sexta-feira, 3 de julho de 2020

Úrsula - Apresentação

Maria Firmina dos Reis


Apresentação



Úrsula e outras obras: dos ressoares de vozes resistentes



Apesar de seus avanços e recuos, o século XXI consegue, com muitas lutas, quebrar obstáculos de outros tempos (aqueles dos quais tantos pessimistas têm saudades). Surgem novos pensamentos e tipologias textuais. Inovações. Arejamento. Salve aqueles que acreditam que, embora a passos lentos, a humanidade avança e que, ainda, são plausíveis os sonhos. O projeto é possível, e com ele, uma existência mais autêntica. Acreditamos, como muitos historiadores, filósofos e poetas, que podemos e devemos mudar muita coisa. Os espaços de indeterminação oferecem infinitas possibilidades. Basta saber enxergá-las. E isso não é tarefa fácil. Requer, acima de tudo, uma percepção sutil, aguda, tendo como base uma profunda intuição (no sentido rigoroso da expressão) e muita criatividade. Requer uma sensibilidade que deve ir além das dimensões conhecidas. Eis uma tarefa para poucos. Árdua. Por quê? Acima de tudo porque requer coragem para enfrentar o novo – o desconhecido e tudo que estiver encoberto por brumas. 

Nessa perspectiva, olhamos para a extraordinária coletânea de Úrsula e outras obras, obra composta por um romance, dois contos e um livro de poemas. Sua autora, Maria Firmina dos Reis, mulher desconhecida em sua época, negra, bastarda e nordestina, emerge do quase anonimato feminino do século XIX para ser reconhecida hoje como a primeira romancista brasileira. 

Marguerite Yourcenar afirma que “Há almas que nos fazem acreditar que a alma existe. Nem sempre são as mais geniais, porque as mais geniais são as que souberam melhor se exprimir. São às vezes almas balbuciantes, quase sempre silenciosas”. [1] Esse é, justamente, o caso de Maria Firmina dos Reis. A sua obra exprime, em diversos sentidos, uma alma boa, sensível, profundamente afetada pelas dores da escravidão e, em especial, pela condição feminina nesse período infame no Brasil. A escritora destaca a história das mulheres que, perversamente sujeitadas a pessoas sem caráter e sem a mínima piedade e compaixão, enfrentaram situações aterrorizantes e desumanas.


[1] YOURCENAR, Marguerite. O tempo, esse grande escultor. Tradução de Ivo Barroso. 2. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2018. p. 127.


Um dos pontos que merecem ser salientados em Úrsula, seguramente, é o enredo, que não poderia ser compreendido, em sua leveza, sem a percepção do clima mais geral da obra, regido pelo silêncio e por almas sussurrantes. Nessa medida, as descrições da natureza entrecortam e reforçam, em termos de ritmo, a atmosfera do enredo: 


E às águas, e a esses vastíssimos campos que o homem oferece seus cânticos de amor? Não por certo. Esses hinos, cujos acentos perdem-se no espaço, são como notas duma harpa eólia, arrancadas pelo roçar da brisa ou como sussurrar da folhagem em mata espessa 


São inúmeras as descrições da autora. Com isso o romance ganha em termos de musicalidade. Em outras palavras: a autora permite, como poucos escritores conseguiram, que a descrição não seja uma pausa monótona. As vozes da natureza conseguem dar um tom raro e expressivo à narrativa, como se observa no seguinte trecho: 


– Era alta a noite, – prosseguiu ele, com uma voz cavernosa, – o vento ciciava entre os palmares, e a lua, prateando a superfície das águas, passava melancólica por cima destas árvores anosas. A sururina desprendia o seu canto harmonioso; na mata ondulava um vento gemedor, e o mar quebrava-se nas solidões da praia. [...] 


Trata-se de descrição belíssima em que os sons do vento, a luminosidade da lua e os reflexos das águas misturam-se, em perfeita harmonia, com as solidões (narradas ao longo do romance) das personagens. 

Úrsula é um romance que replica, sem dúvida, as influências do movimento literário romântico (corrente que, no Brasil, teve pouca autenticidade, já que nosso romantismo foi bastante influenciado pelo europeu): idealização da figura feminina e do amor e constante apresentação da natureza como harmoniosa e sem defeitos. Mesmo assim, Maria Firmina dos Reis consegue dar voz aos que foram regidos pelo esquecimento intencional de esquemas dominantes mais amplos. Eis o valor até mesmo documental do romance. A situação opressiva da mulher, em diversos momentos do livro, é muito bem colocada. É o caso do seguinte fragmento, que reflete não somente a violência contra as mulheres, mas a violência em seu tom mais universal:

– Para onde foi Úrsula? – interrogou com voz que horrorizava – Para onde foi Úrsula? Fala, ou prepara-te para morrer sob o azorrague.
– Não sei, meu senhor, respondeu humildemente a velha – disse-me que vinha orar no cemitério.
– Não sabes dela?! Queres arrostar comigo?... – e os olhos desferiram chamas de raiva, que gelavam de terror.
– Foste sua cúmplice, hás de pagar-mo.
– Em nome do céu – exclamou a mísera, atormentada por tão sinistras ameaças: – que sei eu?
– Cala-te, atrevida, ou ao menos modifica o teu crime, revelando-me o nome do homem que ma roubou.
– Ah! Meu senhor...– tornou a mísera africana, – ela saiu só.
– Pois bem! Confessarás à força de tormentos o que é feito dela, e qual o nome de seu sedutor. 

No trecho, como em outras partes do romance, também sobressaem tópicos de gramática histórica, tão cara a todos nós, falantes de língua portuguesa, por permitir o contato dos leitores de hoje com palavras, expressões e colocações pronominais usuais do século XIX e por fazer refletir sobre as transformações pelas quais todas as línguas passam. Existem, neste sentido, como em todas as leituras, pontos ricos que devem ser explorados: um exemplo é o aparente pleno domínio da norma culta que personagens possivelmente analfabetos do romance parecem possuir. Essa característica decorre do fato de que o registro da linguagem oral e da espontaneidade da fala era “proibido” pelos padrões estabelecidos nas famosas academias que ditavam as regras e normas de como escrever bem – os diálogos mais realistas apareceram, no Brasil, apenas com o início do século XX. 

Gupeva e A escrava, os dois contos de Maria Firmina dos Reis que integram o livro, seguem, na verdade, o mesmo estilo do romance. Em outras palavras: possuem a mesma leveza de vocabulário, o mesmo ritmo das descrições e sons da natureza que criam um ambiente de movimentos lentos que, no entanto, não paralisam o enredo e muito menos a cadência da leitura. 

Por fim temos, ainda, na publicação, diversos poemas da autora reunidos em Cantos à beira-mar. Destacamos o poema Dirceu, que Maria Firmina dedica à memória de Thomaz Antônio Gonzaga:


Dirceu 

Onde poeta, te conduz a sorte? 
Vagas saudoso, no tristonho error! 
Longe da pátria... no exílio... a morte 
Melhor te fora, mísero cantor. 

Bardo sem dita!... patriota ousado 
Quem sobre ti a maldição lançou!.?. 
Cantor mimoso, quem manchou teu fado? 
E a voo d’águia te empeceu, – cortou? 

[...] 

Ah, Dirceu, tu te perdeste! 
Mártir da pátria – gemeste 
De saudade, e imensa dor! 
Choraste a pátria vencida: 
Tanta esperança perdida... 
Perdido teu terno amor!... 

[...] 



Observe-se, nos trechos do poema em questão, o diálogo da autora com o poeta brasileiro. Tal processo adensa, de forma obrigatória, o nível da leitura. Se o leitor desconhece Thomaz Antônio Gonzaga e sua famosa obra Marília de Dirceu, poderá ficar numa leitura superficial do poema. O recurso intertextual é uma abertura poderosa para outras leituras e, em se tratando das questões que envolvem leitura e literatura, pode ser considerado fundamental. Trata-se de texto que remete a outro e, desta forma, cria uma cadeia de leituras paralelas imprescindíveis para os dias de hoje, em que o tempo possui uma velocidade jamais percebida em etapas anteriores da humanidade e, também por isso, a eternamente necessária memória coletiva fica comprometida. Consequentemente, os afetos se dissolvem e se convertem em desmemórias quase nunca recuperadas. Valores que deveriam ser ao menos repensados evaporam-se. Muitas vezes criam espaços perversos de descontinuidades. Hiatos. Abismos. Nessa medida, a leitura de Úrsula é um recorte de tempo e espaço que deve ser lido como uma contribuição significativa para um possível resgate histórico e literário de nosso país. 


Ana Maria Haddad Baptista [2]



[2] Ana Maria Haddad Baptista é formada em letras. Possui mestrado e doutorado pela PUC/SP e pós-doutorado em história da ciência pela Universidade de Lisboa e pela PUC/SP. Atualmente, trabalha como pesquisadora e professora nos programas de pós-graduação stricto sensu na área da educação da Universidade Nove de Julho/SP. É também líder do grupo de pesquisa Tempo-Memória: Educação, Literatura e Linguagens (CNPq). Possui dezenas de livros e artigos publicados no Brasil e no exterior. É colunista mensal da Revista Filosofia, da Editora Escala, em São Paulo.





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Maria Firmina dos Reis nasceu em São Luís, no Maranhão, no dia 11 de outubro de 1825. Filha bastarda de João Pedro Esteves e Leonor Felipe dos Reis. Foi uma escritora brasileira, considerada a primeira romancista brasileira.

Em 1847, aos 22 anos, ela foi aprovada em um concurso público para a Cadeira de Instrução Primária, sendo assim a primeira professora concursada de seu Estado. Maria demonstrou sua afinidade com a escrita ao publicar “Úrsula” em 1859, primeiro romance abolicionista, primeiro escrito por uma mulher negra brasileira.

O romance “Úrsula” consagrou Maria Firmina como escritora e também foi o primeiro romance da literatura afro-brasileira, entendida esta como produção de autoria afrodescendente. Em 1887, no auge da campanha abolicionista, a escritora publica o livro “A Escrava”, reforçando sua postura antiescravista.

Ao aposentar-se, em 1880, fundou uma escola mista e gratuita. Maria morre aos 92 anos, na cidade de Guimarães, no dia 11 de novembro de 1917.

Em 1975, Maria recebe uma homenagem de José Nascimento Morais Filho que publica a primeira biografia da escritora, Maria Firmina: fragmentos de uma vida.

A importância da obra de Firmina, primeira escritora negra de que se tem notícia em nossa literatura, se deve ao pioneirismo na denúncia da opressão a negros e mulheres no Brasil do século XIX. Antes do Navio negreiro de Castro Alves, declamado pela primeira vez em 1868, Firmina já descrevia em seu livro Úrsula, de 1859, a crueldade do tráfico de pessoas sequestradas na África e transportadas nos porões dos “tumbeiros”. Neste mesmo romance, a crítica da escritora abrange o retrato lamentável da condição feminina da época ao delinear personagens como o pai de Tancredo ou o comendador, tiranos não só de escravos, mas também de mulheres. 

Maria Firmina foi uma voz profundamente legítima e dissonante que não encontrou acolhida e reconhecimento em seu tempo. Longe de fracassar, essa voz ressoa hoje cheia de significado, recriminando males que ainda assombram e permeiam nossa sociedade.

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Biografia
| Maria Firmina dos Reis





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