domingo, 31 de julho de 2011

I (1ª Parte) - No se puede hacer la revolucion sin las mujeres

As mágicas mais simples da vida são as mais encantadas
Cuerpo-Santo
baitasar

Cuerpo-Santo


A embaixada das bananas em terras de homens de milho, ainda está às escuras. O amanhecer ensolarado e com cheiro de suor, ainda não despencou dos milharais sobre as cores da noite. É sempre do mesmo jeito, desde que me lembro de colocar os olhos na cumeada da Montaña. Bem cedinho, o brilho amarelado do milho vem sempre do mesmo ponto mágico, os camponeses arreitam os olhos aonde ele se derrama
(Minha filha, as mágicas mais simples da vida são as mais encantadas.)
Meu pai sempre foi encantado com la Montaña.
Houve un tiempo em que a simplicidade daquela grande elevação de tierra acolhia as vidas campesinas para o sustento do cuerpo y espíritu. Homens e mulheres sabiam o que esperar da tierra generosa com seus cultivos de frutas e plantas medicinais, possuíam uma ligação vasta e clara com aquela fartura de florestas e animais, quase tudo perdido para as plantações mucho mayores que lo pensamiento de maíz.
Restou a memória do que existiu: uma Montaña com espírito alegre, simples e santo; uma vida que ganhava a vida coletando as sementes, folhas e frutas na floresta. Depois da invasão das grandes plantações restou a selva de maíz: um cárcere triste.
O nosso papá ficou perdido em alguma cova de milho: existe dele a fome, o ar sufocante e os sapatos sem sola. Em suas noites de maior solidão, mi hermana Blanca percorria caminhos sinuosos pelas covas de milho procurando nosso desaparecido. Nunca encontrado. A gente nunca esquece de quem se esquece da gente
(¿Padre por qué me has abandonado?)
As lágrimas escorriam caudalosas e as marés das águas se empurravam em soluços descontrolados. Enfiei os joelhos até o fundo da tierra, ajoelhada no chão recém criado, rezei com veemência. Blanca também rezava fervorosa. Ninguém de importância queria saber quem era Blanca. Ela só tinha serventia como mãe-do-corpo, sementeira da nova carne para semear, colher e adubar.
Um calafrio percorreu minha ossatura, avistei um pequeno calango rastejando nervoso entre as catacumbas de milho desde o início dos tempos. Blanca ajuntou pedras no chão e atirou todas no pequeno invasor; quem não tinha pecados atirou a primeira pedra, uma e depois a outra, e mais uma. Ele se esquivou entre as pequenas sepulturas.
Agarrei uma das mãos de mi hermana y espero el tiempo para voltarmos. Ficamos em pé, lado a lado, os olhos enfiados nos milhos, as orelhas espichadas escutando. Não tinha percebido, mas estou llorando
(¡Es hora de abandonar la Montaña!)
Desculpe, minha querida, mas siempre lloro quando estou nos braços das lembranças de mi hermana, el tiempo não passa para envelhecer as lembranças queridas, ficam plantadas esperando serem chamadas para o conforto da vida, chegam invadindo com um calor estranho, um abafamento da vontade, um melancolia irremediável, un tiempo perfecto.
Descemos quase no tiempo dos homens e mulheres subirem a Montaña, a escuridão teimosa se move em ressaca com dores pelo corpo enquanto cumpre o seu destino. Essa gente ascende para esgravatar com suas mãos encarquilhadas pequenos úteros, que la tierra grávida irá alimentar com suas carnes empoeiradas. O povo de milho é cúmplice do amanhecer amarelento, espalham as cores que espantam as estrelas enfiando as matizes das suas sementes nos pozos de maíz. Semear, e colher, e adubar. Servimos el patrón en la muerte.
De repente, a escuridão cambaleia como se tentasse voltar para o começo, mas não tem mais jeito, o álcool entorpeceu os sentidos da noite, é inevitável... ela irá sumir. Assustada e evaporando no próprio sumiço. A antemanhã já corre de um lugar para outro – tem a parecença de quem corre, mas tropeça de um tombo para outro - até que acha um canto e se enrosca sobre suas partes e os sonhos se esvaem. A noite está fugindo e empresta ao dia seus suspiros de despedida, a cor amarelenta avança como uma moléstia degenerada que nunca se termina, como um aviso
(No hay cura...)
O embaixador das bananas ainda está enfiado em seus travesseiros. Dorme como dormiu ontem e antes de ontem. Sempre do mesmo jeito tranquilo e com as janelas do terraço abertas para receber os primeiros estremecimentos do dia. Ruborizado. Desnudo. É como um renascer diário. A placenta da noite rasga e os líquidos noturnos vazam pelas terras douradas, já é tempo do tempo daquele milho enfeitado de ouro. Abre os olhos. Ele é o sêmen que se doa para o mundo todas as manhãs.
A consciência escorada em um dos cantos daquele quarto deixa os sonhos em suspensão, esvoaçando pelos bananais e galinheiros, põe os dois dedos na boca e assobia como as cobras perto do galinheiro, é o sinal de alerta para a escuridão se despejar pelas frestas, o dia amanhece.
O homem desliza para fora da cama, tem as marcas da noite. Caminha até a varanda e exclama para o dia que também acorda
(Eu sou o amor!)
Está de braços abertos, um funcionário público leve e despreocupado.
Olha para a cama. Lá estão os vincos e as pregas do seu corpo, deformadas pela sua ausência. Escorrega os olhos para o lado, um pequeno pedaço de carne bronzeada desaparece e reaparece entre as dobras brancas daqueles panos de linho. Ali, em pé, recorda a noite de bebidas, discursos e luxurias. Sente que o rabo da gata se arrepia e quer voltar para aquelas carnes
(Não...)
Sai do quarto e caminha pelo casario desassombrado, já com as cores do dia.
Na cozinha da embaixada o movimento já teve começo. Por ali, não se tem notícia de desabastecimento. O padeiro já fez a sua entrega, apenas alguns instantes antes do leiteiro encostar sua carreta de mulas. O leite vem do tambo do Caraca.
Hombres mulas de Dom Juan
(Dom Juan, que surpresa.) (Buenos dias, Pedro, de vez em quando, é bom o olho do dono engordar as vacas.) (Faz um bom tempo que o amigo não aparece.)
Era certo que faz um bom tempo que o patrão do tambo não aparecia no reparte, mas os murmúrios entre as bocas e ouvidos o deixavam preocupado com o futuro do seu negócio
(Pedro, se continuar essa queda de braço entre o governo e os gringos não dou garantia de voltar todas as manhãs.) (As coisas vão se ajeitar, Dom Juan.) (Tenho minhas dúvidas.) (Isso passa.) (Não sei, hombre... brigar com os gringos? Não ajuda em nada e atrapalha os negócios.)
A mecanização dos gringos tirou Dom Juan do amanhecimento madrugador de todas as manhãs. Fez um financiamento longo no governo, quase perdendo as vistas de tão longe. Essas prestações curtinhas incentivaram Dom Juan correr o risco e comprar as ordenhadeiras. Quando instalou as mãos mecânicas para espremer tetas, as notícias do curral assustaram os empregados do tambo do Caraca, diziam que as vacas leiteiras iam ser espremidas por uma máquina, as mãos ficariam sem uso de emprego
(Don Juan va há despedir a lós trabajadores.) (Dom Juan vai mandar os leiteiros embora.) (La succión mecánica trabaja por diez obreros.)
Ele inquiria com gritos indignados
(Quem diz tanta asneira?) (Está en las noticias...) (As noticias ruins não andam sozinhas.)
A verdade que seja dita porque não é mentira, apenas Dom Juan ficou descolocado de serventia. El hombre passou a ter mais gosto da embolação nos lençóis da sua senhora, Dona Lara. Apalpava a vida tranquila que pediu a Nuestra Señora de Guadalupe. Fez um reformismo nas tarefas dos seus empregados, trabalho de educação, assim, sua presença só era necessária quando a desconfiança lhe chegava às ventas e lhe coçava a palma da mão ou quando os proveitos da senhora ficavam avermelhados, colorações que em Dom Juan lhe davam desconforto com vomições.
Se acaso cobiçava notícias minhas ia até la embajada
(Então, Dom Juan, veio espiar as vacas?) (Pois digo que vim é matar a saudade daquelas tetas, e já tomei proveito de investigar se algum miserável não me tomava além do devido.) (O que isso, Dom Juan! Seus empregados são gente séria.) (Pedro, o miserável sempre que puder mete as mãos nas coisas da gente de bem.) (Concordo, los cholos y los nativos não sabem a sorte que têm...) (Os tiramos daquela montanha de milhos e bananas...) (Com salários justos.)
Ele despeja o caldo recém ordenhado em brancas jarras de louça. O derrame do leite provoca o motim de uma espuma espessa e tentadora. Depois que a última gota da vazante leitosa cai, a jarra é coberta e o leite fica em descanso
(E a menina?) (Dando conta das suas tarefas.) (Assim seja...) (Por Nuestra Señora de Guadalupe.) (Amém.)
Pedro e Dom Juan se despedem com um sinal de cruz, outras entregas não podem esperar
(Dom Juan, bem que podia abrir a mão e comprar um caminhão para o reparte.) (Mas que nada, meu amigo, reparte do Tambo do Caraca precisa da carreta e dos bois, senão parece entrega da cantina.) (Que a Nuestra Señora de Guadalupe guie a todos.) (Assim há de ser, um bom dia, Pedro.) (Um bom dia, Dom Juan.)
Uma nata de gordura cresce e flutua sobre a superfície líquida daquele caldo esbranquiçado. Cera de manteiga. As imensas tetas, por certo, estão aliviadas de tanto suco extraído pelas mãos dos empregados automáticos do Caraca, elas nunca se contentam em mamar pouco. Está se indo para trás o tempo das mãos rudes e solitárias que espremiam o leite escondido no úbere fértil. Los cholos rústicos e ingênuos que aprenderam a viajar sozinhos à morte, espremidos por mãos e vozes doces, ensinam que a vida é assim, a Montaña, o milho e as vacas leiteiras, uns morrem plantando, outros colhendo, outros espremidos, não adiantam pose e orgulho.
Os grãos de milho já estão sendo batidos e esmagados. As tarefas do braço começam cedo, teta ou milho, não importa, é tudo colhido bem cedinho.
O embaixador tem o hábito matinal de levantar e seguir direto para a cozinha. Vestido com o roupão branco, liso e desfeito de qualquer adorno, apenas com o duplo bê bordado no bolso à altura do coração. Descobre uma das jarras de leite e antes de tomá-lo, come em colheradas a nata de manteiga. Passa o punho pela boca e retira o bigode branco. Pensa que retirar os pelos da cara deveria ser do mesmo jeito fácil, apenas passar a mão fechada. Sente a bruteza da barba crescida com a ponta dos dedos, são como tocos espinhosos pela metade. O embaixador estala a língua e geme uma saudação de contentamento acabado
(Bom dia!)
É o começo oficial da vida na embaixada. Pega três bananas do cacho sobre a mesa e as come sem descascar
(O valor alimentício está na casca.)
Os empregados da cozinha, todos nativos das bananeiras e milharais, gente mestiça dos ameríndios – baixinhos, avermelhados e sorridentes - se olham e cochicham entre si, sobre a mesa do preparo
(¡Cuerpo-Santo se ha despertado!)
Quase não existem mais índios puros dos tempos dos antepassados. Os parentes antigos foram morrendo e os novos foram aparecendo misturados aos mestiços. Poucos mantiveram seus costumes e tradições. As línguas da montanha cederam lugar à língua do milho. Os mestiços servem como enxada e foice das plantações imensas. Não enxergam uns aos outros. Aprenderam a conversar com os pés de milho como se estivessem agachados, frente a frente, fumando un cigarrillo ou entornando uma aguardente forte. A cidade de milho tem milhares e milhares de sabugos e um patrão. Todos os hombres de milho têm dono. Rezam para quem lhes cuide do abandono. A mestiçagem é corroída pela ganância dos conquistadores, do mesmo jeito que os antepassados dos avôs. Sofreram os de lá como os de cá o extermínio de povos conquistados. Estão vivos por teimosia, trazem nas marcas da memória as lâminas partindo-lhes ao meio e os chicotes queimando suas carnes. Velhos degolados, mulheres grávidas abertas do ventre ao peito, crianças jogadas às pedras. Reminiscências de um jeito de sobreviver às armaduras e lanças, jogados em um rebordo do esquecimento por caras pálidas desnudos das vestimentas de humanidades. Milhões de sabugos perdidos pelo caminho. Los cholos y los indígenas são a conformação ingênua da sobrevivência sin indocilidad. Basta estarem vivos
(Así me lo enseñaron en la escuela.)
Não foi ruim acordar de madrugada para fugir da Montaña e do milho. No fim, estava cansada daqueles rostos cansados que jamais ficavam cansados. Quase não sobrevivi, seria oculta pela intolerância, compreendo isso. Meu cuerpo muerto não serviria para denunciar o medo plantado dentro das pessoas. Nem mesmo um metro de papel seria enfiado na máquina copiadora. Quase desisti do carreiro. Nunca consegui imaginar quadros de pintura na minha cabeça, mas textos inteiros ou em pedaços me surgiam como imagens de fotografias. Não queria filmar histórias, nem cobiçava escrever vidas. Eu queria escrever livros, enfiar a boca no mundo
Passei, então, a mastigar as letras, as palavras e as frases, até que tinham o formato do nada, prontas para serem como cadáveres. Esquecidas. Não mais interessa a mim o cheiro da lamparina suada e a cor do toco de lápis. Aquelas histórias da Montaña estão fora de mim, decompondo suas entranhas até virarem poeira, coisa nenhuma
(Blanca, como os mestiços deixam de ser ingênuos?) (Jamás dejaremos de ser, pues se nos cortan los cojones así que nacemos...) (Morremos das vidas mal vividas e mal cagadas!) (¡Renacemos como maíces!)
Por hoje, já acabada de vez, não sei responder a isso. Lembro dos grãos lançados nas covas, cobertos com tierra. Mortos que eram enterrados para renascer comendo la tierra até virarem milho. Maíz de los hombres del silencio.
O silêncio é quase uma resposta, metade do transtorno que o outro precisa dar. E não tenho coragem para o constrangimento de ver a dor do outro. Finjo que aquilo tudo não me importou, enquanto procuro pelo vinho
(¿Emborrachada por la mañana?Sí, no hay ninguna persona para compartir el vino...)
Dou graças à solidão, prefiro assim: sem a insignificância de companhias inúteis. Sentadas neste farol de solidão tomando do meu vinho. Concordo com você minha querida
(Otra para tomar mi vino.)
Uns precisam de gente no redor da moenda de maíz – desaprendem de si mesmo ou treinam - outros se tornaram o próprio moinho e quase todos são o milho, os cadáveres. Torço no avesso pelo meu café da manhã, não acho meu vinho, procuro, procuro, procuro
(Achei!)
Volto ao silêncio do sossego. Sento com a garrafa, deixo o copo no chão. Não tenho tremores, apenas sede. Aprendi muitas coisas com os homens: muitas ruins, algumas boas, uma delas foi matar minha sede com vinho.
Quando o embaixador se assenta para o café matinal a mesa já está servida. As frutas, o bolo de milho, o bolo de banana, as bebidas quentes de café e chocolate, os ovos cozidos na água, os pães, as geléias, a manteiga, os queijos e o presunto, tudo servido de maneira silenciosa. Um passo atrás, o chefe da cozinha aguarda suas ordens
(Bom dia, Pedro.) (Buenos días, señor embajador.)
Termina aquele pequeno almoço, levanta e se retira
(Pedro, vou estar no escritório.) (Sí, señor embajador.)
Os jornais já estão na sua disposição para leitura
(Diário La Prensa, La Tribuna, El Tiempo...)
Naquela manhã não quer ler fatos e invencionices do cotidiano humano. Senta-se com os pés sobre os periódicos e abre nas mãos H. Fielding, seu escritor querido, encosta os olhos e bebe a própria alma amante da vida
(“Voltando imediatamente com a espada, entregou-a a Jones, que a pegou e puxou por ela; tendo-a examinado, declarou...”)
Vida curta e agonia longa para todos os miseráveis austeros e moralistas
(O humor nos faz falta.)
Fecha o livro e sobe até o terraço daquela pequena fortaleza colonial típica do barroco espanhol, construída pelos castelhanos para se defenderem dos piratas madeireiros
(Os invasores de ontem são os mesmos de hoje, os miseráveis também.)
É isso, a maldição dos invasores de ontem não se foi, deixaram seus capatazes e capitães-do-mato, para trás, com as ordens de plantar milho e bananas com custo nenhum. Geração vai, geração vem e o jeito de morrer dos miseráveis não muda, sempre aos pouquinhos, sem luz, esgoto, água e sem fome, quem quase não come nem lembra sua fome.
Olha às plantações de cana nas terras macias banhadas pelo mar, vira completamente e encara as montanhas, brotando das suas entranhas o seu milho dourado
(Meu Deus é minha testemunha, sabe como me afeiçoei ao lugar!)
Sinto a boca seca. De repente, uma sede desesperada me chega até os olhos. Tenho vontade de chorar e beber as lágrimas, é o jeito que encontro para pedir perdão aos cadáveres que estão desfiados.
Os homens e mulheres por estas horas já estão nas lidas das plantações e, outros, se enraizando como homens e mulheres de milho, ingênuos e desmemoriados do próprio passado, sem vez para contar sua história. Explicações cronológicas das covas, das semeaduras, das chuvas, da floração e da colheita. Gente sem nome, sem dentes, sem vida, sem coisa alguma para contar aos donos das suas vidas; não têm o que contar que os donos queiram ouvir. Castigados e desaparecidos em covas de milho, não se enxergam como muitos. Não são gente, nem humanos, apenas carne e osso que manobra a enxada em silêncio, sem dar um berro. Olho o abismo e não enxergo pontes que nos aproximem
(Buena gente... Pero cada cúal com su destino.)
O embaixador espicha as partes do corpo que ainda se negam acordar. O milho daquela montanha é muito cobiçado pela suavidade ao tato, parece possuir a maciez da carne. Sua saca chega a ter a cotação dobrada se comparada com a sacada de milho de outros lugares
(Tudo por aqui é lindo, até mesmo essa gente desdentada!)
Anos antes, quando o jovem embaixador foi mandado para o bananal, não quis trazer nenhum compatriota. No seu íntimo esperava que as bananas revelassem sua face e segredos. A sua chegada não seria confundida com a vinda de conquistadores, sonhando com lendárias cidades, lugares inacessíveis e repletos de tesouros nativos. Chegar com o mínimo de humanos necessários para o funcionamento da embaixada
(Que se enterre por lá, apenas eu.)
Uma embaixada perdida numa cidade colonial perdida. Terra de miseráveis calados por homens e mulheres que vendem sua caneta e letras aos patrões que usam da intriga e calúnias para assombrar seus espíritos. Esses homens e mulheres amaldiçoados não se incomodam com os grilhões prendidos nas mentes e corações dos miseráveis, um ódio de orgulho invencível os oprime. Não têm humildade.
O embaixador está de volta ao seu quarto de dormir.
As urgências das manhãs o empurram para o quarto sanitário. Investiga o closet do dormitório, procura algo que não está achando. Começa a entrar em estado de aflição. Tem costume de mania, sempre que está na embaixada e tem precisão de evacuar seus dejetos, levar um dos volumes da coleção de grandes pintores do mundo. Hoje, ele quer por vista, nas quatro pinturas reproduzidas na coletânea, muito especialmente em Guernica. Acha o Picasso. Com um pequeno disfarce de sorriso segue para o quarto sanitário, no tempo de se acomodar no assento, já está nos últimos esforços de contração do útero anal.
Ali sentado, o roupão no chão, Guernica nas mãos, gritos: crianças, mulheres, pássaros, berros das flores, lhe caem as sementes arredondadas que se fragmentam na evacuação. Imagina que faz arte também.
Retorna à varanda. A luz amarelada já tomou conta da paisagem. Os olhos se apertam e pedem a escuridão morna do quarto. O corpo trigueiro já não está na cama. As dobras e as rugas reclamam as ausências. A ducha e o barulho das suas águas delatam minha fuga. Não resiste e vem para o chuveiro. Entra no reservado das águas. Quando o vejo por entre as brumas de vapor, seu corpo bronzeado me faz explodir as fagulhas da cobiça de um jeito irrefreável.
Minha querida amiga, o sexo com ele era um sentimento indomável e selvagem. O jovem embaixador reagia aos cheiros que lhe estavam na memória dos dedos e da língua lambida e enroscada
(Calma, Cuerpo-Santo… va hasta allí, coge de su polla y chupa de su jugo.)
Apóio as mãos e a testa no mármore e sinto os pelos daquela barba mal feita roçando minhas costas enquanto a língua desce por entre as nádegas. Reviro-me, caio de joelhos e apanho com a boca a fecundidade grossa e dura daquela natureza de macho
(Gosta de ser minha putinha?)
E sem um gemido tenho tudo do outro
(¡Viva!)
O mundo tem dono...

sábado, 30 de julho de 2011

Obediente, aparto as pernas sem nenhum pudor


A Gueixa
baitasar
Sentado, entre aquelas paredes mornas e mortas, seu escritório de defensor privado, Algemadotira não procura, não quer desviar sua desatenção. Ele está macambúzio. Não tem ninguém para desencaminhá-lo, levá-lo para passeios em tardes ensolaradas com as pipocas e o chimarrão. Vive de conter a vontade de sair correndo.
Não existem milagres.
Escolheu ser adulto, confiar desconfiando da verdade, contar as suas histórias melhor que o concorrente. É um bom auditor de histórias, nada mais que isso, bem pago para criar no pensamento dos jurados um pretexto, uma chance à clemência
(Dr Algemadotira.) (Sim, Cogitabunda.) (Tem um pessoal aguardando para falar com o senhor.) (Manda esperar.) (Dr Algemadotira é mãe, tia, avó, irmã e o rapaz.) (É preciso que esperem, por favor.)
Quando está neste estado desatento, ele implica com todos, até ver a cor do dinheiro. Pessoas com dinheiro têm sorte, pelo menos, o enterro é mais bonito.
Lembra do enterramento de um cliente dos tempos de pobreza. O coitado morreu na cadeia da cidade. Dor no peito fulminante. Algemadotira iniciava sua trajetória na defensoria pública. Sua primeira e única derrota. Na verdade, ele não contabiliza como uma derrota, o morto nem chegou ao julgamento, foi reabilitado por essas coisas desconhecidas das bruxas e divinos. Ficou o dito pelo não dito. De qualquer maneira, a caminho do buraco no chão, o morto espatifou no plano batido e avermelhado da estrada, aquela terra poeirenta parecia carregada de impaciência para comê-lo. Fundo falso. O plantado ficou pelo chão. Os convidados se olhando sem saber o que fazer. O fundo do caixão era dessas madeiras de compensado. Cedeu e deu vexame. Miséria pouca é bobagem. Carregaram o patife nos braços até o buraco. Depois foi só jogar a terra por cima.
Vez que outra, lhe vinham esses pensamentos filosóficos e se perguntava por que escolheu esse jeito de ganhar o seu caro sustento de viver
(Não existem inocentes, todos são culpados.) repetia para si, buscava o cômodo convencimento. Para cada serviço de limpeza que era contratado, calculava a melhor a história do acusado, para então, desvendar que tudo é presumível. E a dúvida ficava entalada na cabeça dos jurados, ninguém quer fazer injustiça com as próprias mãos. Por isso, o contratam para ajustar o destino pelo justo.
Então, culpados ou inocentes pagam bem caro por sua consideração cuidadosa e instantânea, não reclamam do preço. Os miseráveis são enterrados na prisão porque não pagam os seus serviços. Quem paga tem a sua preferência e não conhece xilindró. As leis são feitas para favorecer todos, inclusive, e especialmente, os culpados.
Logo ele, rico de tanto trabalho, carregava tanta amargura. Um mundo mau que consente o cinismo espaça as pessoas da compaixão com amorosidade. Para Algemadotira, somente outro jeito de ganhar a alimentação folgada. Fica ali, sentado, com o dedo no nariz, desalinhado da própria vontade de ferro
(Dane-se o mundo) acaricia minhas pernas, tenho pernas bonitas. Sinto-o aborrecido.
Gosto quando ele está em estado comatoso, senta ao meu lado e me procura como se fosse sua gueixa. Adora as orientais, são tão silenciosas e comedidas. Fico quieta, apenas abro um pouquinho de nada as pernas. É uma abertura simbólica. Ele me entende mais que eu mesma.
Passado um tempo de cansar a espera, a dona Cogitabunda reentra, tento me recompor. Ela finge que não existo
(Dr Algemadotira, eles estão muito ansiosos) (Eles quem?) (O pessoal que está esperando.) (O que foi?) (Parece que o rapaz matou um sujeito...) (Tá, manda entrar, resolvo esse indivíduo e... chega.) (Todos?) (Todos quem?) (A família...) (Não, que fiquem vigiando, mas lá de fora.)
O fastio já não é apenas na aparência, vem junto com a falta da vontade de agradar, ser gentil. Está em estação de ficar afronhado, até se restar no feitio da fronha. Amarrotado. Enxovalhado. Amarfanhado.
É tudo igual. As mesmas respostas e as mesmas perguntas, o advogado do diabo começa perguntando sempre do mesmo jeito, como um pai atento e interessado, mas querendo saber como irá comer a vizinha. Todos são culpados, depende da história que se conta
(O que foi, meu filho?) (Esse meu amigo, que eu matei, tomou todas as cervejas comigo, fechamos o boteco, doutor, e depois me estranhou.) (O que ele fez?) (Puxou da faca e partiu pra cima.) (De quem?) (De mim, doutor...) fácil de resolver, legítima defesa. Algemadotira já contabiliza mais uma vitória no seu quadro de medalhas
(O que você fez?) (Tirei a faca dele e dei uma facada.) (E...) (Morreu, mas eu to com a faca aqui...) (Não, você não está com a faca.) (To sim, doutor, quer ver?) (Nãoooo, você não está entendendo) é difícil lidar com a ignorância, por sorte, é uma estupidez apatacada
(O que eu faço, doutor?) (Você não está com a faca.) (Mas eu to sim, doutor) (Nãoooooooo, essa faca, pelo que você sabe, está no fundo do rio.) (Mas como?) (Você vai pegá-la, longe de mim, embrulhar numa pedra e jogá-la no rio) (Desse jeito, ninguém encontra...) (Isso, você entendeu, já iniciamos a sua defesa.) (Sim, doutor.) outro caso resolvido, se todos fossem tão fáceis
(Dona Cogitabunda!) (O que foi, Dr Algemadotira?) (Esse rapaz já está de saída, amanhã você retorna, com uma cara mais mansa e um olhar triste.) (Obrigado, doutor) (A justiça precisa levar vantagem.) (É verdade...) (A verdade nada tem com isso, ela é contingente.) (O quê, doutor?) (Nada, esquece rapaz.) e me paga.
De novo, sem entusiasmo, a solidão lhe cobra um preço alto. Nota que vem de muito esse tempo de perder as próprias forças para o desânimo. Precisa ainda ler aqueles depoimentos todos
(Cogitabunda...) (Sim, Algemadotira...) (Menina, vá para casa. Hoje, eu fico no isolamento do falatório escrito.) (O que tu procuras?) (Acolhimento e considerações para o possível de não ter acontecido.) (Querendo virar do avesso o já declarado.) (Isso mesmo.) (Boa noite, então.) (Boa noite.) sinto a dor do desperdício, toda oferecida, mandada embora
(Vá descansar.) me apronto para uma noite de trabalhos.
Já faz um bom tempo de anos, venho cogitando de mandar pregar, em algum lugar seguro, esse tal Algemadotira, mas ele sempre escapa pelas frestas dos meus dedos. Tenho dedos muito magros.
O Algemadotira me conhece pelas intimidades, tem todo tempo para ensaiar o tal escapamento pelas rachadelas da lei. Treina e exercita, e adestra, busca a perfeição, está tudo escrito, basta decorar.
Por mim, ele ficaria trancado, por muitos anos, mas isso não depende dos meus desejos. As palavras jogadas em minha sala não buscam a verdade. Eu, não acredito na verdade, só em mim. Esse tira algemas, também, só crê em si. Mas eu tenho que conviver com as razões alheias, enquanto estão se matando, e daí, trazem para mim os fatos comprovados para abalançar a sua robustidão de crime condenado ou perdoado dos pecados. Tarefa sentimentalista neurótica.
O Algemadotira copia para a memória o que lê e recita, e recita, e recita, inúmeras vezes, até se confundir com a verdade que quer contar. Está confiante, mas já aprendeu a não deixar nada ao acaso. Todos os pontos e todas as vírgulas precisam estar nos seus lugares. Pensa que a minha saúde emocional depende da sua correta orientação. Aprecia ver-me enlouquecida. Sem o uso da razão.
Enquanto relemos aquele ajuntado de folhas, ele roça levemente os dedos em minhas pernas, mecanicamente, me mantém com os olhos vendados. Gosta de me ostentar em sua mesa. Em uma das mãos conservo erguida a balança, e na outra a minha inseparável espada. Meu equilíbrio depende da minha força relutante ao seu fascínio. Anima-se em me seduzir. Para o bem da verdade processual, a mim, é difícil lhe resistir. Enganoso de aparência. O cabritismo da sua língua provoca a minha sensualidade. Exerce o tráfico das influências da carne, aceito o risco.
Enfia as mãos, já está embaixo das minhas fardagens vestais, deixa uma nota de dólar em minha cinta-liga. Seduz minhas partes, amparado na minha inexperiência com carnalidades. Sou gueixa de coração. Carne enraizada.
Obediente, aparto as pernas sem nenhum pudor.
Depois, tudo passa para o tempo do esquecimento, apenas o condenado, e aqui não se leve em consideração o culpado ou inocente,  amarga na lembrança a batida do martelo malvado... talvez, no próximo.

sexta-feira, 29 de julho de 2011

Sonho de uma Flauta

O Teatro Mágico




Nem toda palavra é
Aquilo que o dicionário diz
Nem todo pedaço de pedra
Se parece com tijolo ou com pedra de giz

Avião parece passarinho
Que não sabe bater asa
Passarinho voando longe
Parece borboleta que fugiu de casa

Borboleta parece flor
Que o vento tirou pra dançar
Flor parece a gente
Pois somos semente do que ainda virá

A gente parece formiga
Lá de cima do avião
O céu parece um chão de areia
Parece descanso pra minha oração

A nuvem parece fumaça
Tem gente que acha que ela é algodão
Algodão as vezes é doce
Mas as vezes né doce não

Sonho parece verdade
Quando a gente esquece de acordar
O dia parece metade
Quando a gente acorda e esquece de levantar
Hum... E o mundo é perfeito
Hum... E o mundo é perfeito
E o mundo é perfeito

Eu não pareço meu pai
Nem pareço com meu irmão
Sei que toda mãe é santa
Sei que incerteza traz inspiração

Tem beijo que parece mordida
Tem mordida que parece carinho
Tem carinho que parece briga
Tem briga que aparece pra trazer sorriso

Tem riso que parece choro
Tem choro que é por alegria
Tem dia que parece noite
E a tristeza parece poesia

Tem motivo pra viver de novo
Tem o novo que quer ter motivo
Tem aquele que parece feio
Mas o coração nos diz que é o mais bonito

Descobrir o verdadeiro sentido das coisas
É querer saber demais
Querer saber demais

Sonho parece verdade
Quando a gente esquece de acordar
O dia parece metade
Quando a gente acorda e esquece de levantar

Mas sonho parece verdade
Quando a gente esquece de acordar
E o dia parece metade
Quando a gente acorda e esquece de levantar
E o mundo é perfeito
E o mundo é perfeito
E o mundo é perfeito...

Morte e Vida Severina

Tânia Alves
João Cabral de Melo Neto
Chico Buarque (música)



...
ASSISTE AO ENTERRO DE UM TRABALHADOR DE EITO E OUVE O QUE DIZEM DO MORTO OS AMIGOS QUE O LEVARAM AO CEMITÉRIO

—  Essa cova em que estás,
com palmos medida,
é a cota menor
que tiraste em vida.
— É de bom tamanho,
nem largo nem fundo,
é a parte que te cabe
deste latifúndio.
— Não é cova grande,
é cova medida,
é a terra que querias
ver dividida.
— É uma cova grande
para teu pouco defunto,
mas estarás mais ancho
que estavas no mundo.
— É uma cova grande
para teu defunto parco,
porém mais que no mundo
te sentirás largo.
— É uma cova grande
para tua carne pouca,
mas a terra dada
não se abre a boca.

— Viverás, e para sempre,
na terra que aqui aforas:
e terás enfim tua roça.
— Aí ficarás para sempre,
livre do sol e da chuva,
criando tuas saúvas.
— Agora trabalharás
só para ti, não a meias,
como antes em terra alheia.
— Trabalharás uma terra
da qual, além de senhor,
serás homem de eito e trator.
— Trabalhando nessa terra,
tu sozinho tudo empreitas:
serás semente, adubo, colheita.
— Trabalharás numa terra
que também te abriga e te veste:
embora com o brim do Nordeste.
— Será de terra tua derradeira camisa:
te veste, como nunca em vida.
— Será de terra e tua melhor camisa:
te veste e ninguém cobiça.
— Terás de terra
completo agora o teu fato:
e pela primeira vez, sapato.
— Como és homem,
a terra te dará chapéu:
fosses mulher, xale ou véu.
— Tua roupa melhor
será de terra e não de fazenda:
não se rasga nem se remenda.
— Tua roupa melhor
e te ficará bem cingida:
como roupa feita à medida.

— Esse chão te é bem conhecido
(bebeu teu suor vendido).
— Esse chão te é bem conhecido
(bebeu o moço antigo).
— Esse chão te é bem conhecido
(bebeu tua força de marido).
— Desse chão és bem conhecido
(através de parentes e amigos).
— Desse chão és bem conhecido
(vive com tua mulher, teus filhos).
— Desse chão és bem conhecido
(te espera de recém-nascido).

— Não tens mais força contigo:
deixa-te semear ao comprido.
— Já não levas semente viva:
teu corpo é a própria maniva.
— Não levas rebolo de cana:
és o rebolo, e não de caiana.
— Não levas semente na mão:
és agora o próprio grão.
— Já não tens força na perna:
deixa-te semear na coveta.
— Já não tens força na mão:
deixa-te semear no leirão.

— Dentro da rede não vinha nada,
só tua espiga debulhada.
— Dentro da rede vinha tudo,
só tua espiga no sabugo.
— Dentro da rede coisa vasqueira,
só a maçaroca banguela.
— Dentro da rede coisa pouca,
tua vida que deu sem soca.

— Na mão direita um rosário,
milho negro e ressecado.
— Na mão direita somente
o rosário, seca semente.
— Na mão direita, de cinza,
o rosário, semente maninha.
— Na mão direita o rosário,
semente inerte e sem salto.

— Despido vieste no caixão,
despido também se enterra o grão.
— De tanto te despiu a privação
que escapou de teu peito a viração.
— Tanta coisa despiste em vida
que fugiu de teu peito a brisa.
— E agora, se abre o chão e te abriga,
lençol que não tiveste em vida.
— Se abre o chão e te fecha,
dando-te agora cama e coberta.
— Se abre o chão e te envolve,
como mulher com quem se dorme.

...

quinta-feira, 28 de julho de 2011

Os meninos do ônibus


Descartes
baitasar

Afinal, vou passear. Estou radiante, adoro passar à noite fora.
Em minha juventude viajei muito, convivi com pessoas de diferentes culturas. Quis aprender fora da escola, no mundo. Já faz muitos tempos que não durmo fora de casa.
Essas sacudidelas do andar apressado da Amargadavida me incomodam. Sou puxado da sacola. Estou em suas mãos. Tenta me ler enquanto analiso seus lindos olhos verdes. Arrisco-me pelos cantos das páginas, observo que estamos em uma parada de ônibus. Anoitece e à noite são muitas as possibilidades. Sinto um leve desconforto, não chega a ser medo, mas um arrepio premonitório.
A gôndola do asfalto chega e sou colocado dentro da sacola. Dou um profundo suspiro de alívio. Descuidada, esquece de fechar o zíper. Subimos. Estamos sacudindo e empurrando. Amargadavida paga sua passagem e supera a roleta de controle com uma pequena ajeitadinha de quadril. Ela tem umas larguras desajustadas para aquelas ultrapassagens.
Não há lugares de assentos livres, estão todos ocupados. Vamos em pé. Outra parada, mais empurrões e apertos. Continuo me espichando pela fresta do zíper, vou espiando com atenção e minúcia a nossa volta.
Um homem franzino e com cabelos grisalhos fica ao nosso lado, ele quase não alcança o corrimão aéreo. Um sujeito de óculos, com ar de professor universitário, passa pela roleta, com certeza está muito incomodado com a falta de assento livre, caminha pelo corredor com a cabeça dobrada para frente. O tal professor é maior que a gôndola. Enfia a cabeça na escotilha de entrada do ar fresco. Os ombros pateteiam com o corrimão.
Lá na frente, antes da roleta, uma velhinha fala mal de um rapaz que parece dormir, finge que parece caído no sono
(Foi-se o tempo da cortesia.) (Como é? Desculpe!) (A cortesia com os velhos e mulheres...) (Tá bem, tá bem!)
O rapaz levanta e o seu lugar é ocupado pela senhora do xingamento, com seus cabelos brancos e ralinhos. É isso aí, se a boca não bota no mundo, as coisas não acontecem. Todos aplaudem a velinha. Palmas, gritos e assobios. O rapaz permanece em pé, imóvel. Olhando para frente pelo vidro do motorista. Apenas respira. Os cabelos longos e desalinhados. A jaqueta de couro. Uma tatuagem, tenho certeza que esse carrega alguma tatuagem. Um desajustado. Mas, enfim, o lugar de sentar é da velhinha.
O motorista olha pelo seu retrovisor interno. Tem cara de poucos amigos e nenhuma paciência.
Outras paradas mais passageiros. Na última estação, o recolhimento dos passageiros foi estranho porque o cego viu o ônibus, mas o motorista foi cegado pelos enlatados. Quando a lata de sardinhas iniciava a continuação da viagem, o cego bateu com desespero sua bengala na lataria do ônibus. O cobrador das passagens gritou para o motorista
(Para, para! Tem um cego querendo subir!) (Cego?)
(É... um cego!) intercede a mesma velhinha
(Lugar de cego é em casa.) resmunga o condutor oficial daquele carregamento de gente
Aciona os freios e somos empurrados para frente. Retomamos o equilíbrio e ficamos imobilizados pela inércia da gôndola.  O privado da vista recolhe a vareta guia e sobe. Vai se enfiando e passando. Chega ao lado do franzininho e da Amargadavida
(Esse ônibus passa na praça dos pedalinhos?) (Vai até a Boa Esperança, responde minha carregadora) (Obrigado.)
Enquanto muitos são empurrados pela porta traseira, para dentro, alguns são despejados pela frente, em seus lugares de descida. Os compartimentos do ônibus estão com uma grande lotação. O motorista manobra o ônibus e o cobrador, as pessoas
(Por favor, minha senhora, dá um passinho pro lado, libera o corredor.) (Eu não posso fazer nada, tem mais gente que lugar.) (Mas senhora...) (Não tem o que fazer!)
(Eu preciso arrancar o ônibus da parada e os passageiros precisam subir.) (O que o senhor quer que eu faça?) (Se a porta não fecha o carro não se mexe.) o motorista tem razão e não tem.
Os passageiros entram e se acomodam com dá. Todos querem entrar, seguir e chegar. Vão empilhados, enquanto alguns saem em pequenas gotas. Aqui atrás, o destino não é diferente. Vamos sendo amassados em silêncio. Na última fileira de bancos, bem atrás, vão sentados numa só poltrona três meninos. Três irmãos quase gêmeos. Bonitinhos. O garotinho do meio parece um tanto esquisito, cara de choro, com uma cor amarelada. O mais velho cochicha algo para o guri. Sinto pena deles. Mantenho uma vigilância a distância daqueles miúdos
(Deu motora, pode fechar a porta!) (Vamos si’mbora!)
Vou espichando pelo fecho aberto. Está um sufoco aqui na algibeira. Muito alarido nas conversas miúdas. Encontrões e puxões e suor. Desculpas. O grandão não tem jeito de parar em pé. Cansou de ficar enfiado no alçapão do teto, agora, está curvado sobre um passageiro careca sentado. O desconforto dos dois é constrangedor. Não tenho o que dizer. Sinal de parada para o ônibus, mas pelo ar desanimado da Amargadavida não nos compete abaixar do cavalo de rodas.
O arranca e para segue consumindo o tempo da nossa resistência. A cada parada um número geométrico de passageiros sobe, enquanto a conta dos que descem é pequenina. Nunca vi disso, só entram e entram. Creio que o funcionário dirigista da gôndola testa o limite de lotação das sardinhas na mesma latinha. As crianças são puxadas ou empurradas por suas mães. Os suores de todos se misturam e produzem um só cheiro. Um só perfume de passageiro. Cada centímetro é disputado aos empurrões de lá pra cá e daqui pra lá. Naquela amassadeira esqueci os meninos. Já passaram duas paradas desde minha última vigilância de cuidados. Quando voltei minha atenção o garotinho do meio debruçou atrás do último banco e vomitou. Não preciso dizer do meu espanto e desassossego. O pestinha jogou todo o estomago ali atrás. O cheiro típico das porcarias saiu pela boca e começava sufocar
(Abram uma janela, por amor de Deus!) (Tá frio.) (Frio uma merda, abram as janelas!) (Preciso de ar!)
Os pés se pisam enquanto as bundas empurram.
O grandão deita sobre o careca e com sua mão imensa, num só golpe, abre a merda da janela. Olhares de alívio, ninguém reclama. Ele é muito grande. Mas o pior está vindo. Quando a bacia dos vômitos desce a ladeira, embica à frente, e os restos do pestinha se espalham entre os pés dos passageiros. Descem a ladeira do assoalho se misturando aos sapatos e chinelos. Tudo está irrespirável.
Outra parada, o desânimo avança sobre o cardume comprimido. Um gordo muito gordo sobe. O suspiro de espanto é de todos
(Não para mais.) (Toca em frente.) (Tá lotado, motora!)
O volumoso atravessa sobre um ou dois velhinhos, mas não vai além dos degraus acima da porta. Ninguém imagina como ele vai passar. O cobrador recebe a passagem e aguarda. O volumoso nem tenta, ele sabe que falha. O cobrador combina ajudar. Tudo acertado... Eles tentam e falham. A conversa entre ambos é rápida
(Desço por aqui?) (Por mim, tudo bem, mas tem que liberar a porta.)
As pessoas estão assustadas.
Volto os olhos para os guris. Lá estão eles, agem como se aquele caos de cheiros fosse inevitável. Vejo que Amargadavida está com ânsias. Rogo aos deuses que ela não seja outra vítima de vomição. Já ouvi causos de gente que vendo sangue desmaiam ou sendo picadas pelas agulhas de injeção perdem os sentidos da consciência. Faço torcida para que nenhum passageiro dê prolongamento às náuseas por descontrole do estômago.
Lá da frente, vem a voz barulhenta e arrastada do motorista, impertubável como deve ser o grito desesperado de todo líder, direta, obedecida sem qualquer contestação
(Pessoal, estou sem farol de luz, na frente do carro, as lâmpadas não estão acendendo.) (O quê?) (Preciso apagar a luz dentro do carro pra enxergar lá fora!) (Ta brincando?) (É um trecho pequeno, logo adiante dá pra ir com o que tem de iluminação nas ruas.)
O caixão fúnebre fica às escuras, vamos lentamente sendo levados por dentro das trevas. Só espero que o motorista não esteja tão cego como a gente aqui atrás
(O que é isto?) (O que foi?) (Passaram a mão na minha bunda!) (Quê palavrório mais chulé.) (Não foi na bunda de alguém, foi na minha!) (Quem foi o filho-da-puta?) (Gente, por Deus, vamos se respeitar!) (Mãe, eu to com medo...)
Dou uma olhadinha e parece que o guri agora vomita o seu medo
(Mauro, toma conta do Ricardo.) (Ta, ta... saco.)
O nome do guri vomitador é Ricardo, tem um bonito nome esse do estômago de leão. O maior é o Mauro, grande e feio, guri espinhento. O nome do outro com cara de brabo não deu pra descobrir.
Amargadavida tinha se colocado no final do corredor dos passageiros, perto da porta de descida, mas o chão vomitado e a iminência de pisotear aqueles restos põem em fuga a professora e a mim. Vamos para o meio do carro aos empurrões e pedindo desculpas. O fedor pisoteado está insuportável, a escuridão constrangedora e a falta de espaço desesperante. Paramos junto aos bancos onde viajam uma jovem, muita bonita, sentada no lado da janela, ao seu lado, na poltrona do corredor, vai uma senhora cochilando. Pouco a pouco, a velha vai relaxando a cabeça para o lado, até que se recosta no ombro da moça. A jovem sacode os ombros e a senhora cai do travesseiro. A velha está caída de sono, se recompõe, mas no embalo da viagem retorna ao ombro amigo e torna a babar.
A confusão e os resmungos continuam, enquanto o volumoso arrisca seguir em frente. Não consegue nem se virar, mas aos empurrões e amassamentos vai repassando um por um os passageiros daquele cárcere sobre rodas
(Esse motorista não gosta de velho.) (Minha senhora, não é isso.) (Ë isso, sim, o senhor empilha as pessoas aqui dentro!) (A senhora é uma chata, e quer saber? Vá se queixar ao bispo!)
Nem bem terminou de resmungar e a bolsa da velhota subiu acima da cabeça dos demais e desceu certeira no motorista. Juro que ali, naquele ínfimo instante, pensei
(Se a moda pega, lá na escola...)
Por sorte, naquela escuridão, ele vinha lentamente subindo a ladeira. Por isso, e só por isso, o susto não foi maior. O chofer do coletivo encostou o ônibus no meio fio da calçada, desligou o motor, acionou o freio e desceu. Nenhuma palavra, apenas desceu e saiu caminhando. As mãos enfiadas nos bolsos, sem qualquer despedida ou aviso. Não olhou para trás, não houve um até breve. Continuamos pendurados olhando para o homem. Ele parou, acendeu um cigarro e continuou seu andamento. Desapareceu. Ficamos ali de portas fechadas. Quietos. O tempo começava a tomar volume de peso.
Naquela escuridão de urubus nada se via além do realce dos relâmpagos. Parecia estar juntando uma tempestade àquele pequeno caos. Ao longe uma faísca no céu e sobre as cabeças um trovejar ensurdecedor
(Mãe!) (Rogério... fica quieto.)
Bem conhece o gato as barbas que lambe, só mesmo a mãe para saber qual dos filhos lhe pedia socorro, a quem apontar suas preces
(Ave Maria, cheia de graça...)
A porta da frente estava aberta, mas impedida de passageiros. Sem chances de fuga. O big grande está colocado em pé. Olhamos para o cobrador das passagens, ele encolhe os ombros como se tudo aquilo nada tivesse a ver com ele. Os demais continuam serenos. Na verdade, todos acham que o chofer da baleeira brinca e já volta. Algo como ir até a esquina pra esfriar a cabeça. Tomar um cafezinho ou contar até dez, a tentativa de evitar o falado que deveria ficar calado. O tempo daquela inércia começa a tirar do lugar os nervos, aos poucos, uns antes que outros, percebem que tudo aquilo não é brincadeira, ele era um desertor. Acabara de abandonar o direito de ir e vir dos passageiros. O motorista se demitiu e ficamos abandonados nas trevas
(Uma desgraça nunca vem só.) uma voz de homem, no meio do silêncio tímido flutua entre todos os passageiros
 (Um abismo chama outro.) do outro pontal do ônibus outra se eleva
Merda, eles estão assustando as pessoas.
Quanto a mim, sabia que o passeio estava sendo interrompido. E aquela aparente calmaria estava precipitando um desastre. Ninguém sabe quem, nem donde, mas todos ouvem
(Peidei!) (Meu Deus!) (Eu preciso sair!) um pequeno empurrão...
O desespero invade a todos como uma turba de madereiros a florestas. De repente o espaço reduzido fica insuportável, as sardinhas fechadas e enlatadas incontroladas. As árvores derrubadas, arrancadas pela origem. O empurra pra lá e de volta pra cá, começa. É luta corporal. Ninguém é de ninguém. As portas fechadas. As pessoas empuxando e amassando. Gritam e pedem socorro. O desgoverno cresce. Amargadavida parada no meio do corredor do ônibus é atropelada de todos os lados, mas se mantém em pé, aplica todos os truques e técnicas de escapar e resistir aos seus alunos. Tanto treino não foi em vão. De mais a mais, naquela escuridão, ninguém vê o que atinge nem mesmo sabe quem lhe ataca. Parece terra sem lei e sem motorista.
A jovem do ombro babado desfere um soco na senhora babona e passa por cima da nocauteada. Pula e arrasta seu corpo pelos bancos, sobre os passageiros. Quer a porta de saída. Quando se dá conta que tudo está fechado, grita. Chama por socorro, enquanto com um dos pés amassa o pescoço da senhora babona de sangue. Não vê mais nada, só quer fugir.
Lá na frente, o gordão cai sobre alguns velhinhos, junto a sua queda escuto nitidamente outro sonoro peido. Esses não escapam. Não se ouvem pedidos de ajuda. A porta de trás está lacrada pelo volume do homem.
O cobrador das passagens assiste ao descontrole pela sobrevivência, ali do seu lugar privilegiado, sentado e com a mão no nariz. As pessoas que passam pela passeio público param, pedem que todos se acalmem. Ninguém ouve. O tempo de falar já acabou. O grisalho franzino some sob os pés dos passageiros. Amargadavida vê o homem e tenta um movimento de auxílio, mas recua. Não pode perder o seu terreno conquistado. Volta a se manter em pé com cotoveladas e empurrões. Olha em seus olhos, o sujeitinho afunda naquele oceano de pés. Vê quando pisam uma, duas, três vezes, no franzino. O homem submerge sem um grito.
Lá atrás, os meninos pularam para detrás dos últimos bancos e ficam entrincheirados entre as poltronas e a casca de lata das sardinhas. Pelo menos as criancinhas estão a salvo. Terão um futuro.
Quem viajava sentado ficou soterrado pela avalanche humana. Os choros, os gritos e as lamúrias são de todos e de ninguém. O funcionário do ônibus saiu do seu assento de público privilegiado, passou por cima do gordo e chegou aos controles. Abriu a porta de saída. O grandão ergueu uma das mãos e acionou a saída de emergência. Na confusão ninguém percebeu o sangue que se lambuza nas pessoas e assentos.
Um a um, vão deixando aquele compartimento de tortura.
As sirenes da polícia já eram ouvidas. Os primeiros que saíram foram estendidos pela calçada. Um coletivo de insanidade, nem mocinho nem bandido.
As crianças choram, a mãe grita desesperada.
Os guris são os últimos.
A senhora babona e o senhor franzino ficaram.

Queria poder morrer de prazer


Sonâmbula
baitasar
Permaneço com preguiça, entediando; diriam alguns.
Penso em descansar, seguir pendurando meus enleios em Moriá. Já a encontro sonhando acordada. Mistura suas ilusões com outras vidas. Sai caminhando e conversa. Vai, minha amada. Não age pela incidência do hábito. Pisa seu passo além do rumo determinado, metódico, sem medo do escuro
(Uma pacata mulher passeando pelos sonhos.)
Uns dizem que a sua maneira de sonhar é atrapalhada e a chamam de sonâmbula, parece estar muito ligada em mim. Mentem, tu és, minha amada, sonhadora lúcida procurando uma vida simples e digna. Irrepreensíveis nos juízos do bem e do mal.
Vais por aí, deixando vestígios no caminho. Tuas entranhas, algum tique nervoso. Como o piscar recorrente de um olho mais excitado ou o leve treme-treme do lábio superior. Tudo por nervosismo, quase tudo por amor. Espera o sono que precisa chegar antes do sonho. Em plena madrugada olha para o teto, está sonhando é o que penso, cansou de esperar pela letargia da sonolência
(Sou uma formiga sem asas. Uma rainha.)
Resolvo que canto canções de ninar, lentamente. Pareço descansar balançando no berço, flutuando sobre flocos de nuvens brancas. Escutando vozes, as minhas vozes dentro de ti
(Mamãe quer o colo.) (Papai quer a teta.)
Ressoam através de mim nas quimeras à-toa. Não tenho corpo masculino ou feminino. Não tenho a cor das etnias, nem a religião do sobrenatural, mas tenho medo. Desconheço o sentido das reuniões políticas, literárias ou recreativas, peço atenção à-toa
(Psiu... silêncio.)
As esquinas se voltam caladas; as pessoas continuam se esquivando por elas.
Gosto de ficar imaginando coisas que poderíamos fazer juntando, lembrando dos mistérios em outros tempos.
Brincamos com nosso cheiro, com a nossa memória. Ouço vozes aproximando o meu febril delírio, estremecendo meu corpo. Provo o calor dos meus restos imortais. Sinto o perfume, o gosto, está tentativa obscena deixa meus pés contraídos, como uma câimbra esperada, amando em mim a percorro em sonhos.
Meu coração dispara tremores, anseio por força, vigor, estar junto, absolutamente confinante. Gosto do cheiro mágico e o gosto de adormecer nos braços da minha amada. Quero respostas às perguntas que faço ao espaço das estrelas. Ouço as estrelas. A razão de estar aqui é querer estar junto.
Precisamos sair da cortina suspensa no andar do segredo. Insisto para dar contornos ao amor. Peço que se arrisque. Sugiro juntar numa só fôrma, afiançar por absoluta harmonia das carnes as estrelas da via láctea.
Reviver o tempo é como se tudo outra vez voltasse a passar, um beijo um toque um abraço, uma palavra um olhar um gesto. Quero estar de volta, dando voltas, adormecendo na mesma cama, tendo tardes belas, grandes dias, noites, anos, minha amada eterna.
Não sei como constituir ou transformar a experiência que tenho de mim. Perdi-me em algum canto sinistro. É sempre divino, muito simples e gostoso, como pão quente com manteiga. Deixo-me invadir sem defesa, desarmamento, marcada por mordidas de afeto, invadida, sem defesa, inerme. Maravilha viver a emoção do prazer carregada pela mulher adorada.
Quase adormecidas, quase acordadas, lembrando pela enésima vez o que escrevemos com as mãos, tentando imaginá-las com som, cor e forma, algo difícil e complicado. Minha agonia olhava para você, assim, maravilhosa e as fantasias brincavam com meu corpo e contentamento.
Aqueço-me com teu hálito, sou teu corpo, não resisto mais. Ah, mulher de um sonho cresce ao sol, sem pressa, demora e mostra-te aos meus olhos encantados, ah, mulher de meus sonhos leva-me em teus banhos de amor encantado e revela meu corpo aos teus olhos. Ah, mulher com sonhos continues a sonhar os sons delicados do amor, aparece ao luar e, preguiçosamente, mostra-te encantada.
Não diz que sim, nem afirma que não. Sem pressa ou lamúrias, apenas sorri e celebra. Abre a boca e finge que grita, meus ouvidos zunem, minhas terras tremem. Sou molhada por tuas lágrimas. Não cedo a vontade de dizer para correr e se afiançar nesse abraço, nessa vontade, nesse sonho em movimento. Também me acovardo. Fico de lado.
Sou arrebatada pelo sorriso que inventas a cada olhar que vejo. Estou apaixonada. É maravilhoso. Entre nós, tuas razões são próprias. Temperamento difícil, o meu. Decisões incompreendidas. Não consigo entendê-las, nem ao celibato. Exigências do ofício. Celibatária, estéril e despojada. Perdoa meus pecados insanos.
Confesso que não queria você apaixonada por mim porque não quero estar apaixonada por ti. Sofro muito. Pensa que sabes o que sinto, mas não sabe da minha solidão muda, da minha ineficácia amordaçada e morta, minha incompletude. Sou mal vivida. Covardia tem preço
(Ama tanto e não basta.)
Confesso, tenho a ambição louca de não sair mais de perto, o desejo, as taquicardias, a adrenalina, dopamina, conservo presa em mim como vício, essa doce gula, adoro provar. Pronto, incurável. Tu és quem quer
(E você quem é?)
Confesso, sou quem pensa em deixar, mas tu chegas e vejo estrelas em mim. Tudo o que quero é amar tuas mãos que me buscam, têm a força que encontro em teus olhos e tremo de vontade, sinto o calor da cobiça que me provoca tremores e não resisto.
Confesso um amor inquieto, o medo que sinto dos homens que já a tiveram e do teu amor já experimentaram. Sinto a rivalidade naqueles que a amaram sem saber que amavam ou naqueles que a amavam sem forças de dizer do amor, apenas sonhavam, e andam por aí, soltos, a tua espera, a minha espreita. Experimento ciúmes dos que ainda te amam e se afastam e se aproximam, sou apanhada de raiva por aqueles que a usaram sem te amar.
Confesso meus ciúmes. Queria que você ao menos soubesse dos meus cuidados e zelo. Em cada sonho posso buscar pedacinhos, cacos que me carregam até você.
Confesso, minha amada, o sonho em meus sonhos são contraditórios com a vida que vivemos. Minhas culpas são tantas que não conseguem me aconselhar ou encorajar, estão observando, apontando para além de mim
(Um poema doce que vive os conflitos de uma crise pessoal de fé e amor.)
Falamos de coragem uma à outra, mas não há razão para que no teu e no meu coração não brilhe o sol. Consigo ler teus sonhos como um texto pedagógico, ouço neles tuas palavras ao meu ouvido, leio tua boca no meu sexo, adivinho minhas mãos pelo teu corpo, nele te leio em mim e eu em ti. Passei a vida inteira querendo ser decifrada sem precisar esperar pela madrugada. Sonho este amor doido, entendo a contradição, talvez sinta ciúmes de quantos possam invadir teus sonhos, quem sabe, aí esteja minha dificuldade
(Apenas, quero ir ao cinema.)
Minha amada põe as vistas em mim e o chão me pisa, vejo refletida em teus olhos outra mulher, a menina da infância tão longa na distância. Experimento o encanto. Sinto o perfume do chicle e suor e terra, a cada tentativa obscena deixo meus pés contraídos, como uma câimbra esperada. O coração dispara e meus tremores anseiam por sua beleza e seu desejo.
O medo do feminino é imprevisível, vivemos encantadas. Prontas uma para a outra.
Falando entre soluços. Orando entre sorrisos, mãos unidas ao peito, joelhos dobrados, olhos para o alto, Moriá recita pequenas luzes da memória
(Queria poder morrer de prazer.)
Fico móvel enquanto vem com a boca beijando minha boca, a língua buscando a minha e eu me deixo beijar. Os lábios roçando meu sexo e me deixo roçar.
Preciso do amor que tu tens e abono-me do que tenho.
Permaneço preguiçosa, entediada... diriam alguns.

Monólogo do Orfeu

MARIA BETHANIA - (Tom Jobim e Vinícius de Moraes)


quarta-feira, 27 de julho de 2011

Suas peças bucais são grandes e fortes


Formigueiro
baitasar
São dezesseis horas de outra tarde de muitas tentativas solitárias e algumas frustrações. O sinal de término já soou pelos prédios. As formigas se dirigem em fila à sala dos passos perdidos, com geladeira, fogão a gás, forno, pia, cafeteira, paredes adornadas por armários e quadros de avisos, restos de todos os dias.
Olho novamente para o relógio. Quero confirmar-me existindo, não posso, o tempo me desfaz. Sinto-me insuportavelmente vazia. Saio da trilha. Hoje é mais uma terça-feira. Certamente, já estarão quase todas falando alto e escolhendo os mais variados produtos no “mercado persa”, que se transforma esse prédio. Tudo acontecendo entre cafezinhos, chás, bolos, pipoca e chimarrão. Sinto a ansiedade de fazer diferente uma única vez. Desaninhar. Sair da fileira e ficar por conta própria.
Antes de entrar, passo pelo pequeno briquitar instalado no corredor, em cima da fórmica verde. Ao fundo, as paredes avermelhadas de tijolos à vista, os tijolos quando são queimados ficam avermelhados, as formigas quando são queimadas morrem, aqueles tijolos sustentam muitos cartazes em homenagem a memória dos índios que são avermelhados, mas não parecem queimados, foram exterminados
(Nunca vi um índio de verdade.)
Caminho entre balcões, desviando e me esquivando, apenas um descuido e tudo acaba. Sim, estou preocupada. É o momento de olhar, enquanto indagam preços e tomam cafezinhos, o lanche, as guloseimas, para alguns e algumas como eu, é o momento de fumar. Acendo um cigarro. Dou mais uma espiada, conversam e brincam, tendo ao centro o nada; observo os círculos de um grupo para outro, muita aleivosia quando não estamos em fileiras, mas desordenadas.
As palavras pulam e repenicam em todas as direções, não se fazem na discussão, não se alimentam e não têm fome. Preferem das folhas os galhos. Perdidas entre pedras e raízes. Duas mortes. Tragédia. Enfim, o show vai continuar e retorno para a passagem estreita e longa do mercadinho.
Sei que não estou inteira, nem pela metade. Minha vontade é reencontrar o olhar penetrante daquele macho alado, além do caminho coberto pelo intervalo apertado das compras, tomado de mercadorias, um lugar alheio às confidências infecundas, que não dão frutos. Sempre conversamos sobre livros, trocamos idéias, falamos sobre as coisas da vida, do destino, da morte; enquanto fala, meu pensamento viaja tentando vislumbrar segredos, penetrar neste seu mundo escondido como em uma caverna. Não o encontro. Termino meu cigarro e entro no abrigo, parece ser mais seguro.
Alguns trocam sempre as mesmas folhinhas. Não as suporto ― as folhinhas. Outras comem ou silenciam, muitas jorram adjetivos e outros, como o macho alado, lançam-se pacientemente a salvar este mundo, acreditando que é possível.
A voz do Marko, o tal macho alado, vem ao longe, envolvendo meus pensamentos. Não consigo me colocar na discussão, fico alheia. A consciência pesa por deixar Marko sozinho. Ele se recusa participar da fecundação.
 São anos vivendo a partir de diferentes espaços, cozinhas, salas de aula, banheiros, sindicatos, dormitórios, partidos político, jardins, diretórios acadêmicos. Certamente, poderia contribuir, como muitas vezes o faço, mas hoje me sinto insuportavelmente vazia, insurgentemente trágica. Saio para re-fumar
(Ah, finalmente, o vejo!)
exclamo quase sem disfarçar minha ansiedade. Sorrimos
(Achou a minha trilha?) (Já conheço todas as conversas e motivações que acontecem ali.)
diz, enquanto o olhar aponta o abrigo.
Abraço seu sorriso, seu olhar, seu modo de falar, o repertório de sua ternura, sua reticência. O chamam de anti-social, um recluso casmurro
(À qual sociedade deveria você se integrar, a qual destino deveria me entregar?)
Quero ser o alimento, tua comida, tua sede, e ser bebida aos goles, por tuas mãos em minha pele, me salvando de toda essa confusão que é viver, salvando-me da vida. Dá à recordação... tuas mãos, boca, cheiro, que será tudo nosso
(Quanta tentação fugir agora.) (Fugir é o apetite violento a não resistir.)
Resisto. Mudo o rumo da minha voz para impor silêncio
(Como será que me vê, patrão ou joão, senhoria ou maria?) (Com benevolência.)
Outro sorriso e alguns passos para o lado, toma em silêncio o seu chimarrão.
Concordo que a benevolência, clemência e compaixão situam a nossa natureza, determinam as fronteiras do nosso viver coletivo, mas não basta. Não preciso de mais respostas nem de mais perguntas. Acendo outro cigarro, procuro minha paz, mas continuo solidária e em luta comigo mesma, entre ir à colônia ou acompanhar-me sozinha.
Termino meu cigarro, não, ele é que termina comigo aos pouquinhos. Censuro-me.
O macho alado reaparece tomado de decisão, tocamos as antenas e sinto que chegou o momento da fecundação. Voamos. Fui escolhida como uma nova rainha. Ele foi escolhido para me acompanhar no vôo nupcial. Suas peças bucais são grandes e fortes. 

Nosso abraço é definitivo. 
A reprodução é feita.
Pouco a pouco, perco as asas. Sou levada para o berçário, serei tratada como a nova rainha. Ele sabe que está proibido de entrar no formigueiro. Fica pelas trilhas solitárias
Olho em seus olhos, as antenas vibram
(Valeu à pena?)

domingo, 24 de julho de 2011

Das Vantagens de Ser Bobo


Clarice Lispector 





O bobo, por não se ocupar com ambições, tem tempo para ver, ouvir e tocar o mundo. O bobo é capaz de ficar sentado quase sem se mexer por duas horas. Se perguntado por que não faz alguma coisa, responde: "Estou fazendo. Estou pensando."

Ser bobo às vezes oferece um mundo de saída porque os espertos só se lembram de sair por meio da esperteza, e o bobo tem originalidade, espontaneamente lhe vem a idéia.

O bobo tem oportunidade de ver coisas que os espertos não vêem. Os espertos estão sempre tão atentos às espertezas alheias que se descontraem diante dos bobos, e estes os vêem como simples pessoas humanas. O bobo ganha utilidade e sabedoria para viver. O bobo nunca parece ter tido vez. No entanto, muitas vezes, o bobo é um Dostoievski.

Há desvantagem, obviamente. Uma boba, por exemplo, confiou na palavra de um desconhecido para a compra de um ar refrigerado de segunda mão: ele disse que o aparelho era novo, praticamente sem uso porque se mudara para a Gávea onde é fresco. Vai a boba e compra o aparelho sem vê-lo sequer. Resultado: não funciona. Chamado um técnico, a opinião deste era de que o aparelho estava tão estragado que o conserto seria caríssimo: mais valia comprar outro. Mas, em contrapartida, a vantagem de ser bobo é ter boa-fé, não desconfiar, e portanto estar tranqüilo. Enquanto o esperto não dorme à noite com medo de ser ludibriado. O esperto vence com úlcera no estômago. O bobo não percebe que venceu.

Aviso: não confundir bobos com burros. Desvantagem: pode receber uma punhalada de quem menos espera. É uma das tristezas que o bobo não prevê. César terminou dizendo a célebre frase: "Até tu, Brutus?"

Bobo não reclama. Em compensação, como exclama!

Os bobos, com todas as suas palhaçadas, devem estar todos no céu. Se Cristo tivesse sido esperto não teria morrido na cruz.

O bobo é sempre tão simpático que há espertos que se fazem passar por bobos. Ser bobo é uma criatividade e, como toda criação, é difícil. Por isso é que os espertos não conseguem passar por bobos. Os espertos ganham dos outros. Em compensação os bobos ganham a vida. Bem-aventurados os bobos porque sabem sem que ninguém desconfie. Aliás não se importam que saibam que eles sabem.

Há lugares que facilitam mais as pessoas serem bobas (não confundir bobo com burro, com tolo, com fútil). Minas Gerais, por exemplo, facilita ser bobo. Ah, quantos perdem por não nascer em Minas!

Bobo é Chagall, que põe vaca no espaço, voando por cima das casas. É quase impossível evitar excesso de amor que o bobo provoca. É que só o bobo é capaz de excesso de amor. E só o amor faz o bobo.