sexta-feira, 14 de outubro de 2011

IV - Contos Africanos


Zito Makoa, da 4ª classe


Luandino Vieira


Na mesma hora em que a professora chegou, já tinham-lhes separado. Mesmo assim arrancou para o meio dos miúdos e pôs duas chapadas na cara do Zito. O barulho das mãos na cara gordinha do monandengue[1] calou a boca de todos e mesmo o Fefo, conhecido pelo riso de hiena, ficou quietinho que nem um rato.

— Miúdos ordinários, desordeiros! Quem começou? — e a fala irritada da mulher cambuta[2] e gorda fazia-lhe ainda tremer os óculos na ponta do nariz.

Ninguém que se acusou. Ficaram mesmo com os olhos no chão da aula, fungando e espiando os riscos que os sapatos tinham desenhado no cimento durante a confusão. Raivosa, a professora deu um puxão na manga de Zito e gritou-lhe:

— Desordeiros, malcriados! És sempre tu que arranjas complicações!

— É ele mesmo! — e essa acusação do Bino obrigou toda a gente a gritar, apontando-lhe, sacudindo o medo de respeito que a professora trazia quando chegava.

— Foi ele, sô pessora! Escreveu coisas...

— É bandido. O irmão é terrorista!

E os gritos, os insultos escondidos, apertaram-se à volta de Zito Makoa enquanto a professora sacudia com força o braço, para ele confessar mesmo. O miúdo, gordinho e baixo, balançava parecia era boneco e não chorava com soluços, só as lágrimas é que corriam na cara arranhada da peleja que tinha passado.

A confusão tinha começado mesmo no princípio da escola queando Chiquito, um miúdo amarelinho como brututo[3] e óculos de arame como era sua mania, xingou Zeca de amigo dos negros, por causa da troca da manhã. É que Zeca e Zito eram amigos de muito tempo, desde a 1ª escola era a mesma e os dois gostava sair nas aulas para caçar os pássaros nas barrocas das Florestas, antes de Zito makoa, que estava morar no Rangel, ficar no largo da estátua, esperando a carrinha da borla[4] do sô Aníbal, naquela hora das seis quando o povo saíam no serviço.

Sempre trocavam suas coisas, lanche do Zeca era para o Zito e doces de jinguba[5] ou quicuérra[6] do Zito era para Zeca. Um dia mesmo, na 3ª, quando Zito adiantou trazer uma rã pequena, caçada nas águas das chuvas na frente da cubata[7] dele, o Zeca, satisfeito, no outro dia lhe deu um bocado de fazenda que tirou no pai. Eram esses calções que Zito vestia nessa manhã quando chegou no amigo para lhe contar os tiros no musseque[8] e corrigir ainda os deveres, mania antiga.

— Sente, Zeca! Te trouxe três balas!

Zeca silva olhou à volta desconfiado como ele não tinha, e riu depois:

— Vamos ainda na casa de banho. Se esses sacristas vão ver, começam com as manias deles!

Aí mesmo é que Bino espiou. Da janela, como tinha a mania, e até costumava espreitar a professora e tudo. Viu Zito mostrar as três balas vazias, amarelas, a brilhar na palma da mão dele cor-de-rosa, e Zeca Silva — esse amigo dos negros, sem-vergonha! — desembrulhar ainda com cuidado, o carrinho de linhas caqui.

Toda a miudagem foi avisada, esse velho truque do bilhetinho passou na sala e assim que a campainha do recreio gritou, na confusão da brincadeira da saída atrás da professora, Bino pôs logo um soco nas costas de Zito.

— Possa, negro! Não vês os pés dos outros?

Era mentira ainda, Zito estava na frente, não podia lhe pisar. Isso mesmo refilou o Zeca logo, adiantando no meio dos dois. E aí Zito sorriu seu sorriso gordo e tirou o amigo.

— Deixa só, Zeca! Esse gajo anda-me procurar ainda. Chegou a hora!

Riu Bino, riu de cima da sua estatura de mais velho e arreganhou-lhe:

— O quê? Queres pelejar? Ponho-te branco!

E todos os miúdos seguiram atrás deles, os mais atrevidos satisfeitos com as partes do bino, pondo rasteiras para Zito cair, mas o rapaz ria sempre. Cagunfas[9], ele não era, mesmo que o Bino era mais velho e mais alto não fazia mal. Sempre pelejava lá em cima com os outros monandengues nas areias vermelhas do musseque onde estava morar e por isso mesmo lhe adiantaram chamar de Makoa: curtinho e gordo, mas, força como ele, só esse peixe no anzol.

Foi ele que pôs a primeira bassula[10] no Bino e atacou-lhe logo um gapse[11] mesmo no pescoço, mas os outros amigos do miúdo — eram três — quando viram, saltaram em cima do Zito e surraram-lhe socos, pontapés e tudo e mesmo os outros que estavam de fora não quiseram desapartar, falavam era mesmo bem-feito, esse miúdo tinha o irmão terrorista, todos sabiam, e o melhor era partir-lhe a cara dessa vez para não abusar.

E nessa hora que lhe apontaram com o dedo, mostrava a cara dele chorando das chapadas da professora, não era da dor, não era da raiva desses sacristãs, quatro contra um, mesmo com o Zeca depois a defender-lhe, tinham-lhe machucado no lábio e no nariz e ainda por cima punham mentiras na professora.

— Verdade, sô pessora! Eu vi o papel!

— Não sei o que ele escreveu, mas ele e o Zeca Silva têm a mania de escrever essas coisas que não nos deixam ler.

A professora virou-se depressa, balançando gorduras, e chamou:

— Zeca Silva!

O berro encheu a sala e o miúdo levantou da carteira onde estava esquivado desde o principio da conversa. A mão dele, rápida, amachucou um papel pequeno.

— Vem cá, malandro. Tenho que me queixar ao teu pai, para ele saber a prenda que tem. Anda cá, aproxima-te!

Zeca veio devagar, enxotando o cabelo dos olhos, guardando a mão no bolso. Os outros cercaram-lhe à volta da professora cambuta e Bino aproveitou para dar-lhe ainda um empurrão. No meio daqueles miúdos todos, arranhados e despenteados, ficou o Zeca com os olhos pousados no chão, o Zito Makoa chorando de raiva e a professora.

— Mostra já o bilhete que escreveram. Depressa!

— Não escrevemos bilhete nenhum...

— É mentira, é mentira, a gente viu! — as falas pareciam gritos de corvos à volta do monte de lixo.

— O bilhete, depressa! — e afastou-se para tirar o ponteiro.

Sucedeu um mexer rápido, a roda ficou mais grande à volta dos miúdos e a primeira ponteirada bateu certinha, como era técnica da professora, na orelha do Zeca, mas ele não falou ainda.

— O bilhete, uma! O bilhete, duas!...

E as ponteiradas continuaram a bater-lhe na cabeça e no ombro. Foi aí que Zito makoa se pôs na frente e levou a quarta pancada.

— Dá ainda, Zeca. Não importa.

Desta vez Zito caiu com o puxão da professora, mas levantou logo. O bilhete já — saía no bolso do amigo e a cambuta lia, encarnada, encarnada parecia era pau de tacula[12], para perguntar no fim com voz diferente:

— Quem escreveu isto? Foste tu, negro?

Zito nem teve tempo de se defender. As chapadas choveram de toda parte e, quando a professora acabou, levou-lhe, pelas orelhas, no gabinete do diretor da escola. Atrás de Zito chorando, os outros miúdos acompanharam-lhe, uns com cara de maus, outros satisfeitos daquela surra.


— Ah, não! Vadios na escola, não! Malandros, vadios de musseque! Se já viu esta falta de respeito! Negros! Todos iguais, todos iguais...

A voz irritada da professora sentia-se cá fora, o Zeca silva chorava a dor do amigo num canto da varanda, não sabia mesmo o que ia fazer para lhe ajudar naquela hora. Não gostava mentir, essa coisa de aldrabice nunca que fazia, a mãe sempre lhe gabava por isso mesmo, menino leal não falava nunca as mentiras, aquilo que ele fazia, tanto faz é bem, tanto faz é mal, ele acusava, e agora, naquela hora era melhor mesmo mentir, era ainda a maneira de o amigo levar menos, não lhe correrem da escola. Por isso é que tinha dado aquele outro bilhete, ele é que tinha-lhe escrito depressa, aproveitando a confusão.

Era o Zito mesmo que estava levar com as palmatoadas do diretor, se ouvia, cá fora, o barulho, mas nem um grito, nem um soluço mais, só as falas zangadas e raivosas da professora cambuta, chamando-lhe de negro malandro, mostrando o bilhete que ele, Zeca Silva, escrevera ela tinha pernas gordas, para salvar o amigo da escola, o amigo das brincadeiras e de trocar coisas.

O recreio estava acabar, o contínuo ia já tocar a campainha. Zeca Silva pensou então que não podia deixar o Zito sozinho, fechado no quarto do diretor, sem ninguém, abandonado com as dores, o melhor era mesmo fugir na escola.

No jardim da frente tinha pardais a cantar nos paus e, nessa hora das onze, um sol bonito e quente brincava às sombras com as folhas e as paredes. Trepado num vaso alto, Zeca silva, o coração a bater de alegria parecia ia lhe saltar do peito, empurrou a janela de vidro do quarto do diretor e chamou:

— Zito!

O amigo veio devagar, desconfiado e medroso, mas, quando viu era ainda a cara do Zeca a espreitar, quis pôr um riso no meio do choro calado, mas não conseguiu. Desatou mesmo a chorar com toda vontade.

— Zito, deixa, não chores. O bilhete está aqui, o nosso bilhete está aqui. Ela não lhe apanhou. Aquele era outro.

Desamarrotando uma bolinha de papel, mostrou no amigo o pequeno bocado do caderno de uma linha, onde a letra gorda e torta dele, Zito Makoa tinha escrito durante a lição “ANGOLA É DOS ANGOLANOS”.

Devagar, trepando na cadeira, sem barulho, recebeu o bilhete, guardou-lhe bem no calção e pôs outra vez na mão do amigo as três balas vazias, que luziram amarelas na pele cor-de-rosa de Zeca Silva.

Mirando o amigo afastar-se com depressa no passo dele, pequeno, de pardal, Zito Makoa deixou correr as lágrimas no meio do riso grande que lhe enchia no coração e engoliu, atrapalhado, o ranho que corria do nariz e lhe deixou na boca um bom gosto de mel.





Luandino Vieira nasceu em 1935, em Portugal. Ainda criança, José Luandino Vieira mudou-se para Angola, onde lutou pela independência. Foi preso diversas vezes e, na prisão, produziu grande parte de sua obra. Comparado a mestres da palavra como Guimarães Rosa, em suas histórias Luandino recria a linguagem e mescla lirismo à denúncia social. No Brasil, foram publicados seus livros de contos Luanda e A cidade e a infância.

Contos africanos dos países de língua portuguesa / Albertino Bragança...[et al.]; organizadora Rita Chaves; ilustrador Apo Fousek – 1ª ed – São Paulo: Ática. 2009. il. – (Para gostar de ler: 44)





[1] Criança (N.E.)
[2] Pessoa de pequena estatura (N.E.)
[3] Raiz amarelada de um arbusto de mesmo nome, que tem propriedades medicinais. (N.E.)
[4] Carona. (N.E.)
[5] Amendoim. (N.E.)
[6] Doce feito de farinha de mandioca e açúcar, muito popular entre as crianças angolanas. (N.E.)
[7] Casa de construção precária, barraco. (N.E.)
[8] Designação dada aos bairros periféricos de Luanda por estarem, geralmente, instalados sobre solos arenosos (em quimbundo, mu, “onde”, seke, “areia”). (N.E.)
[9] Medroso. (N.E.)
[10] Rasteira. (N.E.)
[11] Golpe de luta. (N.E.)
[12] Árvore nativa de Angola, cuja madeira vermelha é muito utilizada na marcenaria. (N.E.)

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