domingo, 17 de agosto de 2025

Poesia: "Só existe o impossível"

Orides Fontela

"A poeta que o Brasil deixou morrer em silêncio: prêmios não pagaram o aluguel, sopa fria e a palavra como único salário" e que conheci hoje, apenas hoje, quanta demora, até que a curiosidade intelectual me fez acessar a Revista Digital Bula, levei um susto, uma vida inteira não basta-se para ler... e lá estava a poeta (como ela mesma gostava de se nomear) Orides Fontela.

Ante de tudo, um pouco da mulher - por ela mesma:


Orides Fontela | Jô Soares Onze e Meia, 1996





FALA 

Tudo 
será difícil de dizer: 
a palavra real 
nunca é suave. 

Tudo será duro: 
luz impiedosa 
excessiva vivência 
consciência demais do ser. 

Tudo será 
capaz de ferir. Será 
agressivamente real. 
Tão real que nos despedaça. 

Não há piedade nos signos 
e nem no amor: o ser 
é excessivamente lúcido 
e a palavra é densa e nos fere. 

(Toda palavra é crueldade)


ARABESCO

A geometria em mosaico
cria o texto labirinto
intrincadíssimos caminhos
complexidades nítidas.

A geometria em florido
plano de minúcias vivas
a geometria toda em fuga
e o texto como em primavera.

A ordem transpondo-se em beleza
além dos planos no infinito
e o texto pleno indecifrado
em mosaico flor ardendo.

O caos domado em plenitude
   a primavera.

do seu primeiro livro Transposição (Instituto de Espanhol da USP, 1969), cuja edição foi coorganizada por Davi Arrigucci Jr., amigo e conterrâneo da autora
Fonte: Poesia Primata



AS SEREIAS

Atraídas e traídas
atraímos e traímos

Nossa tarefa: fecundar
  atraindo
nossa tarefa: ultrapassar
 traindo
o acontecer puro
que nos vive.

Nosso crime: a palavra.
Nossa função: seduzir mundos.

Deixando a água original
cantamos
sufocando o espelho
do silêncio.

do seu segundo livro Helianto (Duas Cidades, 1973).



POEMA

Saber de cor o silêncio
diamante e/ou espelho
o silêncio além
do branco.

Saber seu peso
seu signo
– habitar sua estrela
 impiedosa.

Saber seu centro: vazio
esplendor além
da vida
e vida além
da memória.

Saber de cor o silêncio
– e profaná-lo, dissolvê-lo
     em palavras.

do seu terceiro livro Alba (Roswitha Kempf, 1983).



Inútil a ternura pelo leve
momento a desprender-se do infinito:
frágil, a construção do tempo é morte
do que se atualiza. Mais fecundo

é secundar o pássaro buscando
o momento possível, voo pleno.
Mais fecundo é voar. Mas a ternura
(este pássaro morto abandonado

como forma perdida de nós mesmos)
nos alimenta em sua sombra. Torna-nos
em sombras sem alento. E sofremos

como pássaros frágeis: desprendidos
do voo pleno nos cristalizamos
realizando a morte que vivemos.

do seu livro Rosácea (Roswitha Kempf, 1986).



O espelho dissolve
o tempo

o espelho aprofunda
o enigma

o espelho devora
a face.

do seu livro Teia (Marco Zero, 1996).


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Orides de Lourdes Teixeira Fontela, nascida em São João da Boa Vista, em 1940, e falecida em Campos do Jordão, em 1998 –, conhecida como Orides Fontela.
"A própria poeta chegou a dizer mais de uma vez que ela só existia por causa da poesia, que não saberia fazer outra coisa se não estivesse sempre a criar, fosse pela inspiração, fosse pelo trabalho árduo sobre o verso." Trecho do livro Toda palavra é crueldade

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