sábado, 16 de maio de 2020

D. Quixote - Cervantes Vol 1 - Prólogo

D. Quixote de la Mancha


Miguel de Cervantes

Vol 1



O Engenhoso Fidalgo 
D. Quixote de la Mancha 

Miguel de Cervantes

TAXA 


Eu, João Gallo de Andrada, escrivão de câmara do Rei nosso senhor, dos que residem em seu Conselho, certifico e dou fé que, tendo visto pelos senhores dele um livro intitulado O engenhoso fidalgo da Mancha, composto por Miguel de Cervantes Saavedra, taxaram cada caderno do dito livro em três maravedis e meio: o qual tem oitenta e três cadernos, que, ao dito preço, monta o dito livro a duzentos e noventa maravedis e meio, em que se há de vender em papel, e deram licença para que a este preço se possa vender, e mandaram que esta taxa se ponha no começo do dito livro, e não se possa vender sem ela. E, para que dele conste, dei a presente, em Valladolid, aos vinte dias do mês de dezembro de mil e seiscentos e quatro anos. 

Juan Galli de Andrada


Testemunho das Erratas


Este livro não tem coisa digna que não corresponda ao seu original; em testemunho de o haver corrigido, dei esta fé. No Colégio da Mãe de Deus dos teólogos da Universidade de Alcalá, em primeiro de dezembro de mil e seiscentos e quatro anos.

O licenciado 

Francisco Murcia de la Llana.



O Rei

Porquanto por parte de vós, Miguel de Cervantes, nos foi relatado que havíeis composto um livro intitulado O engenhoso fidalgo da Mancha, o qual vos havia custado muito trabalho, e era mui útil e proveitoso, nos pedistes e suplicastes vos mandássemos dar licença e faculdade para o poder imprimir, e privilégio pelo tempo que fôssemos servidos, ou como a nossa mercê fosse; o qual visto pelos do nosso Conselho, porquanto no dito livro se fizeram as diligências que a premática ultimamente por nós feita sobre a impressão dos livros dispõe, foi acordado que devíamos mandar dar esta nossa cédula para vós, na dita razão, e nós a tivemos por bem; pelo qual, por vos fazer bem e mercê, vos damos licença e faculdade para que vós ou a pessoa que vosso poder tiver, e não alguma outra, possais imprimir o dito livro, intitulado O engenhoso fidalgo da Mancha, já mencionado, em todos estes nossos reinos de Costela, por tempo e espaço de dez anos, que corram e se contem desde o dito dia da data desta nossa cédula, sob pena que a pessoa ou pessoas que, sem ter vosso poder, o imprimir ou vender, ou fizer imprimir ou vender, pelo mesmo caso perca a impressão que fizer, com os moldes e aparelhos dela, e mais, incorra em pena de cinqüenta mil maravedis cada vez que o contrário fizer. A qual dita pena seja a terça parte para a pessoa que o acusar, e a outra terça parte para nossa Câmara, e a outra terça parte para o juiz que o sentenciar. Contanto que todas as vezes que houverdes de fazer imprimir o dito livro, durante o tempo dos ditos dez anos, o tragais ao nosso Conselho, juntamente com o original que nele foi visto, que vai rubricado em cada lauda e firmado ao fim dele por João Gallo de Andrada, nosso Escrivão de Câmara, dos que nele residem, para saber se a dita impressão está conforme o original, ou tragais fé em pública forma de como por corretor nomeado por nosso mandado, se viu e corrigiu a dita impressão pelo original, e se imprimiu conforme a ele, e ficam impressas as erratas por ele apontadas, para cada um livro dos que assim forem impressos, para que se taxe o preço que por cada volume tiverdes de haver. E mandamos ao impressor que assim imprimir o dito livro, não imprima o princípio nem o primeiro caderno dele, nem entregue mais de um só livro com o original ao autor, ou pessoa a cuja custa o imprimir, nem outro algum, para efeito da dita correção e taxa, até que antes e primeiro o dito livro esteja corrigido e taxado pelos do nosso Conselho; e estando feito, e não de outra maneira, possa imprimir o dito princípio e primeiro caderno, e sucessivamente ponha esta nossa cédula e a aprovação, taxa e erratas, sob pena de cair e incorrer nas penas contidas nas leis e premáticas destes nossos reinos. E mandamos aos do nosso Conselho e a outras quaisquer justiças deles, guardem e cumpram esta nossa cédula e o nela contido. Feita em Valladolid, aos vinte e seis dias do mês de setembro de mil e seiscentos e quatro anos.


EU, O REI. 
Por mandado del Rei nosso senhor: 
Juan de Amezqueta.




Ao Duque De Béjar, 
marquês de Gibraleón, conde de Benalcázar e Banhares, visconde do Povoado de Alcocer, senhor das vilas de Capilha, Curiel e Burguilhos 


Em fé do bom acolhimento e honra que faz Vossa Excelência a toda sorte de livros, como príncipe tão inclinado a favorecer as boas artes, maiormente as que por sua nobreza não se abatem ao serviço e louvores do vulgo, determinei tirar à luz ao Engenhoso fidalgo Dom Quixote da Mancha, ao abrigo do claríssimo nome de Vossa Excelência, a quem, com o acatamento que devo a tanta grandeza, suplico o receba agradavelmente em sua proteção, para que à sua sombra, ainda que desnudo daquele precioso ornamento de elegância e erudição de que soem andar vestidas as obras que se compõem nas casas dos homens que sabem, ouse parecer seguramente no juízo de alguns que, contendo-se nos limites de sua ignorância, costumam condenar com mais rigor e menos justiça os trabalhos alheios; que, pondo os olhos a prudência de Vossa Excelência em meu bom desejo, fio em que não desdenhará a cortesia de tão humilde serviço.

Miguel de Cervantes Saavedra.



Prólogo


DESOCUPADO LEITOR: Não preciso de prestar aqui um juramento para que creias que com toda a minha vontade quisera que este livro, como filho do entendimento, fosse o mais formoso, o mais galhardo, e discreto que se pudesse imaginar: porém não esteve na minha mão contravir à ordem da natureza, na qual cada coisa gera outra que lhe seja semelhante; que podia portanto o meu engenho, estéril e mal cultivado, produzir neste mundo, senão a história de um filho magro, seco e enrugado, caprichoso e cheio de pensamentos vários, e nunca imaginados de outra alguma pessoa? Bem como quem foi gerado em um cárcere onde toda a incomodidade tem seu assento, e onde todo o triste ruído faz a sua habitação! O descanso, o lugar aprazível, a amenidade dos campos, a serenidade dos céus, o murmurar das fontes, e a tranqüilidade do espírito entram sempre em grande parte, quando as musas estéreis se mostram fecundas, e oferecem ao mundo partos, que o enchem de admiração e de contentamento. 

Acontece muitas vezes ter um pai um filho feio e extremamente desengraçado, mas o amor paternal lhe põe uma peneira nos olhos para que não veja estas enormidades, antes as julga como discrições e lindezas, e está sempre a contá-las aos seus amigos, como agudezas e donaires. 

Porém eu, que, ainda que pareço pai, não sou contudo senão padrasto de D. Quixote, não quero deixar-me ir com a corrente do uso, nem pedir-te, quase com as lágrimas nos olhos, como por aí fazem muitos, que tu, leitor caríssimo, me perdoes ou desculpes as faltas que encontrares e descobrires neste meu filho; e porque não és seu parente nem seu amigo, e tens a tua alma no teu corpo, e a tua liberdade de julgar muito à larga e a teu gosto, e estás em tua casa, onde és senhor dela como el-rei das suas alcavalas, e sabes o que comumente se diz que debaixo do meu manto ao rei mato (o que tudo te isenta de todo o respeito e obrigação) podes do mesmo modo dizer desta história tudo quanto te lembrar sem teres medo de que te caluniem pelo mal, nem te premeiem pelo bem que dela disseres. 

O que eu somente muito desejava era dar-ta mondada e despida, sem os ornatos de prólogo nem do inumerável catálogo dos costumados sonetos, epigramas, e elogios, que no princípio dos livros por aí é uso pôr-se; pois não tenho remédio senão dizer-te que, apesar de me haver custado algum trabalho a composição desta história, foi contudo o maior de todos fazer esta prefação, que vais agora lendo. 

Muitas vezes peguei na pena para escrevê-la, e muitas a tornei a largar por não saber o que escreveria; e estando em uma das ditas vezes suspenso, com o papel diante de mim, a pena engastada na orelha, o cotovelo sobre a banca, e a mão debaixo do queixo, pensando no que diria, entrou por acaso um meu amigo, homem bem entendido, e espirituoso, o qual, vendo-me tão imaginativo, me perguntou a causa, e eu, não lha encobrindo, lhe disse que estava pensando no prólogo que havia de fazer para a história do D. Quixote, e que me via tão atrapalhado e aflito com este empenho, que nem queria fazer tal prólogo, nem dar à luz as façanhas de um tão nobre cavaleiro: Porque como quereis vós que me não encha de confusão o antigo legislador, chamado Vulgo, quando ele vir que no cabo de tantos anos, como há que durmo no silêncio do esquecimento, me saio agora, tendo já tão grande carga de anos às costas, com uma legenda seca como as palhas, falta de invenção, minguada de estilo, pobre de conceitos, e alheia a toda a erudição e doutrina, sem notas às margens, nem comentários no fim do livro, como vejo que estão por aí muitos outros livros (ainda que sejam fabulosos e profanos) tão cheios de sentenças de Aristóteles, de Platão, e de toda a caterva de filósofos que levam a admiração ao ânimo dos leitores, e fazem que estes julguem os autores dos tais livros como homens lidos, eruditos, e eloquentes? Pois que, quando citam a Divina Escritura, se dirá que são uns Santos Tomases, e outros doutores da Igreja, guardando nisto um decoro tão engenhoso, que em uma linha pintam um namorado distraído, e em outra fazem um sermãozinho tão cristão, que é mesmo um regalo lê-lo ou ouvi-lo. 

De tudo isto há-de carecer o meu livro, porque nem tenho que notar nele à margem, nem que comentar no fim, e ainda menos sei os autores que sigo nele para pô-los em um catálogo pelas letras do alfabeto, como se usa, começando em Aristóteles, e acabando em Xenofonte, em Zoilo ou em Zeuxis, ainda que foi maldizente um destes e pintor o outro. 

Também há-de o meu livro carecer de sonetos no princípio, pelo menos de sonetos cujos autores sejam duques, marqueses, condes, bispos, damas, ou poetas celebérrimos, bem que se eu os pedisse a dois ou três amigos meus que entendem da matéria, sei que nos dariam tais, que não os igualassem os daqueles que têm mais nome na nossa Espanha. Enfim, meu bom e querido amigo, continuei eu, tenho assentado comigo em que o senhor D. Quixote continue a jazer sepultado nos arquivos da Mancha até que o céu lhe depare pessoa competente que o adorne de todas estas coisas que lhe faltam, porque eu me sinto incapaz de remediá-las em razão das minhas poucas letras e natural insuficiência, e, ainda de mais a mais, porque sou muito preguiçoso e custa-me muito a andar procurando autores que me digam aquilo que eu muito bem me sei dizer sem eles. Daqui nasce o embaraço e suspensão em que me achastes submerso: bastante causa me parece ser esta que tendes ouvido para produzir em mim os efeitos que presenciais. 

Quando o meu amigo acabou de ouvir tudo o que eu lhe disse, deu uma grande palmada na testa, e em seguida, depois de uma longa e estrondosa gargalhada, me respondeu: 

“Por Deus, meu amigo, que ainda agora acabo de sair de um engano em que tenho estado desde todo o muito tempo em que vos hei conhecido, no qual sempre vos julguei homem discreto e prudente em todas as vossas ações; agora, porém, conheço o erro em que caí e o quanto estais longe de serdes o que eu pensava, que me parece ser maior a distância do que é do céu à terra. Como?! Pois é possível que coisas, de tão insignificante importância e tão fáceis de remediar, possam ter força de confundir e suspender um engenho tão maduro como o vosso, e tão afeito a romper e passar triunfantemente por cima de outras dificuldades muito maiores? À fé que isto não vem de falta de habilidade, mas sim de sobejo de preguiça e penúria de reflexão. Quereis convencer-vos da verdade que vos digo? Estai atento ao que vou dizer-vos, e em um abrir e fechar de olhos achareis desfeitas e destruídas todas as vossas dificuldades, e remediadas todas as faltas que vos assustam e acobardam para deixardes de apresentar à luz do mundo a história do vosso famoso D. Quixote, espelho e brilho de toda a cavalaria andante.” 

Aqui lhe atalhei eu com a seguinte pergunta: 

“Dizei-me: qual é o modo por que pensais que hei-de encher o vazio do meu temor, e trazer a lúcida claridade ao escuro caos da minha confusão?” 

A isto me replicou ele: 

“O reparo que fazeis sobre os tais sonetos, epigramas e elogios que faltam para o princípio do vosso livro, e que sejam de personagens graves e de Título, se pode remediar, uma vez que vós mesmo queirais ter o trabalho de os compor, e depois batizá-los, pondo-lhes o nome da pessoa que for mais do vosso agrado, podendo mesmo atribuí-los ao Prestes João das Índias, ou ao imperador de Trapizonda, dos quais eu por notícias certas sei que foram famosos poetas; mas, ainda quando isto seja patranha e não o tenham sido, e apareçam porventura alguns pedantes palradores, que vos mordam por detrás, e murmurem desta peta, não se vos dê dez réis de mel coado desses falatórios, porque, ainda quando averiguem a vossa velhacaria a respeito da paternidade dos tais versos, nem por isso vos hão-de cortar a mão com que os escrevestes. 

“Enquanto ao negócio de citar nas margens do livro os nomes dos autores, dos quais vos aproveitardes para inserirdes na vossa história os seus ditos e sentenças, não tendes mais que arranjar-vos de maneira que venham a ponto algumas dessas sentenças, as quais vós saibais de memória, ou pelo menos que vos dê o procurá-las muito pouco trabalho, como será, tratando por exemplo de liberdade e escravidão, citar a seguinte: 

Non bene pro toto libertas venditur auro

e logo à margem citar Horácio, ou quem foi que o disse. Se tratardes do poder da morte, acudi logo com: 

Pallida mors aequo pulsat pede pauperum tabernas 
Regumque turres

Se da amizade e amor que Deus manda ter para com os inimigos, entrai-vos logo sem demora pela Escritura Divina, o que podeis fazer com uma pouca de curiosidade, e dizer depois as palavras pelo menos do próprio Deus: Ego autem dico vobis: Diligite inimicos vostros. Se tratardes de maus pensamentos, vinde com o Evangelho, quando este diz: De corde exeunt cogitationes malae; se da instabilidade dos amigos, aí está Catão que vos dará o seu dístico: 

Donec eris felix, multos numerabis amicos 
Tempora si fuerint nubila, solus eris. 

Com estes latins, e com outros que tais, vos terão, sequer por gramático, que já o sê-lo não é pouco honroso, e às vezes também proveitoso nos tempos de agora. 

“Pelo que toca a fazer anotações ou comentários no fim do livro, podeis fazê-los com segurança da maneira seguinte: Se nomeardes no vosso livro algum gigante, não vos esqueçais de que este seja o gigante Golias, e somente com este nome, que vos custará muito pouco a escrever, tendes já um grande comentário a fazer, porque podeis dizer, pouco mais ou menos, isto: “O gigante Golias, ou Goliath, foi um Filisteu, a quem o pastor David matou com uma grande pedrada que lhe deu no vale de Terebinto, segundo se conta no livro dos Reis, no capítulo onde achardes que esta história se acha escrita.” Em seguida a esta anotação, para mostrar-vos homem erudito em letras humanas e ao mesmo tempo um bom cosmógrafo, fazei de modo que no livro se comemore o rio Tejo, e vireis logo com um magnífico comentário, dizendo: “O rio Tejo foi assim chamado em memória de um antigo rei das Espanhas; tem o seu nascimento em tal lugar e vai morrer no mar Oceano, beijando os muros da famosa cidade de Lisboa, e é opinião de muita gente que traz areias de ouro, etc.” Se tratardes de ladrões, dar-vos-ei a história de Caco, a qual eu sei de cor; se de mulheres namoradeiras, aí está o bispo de Mondonedo que vos emprestará Lâmia, Laís e Flora, cujo comentário vos granjeará grande crédito; se de mulheres cruéis, Ovídio porá Medeia à vossa disposição; se de feiticeiras e encantadoras, lá tendes Calipso em Homero, e Circe em Virgílio; se de capitães valerosos, Júlio César se vos dá a si próprio nos seus Comentários, e Plutarco vos dará mil Alexandres; se vos meterdes em negócios de amores, com uma casca de alhos que saibais da língua toscana topareis em Leão Hebreu, que vos encherá as medidas: e se não quereis viajar por terras estranhas, em vossa casa achareis Fonseca e seu Amor de Deus, no qual se cifra tudo quanto vós e qualquer dos mais engenhosos escritores possa acertar a dizer em tal matéria. Em conclusão, nada mais há senão que vós procureis meter no livro estes nomes, ou tocar nele estas histórias, que vos apontei, e depois deixai ao meu cuidado o pôr as notas marginais, e as anotações e comentários finais, e vos dou a minha palavra de honra de vos atestar as margens de notas, e de apensar ao fim do livro uma resina de papel toda cheia de comentários. 

“Vamos agora à citação dos autores que por aí costumam trazer os outros livros, mas que faltam no vosso. O remédio desta míngua é muito fácil, porque nada mais tendes a fazer do que pegar em um catálogo, que contenha todos os autores conhecidos por ordem alfabética, como há pouco dissestes; depois pegareis nesse mesmo catálogo e o inserireis no vosso livro, porque, apesar de ficar a mentira totalmente calva por não terdes necessidade de incomodar a tanta gente, isso pouco importa, e porventura encontrareis leitores tão bons e tão ingênuos que acreditem na verdade do vosso catálogo, e se persuadam de que a vossa história, tão simples e tão singela, todavia precisava muito daquelas imensas citações: e quando não sirva isto de outra coisa, servirá contudo por certo de dar ao vosso livro uma grande autoridade; além de que ninguém quererá dar-se ao trabalho de averiguar se todos aqueles autores foram consultados e seguidos por vós ou não o foram, porque daí não tira proveito algum, e de mais a mais, se me não iludo, este vosso livro não carece de alguma dessas coisas que dizeis lhe falta, pois todo ele é uma invectiva contra os livros de cavalarias, dos quais nunca se lembrou Aristóteles nem vieram à ideia de Cícero, e mesmo S. Basílio guardou profundo silêncio a respeito deles. O livro que escreveis há-de conter disparates fabulosos, com os quais nada têm que ver as pontualidades da verdade, nem as observações da astrologia, nem lhe servem de coisa alguma as medidas geométricas, nem a confutação dos argumentos usados pela retórica, nem tem necessidade de fazer sermões aos leitores misturando o humano com o divino, mistura esta que não deve sair de algum cristão entendimento. No vosso livro o que muito convém é uma feliz imitação dos bons modelos, a qual, quanto mais perfeita for, tanto melhor será o que se escrever: e pois que a vossa escritura tem por único fim desfazer a autoridade que por esse mundo e entre o vulgo ganharam os livros de cavalarias, não careceis de andar mendigando sentenças de filósofos, conselhos da Divina Escritura, fábulas de poetas, orações de retóricos, e milagres de santos; o de que precisais é de procurar que a vossa história se apresente em público escrita em estilo significativo, com palavras honestas e bem colocadas, sonoras e festivas em grande abastança, pintando em tudo quanto for possível a vossa intenção, fazendo entender os vossos conceitos sem os tornar intrincados, nem obscuros. Procurai também que, quando ler o vosso livro, o melancólico se alegre e solte uma risada, que o risonho quase endoideça de prazer, o simples se não enfade, o discreto se admire da vossa invenção, o grave a não despreze, nem o prudente deixe de gabá-la. Finalmente, tende sempre posta a mira em derribar a mal fundada máquina destes cavaleirescos livros aborrecidos de muita gente, e louvados e queridos de muita mais. Se conseguirdes fazer quanto vos digo, não tereis feito pouco.” 

Com grande silêncio estive eu escutando o que o meu amigo me dizia, e com tal força se imprimiram em mim as suas razões, que sem mais discussão alguma as aprovei por boas, e delas mesmas quis compor este prólogo: aqui verás, leitor suave, a discrição do meu amigo, a minha boa ventura de encontrar um tal conselheiro em tempo de tão apertada necessidade, e a tua consolação em poderes ler a história tão sincera e tão verdadeira do famoso D. Quixote de la Mancha, do qual a opinião mais geral dos habitantes do Campo de Montiel é haver sido o mais casto enamorado, e o mais valente cavaleiro que desde muitos anos a esta parte apareceu por aqueles sítios. Não quero encarecer-te o serviço que te presto em dar-te a conhecer tão honrado e notável cavaleiro; mas sempre quero que me agradeças o conhecimento que virás a ter do grande Sancho Pança, seu escudeiro, no qual, segundo o meu parecer, te dou enfeixadas todas as graças escudeirais que pela caterva dos livros ocos de cavalarias se encontram espalhadas e dispersas. E com isto Deus te dê saúde, e se não esqueça de mim. 


Vale

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Leia também:

D. Quixote - Cervantes Vol 1 - Ao Livro de D. Quixote de la Mancha


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Literatura Universal - Dom Quixote de La Mancha
- Maria Augusta da Costa Vieira









D. QUIXOTE 
VOL. I 
Cervantes 
D. Quixote de La Mancha — Primeira Parte 
(1605) 
Miguel de Cervantes [Saavedra] 
(1547-1616)
Tradução: 
Francisco Lopes de Azevedo Velho de Fonseca Barbosa Pinheiro Pereira e Sá Coelho (1809- 1876) Conde de Azevedo 
Antônio Feliciano de Castilho (1800-1875) 
Visconde de Castilho
Edição 
eBooksBrasil www.ebooksbrasil.com 
Versão para eBook 
eBooksBrasil.com 

Fonte Digital 
Digitalização da edição em papel de Clássicos Jackson, Vol. VIII Inclusões das partes faltantes confrontadas com a edição em espanhol da eBooksBrasil.com 
(1999, 2005)
Copyright 
Autor: 1605, 2005 Miguel de Cervantes 
Tradução Francisco Lopes de Azevedo Velho de Fonseca Barbosa Pinheiro Pereira e Sá Coelho 
António Feliciano de Castilho 
Capa: Honoré-Victorin Daumier (1808-1879) 
Retrato de Cervantes: Eduardo Balaca (1840-1914) 
Edição: 2005 eBooksBrasil.com


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ÍNDICE
Nota do Editor 
D. Quixote (em comemoração de seu quarto centenário) 
Teotonio Simões 
D. Quixote (em comemoração de seu terceiro centenário) 
Rudolf Rocker 
D. QUIXOTE 
Taxa 
Testemunho das Erratas 
O Rei 
Ao Duque de Béjar 
PRÓLOGO 
AO LIVRO DE D. QUIXOTE DE LA MANCHA 
Urganda a desconhecida 
Amadis de Gaula a D. Quixote de la Mancha 
D. Belianis de Grécia a D. Quixote de la Mancha 
A Senhora Oriana a Dulcinéia del Toboso 
Gandalim, escudeiro de Amadis de Gaula, a Sancho Pança, escudeiro de D. Quixote 
Do Donoso, Poeta Entreverado, a Sancho Pança e Rocinante 
Orlando Furioso a D. Quixote de la Mancha 
O Cavaleiro do Febo a D. Quixote de la Mancha 
De Solisdão a D. Quixote de la Mancha 
Diálogo entre Babieca e Rocinante 
D. Quixote de la Mancha: 
Capítulo I 
Que trata da condição e exercício do famoso fidalgo D. Quixote de La Mancha. 
Capítulo II 
Que trata da primeira saída que de sua terra fez o engenhoso D. Quixote. 
Capítulo III 
No qual se conta a graciosa maneira que teve D. Quixote em armar-se cavaleiro. 
Capítulo IV 
Do que sucedeu ao nosso cavaleiro saindo da venda. 
Capítulo V 
Em que se prossegue a narrativa da desgraça do nosso cavaleiro. 
Capítulo VI 
Da curiosa e grande escolha que o padre cura e o barbeiro fizeram na livraria do nosso engenhoso fidalgo. 
Capítulo VII 
Da segunda saída do nosso bom cavaleiro D. Quixote de la Mancha. 
Capítulo VIII 
Do bom sucesso que teve o valoroso D. Quixote na espantosa e jamais imaginada aventura dos moinhos de vento, com outros sucessos dignos de feliz recordação. 
Capítulo IX 
Em que se conclui a estupenda batalha que o galhardo biscaínho e o valente manchego tiveram. Capítulo X 
Graciosas práticas entre D. Quixote e seu escudeiro Sancho Pança. 
Capítulo XI 
Do que a D. Quixote sucedeu com uns cabreiros. 
Capítulo XII 
Do que referiu um cabreiro aos que estavam com D. Quixote. 
Capítulo XIII 
Em que se dá fim ao caso da pastora Marcela, com outros sucessos. 
Capítulo XIV 
Onde se põem os versos desesperados do pastor defunto, com outros imprevistos sucessos. 
Capítulo XV 
Em que se conta a desgraçada aventura, que a D. Quixote ocorreu com uns desalmados iangueses. Capítulo XVI 
Do que sucedeu ao engenhoso fidalgo na venda que ele imaginava ser castelo. 
Capítulo XVII 
Em que se prosseguem os inumeráveis trabalhos, que o bravo D. Quixote e seu escudeiro Sancho Pança passaram na venda, que o fidalgo por seu mal cuidara ser castelo. 
Capítulo XVIII 
Onde se contam as razões que passou Sancho Pança com seu senhor D. Quixote com outras aventuras dignas de ser contadas. 
Capítulo XIX 
Das discretas razões que Sancho passava com o amo e da aventura que lhes sucedeu com um defunto, e outros acontecimentos famosos. 
Capítulo XX 
Da nunca vista nem ouvida aventura que jamais cavaleiro algum famoso no mundo acabou, e a concluiu, quase sem perigo, D. Quixote de la Mancha. 
Capítulo XXI 
Que trata da alta aventura e preciosa ganância do elmo de Mambrino, com outras coisas sucedidas ao nosso invencível cavaleiro. 
Capítulo XXII 
Da liberdade que D. Quixote deu a muitos desafortunados, que iam levados contra sua vontade onde eles por si não quereriam ir. 
Capítulo XXIII 
Do que ao famoso D. Quixote sucedeu em Serra Morena, que foi uma das mais raras aventuras coutadas nesta verdadeira história. 
Capítulo XXIV 
Em que se prossegue a aventura da Serra Morena. 
Capítulo XXV 
Que trata das estranhas coisas que em Serra Morena sucederam ao valente cavaleiro da Mancha, e da imitação que fez da penitência de Beltenebrós. 
Capítulo XXVI 
Onde se prosseguem as finezas que de enamorado fez D. Quixote em Serra Morena. 
Capítulo XXVII 
De como se houveram o cura e o barbeiro, com outras coisas dignas de ser contadas nesta grande história. 
Capítulo XXVIII 
Que trata da nova e agradável aventura sucedida na mesma serra ao cura e ao barbeiro. 
Capítulo XXIX 
Que trata do gracioso artifício e ordem que se teve em tirar o nosso amorado cavaleiro da muito áspera penitência em que se havia posto. 
Capítulo XXX 
Que trata da discrição da formosa Doroteia, com outras coisas de muito sabor e passatempo. 
Capítulo XXXI 
Das saborosas conversações que houve entre D. Quixote e o seu escudeiro com outros sucessos. 
Capítulo XXXII 
Que trata do que na venda sucedeu a todo o rancho de D. Quixote. 
Capítulo XXXIII 
Onde se conta a novela do curioso impertinente. 
Capítulo XXXIV 
Em que se prossegue a novela do curioso impertinente. 
Capítulo XXXV 
Em que se trata da grande e descomunal batalha que teve D. Quixote com uns odres de vinho tinto, e se dá fim à novela do curioso impertinente. 
Capítulo XXXVI 
Que trata de outros sucessos raros que na taverna sucederam. 
Capítulo XXXVII 
No qual se prossegue com a história da famosa infanta de Micomicão, e de outras graciosas aventuras. 
Capítulo XXXVIII 
Em que se continua o discurso que fez D. Quixote sobre as armas e as letras. 
Capítulo XXXIX 
Onde o cativo conta a sua vida e sucessos dela. 
Capítulo XL 
No qual se conta a história do cativo. 
Capítulo XLI 
No qual o cativo continua a sua história. 
Capítulo XLII 
Em que se trata do mais que sucedeu na estalagem, e de outras coisas dignas de serem conhecidas. 
Capítulo XLIII 
Onde se conta a agradável história do moço das mulas com outros estranhos sucessos acontecidos na venda. 
Capítulo XLIV 
Onde se prosseguem os inauditos sucessos da venda. 
Capítulo XLV 
Onde se acaba de averiguar a dúvida do elmo de Mambrino e da albarba, e de outras aventuras sucedidas com toda a verdade. 
Capítulo XLVI 
Da notável aventura dos quadrilheiros, e da grande ferocidade do nosso bom cavaleiro D. Quixote. Capítulo XLVII 
Do modo estranho como foi encantado D. Quixote de la Mancha, com outros sucessos. 
Capítulo XLVIII 
Onde prossegue o cônego no assunto dos livros de cavalaria, com outras coisas dignas do seu engenho. 
Capítulo XLIX 
Onde se trata do discreto colóquio que Sancho Pança teve com seu amo D. Quixote. Capítulo L 
Das discretas altercações que D. Quixote e o cônego tiveram, com outros sucessos. 
Capítulo LI 
Que trata do que contou o cabreiro a todos os que levavam D. Quixote. 
Capítulo LII 
Da pendência que teve D. Quixote com o cabreiro, com a rara aventura dos penitentes, a que felizmente deu fim à custa do seu suor.



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