Manoel Bomfim
O Brasil nação volume 2
– CECILIA COSTA JUNQUEIRA
Manoel Bomfim, o educador revolucionário
O Brasil necessita de uma revolução. Uma reviravolta social que ponha o destino da nação nas mãos do povo, acabando com a eterna espoliação das riquezas nacionais por políticos corruptos e viciados e por uma oligarquia egoísta que acumula capital explorando os trabalhadores. É preciso educar o povo, pois somente tendo acesso a uma educação formadora de pensamento crítico os brasileiros ficarão conscientes de seus direitos civis e hão de lutar por eles. Não há República ou democracia efetiva sem povo educado. Educação não pode ser tão somente uma palavra-chave pronunciada por políticos em palanques, visando a votos. Precisa ser entendida em toda a sua profundidade e buscada como meta através de um programa reformador que dignifique a profissão de professor e acabe com a ignorância da massa oprimida.
Essas ideias, que poderiam ter sido redigidas hoje por qualquer brasileiro preocupado com os rumos futuros do país, foram defendidas no final da década de 20 pelo historiador, pedagogo e jornalista sergipano Manoel Bomfim em seu livro O Brasil nação – Riqueza da soberania brasileira, o último de uma trilogia da qual também faziam parte as obras O Brasil na América e O Brasil na História. Foram escritas pouco antes de o autor morrer, em 1932,
de câncer, no Rio de Janeiro, com a paixão ou o desespero de quem estava sumamente cansado de assistir o Brasil seguir por um caminho equivocado, com erros e privilégios se sucedendo desde o início da colonização. Do ponto de vista de Manoel Bomfim, o melhor seria que o país enterrasse para sempre sua história no passado, e se dirigisse para um novo destino, no qual o povo finalmente tivesse uma vida digna, trabalhando em seu próprio benefício e deixando de ser roubado iniquamente pela classe dirigente pervertida.
Terminado de ser concebido em 1928, O Brasil nação só seria publicado em 1931. Por isso, antes que fosse ao prelo, além de um prefácio, Manoel Bomfim fez questão de escrever também um posfácio, explicando que a revolução que acabara de ocorrer no país, a de 30, não tinha nada a ver com a que propusera em seu livro. Se com a ascensão de Getúlio haviam mudado os homens e militares à frente do poder, na realidade, acentuava Bomfim, não ocorrera uma mudança de peso na oligarquia dominante. Com isso, muito provavelmente a grande reforma educadora ainda não seria feita, já que a classe dirigente, pelo que tudo indicava, continuava a não ter interesse algum em se despojar de suas benesses. E assim como não haveria uma profunda mudança educacional, não deveriam ocorrer uma reforma agrária e uma alteração significativa nas relações de trabalho, pondo fim às injustiças vigentes no país.
Não, a revolução de 30, a que se iniciara com o movimento tenentista nos anos 20, não era, de forma alguma, a que ele preconizava. Estava seguro de que ainda não havia chegado a hora da grande mudança social que apagaria de vez todos os vestígios da moléstia que atingira o país desde a chegada de D. João VI, a qual dava o nome de “infecção bragantina” e que corroera a moral dos políticos, ministros e autoridades ao longo do primeiro e do segundo Império e também da República, em seus primórdios. O que o Brasil precisava era de uma revolução que partisse do povo,
nos moldes da mexicana. O que talvez fosse uma utopia, mas por que não sonhar?
Para chegar a estas conclusões, mesmo dizendo que o passado tinha de ser esquecido para sempre, Manoel Bomfim, em O Brasil nação, como bom adepto do materialismo dialético, faz seu leitor passear detidamente por toda a história brasileira, desde a Independência até a Proclamação da República e a República Velha, a fim de provar que, na realidade, o que vivemos, após o decantado grito no Ipiranga, não passara de uma espécie de marcha da insensatez. Debruçando seus olhos críticos sobre tudo o que acontecera na ex-colônia portuguesa no século XIX e nas primeiras décadas do século XX, o historiador descrente poupa pouquíssimas personagens ou eventos que marcaram a evolução política do país. Pois em nenhum momento, diz ele, mesmo os que costumam ser considerados revolucionários ou libertadores, como a Independência, a Abdicação de D. Pedro I em 1831, a Abolição ou a República, o Brasil teria se livrado desta infecção perversa, imposta inicialmente por uma metrópole em ruínas, enfraquecida moral e economicamente, e, posteriormente, por homens já nascidos e formados no solo pátrio, mas que ainda mantinham em suas cabeças a mesma mentalidade “coimbrista” carcomida.
Foi-se o Bragança português, ficou aqui o Bragança carioca, bem-intencionado, culto, amigo de sábios, e mesmo assim a exploração dos pobres pelos ricos continuou. Os mandantes na Câmara e províncias seriam, segundo ele, uma casta ou “marquesada” que nunca descuidou de seus próprios interesses. E se a abolição indubitavelmente foi uma grande conquista, ela veio tarde, tardíssimo, tendo sido o Brasil a última nação do mundo ocidental a se liberar dos vergonhosos grilhões da escravidão. Quanto à República, foi farsesca, pois não há República e democracia em pleno funcionamento quando o povo permanece “escravizado” em sua ignorância.
Chega a ser duro ler O Brasil nação. Duro porque muito do que o autor diz neste livro magistral ainda está em vigor. Como provam as estatísticas, ainda somos um país extremamente injusto e povoado por ignorantes. Livramo-nos do analfabetismo quase que em sua totalidade, mas a educação continua sendo pífia. Quando se fala em qualidade de ensino, costumamos ocupar os últimos lugares em rankings internacionais. Em todos os capítulos deste livro de mais de 600 páginas, são poucas as horas de remanso, aquelas em que Bomfim não tenciona ou puxa as orelhas de quem o lê, já que o compêndio deve ter sido escrito com os nervos à flor da pele, tamanha a raiva, a dor cívica, sem falar na própria doença inclemente do escritor, que consumia seu corpo fatigado, mas não o impediu de escrever praticamente até o último suspiro.
Muito provavelmente devia se sentir obrigado a encher folhas e folhas com seu conhecimento histórico e seu pensamento agudo, sabendo ser inadiável a tarefa de nos deixar seu urro de professor e escritor em estado de choque. Ou de um social-comunista preocupado com os miseráveis, cujo coração impregnava-se de horror ao parar para pensar nos detentores de poder, monotonamente corrompidos. Devido à sua visão rebelde, apesar de muito bem informada e construída, por muito tempo Manoel Bomfim ficaria esquecido em nossa historiografia, até ser resgatado nos anos 80 pelo antropólogo Darcy Ribeiro, que o considerava um pensador originalíssimo e com ele dividia a preocupação com a educação do povo brasileiro.
A realidade é que Bomfim não deixa pedra sobre pedra em nossa história. Nada se salva, e quase ninguém. Nem mesmo o bondoso, bem-intencionado e cultivado Pedro II, a respeito do qual traça um perfil inclemente. Em sua torre de marfim, fazendo pesquisas científicas, lendo e escrevendo poemas, Pedro II, do seu ponto de vista, apesar de ser um homem sério, modelo de nobreza e de equidade no que diz respeito a gastos perdulários, teria, no entanto, por certo comodismo ou inação, auxiliado a prolongar a escravidão e, se não roubava ou desviava recursos da União em benefício próprio, nada fazia contra os que prevaricavam. Ou seja, o imperador estudioso não tinha as mãos sujas, mas deixava que seus marqueses e ministros, conservadores ou liberais, as sujassem, vendendo cargos e empregando seus familiares. Pois se o Brasil teve alguém que prestasse, alguém que fosse digno, esse alguém não era um político. Longe disso. Na opinião de Manoel Bomfim, apenas os poetas, salvo raríssimas exceções, encarnaram com pureza a alma brasileira romântica, generosa, revolucionária.
Sim, aos poetas, tudo. Aos políticos, nada. Manoel Bomfim tinha muito carinho e admiração por Gonçalves Dias, Alvares de Azevedo, Casimiro de Abreu, Castro Alves, Alencar, Machado de Assis, Macedo e Raul Pompéia. A seu ver, os poetas e escritores da segunda metade do século XIX foram os homens que criaram a noção de nacionalidade em nossa pátria aviltada. Não há nação digna deste nome, aliás, sem poetas de valor, que tenham cantado a pátria, sua natureza, seus heróis populares, e sonhado com dias melhores. E nós os tivemos, felizmente. Somente em sua longa e cuidadosa análise sobre nossos líricos, o historiador abandona o tom vociferante e nos deixa respirar, embebendo-nos de poemas. Além de revelar que também tinha uma alma de poeta, capaz de se emocionar com a beleza de rimas e versos. Talvez por isso fosse dono de verve tão indignada. Homens que trazem a poesia no coração costumam perder a cabeça diante de injustiças.
Quanto aos homens de ação, em seu panteão estão apenas os que fizeram as revoluções. Os que acreditaram em liberdade e República muito antes de ser criado, em 1870, o Partido Republicano de Saldanha Marinho e Quintino Bocaiúva. Eis os seus heróis: Tiradentes, Pedro Ivo, Frei Caneca, Francisco José do Nascimento. Todos os insurgentes dos movimentos de 1817, 1831, 1842 e 1848 e os jangadeiros do Ceará, que acabaram com a escravidão antes de 1888. Nutria certa simpatia também por José Bonifácio, Feijó, José do Patrocínio, Floriano Peixoto, seja pela sabedoria política, seja pela dedicação à pátria ou retidão de caráter. De resto, os homens políticos, a seu ver, costumavam ser uma choldra só. Tanto os ministros retóricos e aristocratas, que tiveram o poder nas mãos durante o segundo Império, como os abolicionistas de última hora ou os militares positivistas que fizeram a República, pregando ordem e progresso em meio ao caos. Tão viciados quanto os do passado, os dirigentes do novo regime político, eleitos por uma minoria alfabetizada, fariam com que o povo tivesse saudades de D. Pedro II e de sua moralidade.
(Continua..)
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"Morreu no Rio aos 64 anos, em 1932, deixando-nos como legado frases, que infelizmente, ainda ecoam como válidas: 'Somos uma nação ineducada, conduzida por um Estado pervertido. Ineducada, a nação se anula; representada por um Estado pervertido, a nação se degrada'. As lições que nos são ministradas em O Brasil nação ainda se fazem eternas. Torcemos para que um dia caduquem. E que o novo Brasil sonhado por Bomfim se torne realidade."
Cecília Costa Junqueira
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Bomfim, Manoel, 1868-1932
O Brasil nação: vol. II / Manoel Bomfim. – 1. ed. – Rio de Janeiro: Fundação Darcy Ribeiro, 2013. 392 p.; 21 cm. – (Coleção biblioteca básica brasileira; 31).
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