois Policiais
Cumprindo o seu duro dever
E defendendo o seu amor
E nossa vida
Cumprindo o seu duro dever
E defendendo o seu amor
E nossa vida

Mas eu não estou interessado
Em nenhuma teoria
Em nenhuma fantasia
Nem no algo mais
Longe o profeta do terror
Que a laranja mecânica anuncia
Amar e mudar as coisas
Me interessa mais
Amar e mudar as coisas
Amar e mudar as coisas
Me interessa mais


Composição: Belchior




e nossa esperança de jovens
não aconteceu
não não




Não Leve Flores







Se você vier me perguntar por onde andei
No tempo em que você sonhava
De olhos abertos, lhe direi:
Amigo, eu me desesperava





A Palo Seco




A Palo Seco


Se você vier me perguntar por onde andei
No tempo em que você sonhava
De olhos abertos, lhe direi:
Amigo, eu me desesperava
Sei que assim falando pensas
Que esse desespero é moda em 76
Mas ando mesmo descontente
Desesperadamente eu grito em português
Mas ando mesmo descontente
Desesperadamente eu grito em português

Tenho vinte e cinco anos
De sonho e de sangue
E de América do Sul
Por força deste destino
Um tango argentino
Me vai bem melhor que um blues
Sei que assim falando pensas
Que esse desespero é moda em 76
E eu quero é que esse canto torto
Feito faca, corte a carne de vocês
E eu quero é que esse canto torto
Feito faca, corte a carne de vocês


Composição: Belchior




A noite fria me ensinou a amar mais o meu dia
E pela dor eu descobri o poder da alegria





Fotografia 3x4
1974





Fotografia 3X4


Eu me lembro muito bem do dia em que eu cheguei
Jovem que desce do norte pra cidade grande
Os pés cansados e feridos de andar légua tirana
De lágrimas nos olhos de ler o Pessoa
E de ver o verde da cana

Em cada esquina que eu passava um guarda me parava
Pedia os meus documentos e depois sorria
Examinando o 3x4 da fotografia
E estranhando o nome do lugar de onde eu vinha

Pois o que pesa no norte, pela lei da gravidade
Disso Newton já sabia: cai no sul, grande cidade
São Paulo violento, corre o Rio que me engana
Copacabana, zona norte e os cabarés da Lapa onde eu morei
Mesmo vivendo assim, não me esqueci de amar
Que o homem é pra mulher e o coração pra gente dar
Mas a mulher, a mulher que eu amei
Não pode me seguir não

Esses casos de família e de dinheiro eu nunca entendi bem
Veloso, o sol não é tão bonito pra quem vem do norte e vai viver na rua
A noite fria me ensinou a amar mais o meu dia
E pela dor eu descobri o poder da alegria
E a certeza de que tenho coisas novas
Coisas novas pra dizer

A minha história é talvez
É talvez igual a tua, jovem que desceu do norte
Que no sul viveu na rua
Que ficou desnorteado, como é comum no seu tempo
Que ficou desapontado, como é comum no seu tempo
Que ficou apaixonado e violento como você
Eu sou como você
Eu sou como você
Eu sou como você que me ouve agora
Eu sou como você
Como você



Composição: Belchior






aqui o lp (esse bolachão eu tenho)


BELCHIOR
ALUCINAÇÃO (1976)
LP Completo 




LADO A
0:00 - Apenas Um Rapaz Latino Americano
4:17 - Velha Roupa Colorida
9:06 - Como Nossos Pais
13:46 - Sujeito de Sorte
17:02 - Como o Diabo Gosta

LADO B
19:06 - Alucinação
24:00 - Não Leve Flores
28:12 - A Palo Seco
31:08 - Fotografia 3x4
36:31 - Antes do Fim




não sou feliz, mas não sou mudo:
hoje eu canto muito mais





Galos Noites e Quintais




Galos, Noites e Quintais


Quando eu não tinha o olhar lacrimoso,
que hoje eu trago e tenho;
Quando adoçava meu pranto e meu sono,
no bagaço de cana do engenho;
Quando eu ganhava esse mundo de meu Deus,
fazendo eu mesmo o meu caminho,
por entre as fileiras do milho verde
que ondeia, com saudade do verde marinho:

Eu era alegre como um rio,
um bicho, um bando de pardais;
Como um galo, quando havia...
quando havia galos, noites e quintais.
Mas veio o tempo negro e, à força, fez comigo
o mal que a força sempre faz.
Não sou feliz, mas não sou mudo:
hoje eu canto muito mais



Composição: Belchior



sexta-feira, 28 de abril de 2017

2. Memórias na Pele

Memórias na Pele


Maria Helena Weber




2. Viviane, respondendo a carta de P.


Olá escritor! Desculpas iniciais por desapontá-lo com uma não-carta. Isto é uma gravação. Como devo te chamar: Pedro ou Paulo? Não te darei uma carta assinada como tua ex-namorada, porque não quero te ajudar no livro que escreves para resolver a tua vida. Tão simples e tão românticas as soluções que encontras! Continuas igual: cartas para colocares a vida em ordem. Deverias abrir uma clínica e todos poderíamos ser felizes com as tuas técnicas, ou então, talvez, tenhas que decorar o poema “peço perdão à alma por todas vezes que o poema substitui o gesto, altera o encontro, abranda o choque”. O nome é “Dor(?)”.

Mas, quando vi aquele pacotão no saguão do edifício e o nome do remetente, quase desmaiei. Não dormi. Li todo o teu romance, tão rapidamente quanto a curiosidade e saudade permitiriam. Li novamente, num final de semana em Maceió, numa praia verde, antiga e sem nome. Adorarias! Teu pacote de folhas te trouxe para perto e me fez viajar. Primeiro fiquei imaginando como me descobriras, como seguraste a caneta para escrever o bilhete.

Sabe, meus quadros deixam pedaços de mim em Nova Iorque, Milão, Rio, mas aí em Porto Alegre está o maior pedaço da minha vida, de coisas não resolvidas, não realizadas. Assim, gostei de te sentir, de tocar em ti nos teus textos. De te imaginar. Adoro, ainda, esse teu jeito comportado de ser e a forma descarada de escrever.

Estou confusa, Paulo. Como sempre, Pedro. Não sei escrever e sabes disto e, no entanto, me pedes uma carta. Não soube tirar-te de mim e, mesmo assim, me pedes para lembrar parte da minha vida e justamente aquela em que perdi a batalha, ou melhor, te perdi. Por quê? Para quê? Minha forma de expressão são os rabiscos, as linhas, as convergências, as sombras... Desculpas, então, professor, pelos erros e ideias em desalinho.

Vem me abraçar!

Eu poderia ter respondido com um belo desenho onde o teu lado cagão apareceria junto a uma mulher – não tão grande como insistes em me descrever – e grades ou, como imaginei inúmeras vezes: de costas, misturado às areias. Metafóricos dirias. Tua literatura, o conto com o meu nome “Viviane” cutuca e classifica todo o meu trabalho de criação, daquela época, como mera “reprodução de grades e antiguidades”. Lembrei de como te odiava porque sequer tentavas entender como eu vivia em meio àquela loucura que denominas “Tratado Geral da Reunião Dançante” e chamas de teu livro. Afinal, éramos universitários infantis, não? Eu querendo o novo, a vanguarda, e tu, dependente de crenças, de uma revolução, e sem coragem para entrar nela. E o meu trabalho era a arte “burguesa e tão inconsequente”. Ouvia sempre “há tempo para que as coisas aconteçam juntas e a seu tempo”. Lembras destas frases lapidares? Continuam gravadas na mágoa que, descubro mais uma vez, ainda carrego.

Sempre tão organizado, tão Virgem e... tão amado. Te amava, sabias? De um jeito confuso, te misturando às minhas linhas e riscos, mas te amava. De um jeito único e talvez o único homem, também.

Queres um pouco de vinho francês? Estou abrindo a segunda garrafa.

O intocável é sempre o desejado, professor? Continuas querendo o que não podes ter e te agarrando ao que te é dado?

Não quero te ajudar a escreveres um livro sobre amores adolescentes e as frustrações político-ideológicas da década de sessenta, da nossa complicada e desbravadora geração. Quero me ajudar a te entender em mim. O que falo me é mais necessário do que a ti, certamente, já que não poderás usar o que eu não escrevi nem assinei. Talvez esta seja a hora de pensar e escrever a minha história...

Que este som fique entre nós.

Eu, pelo menos, tenho a possibilidade de culpar este magnífico vinho ou a saudade que provocaste. Afinal as minhas palavras sempre te “atropelaram”, não? Nunca compreendeste que não eras atropelado pela minha fala e sim pelo fato de eu ser mulher, da cabeça aos pés e por estarmos atravessando o histórico impasse masculino/feminino. Eu já sabia o que me fazia bem. Era mais livre do que tu. Sabia ir além das minhas grades, da minha criação. Enquanto eu as pintava tu as tinha gravadas na pele e na alma. O que te atropelava era o fato de eu demonstrar como te queria e não suportavas ser amado e desejado de corpo e alma. Só a tua cabeça estava liberada para ser querida. Sonhavas com todas as mudanças, mas querias toda segurança. Até família e virgindade!

Desculpas pelas gargalhadas.

Continuas sem saber nada de mim. Não sou do PT, caríssimo. Apenas noticiaram a participação, com algumas obras minhas, para a campanha daquele nosso eterno amigo a candidato. Não sou professora, embora tenha alguns alunos, artistas, interessados na minha técnica. Desculpa-me pelo desapontamento, mas ainda faço as coisas sem vínculos e não acredito em política.

Nunca pensei que pudesse usar a palavra “torturar” junto a minha lembrança, mesmo sendo naquele capítulo medroso da tua ficção, caro não-namorado. Sempre domaste tão bem as tuas relações, reagindo adequadamente e controlando emoções. Enfim, sempre me tocas no fundo. Não estou envergonhada em abrir todas as comportas, provocada por este momento, mesmo não conseguindo ser gentil, como a tua personagem Viviane. A carta desencadeou em mim tua masculina lembrança. Lembro a sensação de implodir, quando te olhava, ou ao te encontrar; sensações de morte e cegueira, coração saindo pela boca e a impressão que todos percebiam quando dançávamos e sempre dançaste mal. Mas inesquecível e doloroso era o prazer molhado entre as pernas, que nunca tocaste, mesmo brincando de namoradinhos. Odeio lembrar o passeio das minhas mãos substituindo teu corpo. Me ensinaste, professor, a solidão do amor, os tamanhos da mágoa, a magia da possibilidade e a angústia da expectativa na tua frase predileta: “temos que esperar um pouco mais”. E escreves no teu romance “nada aconteceu”. Nada, Paulo? Nós, as fêmeas, crescíamos e vocês, além de exercitarem o machismo, explicavam intelectualmente o amor e, assim, não conseguiam nos enquadrar nem na categoria puta, e nem na de futura esposa. E, em teu benefício, eu era – antes de mulher – uma artista assexuada. Meu jeito te assustava.

Para que tudo isso, agora?

Minha proximidade te assusta? Ainda gostas da minha voz quente?

Claro que tomei muito vinho e, para rimar, fumei unzinho necessário a esta catarse, não achas?

Não, não pretendo te machucar.

Também nunca fiz terapia ou análise e tu? Duvido! Sempre foste supercompetente para viver. Nunca expliquei, num divã, que existia um cara que eu desejava muito, nem descrevi o desejo de me enroscar em ti, viver junto, nos experimentar. Falar do cara que curtia uma artista plástica, ótima para o seu particular currículo. Sempre tive a sensação de te tocar sozinha. Adaptava roupas para te agradar, pensando num olhar diferente. Todas se maquiavam menos eu porque disseras algo sobre o natural, a luz na pele (num poema) e assim eu seguia, acreditando em ti. Talvez a minha “segurança” te atropelasse...

Viraste a fita, bem?

Naquela época, eu acreditava que entenderias qualquer linguagem e a vontade de ti escapando por todos os meus poros, olhos e pelos. Mas era o eterno te-levo-em-casa e “tu és tão bacana”, arrematados com o pior “Vivi, mereces sempre o melhor”. Porra, cara, doía. E eu pintava e pintava e não tinha coragem de falar em nós, de me ouvir, de te ver contra a parede e, assim, ia suportando as desculpas e a dor. Quanto masoquismo em vão!

Então, viva a arte e o vinho que me sustentam!

Num belo dia viajei para sempre (com lágrimas e rancores), fiz sucesso e, pelo menos, saí de perto do teu jugo. Continuei te querendo, ao ponto de não conseguir responder tuas cartas. Agora, centenas de séculos depois, simplesmente, me apresentas a tua vida e a da tua turma, devidamente encadernadas e acompanhadas de um bilhete gelado, como teu jeito de beijar. Um beijo, uma única vez, lembras?

Me delicia estares me ouvindo.

Pensas em mim? Mais ou menos bonita? Mais gorda ou magra? Com rugas? Cabelos longos curtos, claros, escuros? Nem interessa, gosto mais de mim hoje, e a tua opinião nada mudaria. Quanto a ti de vez em quando, faço linhas onde penso te ver. É verdade, àqueles a quem se ama, há sempre uma janela aberta e... vieste por carta escancarando todas.

Vem me abraçar!

Já estou no final da garrafa e o fogo da lareira está diminuindo, como eu. Mas há mais vinho e lenha para continuar.

Não, não tenho marido, namorados, ou amantes fixos. Sabe, as mulheres sempre me trataram melhor ou foi esta desculpa que arranjei para não ter grandes amores, para não te esquecer ou para te agredir... não sei. Me apaixonei por algumas mulheres, pelo prazer da linguagem bonita e suave dos corpos iguais. Afinal eu sou artista, não? Lembro da tua frase mais cruel e simplificadora sobre “como as mulheres conseguiam amar os homens, tão rudes, tão insensíveis, etc”. Foi tão difícil contigo, com todos os outros, iguais, com a tua cara e... foi mais simples com as minhas iguais. Mas não houve uma história de amor. Continuo em busca do prazer, fugindo do amor ou daquilo que, imagino, seja o amor. Imaturo? Por que não? Despertei algumas paixões mas fiquei sempre na minha: o prazer sem encucações, de qualquer jeito. Confesso, no entanto, ter imaginado, muitas vezes, como seria fazer amor contigo e sempre gostei da visão.

Um golinho, um baseadinho?

Para teu conhecimento, esta doce criança que “vos fala” juntou às descobertas sexuais todas as loucuras apresentadas e à supersolidão e liberdade algumas drogas, viagens e experiências interessantes, daquelas que mudam o jeito de enxergar o mundo. Não deves ter passado nem perto disso tudo! De brinde, grandes ressacas, grandes tombos, desilusões, mas consegui apagar a luz quando foi preciso e nem pirei. Já transaste em grupo? Duvido! Devias experimentar. É também uma forma interessante de se esconder, embora a exposição chegue ao máximo. Gosto de sexo, de qualquer jeito. Não fica vermelho! Transo com homens, também. Prefiro garotos desencucados. Há uma aprendizagem mútua, sem cobranças. Podes até achar que não sei amar, que não me entrego, que estou fingindo. Pode ser. Aliás tudo pode ser real. Depende da intenção.

Estou me guardando para viver um grande amor. Topas?

Talvez em janeiro eu faça uma exposição aí.

Desculpa o riso.

Gosto, também, daqueles homens que transam todas e tudo. Minha vida sexual não é tão enlouquecida quanto parece (para a tua cabeça), mas faço questão de te dizer: ela não é igual aos meus riscos, simples e solitários. Atualmente, atravesso uma fase muito produtiva e, então, vejo pouquíssimas pessoas – nem fazem falta – e estou tranquila no meu mundo. Até pode ser uma fuga e daí?

E se eu voltasse? Desmancharia a minha imagem na tua cabeça?

Vem até aqui, para cá, para perto de mim! Afita está acabando e eu estou com muito sono. O dia pretende amanhecer.

P., sempre casarás com Veras Lúcias, tuas personagens, terás sempre muitos filhos e tentarás pensar que tudo isso é amor. Embora eu sempre tenha tido a certeza sobre a tua possibilidade de explodir, de enlouquecer um pouco.

Vem explodir comigo, Paulo! Recuperar alguma coisa... te ver um pouquinho... me apresentar... te expulsar de mim...

Achas, realmente, que um livro vai resolver a tua vida? Isto é, no mínimo, cinismo. De minha parte, a arte deve me expor à vida e não resolvê-la. De qualquer jeito, em qualquer espaço. Teria tanto para te contar sobre a vida!

Comprarei teu livro, é claro!

Vou dormir. Recuperar um sonho antigo cheio de janelas antigas, cheiros de Porto Alegre e nós.

Lembras desta música? Ouve bem. O monólogo está terminando.

Um beijo com vinho, professor.

Um clique, por enquanto.



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WEBER, Maria Helena
Editora Igel/Instituto Estadual do Livro, 1989. Porto Alegre


Apresentação da autora no livro Memórias na pele, publicado em 1989, em Porto Alegre:
“Natural da cidade de Caxias do Sul, Maria Helena Weber atua, já há alguns anos, na área da literatura, como autora de textos infantis e teatrais. Obteve a premiação, em 1982, pela FUNARTE, com o trabalho denominado Âmbula, que alia as artes gráficas às artes plásticas. Atualmente exerce atividades como professora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, onde coordena o Curso de Comunicação Social.”


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Leia também:

1. Memórias na Pele



Memórias Póstumas de Brás Cubas: Na Sege

Machado de Assis


Memórias Póstumas de Brás Cubas








CAPÍTULO XL / NA SEGE





Nisto entrou o moleque trazendo o relógio com o vidro novo. Era tempo; já me custava estar ali; dei uma moedinha de prata ao moleque; disse a Marcela que voltaria noutra ocasião, e saí a passo largo. Para dizer tudo, devo confessar que o coração me batia um pouco; mas era uma espécie de dobre de finados. O espírito ia travado de impressões opostas. Notem que aquele dia amanhecera alegre para mim. Meu pai, ao almoço, repetiu-me, por antecipação, o primeiro discurso que eu tinha de proferir na Câmara dos Deputados; rimo-nos muito, e o sol também, que estava brilhante, como nos mais belos dias do mundo; do mesmo modo que Virgília devia rir, quando eu lhe contasse as nossas fantasias do almoço. Vai senão quando, cai-me o vidro do relógio; entro na primeira loja que me fica à mão; e eis me surge o passado, ei-lo que me lacera e beija; ei-lo que me interroga, com um rosto cortado de saudades e bexigas...

Lá o deixei; meti-me às pressas na sege, que me esperava no Largo de São Francisco de Paula, e ordenei ao boleeiro que rodasse pelas ruas fora. O boleeiro atiçou as bestas, a sege entrou a sacolejar-me, as molas gemiam, as rodas sulcavam rapidamente a lama que deixara a chuva recente, e tudo isso me parecia estar parado. Não há, às vezes, um certo vento morno, não forte nem áspero, mas abafadiço, que nos não leva o chapéu da cabeça, nem rodomoinha nas saias das mulheres, e todavia é ou parece ser pior do que se fizesse uma e outra coisa, porque abate, afrouxa, e como que dissolve os espíritos? Pois eu tinha esse vento comigo; e, certo de que ele me soprava por achar-me naquela espécie de garganta entre o passado e o presente, almejava por sair à planície do futuro. O pior é que a sege não andava.

— João, bradei eu ao boleeiro. Esta sege anda ou não anda?

— Uê! nhonhô! Já estamos parados na porta de sinhô conselheiro.





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Texto-fonte: 
Obra Completa, Machado de Assis, 
Rio de Janeiro: Editora Nova Aguilar, 1994. 


Publicado originalmente em folhetins, a partir de março de 1880, na Revista Brasileira.


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Memórias Póstumas de Brás Cubas: Capítulo XLI / A Alucinação


Memórias Póstumas de Brás Cubas: Prólogo e AO LEITOR



quinta-feira, 27 de abril de 2017

11.O Estrangeiro: Hoje trabalhei muito - Albert Camus

Albert Camus


Capítulo 3


11. Hoje trabalhei muito




Hoje trabalhei muito, no escritório. O chefe foi amável. Perguntou-me se eu não estava cansado e quis saber a idade da mãe. Para não me enganar, respondi "Uns sessenta e tal", e, não sei porque, ficou com um ar aliviado, um ar de "assunto arrumado". Havia imensas cartas a responder, amontoadas sobre a minha secretária e tive que lhes dar seguimento. Antes de deixar o escritório para ir almoçar, lavei as mãos. Ao meio-dia, gosto sempre de o fazer, à tarde, não tanto, porque a toalha rolante já está muito úmida: serviu durante todo o dia.

Uma vez fiz esta mesma observação ao chefe. Respondeu-me que era aborrecido, mas que se tratava de um pormenor sem importância. Saí um pouco mais tarde, ao meio-dia e meia hora, com o Manuel, que trabalha na expedição. O escritório dá para o mar e perdemos alguns instantes a olhar para os barcos de carga, no porto ardente de sol. Neste momento passou um caminhão, fazendo um enorme barulho de correntes e de explosões. O Manuel perguntou-me "se aproveitávamos" e eu comecei a correr. O caminhão ultrapassou-nos e lançámo-nos a toda a velocidade atrás dele. Sentia-me inundado de poeira e de ruído. Não via nada e sentia apenas este impulso desordenado da corrida, no meio de guindastes e de máquinas, de mastros que dançavam no horizonte e de cascos de navios. Fui o primeiro a agarrar-me e atirei-me num salto. Depois, ajudei o Manuel a sentar-se. Estávamos sem fôlego, o caminhão ia aos saltos no pavimento irregular do cais, por entre a poeira e o sol. O Manuel ria-se a bandeiras despregadas. Chegamos todos suados ao restaurante do Celeste, que lá estava como sempre, com a sua barriga gorda, o seu avental e os seus bigodes brancos. Perguntou-me "se eu me sentia bem".

Disse-lhe que sim e que estava com fome. Comi muito depressa e tomei um café. Depois voltei para casa, dormi um bocado porque bebera vinho demais e, ao acordar, tive vontade de fumar. Fazia-se tarde e corri para apanhar um eléctrico. Trabalhei toda a tarde. Fazia muito calor no escritório e à tarde, à saída, gostei de passear lentamente ao longo do cais. O céu estava verde e eu sentia-me contente. Mas apesar disso fui diretamente para casa, pois queria cozer umas batatas. Ao subir, na escada escura, choquei com o velho Salamano, meu vizinho de andar. Ia com o cão. Há oito anos que não se largam. O rafeiro tem uma doença de pele que lhe fez cair todo o pelo e que o cobre de manchas e de crostas. À força de viver com ele, os dois sozinhos num pequeno quarto, o velho Salamano acabou por ficar parecido com o cão. Quanto ao cão, tomou do dono uma espécie de ar curvado, focinho para a frente e pescoço estendido. Parecem da mesma raça, e no entanto detestam-se. Duas vezes por dia, às onze e às seis horas, o velho leva o cão a passear. Fazem há oito anos o mesmo itinerário.

Seguem ao longo da rua de Lyon, o cão a puxar pelo homem até o fazer tropeçar. Põe-se então a bater no bicho e a insultá-lo. O cão roja-se cheio de medo e deixa-se arrastar. Nesse momento é o velho quem tem que puxar. Quando o cão se esquece, põe-se outra vez a puxar e é outra vez espancado e insultado. Ficam então os dois no passeio e olham-se, o cão com terror, o homem com ódio. É assim todos os dias. Quando o cão quer fazer as suas necessidades, o velho não lhe dá tempo e arrasta-o: Se por acaso o cão "faz" no quarto, também lhe bate. Isto dura há oito anos. O Celeste diz que "é uma pena", mas no fundo ninguém pode saber. Quando encontrei o Salamano nas escadas, ia a insultar o cão: "Bandido! Cão nojento!" Eu disse: "Boas noites", mas o velho continuava a insultá-lo: Perguntei-lhe o que é que o cão tinha feito. Não me respondeu. Dizia apenas: "Bandido! Cão nojento!". Percebi que, debruçado sobre o animal, estava a arranjar qualquer coisa na coleira. Falei mais alto. Então, sem se voltar para trás, respondeu-me com uma espécie de raiva reprimida: "Está sempre aqui!". Depois foi-se embora puxando pelo cão, que chorava e se deixava arrastar. Neste instante preciso, entrou o meu segundo vizinho de andar. No bairro, corre o boato que vive à custa das mulheres. Mas quando lhe perguntam qual é o emprego que tem, responde que é "lojista". Em geral, não gostam dele. Mas fala muitas vezes comigo e às vezes entra em minha casa, porque sou dos poucos que o escutam. Acho que diz coisas com muito interesse. Aliás, não tenho nenhum motivo para não lhe falar. Chama-se Raimundo Sintès. É baixo, com uns ombros largos e um nariz de pugilista. Anda sempre vestido muito corretamente. Também ele diz, ao falar do Salamano: "uma pena!" Perguntou-me se aquilo não me incomodava e eu respondi-lhe que não. Subimos e eu ia deixá-lo, quando me disse: "Tenho lá em casa vinho e chouriço. Não quer vir petiscá-lo comigo?" Pensei que isso me evitaria ter que fazer o jantar e aceitei. A casa dele compõe-se apenas de um quarto e de uma cozinha sem janela. Por cima da cama, veem-se um anjo de estuque, branco e cor-de-rosa, retratos de campeões e duas ou três fotografias de mulheres nuas. O quarto estava sujo. e a cama por fazer. Primeiro, acendeu a lâmpada de petróleo, depois colocou na mão direita uma ligadura pouco limpa.

Perguntei-lhe o que é que tinha na mão. Respondeu-me que jogara à pancada na rua com um tipo que se metera com ele. - "Não sei se sabe, senhor Meursault, disse, não é que eu seja mau, o que sou é nervoso. O outro disse-me: "Se és homem, desce do eléctrico". Respondi-lhe: "Vá, sossega, tem calma". Disse-me que eu não era um homem. Então desci e disse-lhe: "É melhor que te cales, ou parto-te a cara". Respondeu-me: "Sempre queria ver". Então dei-lhe um soco. Caiu. Quando eu o ia a ajudar a levantar, começou do chão a dar-me pontapés. Então dei-lhe uma joelhada e dois "bicanços". Tinha a cara cheia de sangue. Perguntei-lhe se queria mais. Disse que não." Entretanto, Sintès ia enrolando a ligadura. Eu estava sentado na cama. Disse-me: "Como vê, não fui eu que comecei. Ele é que quis". Reconheci que era verdade. Declarou-me então que, justamente, queria pedir-me um conselho a propósito deste assunto, que eu sim, era um homem, que conhecia a vida, que podia ajudá-lo e que, em seguida, ficaria meu amigo. Não respondi e ele perguntou-me se eu queria ser amigo dele. - Repliquei que tanto me fazia: ele ficou com um ar contente. Tirou o chouriço de um armário, assou-o no fogão, e pôs em cima da mesa copos, pratos, talheres e duas garrafas de vinho. Tudo isto sem dizer uma palavra. Depois instalamo-nos. Enquanto comia, começou a contar-me a história toda. Ao princípio, hesitava um bocadinho. "Conheci uma senhora... Essa senhora... era minha... amante, por assim dizer..." O homem com quem lutara era irmão dessa mulher. Disse-me que a tivera por sua conta. Não respondi nada, mas ele sentiu-se na necessidade de acrescentar imediatamente que sabia muito bem
os boatos que corriam no bairro, mas que só respondia perante a sua consciência, e que tinha a profissão de lojista. "Voltando ao assunto, disse ele, a certa altura percebi que qualquer coisa não jogava certo". Dava-lhe dinheiro suficiente para viver. Pagava-lhe mesmo o quarto e ainda vinte francos por dia para alimentação. "Trezentos francos para o quarto, seiscentos francos para a comida, um par de meias de vez em quando, eram bem uns mil francos por mês." E Sua Excelência não trabalhava!

Mas dizia-me que era pouco, que o que eu lhe dava não era suficiente. E no entanto, eu dizia-lhe: "Porque é que não arranjas um trabalho, nem que seja por meio dia? Já me aliviavas um bocado. Este mês comprei-te um vestido, dou-te vinte francos por dia, pago-te a renda e tu, passas as tardes a tomar café com as amigas. Dás-lhes o café e o açúcar. Portei-me bem contigo e tu não me pagas na mesma moeda". Mas ela não trabalhava, dizia que não era capaz e foi assim que percebi que me andava a enganar." Contou-me que lhe encontrara dentro da carteira um bilhete de lotaria e que ela não soubera explicar como arranjara dinheiro para o comprar. Mais tarde, encontrara-lhe uma senha de casa de penhores, provando que empenhara duas pulseiras. Até aí, ignorara a existência dessas pulseiras. "Percebi perfeitamente que aqui andava gato. Então abandonei-a. Mas primeiro cheguei-lhe. E disse-lhe meia dúzia de verdades. Disse-lhe que o que ela queria, era divertir-se. E disse-lhe também, sr. Meursault:

"Não vês que todos têm inveja da felicidade que te dou? Ainda acabarás por ter saudades da felicidade que tinhas..." Espancara-a até a deixar cheia de sangue. Antes disso, não lhe batia. "Ou por outra batia-lhe, mas ternamente, por assim dizer. Chorava um bocadinho. Eu fechava as persianas e o caso terminava como sempre. Mas agora, foi a sério. E quanto a mim, ainda não a castiguei bastante".


Explicou-me nesta altura que era por isto que precisava de um conselho. Calou-se para regular a torcida do candeeiro. Eu, -continuava a ouvi-lo. Bebera quase um litro de vinho e sentia muito calor nas fontes. Como os meus se haviam acabado, fumava os cigarros do Raimundo. Passavam na rua os últimos elétricos, levando com eles os ruídos agora longínquos do bairro. Raimundo continuou a falar. O que o aborrecia, "era ainda sentir necessidade física dela". Mas queria castigá-la. Primeiro pensara levá-la para um hotel e chamar a polícia de costumes para provocar um escândalo e ser-lhe passada uma carta de profissional. Depois, dirigira-se a uns amigos que pertenciam a um meio duvidoso. Estes não tinham tido nenhuma ideia. E, como me sublinhava Raimundo, valia realmente a pena serem desse meio, para nem ideias terem! Dissera-lhes isso mesmo e eles tinham-lhe então proposto "marcá-la". Mas não era ainda o que ele queria. Precisava de pensar muito. Mas antes, queria perguntar-me uma coisa.
 





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A Constatação do Absurdo

Nascido e criado entre contrastes fundamentais, Albert Camus desde cedo aprendeu que a miséria engendra uma solidão que lhe é típica, uma austeridade toda sua, uma desconfiança da vida - mas a paisagem desperta uma rica sensualidade, uma eufórica sensação de onipotência, um orgulho desmedido de possuir a beleza inteiramente gratuita. Este aprendizado, feito a meio caminho entre a miséria e o sol, levou-o à consciência do que existe de mais trágico na condição humana: o absurdo, essa irremediável incompatibilidade entre as aspirações e a realidade.


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Camus, Albert, 1913-1960.
              O Estrangeiro
Título Original L'Étranger
Tradução de António Quadros
Edição Livros do Brasil
Lisboa
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Leia também:

10.O Estrangeiro: O céu estava puro - Albert Camus


12.O Estrangeiro: De resto, antes de me perguntar - Albert Camus

quarta-feira, 26 de abril de 2017

O Massacre Em Guernica

Guernica




Uma cidadezinha basca da Espanha que entrou para a história por todos os motivos errados














Guernica

Alain Resnais e Robert Hessens (1950)










O Segundo Sexo - 7. Fatos e Mitos: a mulher?

Simone de Beauvoir



7. Fatos e Mitos


Primeira Parte
Destino

CAPITULO I
OS DADOS DA BIOLOGIA




 : a mulher?




A MULHER? É muito simples, dizem os amadores de fórmulas simples: é uma matriz, um ovário; é uma fêmea, e esta palavra basta para defini-la. Na boca do homem o epíteto "fêmea" soa como um insulto; no entanto, ele não se envergonha de sua animalidade, sente-se, ao contrário, orgulhoso se dele dizem: "É um macho!" O termo "fêmea" é pejorativo, não porque enraíze a mulher na Natureza, mas porque a confina no seu sexo. E se esse sexo parece ao homem desprezível e inimigo, mesmo nos bichos inocentes, é evidentemente por causa da inquieta hostilidade que a mulher suscita no homem; entretanto, ele quer encontrar na biologia uma justificação desse sentimento. A palavra fêmea sugere-lhe uma chusma de imagens: um enorme óvulo redondo abocanha e castra o ágil espermatozoide; monstruosa e empanturrada, a rainha das térmitas reina sobre os machos escravizados; a fêmea do louva-a-deus e a aranha, fartas de amor, matam o parceiro e o devoram; a cadela no cio erra pelas vielas, deixando atrás uma esteira de odores perversos; a macaca exibe-se impudentemente e se recusa com faceirice hipócrita; as mais soberbas feras, a leoa, a pantera, deitam-se servilmente para a imperial posse do macho. Inerte, impaciente, matreira, insensível, lúbrica, feroz, humilhada, o homem projeta na mulher todas as fêmeas ao mesmo tempo. E o fato é que ela é uma fêmea. Mas se quisermos deixar de pensar por lugares-comuns, duas perguntas logo se impõem: Que representa a fêmea no reino animal? E que espécie singular de fêmea se realiza na mulher?




***

Machos e fêmeas são dois tipos de indivíduos que, no interior de uma espécie, se diferenciam em vista da reprodução: só os podemos definir correlativamente. Mas é preciso observar que o próprio sentido do seccionamento das espécies em dois sexos não é muito claro.

Na natureza ele não se acha universalmente realizado. Para só falar dos animais, sabe-se que entre os unicelulares — infusórios, amebas, bacilos etc. — a multiplicação é fundamentalmente distinta da sexualidade, com as células dividindo-se e subdividindo-se solitariamente. Entre alguns metazoários, a reprodução opera-se por esquizogênese, isto é, fracionamento do indivíduo cuja origem é também assexuada; ou por blastogênese, isto é, fracionamento do indivíduo produzido ele próprio por um fenômeno sexual; os fenômenos de gemiparidade e de segmentação observados na hidra de água doce, nos celenterados, nas esponjas, nos vermes, nos tunicários são exemplos conhecidos. Nos fenômenos de partenogênese, o ovo virgem desenvolve-se em embrião sem intervenção do macho; este não desempenha papel algum ou apenas um papel secundário: os ovos de abelha não fecundados subdividem-se e produzem zângãos; entre os pulgões não existem machos durante uma série de gerações e os ovos não fecundados dão fêmeas. Reproduziu-se artificialmente a partenogênese no ouriço-do-mar, na estrela-do-mar, na rã. Entretanto ocorre, às vezes, entre os protozoários duas células femininas fusionarem, formando o que se chama um zigoto; a fecundação é necessária para que os ovos da abelha engendrem fêmeas e para que os dos pulgões deem machos. Certos biólogos chegaram à conclusão de que, mesmo nas espécies capazes de se perpetuarem de maneira unilateral, a renovação do germe mediante uma mistura de cromossomos estranhos seria útil ao rejuvenescimento e ao vigor da linhagem; compreender-se-ia assim que, nas formas mais complexas da vida, a sexualidade é uma função indispensável. Somente os organismos elementares poderiam multiplicar-se sem sexos e ainda assim esgotando sua vitalidade. Mas essa hipótese é hoje das mais controvertidas; observações provaram que a multiplicação assexuada pode verificar-se indefinidamente, sem que se perceba nenhuma degenerescência; o fato é particularmente impressionante entre os bacilos. As experiências de partenogênese tornaram-se cada vez mais numerosas e ousadas, e, em muitas espécies, o macho se evidencia radicalmente inútil. Mas ainda que a utilidade de uma troca intercelular fosse demonstrada, apresentar-se-ia como um simples fato injustificado. A biologia constata a divisão dos sexos, mas embora imbuída de finalismo, não consegue deduzi-la da estrutura da célula, nem das leis da multiplicação celular, nem de nenhum fenômeno elementar.

A existência de gametas (1) heterogêneos não basta para definir dois sexos distintos; na realidade, acontece, muitas vezes, a diferenciação das células geradoras não acarretar cisão da espécie em dois tipos: ambas podem pertencer a um mesmo indivíduo. É o caso das espécies hermafroditas, tão numerosas entre as plantas e que se encontram também em muitos animais inferiores, os anelados e os moluscos, entre outros. A reprodução efetua-se então ou por autofecundação ou por fecundação cruzada. Neste ponto, igualmente, certos biólogos pretenderam legitimar a ordem estabelecida. Consideram o gonocorismo, isto é, o sistema em que as diferentes gonadias (2) pertencem a indivíduos distintos, como um aperfeiçoamento do hermafroditismo realizado por via evolutiva; mas outros, ao contrário, julgam o gonocorismo primitivo: o hermafroditismo não passaria de uma degenerescência. Como quer que seja, essas noções de superioridade de um sistema sobre o outro implicam, no que concerne à evolução, teorias das mais contestáveis. Tudo o que se pode afirmar com certeza é que esses dois modos de reprodução coexistem na Natureza, que realizam, um e outro, a perpetuação das espécies e que, tal qual a heterogeneidade dos gametas, a dos organismos portadores de gonadias se apresenta como acidental. A separação dos indivíduos em machos e fêmeas surge, pois, como um fato irredutível e contingente.

(1) Chamam-se gametas as células geradoras cuja fusão constitui o ovo.

(2) Chamam-se gonadias as glândulas que produzem os gametas.

A maior parte das filosofias tomou-a como admitida sem pretender explicá-la. Conhece-se o mito platônico: no princípio havia homens, mulheres e andróginos; cada indivíduo possuía duas faces, quatro braços, quatro pernas e dois corpos, colados um a outro; foram um dia "partidos em dois, da maneira como se partem os ovos" e desde então cada metade procura reunir-se à sua metade complementar; os deuses decidiram, posteriormente, que pela junção das duas metades dessemelhantes novos seres humanos seriam criados. Mas é só o amor que essa história se propõe explicar: a divisão em sexos é tomada, de início, como um dado. Aristóteles não a justifica melhor, pois se a cooperação da matéria e da forma é exigida em toda ação, não é necessário que os princípios ativos e passivos se distribuam em duas categorias de indivíduos heterogêneos. Assim é que Sto. Tomás declara que a mulher é um ser "ocasional", o que é uma maneira de afirmar — numa perspectiva masculina — o caráter acidental da sexualidade. Hegel, entretanto, teria sido infiel a seu delírio racionalista se não houvesse tentado fundamentá-la logicamente. A sexualidade representa, a seu ver, a mediação através da qual o sujeito se atinge concretamente como gênero. "O gênero produz-se nele como um efeito contra essa desproporção de sua realidade individual, como um desejo de reencontrar, em outro indivíduo de sua espécie, o sentimento de si mesmo unindo-se a ele, de se completar e envolver, assim, o gênero em sua natureza e trazê-lo à existência. E tem-se a união sexual (Filosofia da Natureza, 3ª parte, § 369). E mais adiante: "O processo consiste em saber o que eles são em si, isto é, um só gênero, uma só e mesma vida subjetiva, eles o põem também como tal". E Hegel declara a seguir que, para que se efetue o processo de aproximação, é preciso primeiramente que haja diferenciação dos dois sexos. Mas sua demonstração não é convincente: sente-se nela demasiadamente a ideia preconcebida de reencontrar em toda operação os três momentos do silogismo. A superação do indivíduo na espécie, mediante a qual indivíduo e espécie se realizam em sua verdade, poderia efetuar-se, sem terceiro termo, na simples relação do gerador com a criança: a reprodução poderia ser assexuada. Ou, ainda, a relação de um a outro poderia ser a de dois semelhantes, residindo a diferenciação na singularidade dos indivíduos de um mesmo tipo, como acontece nas espécies hermafroditas. A descrição de Hegel realça uma significação muito importante da sexualidade, mas seu erro consiste em fazer sempre razão da significação. Ê exercendo a atividade sexual que os homens definem os sexos e suas relações, como criam o sentido e o valor de todas as funções que cumprem: mas ela não está necessariamente implicada na natureza do ser humano. Na Phenoménologie de la perception, Merleau-Ponty observa que a existência humana nos obriga a rever as noções de necessidade e de contingência. "A existência, diz ele, não tem atributos fortuitos não tem conteúdo que não contribua para dar-lhe sua forma, não admite em si mesma nenhum fato puro, pois é o movimento pelo qual os fatos são assumidos". E verdade. Mas é também verdade que há condições sem as quais o próprio fato da existência aparece como impossível. A presença no mundo implica rigorosamente a posição de um corpo que seja a um tempo uma coisa do mundo e um ponto de vista sobre esse mundo: mas não se exige que esse corpo possua tal ou qual estrutura particular. Em L'Être et le Néant, Sartre discute a afirmação de Heidegger, segundo a qual a realidade humana está votada à morte pelo fato de sua finidade; Sartre estabelece que uma existência finita e temporalmente ilimitada seria concebível; entretanto, se a vida humana não fosse habitada pela morte, a relação do homem com o mundo e consigo mesmo seria tão profundamente transtornada que a definição "o homem é mortal" se apresenta como coisa inteiramente diversa de uma verdade empírica: imortal, um ser existente não seria mais isso que chamamos um homem. Uma das características essenciais de seu destino é o fato de que o movimento de sua vida temporal cria, atrás e diante de si, a infinidade do passado e do futuro: a perpetuação da espécie surge, pois, como o correlativo da limitação individual; pode-se, assim, considerar o fenômeno da reprodução como ontologicamente fundado. Mas é preciso parar aí; a perpetuação da espécie não acarreta a diferenciação sexual. Mesmo que esta seja assumida pelos seres existentes de tal maneira que entre na definição concreta da existência, nem por isso deixa de ser certo que uma consciência sem corpo, que um homem imortal são rigorosamente inconcebíveis, ao passo que é possível imaginar uma sociedade reproduzindo-se por partenogênese ou composta de hermafroditas.


Quanto ao papel respectivo dos dois sexos, trata-se de um ponto acerca do qual as opiniões variaram muito. Foram, a princípio, desprovidas de fundamento científico, refletiam unicamente mitos sociais. Pensou-se durante muito tempo, pensa-se ainda em certas sociedades primitivas de filiação uterina, que o pai não participa de modo algum na concepção do filho: as larvas ancestrais infiltrar-se-iam sob a forma de germes no ventre materno. Com o advento do patriarcado, o macho reivindica acremente sua posteridade; ainda se é forçado a concordar em atribuir um papel à mulher na procriação, mas admite-se que ela não faz senão carregar e alimentar a semente viva: o pai é o único criador. Aristóteles imagina que o feto é produzido pelo encontro do esperma com o mênstruo; nessa simbiose a mulher fornece apenas uma matéria passiva, sendo o princípio masculino, força, atividade, movimento, vida. E essa também a doutrina de Hipócrates que reconhece duas espécies de sêmens: um fraco ou feminino e outro forte, masculino. A teoria aristotélica perpetuou-se através de toda a Idade Média e até a época moderna. No fim do século XVII, Harvey, sacrificando cervas após a cobertura, encontrou, nas trompas uterinas, vesículas que imaginou serem ovos mas que, na realidade, eram embriões. O dinamarquês Stenon deu o nome de ovários às glândulas genitais femininas, que se denominavam, até então, "testículos femininos", e observou na superfície delas a existência de vesículas que Graaf, em 1677, identificou erroneamente com o ovo e às quais deu o nome. Continuou-se a encarar o ovário como um homólogo da glândula masculina. Nesse mesmo ano, entretanto, descobriram-se os "animálculos espermáticos" e verificou-se que penetravam no útero feminino, mas pensava-se que se restringissem a se alimentar aí, estando o indivíduo já prefigurado neles; o holandês Hartsaker desenhou, em 1594, uma imagem de um homúnculo escondido no espermatozoide, e em 1699 outro sábio declarou ter visto o espermatozoide desfazer-se de uma espécie de carapaça sob a qual surgiu um homenzinho que ele também desenhou. A mulher limitava-se pois, nessas hipóteses, a nutrir um princípio vivo ativo e já perfeitamente constituído. Tais hipóteses não foram aceitas universalmente e as discussões prosseguiram até o século XIX; foi a invenção do microscópio que permitiu estudar o ovo animal; em 1827, Baer identificou o ovo dos mamíferos; trata-se de um elemento contido dentro da vesícula de Graaf; pouco depois pôde-se estudar-lhe a segmentação; em 1835, foram descobertos o sarcódio, isto é, o protoplasma e, em seguida, a célula; e em 1877 realizou-se uma observação que mostrava a penetração do espermatozoide no ovo da estrela-do-mar; partindo dessa descoberta estabeleceu-se a simetria dos núcleos dos dois gametas; os pormenores de sua fusão foram analisados pela primeira vez em 1883 por um zoólogo belga.


Contudo, as ideias de Aristóteles não caíram totalmente em descrédito. Hegel estima que os dois sexos devem ser diferentes: um será ativo e o outro passivo e naturalmente a passividade caberá à fêmea. "O homem é assim, em consequência dessa diferenciação, o princípio ativo, enquanto a mulher é o princípio passivo porque permanece dentro da sua unidade não desenvolvida" (Filosofia da Natureza, 3ª parte, § 369). E mesmo depois que se reconheceu o óvulo como um princípio ativo, os homens ainda tentaram opor sua inércia à agilidade do espermatozoide. Hoje, esboça-se uma tendência oposta: as descobertas da partenogênese levaram certos sábios a restringir o papel do macho ao de um simples agente físico-químico. Revelou-se que em algumas espécies, a ação de um ácido ou de uma excitação mecânica bastariam para provocar a segmentação do ovo e o desenvolvimento do embrião; partindo daí, supôs-se ousadamente que o gameta masculino não seria necessário à geração, sendo, quando muito, um fermento; talvez a cooperação do homem na procriação se torne inútil um dia. E parece que é o que desejam muitas mulheres. Mas nada autoriza uma antecipação tão audaciosa porque nada autoriza a universalizar os processos específicos da vida. Os fenômenos da multiplicação assexuada e da partenogênese não se evidenciam nem mais nem menos fundamentais do que os da reprodução sexuada. Dissemos que esta não é a priori privilegiada: mas nenhum fato indica que seja reduzível a um mecanismo mais elementar.

Assim, recusando toda doutrina a priori, toda teoria ousada, encontramo-nos colocados diante de um fato sem fundamento ontológico nem justificação empírica e cujo alcance não se pode compreender aprioristicamente. É examinando-o em sua realidade concreta que podemos esperar arrancar-lhe a significação; talvez então o conteúdo da palavra "fêmea" se revele.

Não pretendemos propor aqui uma filosofia da vida; e não queremos tomar apressadamente partido na querela que opõe o finalismo ao mecanicismo. É entretanto digno de nota o fato de que todos os fisiólogos e biólogos empregam uma linguagem mais ou menos finalista, pelo único fato de darem um sentido aos fenômenos vitais; adotaremos seu vocabulário. Sem nada decidir quanto à relação entre a vida e a consciência, pode-se afirmar que todo fato vivo indica uma transcendência, que em toda função se encaixa um projeto: nossas descrições não subentendem nada mais.




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O SEGUND O SEXO
SIMONE DE BEAUVOIR

Entendendo o eterno feminino como um homólogo da alma negra, epítetos que representam o desejo da casta dominadora de manter em "seu lugar", isto é, no lugar de vassalagem que escolheu para eles, mulher e negro, Simone de Beauvoir, despojada de qualquer preconceito, elaborou um dos mais lúcidos e interessantes estudos sobre a condição feminina. Para ela a opressão se expressa nos elogios às virtudes do bom negro, de alma inconsciente, infantil e alegre, do negro resignado, como na louvação da mulher realmente mulher, isto é, frívola, pueril, irresponsável, submetida ao homem.

Todavia, não esquece Simone de Beauvoir que a mulher é escrava de sua própria situação: não tem passado, não tem história, nem religião própria. Um negro fanático pode desejar uma humanidade inteiramente negra, destruindo o resto com uma explosão atômica. Mas a mulher mesmo em sonho não pode exterminar os homens. O laço que a une a seus opressores não é comparável a nenhum outro. A divisão dos sexos é, com efeito, um dado biológico e não um momento da história humana.

Assim, à luz da moral existencialista, da luta pela liberdade individual, Simone de Beauvoir, em O Segundo Sexo, agora em 4.a edição no Brasil, considera os meios de um ser humano se realizar dentro da condição feminina. Revela os caminhos que lhe são abertos, a independência, a superação das circunstâncias que restringem a sua liberdade.


4.a EDIÇÃO - 1970
Tradução
SÉRGIO MILLIET
Capa
FERNANDO LEMOS
DIFUSÃO EUROPÉIA DO LIVRO
Título do original:
LE DEUXIÊME SEXE
LES FAITS ET LES MYTHES
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Segundo Sexo é um livro escrito por Simone de Beauvoir, publicado em 1949 e uma das obras mais celebradas e importantes para o movimento feminista. O pensamento de Beauvoir analisa a situação da mulher na sociedade.

No Brasil, foi publicado em dois volumes. “Fatos e mitos” é o volume 1, e faz uma reflexão sobre mitos e fatos que condicionam a situação da mulher na sociedade. “A experiência vivida” é o volume 2, e analisa a condição feminina nas esferas sexual, psicológica, social e política.


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Leia também:

O Segundo Sexo - 6. Fatos e Mitos: que caminhos conduzem a um beco sem saída?


O Segundo Sexo - 8. Fatos e Mitos: na grande maioria das espécies

terça-feira, 25 de abril de 2017

O Brasil nação - v1: § 34 – A crosta que se refaz... - Manoel Bomfim

Manoel Bomfim



O Brasil nação volume 1





PRIMEIRA PARTE
SEQUÊNCIAS HISTÓRICAS



capítulo 4
o definitivo império do brasil







§ 34 – A crosta que se refaz...




Aqui estabelecido, o Estado português veio a degradar-nos completamente, com todos os característicos da sua política. Até as nossas tradições se perverteram, pois que tivemos, mascarando a essência do Brasil, os brasileiros de D. João VI, a serviço do lusitanismo renitente. Sobre a Nação, ingênua e confiante, eles se estenderam numa crosta infectante, vivaz – o bragantismo, e nunca mais nos foi possível descascar dessa miséria. Havia, na massa da Nação, uma alma brasileira, cujas energias alimentaram lutas sérias, porfiadas e longas; mas, era tal a qualidade das gentes dominantes que, todas elas, através de todas as lutas de autonomia nacional, não deram para fazer um herói. Na política nacional, de 1821 até ontem, que figuras nos ficaram – capazes de levar-nos ao entusiasmo reverente de um culto?... Alguns tristes mártires, infamados pelos empreiteiros da história imperial, soterrados nas misérias que se seguem; o único – Feijó, incompleto, amortalhado na sua invulnerável virtude; uns rápidos aspectos de José Bonifácio, que vem para a política quando já está impróprio a redimir-se do bragantismo onde se fizera... No mais, uma nata de larvas e vermes, a afogar os poucos sinceramente brasileiros.

Na campanha de 1825-31, o ânimo de um Brasil livre conseguiu, finalmente, romper a crosta de podridão ativa com que o estado português se despotizara sobre esta pátria: foi quase uma vitória, não a redenção efetiva. O bragantismo, revivendo em novas formas, brotou mais forte, refazendo-se a crosta, mais espessa e mais mortificante, ainda.

Entedia e fatiga – que, para caracterizar a nação brasileira, no Brasil independente, durante o primeiro meio século, haja que insistir, sempre e sempre, em acentuar os sucessos políticos. Infelizmente, não pode ser de outra forma, porque toda a vida pública e social era dominada pela política, única atividade que aparecia e se impunha. Era a nação, não senhora de si, não devidamente constituída, e que insistia em ser o que devia ser. Ao termo, o Brasil foi dominado; mas os que vieram explorá-lo definitivamente, ainda tiveram que concentrar todas as suas energias e os seus processos nessa obra de disfarçado domínio. E isso ainda foi política. Todo esse período, que vem do último esforço brasileiro pela redenção nacional, até o ressurgir do espírito público com a propaganda pela Abolição e a República, é o latejar de um desenvolvido abcesso, cujas saliências também são movimentos políticos. Então, quem era capaz de votar-se a um ideal, ou, mesmo, os simples traficantes, com ambição e força para a atividade social, ou mental, vinham necessariamente para a política, única forma possível para a ação geral, com qualquer intuito de socialização. O primeiro Império foi uma extensão anacrônica do império luso-brasileiro de D. João VI; e toda a sua ação, após José Bonifácio, foi política – para a realização, mais ou menos ostensiva, do sonho de D. João VI. Vimos que o espírito nacional se insurgiu contra a afronta direta às suas tradições, e acabou banindo o anacronismo. Mas, temos visto, também, que o bragantismo, incluído na vida brasileira, reconstituiu-se, e, contra ele, nada puderam as deficientes energias dos homens de 1831. Os últimos esforços estancam-se na ação de Feijó – 1836-37, com os estertores e os espasmos de 1842-48. Enquanto isto, pelos mesmos votos legislativos, anula-se tudo, do pouco deixado pela revolução de 1831-32, e normaliza-se, nos intuitos de sempre, o novo bragantismo.

Circunspecto, solene, não lhe falta, contudo, o pitoresco a dimanar fluente da própria situação apropriada à maioridade. Os verdadeiros orientadores do governo especificam-se no célebre corrilho da Joana, efetivo conselho privado do menino imperador, chefiado desde logo pela astúcia de Aureliano. Daí partirá o golpe que dará por terra com o gabinete Andrada-Limpo de Abreu, e que arrancará àquele a chufa despeitada: “Quem se mete com criança amanhece molhado”. Com que aspecto se apresenta, então, o revivido Império brasileiro? Tomemos, a espaços, o testemunho de alguns brasileiros, dos bem qualificados para caracterizar o que, finalmente, se estabilizou como política do Brasil soberano, no segundo Império. Os julgamentos e testemunhos a que daremos fé pesaram, de fato, na verdadeira opinião pública do Brasil; não serão simples retaliações de deputados, anônimos, quando na oposição, nem encomendados artigos de jornalistas sem fé. Repetem-se aqui, porque são conformes à verdade, conceitos de homens que foram dos primeiros no pensamento brasileiro do momento, e que sentiram a necessidade desoprimir a consciência: um Landulfo Medrado, que fala para 1860, um Tavares Bastos, para 1866, Sousa Carvalho, José de Alencar e Melo Morais (o velho)... impressos em 1870-72. Para comentá-los, e completá-los, há, então, momentos em que os enfileirados da política, de Zacharias a Ferreira Viana, tomados de náusea, ou feridos no justo orgulho, deixam ver a verdade do regime. Todos os citados são irredutíveis monarquistas, sendo que a exceção de Rui Barbosa é a de uma opinião que – considerava a república uma obra de acaso, evitável por conseguinte, desnecessária; se não era republicano, também não era monarquista.141



141 “A república originou-se de um acidente... Certas reformas... tê-la-iam prevenido e evitado. Certas emergências... poderiam ter abortado o movimento. A nação aceitou-o, mas não era seu. Não havia sido elaborado por ela mesma”. (Prefacio à Abolição, de O. Duque-Estrada, em 1918). Não podia ser mais frouxa a convicção republicana de quem tais linhas escreveu.


Comecemos pelo Sr. Melo Morais, que tem a superioridade de conhecer a história nacional, e ser quase um contemporâneo de toda a organização política: “... entre nós, em lugar de se firmar a independência, não se cuidou dela... A falsa política, que a escola de direito de Coimbra havia plantado em Portugal, tendo-se naturalizado no Brasil, em vez de amenizar-se com nosso clima...” Tavares Bastos já encontra feito o mundo político; quer trabalhar pelo engrandecimento da sua pátria, e, de entrada, tem de constatar: “A miséria moral como a pobreza material... herdamo-las... O passado instalou-se no presente, acompanha-o, excede-o, esconde-o, cobre-o, ele, uma sombra!” Dez anos depois, a evidência desses males de origem impõe-se a Sousa Carvalho, e ele constatara:


Fizemos a independência... para vivermos eternamente sob o jugo do governo, para sermos sempre escravos de mandões encarregados de governar-nos... Colhe-se um país na debilidade da infância e já cansado das revoluções inúteis, indiferente às lutas das ideias e persuadido de que novas revoluções não se podem generalizar, e vingar em tão extenso território... concede-se a maior licença nas publicações da imprensa, com certeza de que são respiros que não fazem mossa; o direito de voto a todos os cidadãos, tornando-os ao mesmo tempo... escravizados pelo mais ferrenho regime de recrutamento, da guarda nacional, da polícia e da justiça convertida em arma política; a nação dividida em dois partidos pessoais; associa-se um deles ao governo, para que metade da nação contenha e subjugue a outra metade, sem tirar-lhe a esperança de ter igual ventura e desforra; entretém-se a vida da nação nessa contenda estéril e brutal; o partido dominante é senhor absoluto de uma das câmaras, mas enfraquecido, embaraçado, reduzido a quase nada como poder legislativo pela organização e condições especiais da outra câmara; o partido do governo tem todas as largas faculdades da administração, mas o outro se conserva à mão, como instrumento dócil e infalível, de ameaça e subversão: não pode haver nada de mais perfeito e sublime em matéria de despotismo embuçado nas formas de governo liberal e representativo...


Outro: “Aqui, não é a nação; é o governo, só o governo quem decide de tudo... parece incrível em um país americano tão odiento despotismo na administração, tão profunda degradação nacional”. E o antigo liberal fecha o quadro: “Vergonhoso absolutismo do governo, violência da autoridade, inércia e inépcia da administração.”142  Ele está falando para a mesma época, para aqueles dias de verdadeira crise – 1869-71.


142 Op. cit., pág. 31; T. Bastos, Cartas de um solitário; Sousa Carvalho, O Brasil em 1870 , págs. 50 e 51.

Este é o Brasil politico, de 1870, que, no entanto, vale como situação de grande crise, aquele renovar de esforços, pela liberdade, e de onde sairá a abolição e a república. José de Alencar,143  sem intuições políticas, mas bastante probo para fixar a verdade, ao contemplar o mundo onde se move, teve de repetir o conceito de Tácito para a Roma apodrecida dos últimos Césares – ad servitutem paratum... De fato, aquela horda, tão pronta sob Itaboraí, como sob São Vicente, ou Paranhos, era uma manada conformada no servilismo. Conservador, José de Alencar viu o Brasil político na mesma visão do liberal Sousa Carvalho:


... neste país democrata, não é o elemento móvel, não é a opinião que domina; mas a vitaliciedade... faça-se a alforria do voto, cativo do governo; a alforria da justiça, cativa do arbítrio, a alforria do país, cativo do absolutismo, cativo da preponderância do governo pessoal... Há um luxo, um aparato, uma ostentação de onipotência, que abate o cidadão brasileiro...


143 José de Alencar manifesta-se, em 1870 e 71, em discursos na Câmara e artigos no Jornal do Commercio. O opúsculo de Landulfo – Os Cortesãos... mereceu notas à margem pela mão de Pedro II. O exemplar, assim, está na Biblioteca Nacional.


Havemos de encontrar-nos, com esse poder pessoal, essa ostentação de onipotência... Dez anos antes, tomando o motivo da viagem do imperador ao Norte, Landulfo Medrado tem a impressão de:



... um espetáculo burlesco! Tudo mentira, tudo baixeza!... numerosas congratulações que só dizem submissão; não trazem uma palavra digna, livre, conscienciosa, patriótica!... Coisas estrangeiras, alheias a nosso caráter, à nossa história, às nossas crenças. O povo, lá como aqui (no Sul e no Norte), silencioso ante a grande mascarada, sem se inquietar com a sua significação moral.


Landulfo é liberal; para continuar a alternância na identidade dos conceitos, venham os do Conservador, jornal político, na orientação do Visconde Camaragibe, Pinto de Campos, e outros qualificados do partido: “A nefasta política do governo do imperador foi quem criou este estado desesperado em que nos achamos... política de proscrição, de corrupção, de venalidade e de cinismo...” Pelo mesmo tempo, o Diário do Povo, dos liberais Octaviano, Tavares Bastos, Lafaiete... rugia em lamentos:



No exterior, uma guerra desastrada... No interior, um espetáculo miserando. Fórmulas aparentes de um governo livre, homenagem de hipocrisia à opinião do século; as grandes instituições anuladas, e a sua ação constitucional substituída por um arbítrio disfarçado. (Julho de 1868).


Por todo esse período – 1840-70-88... a história da política oficial do Brasil, quando não é flatulenta pela pulhice, é asquerosa, pelos crimes contra a nação, contra a humanidade. Companheiro de José de Alencar, Ferreira Viana veio gritar no parlamento: “Quarenta anos de reinado, quarenta anos de mentiras, de perfídias, de usurpação!... príncipe conspirador, Cesar caricato!... O imperador estragou todas as forças vitais da nação... A monarquia governa o país há mais de meio século só pela corrupção e pela violência...” Depois, Ferreira Viana foi ministro do Cesar caricato... Era do regime, cuja síntese se fez nestas palavras de Ouro Preto: “No governo do Brasil já nem as aparências se salvam...” Em 1867, o Diário de São Paulo, de Antonio Prado e João Mendes havia afirmado: “Para o monarca brasileiro, só há uma virtude – o servilismo”. Confirmando Ouro Preto, julgou Silveira Martins: “O governo é mau, o sistema é mau; os governos que se têm mostrado covardes, fracos, incapazes, sujeitam-se a tudo e sujeitar-se-ão sempre a esse absolutismo disfarçado, sob cuja pressão vivemos e é preciso acabar, para felicidade do Império, onde só sofrem os fracos e campeiam os poderosos...” Outro liberal, Joaquim Nabuco, vem completar a condenação: “É impossível que o país, depois de ter conhecido a abjeção a que tocou esse sistema, continue por muito tempo sujeito a ele, e não faça desde logo um esforço para salvar a sua dignidade e o seu nome”.144  Coincide com esse discorrer, a campanha do outro liberal, Rui Barbosa, que fulmina inexoravelmente todo o programa, e toda a ação dos dominantes: “A monarquia bragantina...”


144 Destas transcrições, as que não são dos opúsculos de Sousa Carvalho, Melo Morais, Landulfo, T. Otoni (Biog. de Pedro II), discursos e artigos de José de Alencar, são tiradas das – Origens Republicanas, de Felício Buarque, e A política do Rei, de Saldanha Marinho.


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"Morreu no Rio aos 64 anos, em 1932, deixando-nos como legado frases, que infelizmente, ainda ecoam como válidas: 'Somos uma nação ineducada, conduzida por um Estado pervertido. Ineducada, a nação se anula; representada por um Estado pervertido, a nação se degrada'. As lições que nos são ministradas em O Brasil nação ainda se fazem eternas. Torcemos para que um dia caduquem. E que o novo Brasil sonhado por Bomfim se torne realidade."

Cecília Costa Junqueira



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O Brasil nação: vol. I / Manoel Bomfim. – 1. ed. – Rio de Janeiro: Fundação Darcy Ribeiro, 2013. 332 p.; 21 cm. – (Coleção biblioteca básica brasileira; 35).


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Leia também:

O Brasil nação - v1: § 33 – Um lance de liberalismo: “Quero já” - Manoel Bomfim

O Brasil nação - v1: § 35 – Os valores na crosta - Manoel Bomfim


segunda-feira, 24 de abril de 2017

Rayuela - Julio Cortázar: Capítulo 47

Capítulo 47
 

    Soy yo, soy él. Somos, pero soy yo, primeramente soy yo, defenderé ser yo hasta que no pueda más. Atalía soy yo, Ego. Yo. Diplomada, argentina, uña encarnada, bonita de a ratos, grandes ojos oscuros, yo. Atalía Donosi, yo. Yo. Yo-yo, carretel y piolincito. Cómico.

    Manú, qué loco, irse a Casa América y solamente por divertirse alquilar este artefacto. Rewind. Que voz, esta no es mi voz. Falsa y forzada: “Soy yo, soy él. Somos, pero soy yo, primeramente soy yo, defenderé...” STOP. Un aparato extraordinario, pero no sirve para pasar en voz alta, a lo mejor hay que acostumbrarse, Manú habla de gravar su famosa pieza de radioteatro sobre las señoras, no va a hacer nada. El ojo mágico es realmente mágico, las estrías verdes que oscilan, se contraen, gato tuerto mirándome. Mejor taparlo con un cartoncito. REWIND. La cinta corre tan lisa, tan parejita. VOLUME. Poner en 5 o 5½: “El ojo mágico es realmente mágico, las estrías verdes que os...” pero lo realmente sería que mi voz dijese: “El ojo mágico juega a la escondida, las estrías rojas...” Demasiado eco, hay que poner el micrófono más cerca y bajar el volumen. Soy yo, soy él. lo que realmente soy es una mala parodia de Faulkner. Efectos fáciles. ¿Dicta con magnetófono o el whisky le sirve de cinta grabadora? ¿Se dice grabador o magnetófono? Horacio dice magnetófono, se quedó asombrado al ver el artefacto, dijo: "Que magnetófono, pibe." El manual dice grabador, los de Casa América deben saber. Misterio: Por que Manú compra todo, hasta los zapatos en Casa América. Una fijación, una idiotez. REWIND. Esto debe llevar tiempo, tiempo, tiempo. Todo esto debe llevar tiempo. REWIND. a ver si el tono es más natural: "...po, tiempo, tiempo. Todo esto debe..." Lo mismo, una voz de enana resfriada. Eso sí, ya lo manejo bien. Manú se va a quedar asombrado, me tiene tanta desconfianza para los aparatos. A mí, una farmacéutica, Horacio ni siquiera se fijaría, lo mira a uno como un puré que pasa por el colador, una pasta zás que sale por el otro lado, a sentarse y a comer. ¿Rewind? No, sigamos. apaguemos la luz. Hablemos en tercera persona, a lo mejor... Entonces Talita Donosi apaga la luz y no queda más que el ojito mágico con sus estrías rojas (a lo mejor sale verde, a lo mejor sale violeta) y la brasa del cigarrillo. Calor, y Manú que no vuelve de San Isidro, las once y media. Ahí esta Gekrepten en la ventana, no la veo pero es lo mismo, está en la ventana, en camisón, y Horacio delante de su mesita, con una vela leyendo y fumando. La pieza de Horacio y Gekrepten no sé por qué es menos hotel que ésta. Estúpida, es tan hotel que hasta las cucarachas deben tener el número escrito en el lomo, y al lado se lo bancan a don Bunche con sus tuberculosos a veinte pesos la consulta, los renguitos y los epilépticos. Y abajo el clandestino, y los tangos desafinados de la chica de los mandados. REWIND. Un buen rato, para remontar hasta por lo menos un minuto y medio antes. Se va contra el tiempo, a Manú le gustaría hablar de eso. Volumen 5: "...el número escrito en el lomo..." Más atrás. REWIND. Ahora: "...Horacio delante de su mesita, con una vela verde..." STOP. Mesita, mesita. Ninguna necesidad de decir mesita cuando una es farmacéutica. Merengue puro. ¡Mesita! La ternura mal aplicada. Y bueno, Talita. Basta de pavadas. REWIND. Todo hasta que la cinta este a punto de salirse, el defecto de esta máquina es que hay que calcular tan bien, si la cinta se escapa se pierde medio minuto enganchándola de nuevo. STOP. Justo, por dos centímetros. ¿Que habré dicho al principio? Ya no me acuerdo pero me salía una voz de ratita asustada, el conocido temor al micrófono. A ver, volumen 5 1/2 para que se oiga bien. "Soy yo, Soy él. Somos, pero soy yo, primeramen..." ¿Y por qué, por qué decir eso? Soy yo, soy él, y después hablar de la mesita, y después enojarme. "Soy yo, soy él. Soy yo, soy él."

    Talita cortó el grabador, le puso la tapa, lo miró con profundo asco y se sirvió un vaso de limonada. No quería pensar en la historia de la clínica (el Director decía "la clínica mental", lo que era insensato) pero si renunciaba a pensar en la clínica (aparte de que eso de renunciar a pensar era más una esperanza que una realidad) inmediatamente ingresaba en otro orden igualmente molesto. Pensaba en Manú y Horacio al mismo tiempo, en el símil de la balanza que tan vistosamente había manejado Horacio y ella en la casilla del circo. La sensación de estar habitada se hacía entonces más fuerte, por lo menos la clínica era una idea de miedo, de desconocido, una visión espeluznante de locos furiosos en camisón, persiguiéndose con navajas y enarbolando taburetes y patas de camas, vomitando sobre las hojas de temperatura y masturbándose ritualmente. Iba a ser muy divertido ver a Manú y a Horacio con guardapolvos blancos, cuidando a los locos. "Voy a tener cierta importancia", pensó modestamente Talita. "Seguramente el Director me confiará la farmacia de la clínica, si es que tiene una farmacia. A lo mejor es un botiquín de primeros auxilios. Manú me va a tomar el pelo como siempre." Tendría que repasar algunas cosas, tanto que se olvida, el tiempo con su esmeril suavecito, la batalla indescriptible de cada día de ese verano, el puerto y el calor, Horacio bajando la planchada con cara de pocos amigos, la grosería de despacharla con el gato, vos tomate el tranvía de vuelta que tenemos que hablar. Y entonces empezaba un tiempo que era como un terreno baldío lleno de latas retorcidas, ganchos que podían lastimar los pies, charcos sucios, pedazos de trapos enganchados en los cardos, el circo de noche con Horacio y Manú mirándola o mirándose, el gato cada vez más estúpido o francamente genial, resolviendo cuentas entre los alaridos del público enloquecido, las vueltas a pie con paradas en los boliches para que Manú y Horacio bebieran cerveza, hablando, hablando de nada, oyéndose hablar entre ese calor y ese humo y el cansancio. Soy yo, soy él, lo había dicho sin pensarlo, es decir que estaba más que pensado, venía de un territorio que las palabras eran como los locos de la clínica, entes amenazadores o absurdos viviendo una vida propia y aislada, saltando de golpe sin que nada pudiera atajarlos: Soy yo, soy él, y él no era Manú, él era Horacio, el habitador, el atacante solapado, la sombra dentro de la sombra de su pieza por la noche, la brasa del cigarrillo dibujando lentamente las formas del insomnio.

    Cuando Talita tenía miedo se levantaba y se hacía un té de tilo y menta fifty fifty. Se lo hizo, esperando deseosa que la llave de Manú escarbara en la puerta. Maní había dicho con aladas palabras: "A Horacio no le importas un pito." Era ofensivo pero tranquilizador. Manú había dicho que aunque Horacio se tirara un lance (y no lo había hecho, jamás había insinuado ni siquiera que)

una de tilo

una de menta

el agüita bien caliente, primer hervor, stop

ni siquiera en ese caso le importaría nada de ella. Pero entonces. Pero si no le importaba, por que estar siempre ahí en el fondo de la pieza, fumando o leyendo, estar (soy yo, soy él) como necesitándola de alguna manera, sí, era exacto, necesitándola, colgándose de ella desde lejos como en una succión desesperada para alcanzar algo, ver mejor algo, ser mejor algo. Entonces no era: soy yo, soy él. Entonces era al revés: Soy él porque soy yo. Talita suspiró. levemente satisfecha de su buen raciocinio y de lo sabroso que estaba el té.

    Pero no era solamente eso, porque entonces hubiera resultado demasiado sencillo. No podía ser (para algo está la lógica) que Horacio se interesara y a la vez no se interesara. De la combinación de las dos cosas debía salir una tercera, algo que no tenía nada que ver con el amor, por ejemplo (era tan estúpido pensar en el amor el amor era Manú, solamente Manú hasta la consumación de los tiempos), algo que estaba del lado de la caza, de la búsqueda, o más bien como una expectación terrible, como el gato mirando el canario inalcanzable, una especie de congelación del tiempo y del día, un agazapamiento. Terrón y medio, olorcito a campo. Un agazapamiento inexplicable de-este-lado-de-las-cosas, o hasta que un día Horacio se dignara a hablar, irse, pegarse un tiro, cualquier explicación o materia sobre la cual imaginar una explicación. No ese estar ahí tomando mate y mirándolos, haciendo que Manú tomara mate y lo mirara, que los tres estuvieran bailando en una lenta figura interminable. "Yo", pensó Talita, "debiera escribir novelas, se me ocurren ideas gloriosas". Estaba tan deprimida que volvió a enchufar el grabador y cantó canciones hasta que llegó Traveler. Los dos convinieron en que la voz de Talita no salía bien, y Traveler le demostró como había que cantar una baguala. Acercaron el grabador a la ventana para uqe Gekrepten pudiera juzgar imparcialmente, y hasta Horacio estaba en su pieza, pero no estaba. Gekrepten encontró todo perfecto, y decidieron cenar juntos en lo de Traveler fusionando un asado frío que tenía Talita con una ensalada mixta que Gekrepten produciría antes de trasladarse enfrente. A Talita todo eso le pareció perfecto y a la vez tenía algo de cubrecama o cubretetera, de cubre cualquier cosa, lo mismo que el grabador o el aire satisfecho de Traveler, cosas hechas o decididas para poner encima, por encima de qué, ése era el problema y la razón de que todo en el fondo siguiera como antes del té de tilo y menta fifty fifty.



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