O Idiota
Fiódor Dostoiévski
Tradução portuguesa por José Geraldo Vieira
1a.
Fiódor Dostoiévski
Tradução portuguesa por José Geraldo Vieira
Primeira Parte
1a.
Em dada manhã de novembro, aí pelas nove horas, o rápido de Varsóvia se aproximava de Petersburgo em alta velocidade. Estava degelando, e tão úmido e embaçado que era difícil distinguir qualquer coisa a dez passos da linha à direita ou à esquerda das janelas dos vagões. Dentre os passageiros alguns regressavam do estrangeiro, mas a maioria dos que lotavam os compartimentos da terceira classe era gente de condição humilde, vinda não de muito longe, a negócio. Todos naturalmente estavam cansados e friorentos, com os olhos pesados de toda uma noite de viagem, e suas faces pálidas e amarelentas competiam com a cor do nevoeiro. Em uma das carruagens de terceira classe, dois passageiros desde antes de amanhecer estavam sentados diante um do outro, ao lado da janela. Ambos moços, não muito bem vestidos, viajando com pequena bagagem. Tinham uma aparência de chamar atenção e demonstravam querer encetar conversação. Se houvessem podido saber o que mutuamente possuíam de extraordinário, muito se teriam admirado de o acaso estranhamente os colocar assim frente a frente, em um vagão de terceira classe do rápido de Varsóvia. Um deles era um homem baixo, em uns vinte e sete anos, de cabelos crespos quase pretos e olhos cinzentos, pequenos e ardentes. Um nariz grande e chato avultava entre os malares proeminentes. Os lábios finos conservavam em sua curva um contínuo sorriso atrevido, de uma ironia maliciosa; mas a fronte bem conformada e alta, redimia As linhas grosseiras da parte inferior do rosto. O que mais impressionava, apesar do seu vigor, era a palidez mortal que lhe dava ao mesmo tempo um aspecto de cansaço e um feitio a bem dizer dolorosamente ardente, que não se coadunava com o insolente sorriso rude nem com a expressão dura e presunçosa dos olhos. Agasalhava-o um grosso sobretudo preto forrado de pele de carneiro e que não lhe deixara sentir o frio noturno; já o seu companheiro porém, tinha ficado exposto ao frio e à umidade dessa noite bem russa de novembro, para a qual evidentemente não viera preparado. Trazia este uma capa bem espessa e ampla, com enorme capuz, dessas que, embora muito usadas lá fora, na Suíça ou no norte da Itália, durante o inverno, estão longe, todavia, de servir a quem se propõe uma viagem como a do percurso entre Eldtkuhnen e Petersburgo. Viável e satisfatória na Itália, longe estava de ser suficiente para a Rússia. O dono da capa era um jovem também de uns vinte e seis ou vinte e sete anos, de estatura pouco acima da vulgar, de cabelos louros e abundantes, faces encovadas e uma barba pontuda tão clara, que parecia branca. Seus olhos eram grandes, azuis e fixos. Através deles transparecia algo gentil mas com uma expressão afadigada e tão esquisita que muita gente ao primeiro relance reconheceria estar defronte de um epiléptico. Ainda assim o rosto era agradável, bem tratado, de traços finos, sem uma coloração própria, muito embora nessa ocasião estivesse um pouco azulado por causa do frio. Segurava um pequeno embrulho atado e um lenço grande de seda puída onde decerto estavam todos os seus haveres. Calçava sapatos de sola grossa, cobertos com polainas, tudo à maneira estrangeira. O seu companheiro de cabelos escuros, o do sobretudo de pele de carneiro, continuava a observar tudo isso, visto não ter o que fazer; e por fim, dando ao sorriso uma indelicadeza maior, em um desses gestos que não raro traem, casualmente, certa satisfação ante a desgraça alheia, lhe perguntou sem a menor cerimônia:
- Com frio?
E deu uma sacudidela de ombros.
- Muito! - respondeu com extraordinária presteza o seu vizinho. - E pensar que se trata apenas de um degelo. Imagine então se estivesse congelando! Não esperava que por aqui já fizesse tanto frio. Perdi o costume. - Está vindo do estrangeiro, hein?! - Estou, sim; Suíça. - Credo! Não me diga! - E o homem moreno assobiou e depois riu. Puseram-se a conversar. Era notável a boa-vontade com que o jovem da capa suíça respondia às perguntas do companheiro. Não deixava sequer transparecer nenhum melindre de desconfiança ante a extrema impertinência das indagações inconvenientes e sem propósito. Contou-lhe que estivera uma grande temporada, mais de quatro anos, fora da Rússia; que o tinham mandado para o estrangeiro por causa da saúde, de uma certa moléstia nervosa fora do comum, do gênero assim da epilepsia ou da dança de São Guido, com ataques e contrações. O homem trigueiro à medida que escutava não perdia ensejo de rir à grande; e riu muito mais ainda quando o outro em resposta à sua pergunta “Bem, mas afinal de contas o curaram?” respondeu: - Qual o quê!
- Mas então o senhor deve ter gasto muito dinheiro com isso! E nós aqui a acreditarmos nessa gente de lá - observou o homem de preto, criticando.
- É isso mesmo! - aparteou um indivíduo mal-ajambrado e corpulento, de uns quarenta anos, com um narigão vermelho e a cara cheia de espinhas, que estava sentado rente deles.
Pelo jeito devia ser algum funcionário subalterno, com os defeitos típicos da sua classe.
- Pois é! Absorvem todos os recursos da Rússia para acabarem não fazendo coisíssima nenhuma!
- Oh! No meu caso o senhor está completamente equivocado - redarguiu o paciente chegado da Suíça, em um tom amável e conciliatório. - Naturalmente não posso contradizer a sua opinião, porque não estou a par de tudo isso; mas no meu caso o médico me conservou lá aproximadamente durante dois anos, à própria custa, e ainda gastou o resto do seu pouco dinheiro com esta minha viagem para cá.
- Como assim?! Então o senhor não dispunha de gente sua que pagasse? - indagou o homem moreno.
- Não; o Sr. Pavlíchtchev, que costumava pagar por mim, morreu há dois anos. Escrevi, à vista disso, para Petersburgo, à Sra. Epantchiná, uma parenta minha longe, mas não obtive resposta. Então tive de vir... - E para onde vai agora?
- O senhor quer se referir.., onde vou ficar?... A bem dizer, não sei... Por aí... - Ainda não pensou nisso, não é?
E os dois ouvintes riram, outra vez.
- E não me admiraria nada se esse embrulho aí fosse tudo que o senhor possui de seu neste mundo! - aventou o homem do sobretudo preto. Nem vale a pena apostar! - retrucou o funcionário de nariz vermelho, com ar jocoso. - Eu cá não me abalançaria a isso quanto mais a aventar que aqui o amigo tenha alguma coisa no carro de bagagem. Aliás, convenhamos, a pobreza está longe de ser um vício.
Pelos modos esse era de fato o caso, e o jovem logo confirmou tal suposição, imediatamente, com a sua presteza peculiar. - Seja lá como for, o seu embrulho merece consideração - prosseguiu o funcionário depois que todos se riram à larga (sim, todos, pois por mais estranho que pareça, o dono do embrulho também se pusera a rir, encarando- os, o que aumentou de muito a alegria) - embora se possa apostar na certa que dentro dele não haja luíses nem fredericos. e muito menos florins brunidos. Sim, pois se não bastassem as polainas que o senhor usa sobre as botinas compradas no estrangeiro, suficiente seria acrescentar a esse embrulho o tal parentesco com uma pessoa como a Sra. Epantchiná, a mulher do general! Sim, convenhamos que esse embrulho aí se reveste de um valor todo especial, se é que realmente a Sra. Epantchiná é sua parenta. Não vá o senhor estar laborando em um equívoco, em um desses enganos que soem muitas vezes acontecer... por via de um excesso de imaginação.
- Outra conjetura certa, essa do senhor - concordou e esclareceu o jovem louro.
- Trata-se realmente, por assim dizer, de uma afirmação muito relativa, pois ela quase não chega a ser parenta minha; tanto que nem me surpreendi por não haver recebido resposta. Eu já contava com isso. - Botou fora então o dinheiro dos selos! Hum!... Em todo o caso o senhor é franco, não tem empáfia, o que já é a seu favor! Há, há!.. Conheço o General Epantchín; aliás toda a gente o conhece; basta ele ser como é; e em tempos conheci o Sr. Pavlíchtchev também que pagou as suas despesas na Suíça, se é que se trata de Nikolai Andréievitch Pavlíchtchev, pois houve dois com esse nome: eram primos. O outro vive na Criméia. O falecido Nikolái Andréievitch era um homem de valor e muito bem relacionado; chegou a possuir quatro mil servos..
- Exatamente; Nikolái Andréievitch era o nome dele. E ao responder, o jovem olhou atentamente, de alto a baixo, o cavalheiro que sabia tudo.
Tais cavalheiros oniscientes são encontrados muitas vezes em uma certa camada da sociedade. Sabem tudo. Tanto a sua incansável curiosidade como as suas aptidões de espírito inclinam-se irresistivelmente em uma direção, sem dúvida por falta de idéias e de interesses mais importantes na vida, como diria um pensador moderno. Mas as palavras “eles sabem de tudo” devem ser tomadas aqui em um sentido quiçá limitado: em que departamento fulano trabalha; que espécie de amigos tem: quais os seus proventos; onde foi governador: quem é sua mulher e que dote lhe trouxe: quais são os seus primos de primeiro grau; quais os de segundo; e outras coisas deste jaez. A maioria de tais cavalheiros oniscientes vive com as mangas coçadas nos cotovelos e recebe um ordenado de dezessete rublos por mês. As pessoas de cujas vidas eles conhecem todos os pormenores ficariam perplexas se lhes fosse dado imaginar suas intenções, mas muitos desses cavalheiros arrancam de tais conhecimentos uma consolação sobremaneira positiva, o que importa em uma ciência completa, disso derivando um autorrespeito e o mais alto prazer espiritual. Não se pode negar que se trata de uma fascinante ciência. Farto estou de haver visto homens cultos, literatos, poetas, políticos que procuraram e acharam nessa ciência o seu mais elevado conforto e a sua última finalidade, apenas tendo conseguido fazer carreira mediante emprego de tais dons. Durante esta parte da conversação o homem moreno deu em bocejar e em olhar através do vidro da janela, esperando impacientemente o fim da viagem, não tardando a ficar bastante inquieto, deveras, mal contendo a própria agitação. Na verdade seus modos não deixavam de ser bastante estranhos; ora parecia ouvir sem escutar, ora parecia olhar sem ver. Chegou mesmo a rir, uma vez ou outra, sem saber de quê, ou logo se esquecendo do motivo. - Desculpe, com quem tenho eu a honra de... - perguntou de repente o homem da cara cheia de borbulhas, voltando-se para o moço do embrulho. - Príncipe Liév Nikoláievitch Míchkin é o meu nome - respondeu este último, sem a menor hesitação, de modo muito espontâneo. - Príncipe Míchkin? Liév Nikolátévitch?... Não conheço. Nem creio já ter ouvido! - respondeu o amanuense, pensativamente. - Claro que não estou dizendo que desconheço o sobrenome, que até é histórico; o compêndio de história de Karamzín dá, e com notórias razões; refiro-me ao senhor, pessoalmente. Não me constava que houvesse Príncipes Míchkin por aí; pelo menos não se ouve falar neles. - Creio que não haja mesmo - respondeu logo Míchkin - ou melhor, só existe um, atualmente, que sou eu; cuido ser o último deles. E no que se refere aos nossos pais e avós, alguns não foram senão pequenos proprietários rurais. Meu pai foi cadete, depois tenente do Exército; no entanto, a senhora do General Epantchín não deixava de ser, de certa forma, uma princesa Míchkin, pois como tal foi nascida: foi a última da sua fornada.., também! - Eh! Eh! Eh! “A última da sua fornada!” Boa! Com que graça o senhor esclareceu isso! - chasqueou o funcionário público. O homem moreno também se arreganhou todo. Míchkin ficou até surpreendido em haver perpetrado um gracejo, aliás muito insípido. - Palavra de honra que me exprimi assim sem pensar - explicou ele, por fim, meio zonzo.
- Lógico, lógico que foi sem pensar - concordou o funcionário bem- humorado.
- E o senhor, lá no estrangeiro, também esteve estudando com professores, príncipe? - perguntou sem mais aquela o homem do sobretudo de pele de carneiro.
- Estive, sim senhor.
- Pois eu nunca estudei nada.
- Bem, eu, quer o senhor saber? só estudei um pouquinho - acrescentou o príncipe quase como a querer pedir desculpas. - Eles lá não me apertavam por causa da minha doença.
Nisto o homem da capa preta se saiu com esta, à queima-roupa: - Conhece os Rogójin?
- Não, não os conheço, absolutamente. Dou-me com muito pouca gente aqui na Rússia. O senhor é um Rogójin?
- Sim, chamo-me Parfión Rogójín.
- Parfión? O senhor é um desses Rogójin que... - começou logo o funcionário, tomando um ar de crescente circunspeção. - Perfeitamente. Um deles. Sou um dos tais Rogójin, sim - atalhou imediatamente o homem moreno, com um feitio grosseiro de irritação. Não se tinha dirigido uma única vez ao homem das borbulhas, na verdade até ali só havendo falado com Míchkin.
- Não me diga!... - E o amanuense se petrificou, cheio de espanto, enquanto os olhos pareciam querer saltar-lhe das órbitas. E logo o seu rosto assumiu uma expressão de servilismo e de reverência, quase que de pânico. - É parente, porventura, de Semión Parfiónovitch Rogójín, cidadão honorário e hereditário que faleceu há coisa de um mês e que deixou uma fortuna de dois milhões e meio de rublos?!
- E como sabe você que ele deixou dois milhões e meio? - retrucou o homem moreno, sem se dignar olhar para o funcionário público nem mesmo de relance.
- Veja este sujeito! - E se voltou bem para o príncipe, indicando com um gesto de pálpebra o outro. - Que lucra gente como essa em bajular logo uma pessoa? Lá isso que meu pai morreu, de fato morreu, está fazendo já um mês. E aqui, conforme o senhor me vê, estou chegando de Pskóv, quase descalço. - O patife do meu irmão, mais a minha mãe, não me remeteram um vintém sequer; e muito menos um aviso - nada! Como se eu fosse um cão! E estive todo o mês de cama, em Pskóv, com febre! - Mas, valha-o Deus, agora vai o senhor entrar em um milhão intato. Isso, avaliando muito por baixo.
- E o funcionário agitou as mãos para o alto. - E este sujeito a se meter, está vendo só o senhor, príncipe?! - disse Rogójin, que acabou se voltando irritado, dizendo para o intruso, depois, em tom furioso:
- E escusa de pensar que lhe jogarei um copeque que seja, está ouvindo? Nem que você se equilibre com a cabeça no chão e as pernas para o ar, escutou?! - Se me equilibro! Olá, se me equilibro!! - Esta agora! Pois não lhe darei coisa nenhuma, pronto! Nem que você dance à minha volta durante uma semana, de fio a pavio. - Pois não dê, ora essa!? E por que haveria o senhor de dar? Mas que dançarei, lá isso dançarei. Largo a mulher e as crianças e venho dançar na sua frente. Homenagens lhe são devidas! Se são!... - Enforque-se! - cuspiu o homem trigueiro, logo se voltando para o príncipe, novamente.
- Há coisa de umas cinco semanas, sem trazer nada a não ser um embrulho como o senhor agora, fugi da casa de meu pai para a casa de minha tia em Pskóv, onde caí doente. E enquanto estive fora, meu pai morreu. Deu com o rabo na cerca... Deus o tenha na Sua glória, arre! Mas quase que quem morria antes era eu. Sim, matava-me, acredite-me, príncipe! Eu que não fugisse! Dava- me cabo do canastro ali na hora, sem cerimônia alguma! - O senhor o desgostou com alguma coisa? - indagou o príncipe, olhando para o milionário com um interesse muito especial, perscrutando-o através da pele de carneiro. E conquanto a só história da herança de um milhão tornasse o homem já por si notável, algo mais havia nele que surpreendia e interessava Míchkin. E motivo deve ter havido para o próprio Rogójin se pôr a conversar prontamente com o príncipe, na verdade parecendo se tratar bem mais de uma necessidade física do que mental, despertada mais pela preocupação do que pela franqueza, como se buscasse, na sua agitação e no seu paroxismo, alguém a fim de exercitar a língua.
continua página 08...
_____________________
Leia também:
Dostoiévski - O Idiota: Primeira Parte 1b. Parecia estar ainda doente...
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Avisando:
Resenha com spolier
O Idiota, Episódio 1
- 2003 (Legendado)
Dostoiévski é considerado o maior escritor russo de seu tempo. É autor de várias obras-primas. O Idiota começou a ser redigido em 14 de setembro 1867 em Genebra, Suiça, e foi concluído a 25 de janeiro de 1868, em Florença, Itália. A obra teve uma elaboração difícil e torturada. Em meio às piores dificuldades, foi escrita e reescrita muitas vezes até a redação definitiva. A obra foi inspirada na figura de Dom Quixote, de Cervantes. O Idiota é, talvez, o romance mais típico de Dostoiévski, provocou perplexidade nos meios intelectuais da época. a obra foi elogiada por Tolstoi, que a achou de grande força dramática e beleza literária. Michkin foi, antes de tudo, o último "homem", o último "ser humano" da Literatura Universal. O primeiro foi Dom Quixote (aliás mencionado no livro). O que Dostoiévski fez foi mostrar à Rússia a dissolução da própria fé e da esperança na bondade universal e prepará-la para chegada dos "Demônios"
- Com frio?
E deu uma sacudidela de ombros.
- Muito! - respondeu com extraordinária presteza o seu vizinho. - E pensar que se trata apenas de um degelo. Imagine então se estivesse congelando! Não esperava que por aqui já fizesse tanto frio. Perdi o costume. - Está vindo do estrangeiro, hein?! - Estou, sim; Suíça. - Credo! Não me diga! - E o homem moreno assobiou e depois riu. Puseram-se a conversar. Era notável a boa-vontade com que o jovem da capa suíça respondia às perguntas do companheiro. Não deixava sequer transparecer nenhum melindre de desconfiança ante a extrema impertinência das indagações inconvenientes e sem propósito. Contou-lhe que estivera uma grande temporada, mais de quatro anos, fora da Rússia; que o tinham mandado para o estrangeiro por causa da saúde, de uma certa moléstia nervosa fora do comum, do gênero assim da epilepsia ou da dança de São Guido, com ataques e contrações. O homem trigueiro à medida que escutava não perdia ensejo de rir à grande; e riu muito mais ainda quando o outro em resposta à sua pergunta “Bem, mas afinal de contas o curaram?” respondeu: - Qual o quê!
- Mas então o senhor deve ter gasto muito dinheiro com isso! E nós aqui a acreditarmos nessa gente de lá - observou o homem de preto, criticando.
- É isso mesmo! - aparteou um indivíduo mal-ajambrado e corpulento, de uns quarenta anos, com um narigão vermelho e a cara cheia de espinhas, que estava sentado rente deles.
Pelo jeito devia ser algum funcionário subalterno, com os defeitos típicos da sua classe.
- Pois é! Absorvem todos os recursos da Rússia para acabarem não fazendo coisíssima nenhuma!
- Oh! No meu caso o senhor está completamente equivocado - redarguiu o paciente chegado da Suíça, em um tom amável e conciliatório. - Naturalmente não posso contradizer a sua opinião, porque não estou a par de tudo isso; mas no meu caso o médico me conservou lá aproximadamente durante dois anos, à própria custa, e ainda gastou o resto do seu pouco dinheiro com esta minha viagem para cá.
- Como assim?! Então o senhor não dispunha de gente sua que pagasse? - indagou o homem moreno.
- Não; o Sr. Pavlíchtchev, que costumava pagar por mim, morreu há dois anos. Escrevi, à vista disso, para Petersburgo, à Sra. Epantchiná, uma parenta minha longe, mas não obtive resposta. Então tive de vir... - E para onde vai agora?
- O senhor quer se referir.., onde vou ficar?... A bem dizer, não sei... Por aí... - Ainda não pensou nisso, não é?
E os dois ouvintes riram, outra vez.
- E não me admiraria nada se esse embrulho aí fosse tudo que o senhor possui de seu neste mundo! - aventou o homem do sobretudo preto. Nem vale a pena apostar! - retrucou o funcionário de nariz vermelho, com ar jocoso. - Eu cá não me abalançaria a isso quanto mais a aventar que aqui o amigo tenha alguma coisa no carro de bagagem. Aliás, convenhamos, a pobreza está longe de ser um vício.
Pelos modos esse era de fato o caso, e o jovem logo confirmou tal suposição, imediatamente, com a sua presteza peculiar. - Seja lá como for, o seu embrulho merece consideração - prosseguiu o funcionário depois que todos se riram à larga (sim, todos, pois por mais estranho que pareça, o dono do embrulho também se pusera a rir, encarando- os, o que aumentou de muito a alegria) - embora se possa apostar na certa que dentro dele não haja luíses nem fredericos. e muito menos florins brunidos. Sim, pois se não bastassem as polainas que o senhor usa sobre as botinas compradas no estrangeiro, suficiente seria acrescentar a esse embrulho o tal parentesco com uma pessoa como a Sra. Epantchiná, a mulher do general! Sim, convenhamos que esse embrulho aí se reveste de um valor todo especial, se é que realmente a Sra. Epantchiná é sua parenta. Não vá o senhor estar laborando em um equívoco, em um desses enganos que soem muitas vezes acontecer... por via de um excesso de imaginação.
- Outra conjetura certa, essa do senhor - concordou e esclareceu o jovem louro.
- Trata-se realmente, por assim dizer, de uma afirmação muito relativa, pois ela quase não chega a ser parenta minha; tanto que nem me surpreendi por não haver recebido resposta. Eu já contava com isso. - Botou fora então o dinheiro dos selos! Hum!... Em todo o caso o senhor é franco, não tem empáfia, o que já é a seu favor! Há, há!.. Conheço o General Epantchín; aliás toda a gente o conhece; basta ele ser como é; e em tempos conheci o Sr. Pavlíchtchev também que pagou as suas despesas na Suíça, se é que se trata de Nikolai Andréievitch Pavlíchtchev, pois houve dois com esse nome: eram primos. O outro vive na Criméia. O falecido Nikolái Andréievitch era um homem de valor e muito bem relacionado; chegou a possuir quatro mil servos..
- Exatamente; Nikolái Andréievitch era o nome dele. E ao responder, o jovem olhou atentamente, de alto a baixo, o cavalheiro que sabia tudo.
Tais cavalheiros oniscientes são encontrados muitas vezes em uma certa camada da sociedade. Sabem tudo. Tanto a sua incansável curiosidade como as suas aptidões de espírito inclinam-se irresistivelmente em uma direção, sem dúvida por falta de idéias e de interesses mais importantes na vida, como diria um pensador moderno. Mas as palavras “eles sabem de tudo” devem ser tomadas aqui em um sentido quiçá limitado: em que departamento fulano trabalha; que espécie de amigos tem: quais os seus proventos; onde foi governador: quem é sua mulher e que dote lhe trouxe: quais são os seus primos de primeiro grau; quais os de segundo; e outras coisas deste jaez. A maioria de tais cavalheiros oniscientes vive com as mangas coçadas nos cotovelos e recebe um ordenado de dezessete rublos por mês. As pessoas de cujas vidas eles conhecem todos os pormenores ficariam perplexas se lhes fosse dado imaginar suas intenções, mas muitos desses cavalheiros arrancam de tais conhecimentos uma consolação sobremaneira positiva, o que importa em uma ciência completa, disso derivando um autorrespeito e o mais alto prazer espiritual. Não se pode negar que se trata de uma fascinante ciência. Farto estou de haver visto homens cultos, literatos, poetas, políticos que procuraram e acharam nessa ciência o seu mais elevado conforto e a sua última finalidade, apenas tendo conseguido fazer carreira mediante emprego de tais dons. Durante esta parte da conversação o homem moreno deu em bocejar e em olhar através do vidro da janela, esperando impacientemente o fim da viagem, não tardando a ficar bastante inquieto, deveras, mal contendo a própria agitação. Na verdade seus modos não deixavam de ser bastante estranhos; ora parecia ouvir sem escutar, ora parecia olhar sem ver. Chegou mesmo a rir, uma vez ou outra, sem saber de quê, ou logo se esquecendo do motivo. - Desculpe, com quem tenho eu a honra de... - perguntou de repente o homem da cara cheia de borbulhas, voltando-se para o moço do embrulho. - Príncipe Liév Nikoláievitch Míchkin é o meu nome - respondeu este último, sem a menor hesitação, de modo muito espontâneo. - Príncipe Míchkin? Liév Nikolátévitch?... Não conheço. Nem creio já ter ouvido! - respondeu o amanuense, pensativamente. - Claro que não estou dizendo que desconheço o sobrenome, que até é histórico; o compêndio de história de Karamzín dá, e com notórias razões; refiro-me ao senhor, pessoalmente. Não me constava que houvesse Príncipes Míchkin por aí; pelo menos não se ouve falar neles. - Creio que não haja mesmo - respondeu logo Míchkin - ou melhor, só existe um, atualmente, que sou eu; cuido ser o último deles. E no que se refere aos nossos pais e avós, alguns não foram senão pequenos proprietários rurais. Meu pai foi cadete, depois tenente do Exército; no entanto, a senhora do General Epantchín não deixava de ser, de certa forma, uma princesa Míchkin, pois como tal foi nascida: foi a última da sua fornada.., também! - Eh! Eh! Eh! “A última da sua fornada!” Boa! Com que graça o senhor esclareceu isso! - chasqueou o funcionário público. O homem moreno também se arreganhou todo. Míchkin ficou até surpreendido em haver perpetrado um gracejo, aliás muito insípido. - Palavra de honra que me exprimi assim sem pensar - explicou ele, por fim, meio zonzo.
- Lógico, lógico que foi sem pensar - concordou o funcionário bem- humorado.
- E o senhor, lá no estrangeiro, também esteve estudando com professores, príncipe? - perguntou sem mais aquela o homem do sobretudo de pele de carneiro.
- Estive, sim senhor.
- Pois eu nunca estudei nada.
- Bem, eu, quer o senhor saber? só estudei um pouquinho - acrescentou o príncipe quase como a querer pedir desculpas. - Eles lá não me apertavam por causa da minha doença.
Nisto o homem da capa preta se saiu com esta, à queima-roupa: - Conhece os Rogójin?
- Não, não os conheço, absolutamente. Dou-me com muito pouca gente aqui na Rússia. O senhor é um Rogójin?
- Sim, chamo-me Parfión Rogójín.
- Parfión? O senhor é um desses Rogójin que... - começou logo o funcionário, tomando um ar de crescente circunspeção. - Perfeitamente. Um deles. Sou um dos tais Rogójin, sim - atalhou imediatamente o homem moreno, com um feitio grosseiro de irritação. Não se tinha dirigido uma única vez ao homem das borbulhas, na verdade até ali só havendo falado com Míchkin.
- Não me diga!... - E o amanuense se petrificou, cheio de espanto, enquanto os olhos pareciam querer saltar-lhe das órbitas. E logo o seu rosto assumiu uma expressão de servilismo e de reverência, quase que de pânico. - É parente, porventura, de Semión Parfiónovitch Rogójín, cidadão honorário e hereditário que faleceu há coisa de um mês e que deixou uma fortuna de dois milhões e meio de rublos?!
- E como sabe você que ele deixou dois milhões e meio? - retrucou o homem moreno, sem se dignar olhar para o funcionário público nem mesmo de relance.
- Veja este sujeito! - E se voltou bem para o príncipe, indicando com um gesto de pálpebra o outro. - Que lucra gente como essa em bajular logo uma pessoa? Lá isso que meu pai morreu, de fato morreu, está fazendo já um mês. E aqui, conforme o senhor me vê, estou chegando de Pskóv, quase descalço. - O patife do meu irmão, mais a minha mãe, não me remeteram um vintém sequer; e muito menos um aviso - nada! Como se eu fosse um cão! E estive todo o mês de cama, em Pskóv, com febre! - Mas, valha-o Deus, agora vai o senhor entrar em um milhão intato. Isso, avaliando muito por baixo.
- E o funcionário agitou as mãos para o alto. - E este sujeito a se meter, está vendo só o senhor, príncipe?! - disse Rogójin, que acabou se voltando irritado, dizendo para o intruso, depois, em tom furioso:
- E escusa de pensar que lhe jogarei um copeque que seja, está ouvindo? Nem que você se equilibre com a cabeça no chão e as pernas para o ar, escutou?! - Se me equilibro! Olá, se me equilibro!! - Esta agora! Pois não lhe darei coisa nenhuma, pronto! Nem que você dance à minha volta durante uma semana, de fio a pavio. - Pois não dê, ora essa!? E por que haveria o senhor de dar? Mas que dançarei, lá isso dançarei. Largo a mulher e as crianças e venho dançar na sua frente. Homenagens lhe são devidas! Se são!... - Enforque-se! - cuspiu o homem trigueiro, logo se voltando para o príncipe, novamente.
- Há coisa de umas cinco semanas, sem trazer nada a não ser um embrulho como o senhor agora, fugi da casa de meu pai para a casa de minha tia em Pskóv, onde caí doente. E enquanto estive fora, meu pai morreu. Deu com o rabo na cerca... Deus o tenha na Sua glória, arre! Mas quase que quem morria antes era eu. Sim, matava-me, acredite-me, príncipe! Eu que não fugisse! Dava- me cabo do canastro ali na hora, sem cerimônia alguma! - O senhor o desgostou com alguma coisa? - indagou o príncipe, olhando para o milionário com um interesse muito especial, perscrutando-o através da pele de carneiro. E conquanto a só história da herança de um milhão tornasse o homem já por si notável, algo mais havia nele que surpreendia e interessava Míchkin. E motivo deve ter havido para o próprio Rogójin se pôr a conversar prontamente com o príncipe, na verdade parecendo se tratar bem mais de uma necessidade física do que mental, despertada mais pela preocupação do que pela franqueza, como se buscasse, na sua agitação e no seu paroxismo, alguém a fim de exercitar a língua.
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Leia também:
Dostoiévski - O Idiota: Primeira Parte 1b. Parecia estar ainda doente...
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Resenha com spolier
O Idiota, Episódio 1
- 2003 (Legendado)
Dostoiévski é considerado o maior escritor russo de seu tempo. É autor de várias obras-primas. O Idiota começou a ser redigido em 14 de setembro 1867 em Genebra, Suiça, e foi concluído a 25 de janeiro de 1868, em Florença, Itália. A obra teve uma elaboração difícil e torturada. Em meio às piores dificuldades, foi escrita e reescrita muitas vezes até a redação definitiva. A obra foi inspirada na figura de Dom Quixote, de Cervantes. O Idiota é, talvez, o romance mais típico de Dostoiévski, provocou perplexidade nos meios intelectuais da época. a obra foi elogiada por Tolstoi, que a achou de grande força dramática e beleza literária. Michkin foi, antes de tudo, o último "homem", o último "ser humano" da Literatura Universal. O primeiro foi Dom Quixote (aliás mencionado no livro). O que Dostoiévski fez foi mostrar à Rússia a dissolução da própria fé e da esperança na bondade universal e prepará-la para chegada dos "Demônios"
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