domingo, 12 de março de 2017

O Segundo Sexo - 1 Fatos e Mitos: que é uma mulher?

Simone de Beauvoir


1. Fatos e Mitos








a JACQUES BOST

Há um principio bom que criou a ordem, a luz e o homem, e um princípio mau que criou o caos, as trevas e a mulher.

PITÁGORAS


Tudo o que os homens escreveram sobre as mulheres deve ser suspeito, pois eles são, a um tempo, juiz e parte.

POULAIN DE LA BARRE





HESITEI muito tempo em escrever um livro sobre a mulher. O tema é irritante, principalmente para as mulheres. E não é novo. A querela do feminismo deu muito que falar: agora está mais ou menos encerrada. Não toquemos mais nisso. . . No entanto, ainda se fala dela. E não parece que as volumosas tolices que se disseram neste último século tenham realmente esclarecido a questão. Demais, haverá realmente um problema? Em que consiste? Em verdade, haverá mulher? Sem dúvida, a teoria do eterno feminino ainda tem adeptos; cochicham: "Até na Rússia elas permanecem mulheres". Mas outras pessoas igualmente bem informadas — e por vezes as mesmas — suspiram: "A mulher se está perdendo, a mulher está perdida". Não sabemos mais exatamente se ainda existem mulheres, se existirão sempre, se devemos ou não desejar que existam, que lugar ocupam no mundo ou deveriam ocupar". "Onde estão as mulheres?", indagava há pouco uma revista intermitente (1). Mas antes de mais nada: que é uma mulher? "Tota mulier in utero: é uma matriz", diz alguém. Entretanto, falando de certas mulheres, os conhecedores declaram: "Não são mulheres", embora tenham um útero como as outras. Todo mundo concorda em que há fêmeas na espécie humana; constituem, hoje, como outrora, mais ou menos a metade da humanidade; e contudo dizem-nos que a feminilidade "corre perigo"; e exortam-nos: "Sejam mulheres, permaneçam mulheres, tornem-se mulheres". Todo ser humano do sexo feminino não é, portanto, necessariamente mulher; cumpre-lhe participar dessa realidade misteriosa e ameaçada que é a feminilidade. Será esta secretada pelos ovários? Ou estará congelada no fundo de um céu platônico? E bastará uma saia ruge-ruge para fazê-la descer à terra? Embora certas mulheres se esforcem por encarná-lo, o modelo nunca foi registrado. Descreveram-no de bom grado em termos vagos e mirabolantes que parecem tirados de empréstimo do vocabulário das videntes. No tempo de Sto. Tomás, ela se apresentava como uma essência


(1) Não se publica mais: chamava-se Franchise.


tão precisamente definida quanto a virtude dormitiva da papoula. Mas o conceitualismo perdeu terreno: as ciências biológicas e sociais não acreditam mais na existência de entidades imutavelmente fixadas, que definiriam determinados caracteres como os da mulher, do judeu ou do negro; consideram o caráter como uma reação secundária a uma situação. Se hoje não há mais feminilidade, é porque nunca houve. Significará isso que a palavra "mulher" não tenha nenhum conteúdo? É o que afirmam vigorosamente os partidários da filosofia das luzes, do racionalismo, do nominalismo: as mulheres, entre os seres humanos, seriam apenas os designados arbitrariamente pela palavra "mulher". Os norte-americanos, em particular, pensam que a mulher, como mulher, não existe mais; se uma retardada ainda se imagina mulher, as amigas aconselham-na a se fazer psicanalisar para livrar-se dessa obsessão. A propósito de uma obra, de resto assaz irritante, intitulada Modern Woman: a lost sex, Dorothy Parker escreveu: "Não posso ser justa em relação aos livros que tratam da mulher como mulher... Minha ideia é que todos, homens e mulheres, o que quer que sejamos, devemos ser considerados seres humanos". Mas o nominalismo é uma doutrina um tanto limitada; e os antifeministas não têm dificuldade em demonstrar que as mulheres não são homens. Sem dúvida, a mulher é, como o homem, um ser humano. Mas tal afirmação é abstrata; o fato é que todo ser humano concreto sempre se situa de um modo singular. Recusar as noções de eterno feminino, alma negra, caráter judeu, não é negar que haja hoje judeus, negros e mulheres; a negação não representa para os interessados uma libertação e sim uma fuga inautêntica. É claro que nenhuma mulher pode pretender sem má-fé situar-se além de seu sexo. Uma escritora conhecida recusou-se a deixar que saísse seu retrato numa série de fotografias consagradas precisamente às mulheres escritoras: queria ser incluída entre os homens, mas para obter esse privilégio utilizou a influência do marido. As mulheres que afirmam que são homens não dispensam, contudo, as delicadezas e as homenagens masculinas. Lembro-me também duma jovem trotskista em pé num estrado, no meio de um comício violento e que se dispunha a dar pancadas, apesar de sua evidente fragilidade; negava sua fraqueza feminina; mas era por amor a um militante a quem desejava ser igual. A atitude de desafio dentro da qual se crispam as norte-americanas prova que são dominadas pelo sentimento de sua feminilidade. E, em verdade, basta passear de olhos abertos para comprovar que a humanidade se reparte em duas categorias de indivíduos, cujas roupas, rostos, corpos, sorrisos, atitudes, interesses, ocupações são manifestamente diferentes: talvez essas diferenças sejam superficiais, talvez se destinem a desaparecer. O certo é que por enquanto elas existem com uma evidência total.

Se a função da fêmea não basta para definir a mulher, se nos recusamos também explicá-la pelo "eterno feminino" e se, no entanto, admitimos, ainda que provisoriamente, que há mulheres na terra, teremos que formular a pergunta: que é uma mulher ?




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O SEGUND O SEXO
SIMONE DE BEAUVOIR
Entendendo o eterno feminino como um homólogo da alma negra, epítetos que representam o desejo da casta dominadora de manter em "seu lugar", isto é, no lugar de vassalagem que escolheu para eles, mulher e negro, Simone de Beauvoir, despojada de qualquer preconceito, elaborou um dos mais lúcidos e interessantes estudos sobre a condição feminina. Para ela a opressão se expressa nos elogios às virtudes do bom negro, de alma inconsciente, infantil e alegre, do negro resignado, como na louvação da mulher realmente mulher, isto é, frívola, pueril, irresponsável, submetida ao homem.

Todavia, não esquece Simone de Beauvoir que a mulher é escrava de sua própria situação: não tem passado, não tem história, nem religião própria. Um negro fanático pode desejar uma humanidade inteiramente negra, destruindo o resto com uma explosão atômica. Mas a mulher mesmo em sonho não pode exterminar os homens. O laço que a une a seus opressores não é comparável a nenhum outro. A divisão dos sexos é, com efeito, um dado biológico e não um momento da história humana.

Assim, à luz da moral existencialista, da luta pela liberdade individual, Simone de Beauvoir, em O Segundo Sexo, agora em 4.a edição no Brasil, considera os meios de um ser humano se realizar dentro da condição feminina. Revela os caminhos que lhe são abertos, a independência, a superação das circunstâncias que restringem a sua liberdade.


4.a EDIÇÃO - 1970
Tradução
SÉRGIO MILLIET
Capa
FERNANDO LEMOS
DIFUSÃO EUROPÉIA DO LIVRO
Título do original:
LE DEUXIÊME SEXE
LES FAITS ET LES MYTHES
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Segundo Sexo é um livro escrito por Simone de Beauvoir, publicado em 1949 e uma das obras mais celebradas e importantes para o movimento feminista. O pensamento de Beauvoir analisa a situação da mulher na sociedade.

No Brasil, foi publicado em dois volumes. “Fatos e mitos” é o volume 1, e faz uma reflexão sobre mitos e fatos que condicionam a situação da mulher na sociedade. “A experiência vivida” é o volume 2, e analisa a condição feminina nas esferas sexual, psicológica, social e política.

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Leia também:

O Segundo Sexo - 2 Fatos e Mitos: De onde vem essa submissão na mulher?

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