quarta-feira, 13 de novembro de 2019

Susan Sontag - Na Caverna de Platão (01)

Sobre fotografia

Ensaios


Susan Sontag



Para Nicole Stéphane


Tudo começou com um ensaio — sobre alguns dos problemas, estéticos e morais, propostos pela onipresença das imagens fotográficas; mas, quanto mais eu pensava sobre o que são as fotos, mais complexas e sugestivas elas se tornavam. Assim, um ensaio engendrava outro, e este (para meu espanto), ainda um outro, e assim sucessivamente — uma sequência de ensaios a respeito do significado e da evolução das fotos — até eu ter ido tão longe que o argumento esboçado no primeiro ensaio, e documentado e explorado por meio de digressões nos ensaios seguintes, pôde ser retomado e ampliado de um modo mais teórico; e pôde parar. Os ensaios foram publicados, pela primeira vez (de um modo um pouco diferente), na New York Review of Books e talvez jamais tivessem sido escritos sem o estímulo dos editores, meus amigos Robert Silvers e Barbara Epstein, à minha obsessão pela fotografia. Sou grata a eles e ao meu amigo Don Eric Levine pelos conselhos pacientes e pela ajuda irrestrita. 
S. S. Maio, 1977




NA CAVERNA DE PLATÃO




A humanidade permanece, de forma impenitente, na caverna de Platão, ainda se regozijando, segundo seu costume ancestral, com meras imagens da verdade. Mas ser educado por fotos não é o mesmo que ser educado por imagens mais antigas, mais artesanais. Em primeiro lugar, existem à nossa volta muito mais imagens que solicitam nossa atenção. O inventário teve início em 1839, e, desde então, praticamente tudo foi fotografado, ou pelo menos assim parece. Essa insaciabilidade do olho que fotografa altera as condições do confinamento na caverna: o nosso mundo. Ao nos ensinar um novo código visual, as fotos modificam e ampliam nossas ideias sobre o que vale a pena olhar e sobre o que temos o direito de observar. Constituem uma gramática e, mais importante ainda, uma ética do ver. Por fim, o resultado mais extraordinário da atividade fotográfica é nos dar a sensação de que podemos reter o mundo inteiro em nossa cabeça — como uma antologia de imagens. 

Colecionar fotos é colecionar o mundo. Filmes e programas de televisão iluminam paredes, reluzem e se apagam; mas, com fotos, a imagem é também um objeto, leve, de produção barata, fácil de transportar, de acumular, de armazenar. No filme Les carabiniers (1963), de Godard, dois lúmpen-camponeses preguiçosos são induzidos a ingressar no Exército do rei mediante a promessa de que poderão saquear, estuprar, matar ou fazer o que bem entenderem com os inimigos, e ficar ricos. Mas a mala com o butim que Michel-Ange e Ulysse trazem, em triunfo, para casa, anos depois, para suas esposas, contém apenas centenas de cartões-postais de monumentos, de lojas de departamentos, de mamíferos, de maravilhas da natureza, de meios de transporte, de obras de arte e de outros tesouros catalogados de todo o mundo. O chiste de Godard parodia, nitidamente, a magia equívoca da imagem fotográfica. As fotos são, talvez, os mais misteriosos de todos os objetos que compõem e adensam o ambiente que identificamos como moderno. As fotos são, de fato, experiência capturada, e a câmera é o braço ideal da consciência, em sua disposição aquisitiva. 

Fotografar é apropriar-se da coisa fotografada. Significa pôr a si mesmo em determinada relação com o mundo, semelhante ao conhecimento — e, portanto, ao poder. Supõe-se que uma queda primordial — e malvista, hoje em dia — na alienação, a saber, acostumar as pessoas a resumir o mundo na forma de palavras impressas, tenha engendrado aquele excedente de energia fáustica e de dano psíquico necessário para construir as modernas sociedades inorgânicas. Mas a imprensa parece uma forma menos traiçoeira de dissolver o mundo, de transformá-lo em um objeto mental, do que as imagens fotográficas, que fornecem a maior parte do conhecimento que se possui acerca do aspecto do passado e do alcance do presente. O que está escrito sobre uma pessoa ou um fato é, declaradamente, uma interpretação, do mesmo modo que as manifestações visuais feitas à mão, como pinturas e desenhos. Imagens fotografadas não parecem manifestações a respeito do mundo, mas sim pedaços dele, miniaturas da realidade que qualquer um pode fazer ou adquirir. 

As fotos, que brincam com a escala do mundo, são também reduzidas, ampliadas, recortadas, retocadas, adaptadas, adulteradas. Elas envelhecem, afetadas pelas mazelas habituais dos objetos de papel; desaparecem; tornam-se valiosas e são vendidas e compradas; são reproduzidas. Fotos, que enfeixam o mundo, parecem solicitar que as enfeixemos também. São afixadas em álbuns, emolduradas e expostas em mesas, pregadas em paredes, projetadas como diapositivos. Jornais e revistas as publicam; a polícia as dispõe em ordem alfabética; os museus as expõem; os editores as compilam. 

Durante muitas décadas, o livro foi o mais influente meio de organizar (e, em geral, miniaturizar) fotos, assegurando desse modo sua longevidade, se não sua imortalidade — fotos são objetos frágeis, fáceis de rasgar e de extraviar —, e um público mais amplo. A foto em um livro é, obviamente, a imagem de uma imagem. Mas como é, antes de tudo, um objeto impresso, plano, uma foto, quando reproduzida em um livro, perde muito menos de sua característica essencial do que ocorre com uma pintura. Contudo, o livro não é um instrumento plenamente satisfatório para pôr grupos de fotos em ampla circulação. A sequência em que as fotos devem ser vistas está sugerida pela ordem das páginas, mas nada constrange o leitor a seguir a ordem recomendada, nem indica o tempo a ser gasto em cada foto. O filme Si j’avais quatre dromadaires (1966), de Chris Maker, uma reflexão argutamente orquestrada sobre fotos de todos os tipos e temas, sugere um modo mais sutil e mais rigoroso de enfeixar (e ampliar) fotos. Tanto a ordem como o tempo exato para olhar cada foto são impostos; e há um ganho em termos de legibilidade visual e impacto emocional. Mas fotos transcritas em um filme deixam de ser objetos colecionáveis, como ainda são quando oferecidas em livros.

Fotos fornecem um testemunho. Algo de que ouvimos falar mas de que duvidamos parece comprovado quando nos mostram uma foto. Numa das versões da sua utilidade, o registro da câmera incrimina. Depois de inaugurado seu uso pela polícia parisiense, no cerco aos communards, em junho de 1871, as fotos tornaram-se uma útil ferramenta dos Estados modernos na vigilância e no controle de suas populações cada vez mais móveis. Numa outra versão de sua utilidade, o registro da câmera justifica. Uma foto equivale a uma prova incontestável de que determinada coisa aconteceu. A foto pode distorcer; mas sempre existe o pressuposto de que algo existe, ou existiu, e era semelhante ao que está na imagem. Quaisquer que sejam as limitações (por amadorismo) ou as pretensões (por talento artístico) do fotógrafo individual, uma foto — qualquer foto — parece ter uma relação mais inocente, e portanto mais acurada, com a realidade visível do que outros objetos miméticos. Os virtuoses da imagem nobre, como Alfred Stieglitz e Paul Strand, que compuseram fotos de grande força, e inesquecíveis durante décadas, ainda tencionavam, antes de tudo, mostrar algo “que existe”, assim como o dono de uma Polaroid, para quem as fotos são uma forma prática e rápida de tomar notas, ou o fotógrafo compulsivo com sua Brownie que tira instantâneos como suvenires da vida cotidiana. 

Enquanto uma pintura ou uma descrição em prosa jamais podem ser outra coisa que não uma interpretação estritamente seletiva, pode-se tratar uma foto como uma transparência estritamente seletiva. Porém, apesar da presunção de veracidade que confere autoridade, interesse e sedução a todas as fotos, a obra que os fotógrafos produzem não constitui uma exceção genérica ao comércio usualmente nebuloso entre arte e verdade. Mesmo quando os fotógrafos estão muito mais preocupados em espelhar a realidade, ainda são assediados por imperativos de gosto e de consciência. Os componentes imensamente talentosos do projeto fotográfico do final da década de 1930 chamado Contribuição para a Segurança no Trabalho nas Fazendas (entre os quais estavam Walker Evans, Dorothea Lange, Ben Shahn, Russel Lee) tiravam inúmeras fotos frontais de um de seus meeiros até se convencerem de que haviam captado no filme a feição exata — a expressão precisa do rosto da figura fotografada, capaz de amparar suas próprias ideias sobre pobreza, luz, dignidade, textura, exploração e geometria. Ao decidir que aspecto deveria ter uma imagem, ao preferir uma exposição a outra, os fotógrafos sempre impõem padrões a seus temas. Embora em certo sentido a câmera de fato capture a realidade, e não apenas a interprete, as fotos são uma interpretação do mundo tanto quanto as pinturas e os desenhos. Aquelas ocasiões em que tirar fotos é relativamente imparcial, indiscriminado e desinteressado não reduzem o didatismo da atividade em seu todo. Essa mesma passividade — e ubiquidade — do registro fotográfico constitui a “mensagem” da fotografia, sua agressão. 

Imagens que idealizam (a exemplo da maioria das fotografias de moda e de animais) não são menos agressivas do que obras que fazem da banalidade uma virtude (como fotos de turmas escolares, naturezas-mortas do tipo mais árido e retratos de frente e de perfil de um criminoso). Existe uma agressão implícita em qualquer emprego da câmera. Isso está tão evidente nas duas primeiras décadas gloriosas da fotografia, 1840 e 1850, quanto em todas as décadas seguintes, durante as quais a tecnologia permitiu uma difusão sempre crescente da mentalidade que encara o mundo como uma coleção de fotos potenciais. Mesmo para mestres tão pioneiros como David Octavius Hill e Julia Margaret Cameron, que usavam a câmera como um meio de obter imagens à maneira de um pintor, o intuito de tirar fotos situava-se a uma grande distância dos propósitos dos pintores. Desde o seu início, a fotografia implicava a captura do maior número possível de temas. A pintura jamais teve um objetivo tão imperioso. A subsequente industrialização da tecnologia da câmera apenas cumpriu uma promessa inerente à fotografia, desde o seu início: democratizar todas as experiências ao traduzi-las em imagens. 

Aquela época em que tirar fotos demandava um aparato caro e complicado — o passatempo dos hábeis, dos ricos e dos obsessivos — parece, de fato, distante da era das cômodas câmeras de bolso que convidam qualquer um a tirar fotos. As primeiras câmeras, feitas na França e na Inglaterra no início da década de 1840, só contavam com os inventores e os aficionados para operá-las. Uma vez que, na época, não existiam fotógrafos profissionais, não poderia tampouco haver amadores, e tirar fotos não tinha nenhuma utilidade social clara; tratava-se de uma atividade gratuita, ou seja, artística, embora com poucas pretensões a ser uma arte. Foi apenas com a industrialização que a fotografia adquiriu a merecida reputação de arte. Assim como a industrialização propiciou os usos sociais para as atividades do fotógrafo, a reação contra esses usos reforçou a consciência da fotografia como arte.


continua...





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Susan Sontag (16 de janeiro de 1933, Nova Iorque — 28 de dezembro de 2004) foi uma escritora, crítica de arte e ativista dos Estados Unidos.

Graduou-se na Universidade de Harvard e destacou-se por sua defesa dos direitos humanos. Publicou vários livros, entre eles Styles of Radical Will, The Way We Live Now, Against Interpretation e In America, pelo qual recebeu em 2000 um dos mais importantes prémios do seu país, o National Book Award.

Publicou artigos em revistas como The New Yorker e The New York Review of Books e no jornal The New York Times.

Num de seus últimos artigos, publicado em maio de 2004 no jornal The New York Times, Sontag afirmou que "a história recordará a Guerra do Iraque pelas fotografias e vídeos das torturas cometidas pelos soldados americanos na prisão de Abu Ghraib. Ela faleceu aos 71 anos de idade de síndrome mielodisplásica seguida de uma leucemia mielóide aguda em 28 de Dezembro de 2004.

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"Quando o mundo estiver unido na busca do conhecimento, e não mais lutando por dinheiro e poder, então nossa sociedade poderá enfim evoluir a um novo nível."


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