sábado, 29 de julho de 2017

Série Ballet : Olga Kuraeva [improvisation]

Olga Kuraeva [improvisation] 

[contemporary ballet]





porque dançar é isso...
flutuar desenhos coloridos com o próprio corpo
ah, o corpo...
                                  quanto pecado para hipócritas 
e quanta graça humana para o ballet...
                                   prefiro o ballet aos hipócritas










edit and dop Vanya Volkov
ballerina Olga Kuraeva, interview http://www.youtube.com/watch?v=z3DtC3...
music Heinali - Sway, Sway http://heinali.bandcamp.com/album/swa...


Gente Pobre - 17. Prepare-se, pois, para ler um bom livro - Dostoiévski

Fiódor Dostoiévski


17.




26 de junho



Minha querida Bárbara:


Devo confessar-lhe sinceramente que não tinha lido o livro a que se refere. Na verdade, limitei-me a examiná-lo por alto, o bastante para verificar que se tratava de coisas disparatadas, escritas para fazer rir e alegrar os leitores. E pensei então: «Deve ser engraçado e talvez agrade à Bárbara.» Foi por isso que lho enviei. 

Ratazaiev prometeu agora arranjar-me qualquer coisa verdadeiramente literária para ler. Prepare-se, pois, para ler um bom livro, minha querida. É que Ratazaiev percebe do assunto! Também é escritor, e que escritor! Escreve muito bem e o seu estilo é admirável, acredite. Em cada palavra, mesmo nas mais vulgares e banais, em cada frase, até, por exemplo, quando se dirige a Faldoni ou à Teresa, exprime-se com estilo, o que já tive ocasião de verificar. Costumo frequentar com regularidade os seus serões literários. Fumamos enquanto ele nos lê coisas; às vezes lê durante cinco horas seguidas, e nós ouvimo-lo durante todo esse tempo, sem pestanejar. É que aquilo são pérolas, verdadeiras pérolas; não é literatura, são flores, simplesmente flores, cheirosas e em tal profusão, que com cada página poder-se-ia fazer um ramalhete. Além disso, é tão efusivo e cordial! Que sou eu ao pé dele? Nada. Ele é um homem conhecido, respeitável, ao passo que eu não sou nada, não sirvo para nada, nada represento comparado com ele. No entanto, honra-me com a sua amizade. Já lhe copiei duas ou três coisitas, mas não julgue, querida Bárbara, que é por isso que ele me trata com tanta deferência. Não dê ouvidos a essas bisbilhotices, não acredite no que se diz por ai! Não; copio-lhe essas coisas de livre vontade, simplesmente para lhe ser agradável; e se ele é gentil comigo, fá-lo espontaneamente para me dar prazer. Não sou tão tolo que não o compreenda; sei muito bem avaliar a delicadeza do seu procedimento. É um homem bom, muito bom, e um escritor incomparável! 

A literatura, querida Bárbara, é uma coisa bela, qualquer coisa de extraordinário, segundo aprendi anteontem em casa de Ratazaiev. Ela fortalece o coração do homem, instrui... Nos livros de Ratazaiev, que, na verdade, estão muito bem escritos, encontram-se vários pensamentos sobre este assunto. A literatura é, por assim dizer, uma pintura e um espelho; um espelho das paixões e de todos os nossos sentimentos; é, ao mesmo tempo, instrução e lição edificante; é crítica e um importante documento humano. Foi isto o que ouvi e aprendi de Ratazaiev, que explanou o assunto diante dos frequentadores dos seus serões. Confesso-lhe, querida, com toda a sinceridade, que quando me encontro sentado no meio deles, a escutar e a fumar o meu cachimbo — como todos os circunstantes — e eles começam a argumentar e a discutir acerca das coisas mais diversas, costumo dizer, como no jogo das cartas, simplesmente: passo. Já que não posso entrar no jogo, passo, é o que tenho a fazer. Estou sentado no meio deles, calado como um basbaque, e até sinto vergonha de mim próprio. E embora esteja durante todo o serão a pensar na forma de intervir na conversa, nem uma só palavra me ocorre! O eterno desejado nunca aparece! Dou voltas e mais voltas à cabeça, e tudo em vão! Dir-se-ia que estou enfeitiçado, querida Bárbara, e acabo por ter pena de mim mesmo, é verdade. Pode-se aplicar-me o ditado que diz: «Quem torto nasce, torto morre.» 

Que faço agora nas horas vagas? Durmo, durmo como um porco. Em vez, porém, de dormir sem necessidade, faria melhor se empregasse o tempo livre em qualquer coisa agradável e proveitosa, como, por exemplo, a escrever o que me viesse à cabeça, não lhe parece? Assim, seria útil aos outros e a mim próprio. Não faz ideia do que esses tipos ganham com o que escrevem! Para não ir mais longe, por exemplo, calcula quanto ganha esse Ratazaiev? Trabalha muito e escreve uma folha num instante. Segundo disse, em poucos dias pode ganhar uns trezentos rublos! Quando escreve uma historiazita ou um conto humorístico, uma anedota ou qualquer coisa de interesse para o público, nunca recebe menos de quinhentos rublos. E é para quem quer! Se um achar exagerado, aparecerá outro que dê mil. Que diz a isto, querida Bárbara? 

E isto não é nada. Por um cadernito de poesias — meia dúzia de linguados com uns versitos — pede ele sete mil rublos, nem mais nem menos. Que lhe parece? Com esse dinheiro compra-se uma boa propriedade; é o rendimento de um prédio de cinco andares. Já lhe ofereceram cinco mil rublos, mas ele não aceitou. Tentei persuadi-lo, com boas razões, dizendo-lhe: «Aceite os cinco mil, homem, aceite, pois com essa quantia já pode virar as costas e não se importar com esses tipos; olhe que cinco mil rublos são dinheiro!» Mas ele não cede e diz que lhe têm de dar os sete mil. Ora veja se ele não é esperto!

Olhe, querida Bárbara, já que estamos a falar disto, mando-lhe um extrato das Paixões Italianas, tal é o título de uma das suas obras. Leia e avalie:




Vladimiro estremeceu, porque nas suas veias despertavam furiosas paixões e o sangue fervia-lhe.  
— Condessa — exclamou — condessa! Não sabe como é terrível esta paixão, como é ilimitado este delírio? Não, os meus sentidos não me enganam! Amo, amo com loucura, amo com desespero! Todo o sangue do teu marido não bastará para apagar esta horrível exaltação da minha alma. Não haverá obstáculo capaz de deter o fogo destruidor, diabólico, que arde no meu peito desolado! Oh, Zinaida, Zinaida!  
— Vladimiro — murmurou a condessa, fora de si e reclinando a cabeça no seu ombro.  
— Zinaida! — exclamou Imeielski, deixando escapar um soluço do seu peito.  
No altar do amor brotou clara a chama e envolveu as almas dos amantes.  
— Vladimiro — murmurou outra vez a condessa. O seu peito arquejava, as faces tingiam-se-lhe de púrpura, os seus olhos brilhavam.  
Uma nova e terrível união se consumara!  
[…]  
Meia hora depois, o velho conde entrou no toucador da esposa.  
— Mas, meu amor, como é que ainda não está pronto o chá para o nosso querido hóspede? — perguntou acariciando-lhe as faces.


Ora diga-me: que tal acha isto? É um bocadinho livre, é verdade; mas, ao mesmo tempo, que grandioso, que bem escrito! Mas não; ainda lhe vou transcrever outra passagem do conto intitulado: Iermak e Zuleika

Imagine, querida, que o cossaco Iermak, o feroz conquistador da Sibéria, se encontra enamorado de Zuleika, filha do chefe siberiano Kuchum, que foi feito prisioneiro. A ação decorre, como vai ver, na época em que reinava Ivan, o Terrível. Bom; eis o diálogo entre Iermak e Zuleika:



— Amas-me, Zuleika? Oh! Repete-mo, repete-mo!   
— Amuo-te, Iermak! — respondeu Zuleika, num sussurro. 
 — Céu e Terra, obrigado! Sou feliz! Concedestes-me tudo aquilo a que desde a infância a minha alma aspirava! E tu, estrela que guias os meus passos, por isso me trouxeste aqui, através da cintura de pedra do Ural! Mostrarei ao mundo inteiro a minha Zuleika, e os homens, esses monstros selvagens, não se atreverão a acusar-me! Oh, se pudessem compreender as secretas torturas da sua alma terna! Se, como eu, soubessem contemplar, numa lágrima da minha Zuleika, todo um poema! Oh, deixa-me enxugar com os meus beijos essa lágrima, essa gota de orvalho do céu... Ó ente celestial!  
— Iermak — disse-lhe Zuleika —, o mundo é mau e os homens são injustos. Vão perseguir-nos e condenar-nos, meu amor! Que será de uma pobre moça como eu, criada nos campos nevados da Sibéria, na cabana do seu pai, lá nesse mundo frio, glacial, egoísta e sem alma? Os homens não me compreenderão, meu querido!  
— Sim? Nesse caso terão de se entender com a espada do cossaco! — exclamou Iermak, em cujos olhos brilhou um relâmpago sinistro.

Imagine, querida Bárbara, o que acontece a Iermak quando tem conhecimento de que lhe assassinaram a sua Zuleika. O velho Kuchum, protegido pelas trevas da noite, conseguiu introduzir-se na tenda de Iermak, que se achava ausente, e matou a sua filha Zuleika, julgando vingar-se do cossaco que lhe arrebatara o cetro e a coroa.



— Que prazer eu senti a afiar a espada! — exclamou Iermak, a arder em furioso desejo de vingança; e pôs-se a passar o aço numa pedra sagrada. — Quero o seu sangue, o seu sangue! Preciso de a vingar, de a vingar, de a vingar!



Mas, apesar de tudo, Iermak não pode sobreviver à sua Zuleika. Atira-se ao Irtich e afoga-se, com o que termina o conto.

Veja agora uma amostra de uma descrição humorística, feita exclusivamente para fazer rir:




— Então não conheces Ivan Prokofievitch Zeltopuz? Não? É aquele que mordeu Prokofi Ivanovitch numa perna. Ivan Prokofievitch tem mau gênio, mas ao mesmo tempo é dotado de raras virtudes. Prokofi Ivanovitch, pelo contrário, pela-se por rabanetes com mel. Quando ainda vivia em boas relações com Pelágia Antonovna... Mas não conhece, porventura, Pelágia Antonovna? Como? Ah, sim, é essa mesmo; aquela que veste sempre a camisa do avesso...


Isto é que é humorismo, verdadeiro humorismo, não acha, querida Bárbara? Quando ele nos leu esta página, nós até nos retorcíamos nos assentos, de tanto rir. Que grande maduro, meu amor! De resto, se bem que seja um pouco cómico e livre, no fundo, é um inocente, sem sombra de livre-pensamento nem de nenhum desses erros liberais. Devo dizer-lhe, também, que Ratazaiev, além de um grande escritor, é um homem de linha, o que não se pode dizer da maioria dos escritores. 

Que sucederia se eu pusesse em prática a ideia em que por várias vezes tenho pensado, de também escrever alguma coisa? Suponhamos que, de um momento para o outro, me lembrava de publicar um livro, em cuja capa se lesse: «Poesias de Makar Dievuchkin»? Que diria a isto, meu anjo? Que lhe pareceria, como receberia um tal acontecimento? Cá por mim, posso garantirlhe, querida, que, depois do meu livro ser publicado, não me atreveria a aparecer mais na Perspetiva Nevski. Não podia ouvir toda a gente dizer, apontando-me: «Olhem, vai ali o poeta Dievuchkin; é ele mesmo!» 

Que sucederia então às minhas botas? Porque devo dizer-lhe, meu amor, que as trago sempre por engraxar e as solas, para falar verdade, não costumam encontrar-se em muito bom estado. Que figura faria se todos soubessem que o poeta Dievuchkin andava com as botas sujas? Que diria uma condessa ou duquesa se tivesse conhecimento de tal coisa? É possível que não dessem por isso, pois as condessas e as duquesas não reparam nas botas, principalmente tratando-se das botas de um empregadito qualquer (ao fim e ao cabo, umas botas são sempre umas botas, é preciso ver...). Mas tenho a certeza de que não faltaria quem lhes levasse a notícia, a começar pelos meus próprios amigos. Ratazaiev seria o primeiro, pois é frequentador assíduo da casa da condessa B..., onde, segundo diz, se apresenta mesmo sem que tenha sido convidado. Consta que se trata de uma bondosa senhora e, além disso, uma dama distinta e muito versada em literatura. Que espertalhão que é Ratazaiev! 

Mas fiquemos por aqui! Escrevo-lhe estas coisas apenas para a distrair, por mera brincadeira. O que desejo é que continue bem, meu amor! A carta é um pouco longa porque, para lhe ser franco, hoje encontro-me admiravelmente bem-disposto. Jantamos todos no quarto de Ratazaiev, que costuma servir um licor especial, tão bom, que não sei de palavras para o descrever... Mas, alto lá! Não vá pensar mal de mim, querida Bárbara! Não se trata disso! Vou enviar-lhe uns livrinhos. Agora andam aqui a ler uma novela de Paul de Kock , mas este autor não é próprio para si... Não, não, Deus me livre! Paul de Kock não deve cair nas suas mãos. De facto, consta que todos os críticos decentes de S. Petersburgo se mostraram um pouco mal impressionados. 

Envio-lhe uma libra de bombons, que comprei expressamente para si. E olhe, querida, pense em mim de todos as vezes que pegar num. Meta-os à boca e não os engula logo; vi derretendo-os pouco a pouco, senão, ao trincá-los, pode estragar os dentes. Também gosta de pastilhas de chocolate? Se gostar, diga-mo. 

Adeus, adeus! Deus a guarde. 

Sempre seu muito fiel amigo



Makar Dievuchkin





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Esse é o tipo de livro que modifica algo na gente. “Pobre gente” foi o primeiro romance de Dostoievski, começou a escrever em 1844 e terminou no ano seguinte. O personagem Makar Dévushkin, um auxiliar administrativo que leva trinta anos copiando documentos, mora numa pensão humilde, seu pequeno quarto fica ao lado da cozinha, é o que pode pagar com o seu salário também minúsculo. O frio e a frieza de uma sociedade que ignora os pobres. Crítica social contundente, comendo pelas beiradas narrativas. Segundo alguns historiadores, uma das obras que mandou o autor para a cadeia siberiana. Eram os 25 anos de um gênio então já se apurando na escrita, despertando assim, para sentir seu tempo e as humilhações da época, desesperos; um olhar sobre todas as coisas da sofrida gente. Triste narrativa pungente da condição humana em torno desses dois personagens, como vítimas de fatalidades da vida numa sociedade onde poucos conseguem realmente sair do ramerão, e onde muitos se movem numa crueldade austera entre si, forçada pelas inóspitas condições em que vivem. Makar e Varenka vivem um amor idílico ensombrado pelo que os circunda (Makar é muito mais velho que Varenka), agravando as suas próprias condições a um nível desesperador e quase doentio, mas sempre com alguma perspectiva de esperança fundadas em ilusões muitas das vezes patéticas, algo falsamente ingênuas, ilustrativas, no entanto, ao alcance do coração humano que tudo pode sonhar, sem se importar com as verdadeiras condições em que se encontra, principalmente nessas condições por assim dizer desprezíveis.



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Fiódor Dostoiévski

GENTE POBRE

Título original: Bednye Lyudi (1846)

Tradução anônima 2014 © Centaur Editions

centaur.editions@gmail.com


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Leia também:

Gente Pobre - 16. O pequenito tinha nove anos - Dostoiévski

Gente Pobre - 18. Onde gosto mais de viver, é onde já me encontro - Dostoiévski
Gente Pobre - 01. Ontem fui feliz, excessivamente feliz - Dostoievski



Chico Buarque

Tua Cantiga



















sexta-feira, 28 de julho de 2017

Festival Chaplin - Tempos Modernos

Charlie Chaplin - Tempos Modernos (1936)






"... se o empregado se sente confortável em almoçar trabalhando por que a lei não permite?"

"...uma máquina que alimenta os operários ao mesmo tempo em que estes trabalham diminuindo, assim, o tempo despendido para o almoço... "









SINOPSE:

Um operário de uma linha de montagem, que testou uma "máquina revolucionária" para evitar a hora do almoço, é levado à loucura pela "monotonia frenética" do seu trabalho. Após um longo período em um sanatório ele fica curado de sua crise nervosa, mas desempregado. Ele deixa o hospital para começar sua nova vida, mas encontra uma crise generalizada e equivocadamente é preso como um agitador comunista, que liderava uma marcha de operários em protesto. Simultaneamente uma jovem rouba comida para salvar suas irmãs famintas, que ainda são bem garotas. Elas não tem mãe e o pai delas está desempregado, mas o pior ainda está por vir, pois ele é morto em um conflito. A lei vai cuidar das órfãs, mas enquanto as menores são levadas a jovem consegue escapar.



FICHA TÉCNICA

Título Original: Modern Times
Ano: 1936
Gênero: Comédia Dramática
País: Estados Unidos.
Estrelas: Charlie Chaplin, Paulette Goddard, Henry Bergman.
Roteiro e Direção: Charlie Chaplin


 Charles Chaplin
- Trabalhador


 Paulette Goddard
- Ellen Peterson


Henry Bergman ... Proprietário do Café
Stanley "Tiny" Sandford ... Big Bill
Chester Conklin ... Mecânico
Al Ernest Garcia ... Presidente da Electro Steel Corp.
Stanley Blystone ... Pai de Ellen Peterson
Richard Alexander ... colega de prisão
Cecil Reynolds ... Ministro
Mira McKinney ... esposa do Ministro
Murdock MacQuarrie ... J. Widdecombe Billows, inventor
Wilfred Lucas ... Funcionário
Edward LeSaint ... Sheriff Couler
Fred Malatesta ... garçom principal do Café
Sammy Stein ... operador de Turbina
Hank Mann ... ladrão com Big Bill
Louis Natheaux ... ladrão com Big Bill
Gloria DeHaven ... irmã de Ellen Peterson (não creditado)
Juana Sutton
Ted Oliver



......



Resumo


O Universo da Leitura


O filme Tempos Modernos de Charles Chaplin faz uma crítica contundente, sarcástica e irônica ao sistema capitalista de produção, sobretudo na passagem da sua fase industrial para a monopólica ou imperialista. Após a Revolução Industrial ocorrida na Inglaterra houve um crescente processo de urbanização e industrialização que culminaram com o aumento exacerbado da massa de trabalhadores desempregados, chamados por Marx de exército industrial de reserva, pois não tinha a quem vender a sua força de trabalho. Com efeito, as cidades foram inundadas por pessoas famintas, inanes e desesperadas por condições mínimas de sobrevivência.

No filme, Chaplin protagoniza o personagem Carlitos, um operário simples que se obriga a sujeitar-se as condições deploráveis de opressão e exploração impostas pelos industriais, donos dos meios de produção, portanto, dominantes do trabalho. Na fábrica onde trabalhava, percebe-se a implementação dos modelos de produção taylorista-fordista, os quais visam a racionalização, sistematização e o total controle do processo produtivo mediante a minimização do tempo de trabalho socialmente necessário e a maximização do tempo de trabalho excedente. Isto fica notório no momento em que é apresentado ao dono da fábrica de montagem uma máquina que alimenta os operários ao mesmo tempo em que estes trabalham diminuindo, assim, o tempo despendido para o almoço. Carlitos, assim como milhares de outros operários, era tratado apenas como um objeto de troca, um apêndice da máquina, uma mercadoria de baixo custo e valorização.

A fragmentação da produção, ou seja, a ampliação da divisão técnica do trabalho dentro das unidades fabris alienou física e psicologicamente os trabalhadores que, por sua vez, não mais dominam as etapas do processo produtivo, passando desta forma a desconhecer o fruto do seu trabalho e a fetichizá-lo como algo soberano de poder extremo capaz de dominá-lo e desvalorizá-lo.

O aperfeiçoamento e o desenvolvimento da produção, o acúmulo de lucros de forma cada vez mais ascendente e a valorização do capital são os objetivos visados pelos que exploram a força de trabalho, mesmo que para isso seja necessário submeter os trabalhadores a péssimas e insalubres condições de produção. Constantemente pressionado para produzir mais e mais através do aumento da velocidade da esteira, Carlitos não suporta tamanho constrangimento e desenvolve uma série de doenças mentais, como o TOC (Transtorno Obsessivo Compulsivo) causado pela repetição frenética de movimentos. Este momento do filme caracteriza-se como o conflito gerador de todos os outros acontecimentos.

Carlitos é internado num hospital psiquiátrico e ao sair é preso por ser confundido com um líder comunista. Na prisão impede uma fuga de penitenciários e é recompensado com a liberdade, porém o ingênuo e sofredor não fica feliz com a decisão, pois na prisão possuía um espaço para dormir, descansar e o que comer, diferentemente das ruas onde o trabalho era uma incerteza e a fome e a miséria uma realidade inevitável. A partir de então sua vida é marcada por episódios desagradáveis, como as prisões que se tornam frequentes e injustas. Conhece e se apaixona por uma pobre moça órfã de mãe e pai, a qual vive da vagabundagem e sujeita-se a roubar para alimentar suas irmãs famintas. Talentosa para a arte da dança é contratada para fazer shows em um restaurante onde conseguiu um emprego também para o seu mais recente amado. Carlitos atrapalhado para servir se revela um talentoso cantor. Porém, a jovem é foragida do poder estatal por ser menor de idade e considerada vagabunda. É forçada a ficar sob custódia do Estado, no entanto, foge com Carlitos para longe tentando reconstruir uma nova vida nas incertezas da emergente sociedade burguesa moderna.







Entrevista completa


35. O Livro dos Abraços - Celebração do nascer incessante - Eduardo Galeano

Eduardo Galeano


35. O Livro dos Abraços




Celebração do nascer incessante 

Miguel Mármol serviu outra rodada de rum Matusalém e disse que estava comemorando, bebemorando, cinqüenta e cinco anos de seu fuzilamento. Em 1932, um pelotão de soldados tinha acabado com ele, cumprindo ordens do ditador Martínez. 

De idade, tenho oitenta e dois — disse Miguelito — mas nem percebo. Tenho muitas namoradas. O médico receitou. 

Contou-me que tinha o costume de acordar antes do amanhecer, e que assim que abria os olhos começava a cantar, a dançar e a sapatear, e que os vizinhos do andar de baixo não gostavam nada daquilo. 

Eu tinha ido levar para ele o tomo final de Memória do Fogo. A história de Miguelito funciona como eixo desse livro: a história de suas onze mortes e suas onze ressurreições, tudo isso ao longo de sua vida brigona. Desde que nasceu pela primeira vez em Hopango, em El Salvador, Miguelito é a mais certeira metáfora da América Latina. Como ele, a América Latina morreu e nasceu muitas vezes. Como ele, continua nascendo. 

Mas disso — afirmou — é melhor não falar. Os católicos me dizem que tudo isso aconteceu por obra da Providência. E os comunistas, meus camaradas, dizem que foi tudo obra da coincidência. 

Propus fundarmos juntos o marxismo mágico: metade razão, metade paixão, e uma terceira metade de mistério. 

A ideia é boa — me disse ele. 




O parto

Três dias de parto e o filho não saía: — Tá preso. O negrinho tá preso — disse o homem. 


Ele vinha de um rancho perdido nos campos. 

E o médico foi até lá. 

Maleta na mão, debaixo do sol do meio-dia, o médico andou até aquela longidão, aquela solidão, onde tudo parece coisa do destino feroz; e chegou e viu. 

Depois, contou para Glória Galván: 

A mulher estava nas últimas, mas ainda arfava e suava e estava com os olhos muito abertos. Eu não tinha experiência nessas coisas. Eu tremia, estava sem nenhuma ideia. E nisso, quando levantei a coberta, vi um braço pequeninho aparecendo entre as pernas abertas da mulher. 

O médico percebeu que o homem tinha estado puxando. O bracinho estava esfolado e sem vida, um penduricalho sujo de sangue seco, e o médico pensou: Não se pode fazer mais nada. 

E mesmo assim, sabe-se lá por quê, acariciou o bracinho. Roçou com o dedo aquela coisa inerte e ao chegar à mãozinha, de repente a mãozinha se fechou e apertou seu dedo com força. 

Então o médico pediu que alguém fervesse água, e arregaçou as mangas da camisa.




Ressurreições / 2

Eram os tempos da ditadura militar no Brasil. Os generais deixaram-no entrar para que morresse em sua própria terra. Darcy Ribeiro chegou do exílio e uma ambulância, que o esperava ao pé do avião, levou-o diretamente ao hospital. 

Darcy sabia que estava com câncer, e que o câncer tinha devorado pelo menos um de seus pulmões, mas estava alegre de alegria por estar na sua terra e sentir que ela estava tão sempre-viva e dançadoura. 

O irmão de Darcy chegou da cidade de Montes Claros. Vinha para se despedir. Sentado ao lado de Darcy no hospital, olhava os próprios pés. Estava choroso e sombrio e Darcy tratava de levantar-lhe o ânimo. O cirurgião tomou Darcy pelo braço e levou-o para caminhar pelo corredor: 

Não quero desanimá-lo — disse —, mas acho que o senhor deve preparar-se para o pior. Se o seu irmão sair vivo, será um milagre. 

Darcy não pôde conter o riso, e o médico não entendeu. 

No dia seguinte, foi operado. Darcy despertou com um pulmão a menos. Como tem tantos, nem percebeu.





As duas cabeças

Pode ser que Ornar Cabezas tenha esse nome porque está usando sua segunda cabeça. E talvez por isso tenha chegado até o fim no áspero caminho da revolução da Nicarágua; e por isso chegou vivo. 

Ornar era criança e estava brincando de guerra de pedradas, na cidade de León. Choviam pedras, entre uma e outra esquina de uma rua qualquer, quando Ornar viu vir um tremendo pedregulho que seu inimigo tinha atirado, viu clarinha a trajetória da pedra no ar, e correu: ele queria correr para o outro lado, escapar, salvar-se, mas não pôde evitar que sua cabeça se lançasse ao encontro daquele projétil que estava destinado a ele, e sua cabeça chegou ao lugar exato e no momento exato para ser golpeada e quebrada pela pedra que caía. 

Assim foi que Ornar perdeu aquela sua cabeça que buscava a perdição. Desde então, usa a outra, um pouco menos louca.





Ressurreições / 4

Peca quem mente, diz Ernesto Cardenal, porque rouba a verdade das palavras. Lá por volta de 1524, Frei Bobadilla fez uma grande fogueira na aldeia de Manágua e atirou nas chamas os livros indígenas. Aqueles livros eram feitos em pele de veado, em imagens pintadas com duas cores: o vermelho e o negro. 

Havia séculos que estavam mentindo para a Nicarágua, até que o general Sandino escolheu essas duas cores para sua bandeira sem saber que eram as cores das cinzas da memória nacional.




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Titulo original: El libro de los abrazos Primeira edição em junho 1991. Tradução: Eric Nepomuceno Revisão: Ana Teresa Cirne Lima, Ester Mambrini e Valmir R. Cassol Produção: Jó Saldanha e Lúcia Bohrer ISBN: 85.254.0306-0 G151L Galeano, Eduardo O livro dos abraços / Eduardo Galeano; tradução de Eric Nepomuceno. - 9. ed. - Porto Alegre: L&PM, 2002. 270p.:il.;21cm 1. Ficção uruguaia. I.Título. CDD U863 CDU 860(895)-3 Catalogação elaborada por Izabel A. Merlo, CRB 10/329. Texto e projeto gráfico de Eduardo Galeano © Eduardo Galeano, 1989


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Leia também:

34. O Livro dos Abraços - Chorar - Eduardo Galeano


36. O Livro dos Abraços - A acrobata - Eduardo Galeano


1.O Livro dos Abraços - O mundo - Eduardo Galeano



Série: Jazz Para Sempre 19 - Summertime

Al Jarreau feat. 
Alita Moses 

at the Montreux Jazz Festivall





quando você não sabe o que dizer... escute









Al Jarreau
Summertime (live, 1994)








quarta-feira, 26 de julho de 2017

Festival Chaplin - O grande ditador

Charlie Chaplin - O grande ditador (1940)




"Soldados! Não vos entregueis a esses brutais... que vos desprezam... que vos escravizam... que arregimentam as vossas vidas... que ditam os vossos atos, as vossas idéias e os vossos sentimentos! Que vos fazem marchar no mesmo passo, que vos submetem a uma alimentação regrada, que vos tratam como um gado humano e que vos utilizam como carne para canhão! 

Não sois máquina! Homens é que sois! E com o amor da humanidade em vossas almas! Não odieis! Só odeiam os que não se fazem amar... os que não se fazem amar e os inumanos. 

Soldados! Não batalheis pela escravidão! Lutai pela liberdade!"

Charles Chaplin 









"O Brasil arrastava-se, mas agora erguer-se-á!
A democracia está podre!
A liberdade é detestável!
A liberdade de palavra é contestável!
Sacrifiquemo-nos para permanecermos grandes!
Apertemos os cintos!"

( a história não termina... só diz até breve.)






O Grande Ditador



1940 ‧ Drama/Comédia dramática ‧ 2h 6m

Um barbeiro judeu passa anos em um hospital do exército se recuperando de suas feridas após ter servido na guerra, sem saber do crescimento de poder do ditador fascista Adenóide Hynkel e suas políticas antissemitas. Quando o barbeiro retorna ao seu bairro tranquilo, ele fica atordoado com as mudanças…

Data de lançamento: 15 de outubro de 1940



Prêmios: New York Film Critics Circle Award de Melhor Ator





Personagens...


Charles Chaplin - Adenoid Hynkel / Barbeiro judeu

Jack Oakie - Benzino Napaloni

Reginald Gardiner - Comandante Schultz

Henry Daniell - Garbitsch

Billy Gilbert - Marechal Herring

Grace Hayle - Madame Napaloni

Carter DeHaven - Spook (embaixador bacteriano)

Maurice Moscovitch - Sr. Jaeckel

Emma Dunn - Sra. Jaeckel

Bernard Gorcey - Sr. Mann







Crítica

?Interrogação

O Grande Ditador (1940), de Charles Chaplin



Por Emanuela Siqueira



Em 1940 a Segunda Guerra Mundial estava há 5 anos de oficialmente terminar. Nesse ano o cineasta Charlie Chaplin lançava O Grande Ditador (The Great Dictator, USA, 1940), com um dos roteiros mais ousado, engraçado e com forte crítica social sobre esse momento que realmente marcou a história do cinema.

Logo nos créditos iniciais de O Grande Ditador somos avisados que a semelhança entre os personagens do filme com a realidade é uma mera coincidência, o que sabemos não ser verdade. Chaplin apresenta dois personagens fisicamente idênticos, mas em situações opostas. Adenoid Hynkel é o grande ditador da Tomânia, uma nação que afundada numa crise passa a crer em coisas como grandes líderes e raças superiores. Já o outro, o intitulado barbeiro de judeus (Carlitos), é o típico desajeitado que perdeu a memória na guerra e não entende o que está acontecendo em Tomânia e mais precisamente no gueto em que vive.

O enredo de O Grande Ditador é incrível, trazendo o paralelismo da vida dos dois personagens, ambos interpretados por Chaplin, que funcionam como caricatos cômicos das figuras centrais da época. Hynkel e o Barbeiro nunca se encontram, mas suas vidas estão interligadas, pois a vida de um sempre acaba estando em jogo com as decisões do outro.

Nas primeiras cenas vemos o personagem de Carlitos em meio a guerra, sempre perdido com cenas cômicas do front. Chaplin deixa claro a banalização com a seriedade da guerra e o mal uso das supostos poderes bélicos. Logo isso fica ainda mais nítido com as cenas de discussão, sobre acordos de “paz”, entre Hynkel e o narcisista Benzino Napaloni, ditador de Bactéria, uma clara referência entre a relação de Hitler com Benito Mussolini da Itália.

O Grande Ditador é cheio de cenas que remetem às situações de tensão que a Segunda Guerra Mundial causava e, Chaplin fez disso uma película em que tudo parece mais cômico se visto desse ângulo inocente que a comédia traz. Para reforçar os gestos caricatos dos dois personagens principais o diretor abusa das cenas longas, e um pouco exageradas, como os discursos fervorosos de Hynkel numa língua incompressível. O filme foi o primeiro do diretor usando o som das vozes. Chaplin acreditava que o som iria mudar o expressionismo do cinema, o tornando mais banal.

Na filmografia do diretor havia o clássico Tempos Modernos, de 1936, que já o mostrava como pai das sátiras sociais. Dizendo que a vida era uma comédia se vista de perto, fez de seus filmes obras de arte, sem nenhum tipo de gratuidade, e muito representativas sobre os fatos que estavam mudando o curso da humanidade. E mesmo com toda essa “leveza” Chaplin foi exilado dos EUA, por conta desse filme.

O Grande Ditador é um clássico pela criatividade e ousadia do diretor. Em um período em que as artes pisavam em ovos e o cinema era limitado pelo cinema-propaganda-totalitário, ele produziu/dirigiu/atuou em um filme que até hoje parece ousado demais, porém com a subjetividade suficientemente sensível para a época.

Enquanto, nesta época, muitos filmes, livros e obras americanos preferiam visar apenas o entretenimento, O Grande Ditador é marcado pela crítica social e falta de sentido do futuro. A arte da época foi marcada pelas caricaturas do que poderia vir a ser o futuro, como fica claro em outras obras do diretor e em obras literárias visionárias que retratam o totalitarismo como 1984, de George Orwell.







existe sentido num futuro sem solidariedade, um presente que vive do sofrimento dos outros? é assim que devemos viver ? um mundo de muros e guetos?





"Sinto muito, mas não pretendo ser um imperador. Não é esse o meu ofício. Não pretendo governar ou conquistar quem quer que seja. Gostaria de ajudar a todos - se possível - judeus, o gentio... negros... brancos. 

Todos nós desejamos ajudar uns aos outros. Os seres humanos são assim. Desejamos viver para a felicidade do próximo - não para o seu infortúnio. Por que havemos de odiar ou desprezar uns aos outros? Neste mundo há espaço para todos. A terra, que é boa e rica, pode prover todas as nossas necessidades. 

O caminho da vida pode ser o da liberdade e da beleza, porém nos extraviamos. A cobiça envenenou a alma dos homens... levantou no mundo as muralhas do ódio... e tem-nos feito marchar a passo de ganso para a miséria e os morticínios. Criamos a época da velocidade, mas nos sentimos enclausurados dentro dela. A máquina, que produz abundância, tem-nos deixado em penúria. Nossos conhecimentos fizeram-nos céticos; nossa inteligência, empedernidos e cruéis. Pensamos em demasia e sentimos bem pouco. Mais do que máquinas, precisamos de humanidade. Mais do que de inteligência, precisamos de afeição e doçura. Sem essas virtudes, a vida será de violência e tudo será perdido. 

A aviação e o rádio aproximaram-nos muito mais. A próxima natureza dessas coisas é um apelo eloquente à bondade do homem... um apelo à fraternidade universal... à união de todos nós. Neste mesmo instante a minha voz chega a milhões de pessoas pelo mundo afora... milhões de desesperados, homens, mulheres, criancinhas... vítimas de um sistema que tortura seres humanos e encarcera inocentes. 

Aos que me podem ouvir eu digo: "Não desespereis!" A desgraça que tem caído sobre nós não é mais do que o produto da cobiça em agonia... da amargura de homens que temem o avanço do progresso humano. Os homens que odeiam desaparecerão, os ditadores sucumbem e o poder que do povo arrebataram há de retornar ao povo. E assim, enquanto morrem homens, a liberdade nunca perecerá. 

Soldados! Não vos entregueis a esses brutais... que vos desprezam... que vos escravizam... que arregimentam as vossas vidas... que ditam os vossos atos, as vossas idéias e os vossos sentimentos! Que vos fazem marchar no mesmo passo, que vos submetem a uma alimentação regrada, que vos tratam como um gado humano e que vos utilizam como carne para canhão! 

Não sois máquina! Homens é que sois! E com o amor da humanidade em vossas almas! Não odieis! Só odeiam os que não se fazem amar... os que não se fazem amar e os inumanos. 

Soldados! Não batalheis pela escravidão! Lutai pela liberdade! 

No décimo sétimo capítulo de São Lucas é escrito que o Reino de Deus está dentro do homem - não de um só homem ou um grupo de homens, mas dos homens todos! Está em vós! Vós, o povo, tendes o poder - o poder de criar máquinas. O poder de criar felicidade! Vós, o povo, tendes o poder de tornar esta vida livre e bela... de fazê-la uma aventura maravilhosa. Portanto - em nome da democracia - usemos desse poder, unamo-nos todos nós. Lutemos por um mundo novo... um mundo bom que a todos assegure o ensejo de trabalho, que dê futuro à mocidade e segurança à velhice. 

É pela promessa de tais coisas que desalmados têm subido ao poder. Mas, só mistificam! Não cumprem o que prometem. Jamais o cumprirão! Os ditadores liberam-se, porém escravizam o povo. Lutemos agora para libertar o mundo, abater as fronteiras nacionais, dar fim à ganância, ao ódio e à prepotência. Lutemos por um mundo de razão, um mundo em que a ciência e o progresso conduzam à ventura de todos nós. Soldados, em nome da democracia, unamo-nos."




Júlio Verne: Viagem ao Centro da Terra / XXV

Júlio Verne



Viagem ao Centro da Terra/XXV





Acordei, portanto, no domingo de manhã, sem aquela preocupação costumeira de partir imediatamente. E embora isso acontecesse no mais profundo dos abismos, não deixava de ser agradável. Além disso, já nos habituáramos àquela vida de trogloditas. 

Já não pensava mais no sol, nas estrelas, na lua, nas árvores, nas casas, nas cidades, enfim, em todas aquelas superficialidades terrestres transformadas em necessidade pelo ser sublunar. Em nossa qualidade de fósseis, desdenhávamos aquelas maravilhas inúteis.

A gruta formava uma vasta sala. Sobre seu solo granítico, corria suavemente o riacho fiel. A tal distância de sua nascente, sua água tinha a temperatura ambiente e não era mais difícil de beber.

Depois do almoço, o professor quis dedicar algumas horas para colocar em ordem suas anotações diárias.

- Primeiro - disse -, vou fazer alguns cálculos para levantar exatamente nossa posição; na volta, quero poder traçar um mapa de nossa viagem, uma espécie de secção vertical do globo que mostrará o perfil de nossa expedição.

- Será muito curioso, meu tio; mas suas observações serão precisas o suficiente?

- Sim. Anotei com cuidado os ângulos e as inclinações.Estou certo de que não me enganei. Antes de mais nada, vejamos onde estamos. Pegue a bússola e observe a direção que ela indica.

Olhei o instrumento e, após um exame cuidadoso, respondi:

- Leste-quarto-sul-leste.

- Bem - murmurou o professor, anotando a observação e fazendo alguns cálculos rápidos. - Concluo que, desde nossa partida, percorremos oitenta e cinco léguas.

- Estamos viajando sob o Atlântico?

- Exatamente.

- E talvez nesse momento esteja caindo uma tempestade, e as ondas e o furacão estejam sacudindo navios sobre nossas cabeças?

- É possível.

- E as baleias estejam tocando com suas caudas as muralhas de nossa prisão?

- Fique tranquilo, Axel, não conseguirão abalá-la. Mas voltemos a nossos cálculos. Estamos a sudeste, a oitenta e cinco léguas da base do Sneffels e, de acordo com as minhas anotações anteriores, avalio nossa profundidade em dezesseis léguas.

- Dezesseis léguas! - exclamei.

- Com certeza.

- Mas é o limite extremo delimitado pela ciência à espessura da crosta terrestre!

- Não nego.

- E aqui, de acordo com a lei do aumento da temperatura, deveria estar um calor de mil e quinhentos graus.

- Deveria, meu rapaz.

- E todo esse granito não se manteria em estado sólido e estaria em plena fusão.

- Como você vê, não é bem assim e, como de hábito, os fatos desmentem as teorias.

- Sou obrigado a concordar, mas isso me surpreende.

- O termômetro está marcando...

- Vinte e sete graus e seis décimos.

- Os cientistas se enganaram em mil quatrocentos e setenta e quatro graus e quatro décimos. O aumento proporcional da temperatura é, portanto, um erro. Humphry Davy não estava enganado. Nem eu errei em ouvi-lo. O que você diz disso?

- Nada.

Na verdade eu tinha muito a dizer. Não admitia a teoria de Davy, continuava apostando no calor central, embora absolutamente não sentisse seus efeitos. Na verdade, preferia admitir que aquela chaminé de um vulcão extinto, recoberta pelas lavas de uma camada refratária, não permitia que a temperatura se propagasse pelas suas paredes. Mas, sem tentar encontrar novos argumentos, limitava-me a aceitar a situação tal como era.

- Meu tio - continuei -, considero todos os seus cálculos exatos, mas permita-me chegar, a partir deles, a consequências rigorosas.

- À vontade, meu rapaz.

- No ponto em que estamos, sob a latitude da Islândia, o raio terrestre é de mais ou menos mil quinhentas e oitenta e três léguas?


- Mil quinhentas e oitenta e três léguas e um terço.

- Arredondemos isso para mil e seiscentas léguas. De uma viagem de mil e seiscentas léguas, já percorremos doze?

- Exatamente.

- Isso equivale a oitenta e cinco léguas de diagonal?

- Isso mesmo.

- Em cerca de vinte dias?

- Em vinte dias.

- Ora, dezesseis léguas correspondem a um centésimo do raio terrestre. Sendo assim, levaremos dois mil dias ou quase cinco anos e meio descendo! O professor não respondeu.

- Sem contar que, se uma vertical de dezesseis léguas termina por uma horizontal de oitenta, isso dá oito mil milhas na direção sudeste, e muito tempo antes de alcançar o centro já teremos saído por um ponto da circunferência!

- Ao diabo com seus cálculos! - replicou meu tio com um gesto de raiva. - Ao diabo com suas hipóteses! Em que se baseiam? Quem lhe garante que esse corredor não dará diretamente em nosso objetivo? Aliás, tenho um precedente a meu favor. Outro já fez o que estou fazendo, outro já foi bem-sucedido e eu também terei êxito.

- Espero que sim, mas, enfim, posso permitir-me...

- Você pode permitir-se calar, Axel, já que está dizendo coisas tão irracionais.

Observei que o terrível professor ameaçava reaparecer na pele do tio e resolvi evitar tal desenlace.

- Agora, consulte o manômetro - retomou. - O que indica?

- Uma pressão considerável.

- Bem, você percebe que descendo suavemente, acostumando-nos pouco a pouco com a densidade da atmosfera, quase não a sentimos?

- Quase nada, só um pouco de dor de ouvido.

- Isso não é nada, e esse mal-estar desaparecerá se colocar o ar exterior rapidamente em contato com o ar encerrado em seus pulmões. 

- Com certeza - respondi, resolvido a não mais contrariar meu tio. - Dá até prazer sentir-se mergulhado numa atmosfera mais densa. O senhor observou com que intensidade o som se propaga?

- Sem dúvida. Um surdo acabaria ouvindo às mil maravilhas.

- Mas essa densidade aumentará com toda a certeza?

- Sim, de acordo com uma lei muito pouco determinada.

É verdade que a intensidade da gravidade diminuirá à medida que descermos. Você bem sabe que ela é sentida com maior nitidez na própria superfície da terra, e que no centro do globo os objetos deixam de pesar.

- Sei, mas diga-me, o ar não acabará por adquirir a densidade da água?

- Claro, sob uma pressão de setecentas e dez atmosferas.

- E mais embaixo?

- Mais embaixo, a densidade aumentará mais ainda.

- Então como desceremos?

- Colocaremos pedregulhos nos bolsos.

- Que incrível, meu tio, o senhor tem resposta para tudo.

Não ousei ir além do campo das hipóteses, pois teria chegado a qualquer outra impossibilidade que faria o professor ter uma síncope. No entanto, era evidente que o ar, sob uma pressão que poderia alcançar milhares de atmosferas acabaria por chegar ao estado sólido e então, mesmo admitindo-se que nossos corpos resistissem, seria preciso parar a despeito de todos os raciocínios do mundo.

Mas não insisti nesse argumento. A resposta de meu tio seria, mais uma vez seu eterno Saknussemm, precedente sem qualquer valor, pois, mesmo que considerássemos a viagem do cientista islandês como comprovada, a resposta seria bem simples:

No século XVI, nem o manômetro nem o termômetro haviam sido inventados; então como Saknussemm poderia afirmar ter chegado ao centro do globo? Guardei, porém, essa objeção para mim mesmo e aguardei os acontecimentos.

Passamos o resto do dia em cálculos e conversas. Concordei todo o tempo com o professor Lidenbrock, invejando a indiferença completa de Hans, que, sem procurar tantas causas e efeitos, deixava-se conduzir cegamente pelo destino.






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Júlio Verne: Viagem ao Centro da Terra / XXVI


Júlio Verne: Viagem ao Centro da Terra / I


terça-feira, 25 de julho de 2017

Festival Chaplin - O Garoto

Charlie Chaplin- O Garoto (1921)











O Garoto

1921 ‧ Drama/Comédia dramática ‧ 1h 8m

Uma mãe abandona seu filho com um bilhete em uma limusine, mas o carro acaba sendo roubado e a criança é deixada em uma lata de lixo. Um vagabundo encontra o bebê e passa a cuidar dele. Cinco anos depois, a mulher tenta encontrar o filho perdido.

Data de lançamento: 6 de maio de 1921 (Brasil)
Direção: Charlie Chaplin
Roteiro: Charlie Chaplin
Companhia(s) produtora(s): First Nacional
Música composta por: Charlie Chaplin


Elenco 

Charlie Chaplin
Charlie

Jackie Coogan
The Kid

Edna Purviance
The Woman

Lita Grey


Henry Bergman
Professor Guido, Night S...





Smile - Charlie Chaplin

Smile

Charlie Chaplin




Sorria, embora seu coração esteja doendo
Esse é o tempo que você tem que continuar tentando





Michael Jackson



Este vídeo foi feito há algum tempo por chaplinsviolin, com a música composta por Charlie Chaplin na voz de Michael Jackson.




Sorria


Sorria, embora seu coração esteja doendo
Sorria, mesmo que ele esteja partido
Quando há nuvens no céu,
Você conseguirá...


Se você sorrir
Com seu medo e tristeza
Sorria e talvez amanhã
Você verá o sol brilhando para você


Ilumine seu rosto com alegria
Esconda qualquer traço de tristeza
Embora uma lágrima possa estar tão próxima
Esse é o tempo que você tem que continuar tentando
Sorria, o que adianta chorar?
Você descobrirá que a vida ainda continua
Se você apenas sorrir


Este é o momento que você tem que continuar tentando
Sorria, de que adianta chorar?
Você descobrirá que a vida ainda continua
Se você apenas sorrir



Composição: Charles Chaplin





Nat King Cole






Saxophone cover






David Sanborn






José C. Simões





Chaplin, que compôs a música, com a ajuda do compositor David Raksin foi inspirado por uma sequência no primeiro ato do dueto de amor. Na letra, baseada em versos e temas do filme, a cantora diz ao ouvinte para se animar e que sempre haverá um amanhã brilhante, desde que sorria. Os letristas foram Geoffrey Parsons and John Turner, Carles Chaplin adicionou a letra e o título em 1954.
"Sorrir" tornou-se um padrão popular desde seu uso original no filme de Chaplin e foi gravado por vários artistas.[

segunda-feira, 24 de julho de 2017

histórias de avoinha: muntu agradecido...

mulheres descalças


muntu agradecido...
Ensaio 105B – 2ª edição 1ª reimpressão


baitasar



juntuia, um ou dois passo na frente, um ou dois passo pra tráis, às veiz apressado, otras nem tanto, com passada toda ou metade da passada, o pó subindo dum pretu taludo qui parecia sê a guarda do rabo de tatu, na sua função de dá ajuda pru moringue executá as ordem recebida. um pretu qui pensa nele e qué subí na confiança do moringue, sonhando com a carta da alforria. desejoso de sê dos pretu de lá pruqui os pretu de cá é tratado como carcaça desse tempo maldito. num era o punho qui segurava o rabo de tatu, mais podia sê o rabo de tatu, bastava recebê a ordem pra se usá como se rabo de tatu fosse. os punho do taludo podia batê mais forte e firme qui o rabo de tatu

tem desgraça qui mais desgraça fica

enquanto num recebia autoridade de capitão-do-mato apoiava o moringue e num permitia rebeldia contra a mão do rabo de tatu. isso se passa assim mesmo quando um luta pra sobrevivê num importa o preço e o otro hôme coloca na frente da bondade cheia de emoção a dureza do egoísmo sem medida. os dois junto era os passo da crueldade

Já vi os dois, gritô a baronesa

Não é coisa boa de ver, retrucô o barão

num dava pra sabê se eles juntuia pra removê o pretu da vida – caso fosse pra sê assim, ia sê assim – ou juntuia pra dá punição corretiva de revelação: o nosso siô tava ali entre eles e num ia admití nada ruim; e fugí é coisa ruim. num ia sê por carestia de exemplo e correção de má conduta qui a vontade do siô num ia sê cumprida

o mais aceito era devolvê com vida o pretu fujão pru dono, se com castigo ou sem castigo num era fácil de sabê. as coisa pra sê feita ia sê feita pelo moringue e tava presa no fiapo de compaixão do perseguidô

então, pode sê tudo isso, mais num na mesma cadeia de seguimento

Esse com a cabeça de moringue é um jovem militar caramuru. Gosta da estratégia da emboscada, observa os movimentos do fujão até se decidir pelo confronto direto, geralmente, quando já sabe que o inimigo não carrega arma de ataque ou defesa. Suas emboscadas nunca são bem contadas, dão margens a controvérsias que ninguém contesta enquanto lhe são favoráveis. Espera o fujão dormir os sentidos da prontidão para se lançar sobre o ferido de morte pela desatenção. Sabe que conta com a colaboração dos villeiros. Geralmente, desfere um ataque surpreendente e arrasador sobre os sonhos de liberdade do indefeso negro. O caramuru já está sendo contado e cantado como um herói lendário. Entre as autoridades mais influentes da Villa ele é mencionado como um grande homem destinado à nossa defesa e destruição do inimigo.

a baronesa mais a liberata escutô as palavra do barão com aperto no curação. um tormento de conversa qui só faz aumentá o pressentimento do perigo. o cerco das rua fazia avolumá a angústia. o curação tem veiz qui dispara; otras veiz, quase para. as chance do pretu escravizado qui virô fujão saí sem derramá o próprio sangue, mesmo com reza e ajuda da cavalaria, é menó qui a promessa dele tê alimento, forro de vestimenta, moradia pra vivê com saúde, aconchego, felicidade e satisfação como hôme escravizado

os grito das duas muié foi pru pretu seguí gingando agachado e se acudí namorando. fugí. corrê e corrê. namorá e namorá. povoá a villa

os grito num ia encontrá nehum escutadô disposto pra sacudí as memória doída da escravidão. e num tinha surpresa qui era assim, tudo uma desculpa pra tê divertimento; a villa, veiz qui otra, precisava tê movimentação pra esquecê o fim de mundo qui tava naquela lonjura. então, ficava viva entre os qui afirmava sê a villa qui tava no fim do mundo e os qui abonava qui o fim do mundo é a villa, mais tenho pra mim: um lugá qui proclama herói um covarde é um lugá qui se acha dono do mundo, Ninguém lhe escapa, puruguntô a baronesa

o barão num mexeu os sentido nem pra escondê nem pra mostrá o qui pensava, sabia qui as duas muié num havia de ficá contente com a resposta qui podia dá

A Villa se sustenta com o trabalho dos negros e vive em transe com a escravidão. Não aceita sair da posição deitada de costas sobre a senzala, o rebenque na mão e o punhal na outra. Tudo com um discreto sorriso e nenhuma gota de suor na testa.

a baronesa num mostrô nehum apetite com a resposta do barão

O siô meu esposo de faz-de-conta não respondeu minha pergunta. Na verdade, não queria uma resposta, mas um alento, voltô-se pra liberata e depois pru esposo, num queria creditá qui ele tinha mais fidelidade pra villa qui estima e respeito pra ela. num baixô a cabeça e num deixô ele escapá do seu oiá

Já sofreu uma ou outra perda desde que começou a correr atrás dos negros e assassinos. Gosta do ataque surpresa, parô as palavra qui já vinha saindo, achô meió dizê pela metade o qui podia sê dito, mais sabia qui precisava arrematá as palavra já dita, conhece a muié qui tá na sua frente, quando purugunta qué atendimento, não se faça pouco caso desse jovem caramuru. Quando é possível, ele mesmo aplica o castigo no escravo capturado: ele é polícia, juiz e torturador. Nestes casos, não vê necessidade de agir com prudência e moderação. Segundo suas próprias palavras: depois de estabelecida a vantagem é preciso arrasar para esmagar.

oiando da pedra, o abicu pareceu combiná com o barão qui num queria mentí nem assustá a baronesa, os dois pareceu tê acertado as palavra pra sê dita, o barão pra baronesa, o abicu pra liberata, O moringue caramuru parece ser muito perigoso para os negros. Vai correr atrás fazendo uso da emboscada e da traição.

as palavra dita acompanhô os dois perseguidô do fujão, o moringue mais o pretu ajudante. eles passô pelo tabulêro, logo atráis vinha o exército de fantasma pisando e destruindo tudo. as muié num teve tempo de tirá o tabulêro do caminho dos fantasma. as planta dos pé solado pisô com vontade e sem dó, pisô com propósito de pisá

um dos fantasma parô pra soltá o seu brasêro de ferro fundido pela boca, Cuidado, bruxa velha! Já voltamos! Bruxa boa é bruxa morta!

o muriquinhu abicu se virô sem susto, todo entesado acima da pedra infame, avistô liberata e puruguntô, Como tanta vida vira fantasma enquanto tem vida?

a vozearia qui se cruzava num parava de gritá. um exército qui num tem espritu e num tem dó carrega o diabo nas costa e lambe o chão, tá enganado quem credita qui fantasma é espritu... num é. fantasma é morto qui num é espritu purqui num qué ou purqui num pode. num esquece as lembrança da vida e vive morto, atormentado com as coisa ruim do egoísmo. fantasma é a vida qui morre sem morrê e num vira vida nem espritu

É o disfarce das coisa ruim da solidão, muriquinhu.

a villa tava no seu feitio mais agitado, mais num conseguia alívio pruqui num tinha bondade. num era gritaria da alegria o divertimento da caçada. o ódio se alastrava e cruzava dum jeito qui parecia num tê fim sobre o sangue e os sonho dos pretu escravizado. a villa podia num sabê ou fazê de conta qui num sabe, mais gritá assim num faz da villa um lugá feliz

o abicu perdeu das vista o pretu fujão, guiava sua prontidão pelos grito, Agarra o negro! Agarra!

os cão da rua, o rabo de tatu, as bengala, tudo no alcance do uso; os grito, os latido, o badalo do sino, tudo em uso

liberata largô de dá importância prus grito e firmô atenção na baronesa, as duas parecia resmungando uma pra otra, Pretu num chega sê véio, mais se chegá num vai vivê da saudade, Fico embaraçada, se obrigô respondê a baronesa, mas tenho muito ódio dos canalhas fingidos de justos e da sua caridade com migalhas, as duas muié tinha nas vista as ferida da carne-vida, Vosmecê precisa tirá essa malquerença do curação, a resistência da muié preta escravizada é sobrevivê pela manha, pela dança, pela força do corpo e dos espritu, nossa escôia num é resistí pelo ódio, É tudo tão injusto, Às veiz, a punição num vem pelo juiz.

as mãe num conseguia segurá os fiu em casa. os piá queria tá na caçada com a tropa do moringue. um exército de fantasma corria atráis da carcaça do pretu. um chamava otro pra cercá, acuá, cuspí e jogá terra no pretu. um exército com cuspe na boca, terra nas mão e ódio nas vista

Ei, moço...

o moço escutô, mais num deu siná de atrevimento pra oiá, continuô na espreita, Ei, moço...

a mesma voz repetiu o chamado do moço, sussurrando atenção, implorando um gesto, um sorriso, um oiá de bem-te-vi, Ei! Moço! Entra no quintal e vá até o fundo do terreiro...

os óio do moço arregalô bem mais qui achava qui podia vê, mais só dava conta de vê o qui escutava, Entra, moço...

ele entrô

num usô o portão, achô meió continuá agarrado no chão, passô no furo das tábua podre qui marcava o fim da rua e o começo das terra da casa. tava mais espiado qui morto antes do enforcamento, Ei, moço... entra. Pode entrar. Não para.

ele num parô

e pode o enforcado desviá do caminho inté a forca depois qui foi decidido qui a corda vai apertá no pescoço? num tem valentia qui faça pará os passo qui precisa sê dado pra forca. as força qui mata em nome de tudo num pode sê parada, O morto tem alguma palavra que não disse e quer dizer antes de ser feita a justiça dos homens em nome de Deus, essa é a purugunta qui é feita pru condenado. às veiz, é o pulícia carcerêro qui faz o último interrogatório; otras veiz, quando o condenado tem mais importância ou a maldade feita foi das mais braba, é o juiz qui aparece pru arremate. no exemplo da história qui tá se contando, qui já foi acontecida, mais qui na história ainda num se deu, é dito e desdito qui foi o siô padinhu qui teve a honra de oferecê pra villa as última palavrada do morto vivo

tem quem conta qui em otra das otras veiz, otro condenado com esticão no pescoço num foi escutado nas última coisa qui tinha pra dizê, as autoridade num deu importância pru enforcamento e nem a villa deu. apenas mais um morto vivo. uma autoridade esperô pela otra e ninguém puruguntô se acaso o vivo – já quase morto – tinha guardado as famosa derradêra palavra pra soltá. morreu com elas presa na goela e virô pó depois de sê comida de verme com as palavra presa no gargalo do pescoço

quando o moringue escutô o desconforto da plateia pelo descaso com o condenado, afinal, a villa tava reunida pra vê o divertimento todo, ele qui fazia guarda do enforcado, retrucô, E qual a importância das últimas palavras de um zumbi? e num teve purugunta. naquela veiz num teve purugunta, depois num mais aconteceu do condenado num tê tempo das despedida pública

as palavra do moringue foi desaprovada pelo restinho de lástima e misericórdia qui tava na villa. ele num desfez o dito, já qui no vê desumano dele num tinha nada pra sê desdito, mais ficô preocupado com sua posição de moringue e fez chegá nas pessoa da villa qui o dito por ele num foi dito como moringue, Falei o que disse apenas como villeiro, nas minhas palavras não estavam as intenções do moringue.

de qualqué jeito, o moringue qui a villa tem é o moringue qui a villa escôieu, cada villa tem o moringue qui merece, o feito num pode sê desfeito. é bão voltá pra história qui tá sendo contada: o enforcamento do josino. duvido qui foi o padinhu qui puruguntô sobre as última palavra do moribundo, mais foi quem foi, qui quase nada tem de importância, o condenado recebeu o adequado tempo de dizê as derradêra intenção ainda como vivo. as testemunha jura qui ele pediu ajuda de deus e disse uma praga pra obra qui ele ajudava subí, e agora, os vivo tirava ele dos vivo e atirava nos braço dos morto em nome da obra santa, Vô morrê pruqui sô escravizado, mais vô morrê inocente. A prova da minha inocência é qui a obra santa nunca vai ficá pronta enquanto aqueles qui acusa um inocente continuá vivo. Vô morrê pra virá assombração pruqui num tenho culpa pra tê arrependimento.

Ei, moço... caminha até as águas. A imundícia que tá no corpo do moço é muito fedida.

a visita parô os passo e procurô a dona daquela voz qui convidava dum jeito qui ele num podia se negá. na primêra veiz, procurô e num viu. apertô as vista e colocô mais atenção no rumo das palavra qui parecia chegá das água; otras veiz, aparentava tá na casa. inté qui viu o qui os óio escutô: a dona da voz qui parecia sê tão quente, muntu diferente das voz qui tava acostumado escutá: as voz de mandá e castigá

uma voz normal qui esperô toda vida pra escutá, Meu nome é Laetitia, mas também pode me chamar de Milagres. E o nome de vosmecê?

se ele tinha nome ele num lembra. pode sê qui sim ou pode sê qui num tinha pruqui faz muntu tempo qui num tinha vontade de dizê, num tinha pruqui falá, num tinha pruqui se dá nome pra sê conhecido

Vosmecê tem língua pra falar?

o visitante silencioso continuô o caminho sem dizê nem ai nem ui, num precisava oiá atráis pra vê as vista lhe vendo, examinando as dô. passô a cerca quebrada sem tocá nas ferida do cercado de pau e arame. dois desconjuntado: a cerca e ele

chegô no fim do aterramento da casa e começo do capinzal. foi se enfiando no capinzal inté ficá merguiado nas água do rio. parô quando tava com as água na altura do umbigo

afundô todo

demorava pra subí

num parecia querê voltá pra respirá

laetitia pensô qui ele podia tê virado em água. continuô oiando da janela, esperava ele desumí e voltá pra vida. o tempo de espera parece sê o tempo qui num passa. tava na espreita, parada no lugá avesso do vazio: um lugá entupido de gente sem dá importância, com a solidão na cara

laetitia pensô qui ele pode tê virado um boto, já ouviu munta história da mudança do hôme em boto pra enganá as moça. coisa de namoro e safadeza. pode inté tê tido encantamento, uma qui otra veiz, mais agora num era o caso, num tinha conhecimento de tê boto pretu

o desfecho arrematô a curiosidade quando o boto subiu das água como hôme e num era boto. subiu e afundô uma, duas, mais de cem veiz, inté os dedo ficá enrugado e com chêro de boto

o banho faz recuperá a esperança

Deixe esses trapos na água.

ele obedeceu e saiu das água como a vida sai da preta paridêra: nu de vestimenta, moiado, sem palavra pra dizê, arrepiado, sem tabaco, sem pinga, o saco da comida vazio, se parecia com uma raiz descabaçada adubando do chão as fôia da árvore da vida

mais um pretu qui com seu trabáio sustenta os dono de tudo

Nossa o moço é aformoseado, mas se parece com um pudim de chocolate, tanto que treme, pensei na bondade da moça, o fujão mais parece um bicho xucro qui acabô de sê corrido de susto do alvoroço. ali, parado no quintal, a villa rugindo, o céu nevoento, aproximando uma borrasca de algumas horas, alguns dias, o frio intenso chegando sobre os bode, as cabra e o gado xucro, espaiando susto e alvoroço. num podia tá aformoseado

à noite, a iluminação dos lampião com azeite de baleia num ia alumiá o xucro fujão. é preciso sabê esperá

Coloca esse poncho, a muié preta de nome laetitia colocô aos bocado miudinho, nas mão do recém-nascido, um poncho branco com listras pardas feito no teá das preta escrava. muntu grossêro pra sê usado pelo branco era usado só pelos pretu e os índio. os pano mais limpo qui ele já usô, desde qui desceu do tumbêro sem a sua estêra de sentá e durumí

tava ali, em pé, num tinha onde fugí enquanto o dia num fosse durumí. nas mão tinha algumas pedrinha do fundo do rio, O que vosmecê vai fazer com essas pedras? Jogar em mim?

soltô as pedra, abriu os braço e curvôse sobre a muié. abriu-lhe as perna sem força e pediu permissão pra continuá a afundação do amô, colocô a sua natureza no vão das coxa inté as onda do afundamento trazê a fartura

E a língua continua no lugar ou já foi arrancada?

o hôme recém lavado num tirava os óio dos pé calçado da muié preta. ela tinha os pé pretu apoiado e protegido. subiu as vista na feitura cheia de buniteza da preta, era muntu miúda e cadêruda. reparô no aroma de chêro qui se largava da moça e alargava inté ele. as coisa boa da vida acordava a sua carcaça de pretu escravizado. pensô pedí pra preta caminhá um passo pra lá, otro pra cá, só queria vê sem medo e sem vergonha, repará na bunda qui mexia e remexia, só queria vivê

Muntu agradecido...





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