não era o meu caminho... então, eu resolvi escrever o que eu sabia escrever...
na altura (na época) isso deu uma enorme discussão... houve pessoas que não aceitaram bem...
e acharam que os meus problemas eram de outra índole...
problemas psicológicos... houve mesmo, par falar de uma forma grosseira..
houve quem dissesse...
o problema dela é falta de homem...
RAPARIGA
Cresce comigo o boi com que me vão trocar
Amarraram-me às costas, a tábua Eylekessa
Filha de Tembo
organizo o milho
Trago nas pernas as pulseira pesadas
Dos dias que passaram...
Sou do clã do boi —
Dos meus ancestrais ficou-me a paciência
O sono profundo do deserto,
a falta de limite...
Da mistura do boi e da árvore
a efervescência
o desejo
a intranqüilidade
a proximidade
do mar
Filha de Huco
Com a sua primeira esposa
Uma vaca sagrada,
concedeu-me
o favor das suas tetas úberes
A MÃE E A IRMÃ
A mãe não trouxe a irmã pela mão
viajou toda a noite sobre os seus próprios passos
toda a noite, esta noite, muitas noites
A mãe vinha sozinha sem o cesto e o peixe fumado
a garrafa de óleo de palma e o vinho fresco das espigas
[vermelhas
A mãe viajou toda a noite esta noite muitas noites
[todas as noites
com os seus pés nus subiu a montanha pelo leste
e só trazia a lua em fase pequena por companhia
e as vozes altas dos mabecos.
A mãe viajou sem as pulseiras e os óleos de proteção
no pano mal amarrado
nas mãos abertas de dor
estava escrito:
meu filho, meu filho único
não toma banho no rio
meu filho único foi sem bois
para as pastagens do céu
que são vastas
mas onde não cresce o capim.
A mãe sentou-se
fez um fogo novo com os paus antigos
preparou uma nova boneca de casamento.
Nem era trabalho dela
mas a mãe não descurou o fogo
enrolou também um fumo comprido para o cachimbo.
As tias do lado do leão choraram duas vezes
e os homens do lado do boi
afiaram as lanças.
A mãe preparou as palavras devagarinho
mas o que saiu da sua boca
não tinha sentido.
A mãe olhou as entranhas com tristeza
espremeu os seios murchos
ficou calada
no meio do dia.
(Dizes-me coisas amargas como os frutos)
O CERCADO
De que cor era o meu cinto de missangas, mãe
feito pelas tuas mãos
e fios do teu cabelo
cortado na lua cheia
guardado do cacimbo
no cesto trançado das coisas da avó
Onde está a panela do provérbio, mãe
a das três pernas
e asa partida
que me deste antes das chuvas grandes
no dia do noivado
De que cor era a minha voz, mãe
quando anunciava a manhã junto à cascata
e descia devagarinho pelos dias
Onde está o tempo prometido p'ra viver, mãe
se tudo se guarda e recolhe no tempo da espera
p'ra lá do cercado
(Dizes-me coisas amargas como os frutos)
BOI À VELA
Os bens nascidos na huíla
são altos, magros
navegáveis
de cedo lhes nascem
cornos
leite
cobertura
os cornos são volantes
indicam o sul
as patas lavram o solo
deixando espaço para
a semente
a palavra
a solidão>
A ABÓBORA MENINA
Tão gentil de distante, tão macia aos olhos
vacuda, gordinha,
de segredos bem escondidos
estende-se à distância
procurando ser terra
quem sabe possa
acontecer o milagre:
folhinhas verdes
flor amarela
ventre redondo
depois é só esperar
nela deságuem todos os rapazes.
NOVEMBER WITHOUT WATER
Olha-me p´ra estas crianças de vidro
cheias de água até às lágrimas
enchendo a cidade de estilhaços
procurando a vida
nos caixotes de lixo.
Olha-me estas crianças
transporte
animais de cargas sobre os dias
percorrendo a cidade até os bordos
carregam a morte sobre os ombros
despejam-se sobre o espaço
enchendo a cidade de estilhaços.
*
Chegas
eu digo sede as mãos
fico
bebendo do ar que respiras
a brevidade
assim as águas
a espera
o cansaço.
EX-VOTO
O tempo pode medir-se
No corpo
As palavras de volta tecem cadeias de sombra
Tombando sobre os ombros
A cera derrete
No altar do corpo
Depois de perdida, podem tirar-se
Os relevos
ADORNO
Toda a noite chorei na casa velha
Provei, da terra, as veias finas,
Um nome um nome a causa das coisas
Eu terra eu árvore eu sinto
todas as veias da terra
em mim e
o doce silêncio da noite.
CIRCUM-NAVEGAÇÃO
Em volta da flor fez
a abelha
a primeira viagem
circum-navegando
a esfera
Achado o perímetro
suicidou-se, LÚCIDA
no rio de pólen
descoberto.
Ritos de Passagem, é um livro de poesia escritas entre: 1983-1985 e foi a obra inaugural da autora Ana Paula Tavares.
RAPARIGA
Cresce comigo o boi com que me vão trocar
Amarraram-me às costas, a tábua Eylekessa
Filha de Tembo
organizo o milho
Trago nas pernas as pulseira pesadas
Dos dias que passaram...
Sou do clã do boi —
Dos meus ancestrais ficou-me a paciência
O sono profundo do deserto,
a falta de limite...
Da mistura do boi e da árvore
a efervescência
o desejo
a intranqüilidade
a proximidade
do mar
Filha de Huco
Com a sua primeira esposa
Uma vaca sagrada,
concedeu-me
o favor das suas tetas úberes
A MÃE E A IRMÃ
A mãe não trouxe a irmã pela mão
viajou toda a noite sobre os seus próprios passos
toda a noite, esta noite, muitas noites
A mãe vinha sozinha sem o cesto e o peixe fumado
a garrafa de óleo de palma e o vinho fresco das espigas
[vermelhas
A mãe viajou toda a noite esta noite muitas noites
[todas as noites
com os seus pés nus subiu a montanha pelo leste
e só trazia a lua em fase pequena por companhia
e as vozes altas dos mabecos.
A mãe viajou sem as pulseiras e os óleos de proteção
no pano mal amarrado
nas mãos abertas de dor
estava escrito:
meu filho, meu filho único
não toma banho no rio
meu filho único foi sem bois
para as pastagens do céu
que são vastas
mas onde não cresce o capim.
A mãe sentou-se
fez um fogo novo com os paus antigos
preparou uma nova boneca de casamento.
Nem era trabalho dela
mas a mãe não descurou o fogo
enrolou também um fumo comprido para o cachimbo.
As tias do lado do leão choraram duas vezes
e os homens do lado do boi
afiaram as lanças.
A mãe preparou as palavras devagarinho
mas o que saiu da sua boca
não tinha sentido.
A mãe olhou as entranhas com tristeza
espremeu os seios murchos
ficou calada
no meio do dia.
(Dizes-me coisas amargas como os frutos)
O CERCADO
De que cor era o meu cinto de missangas, mãe
feito pelas tuas mãos
e fios do teu cabelo
cortado na lua cheia
guardado do cacimbo
no cesto trançado das coisas da avó
Onde está a panela do provérbio, mãe
a das três pernas
e asa partida
que me deste antes das chuvas grandes
no dia do noivado
De que cor era a minha voz, mãe
quando anunciava a manhã junto à cascata
e descia devagarinho pelos dias
Onde está o tempo prometido p'ra viver, mãe
se tudo se guarda e recolhe no tempo da espera
p'ra lá do cercado
(Dizes-me coisas amargas como os frutos)
BOI À VELA
Os bens nascidos na huíla
são altos, magros
navegáveis
de cedo lhes nascem
cornos
leite
cobertura
os cornos são volantes
indicam o sul
as patas lavram o solo
deixando espaço para
a semente
a palavra
a solidão>
A ABÓBORA MENINA
Tão gentil de distante, tão macia aos olhos
vacuda, gordinha,
de segredos bem escondidos
estende-se à distância
procurando ser terra
quem sabe possa
acontecer o milagre:
folhinhas verdes
flor amarela
ventre redondo
depois é só esperar
nela deságuem todos os rapazes.
NOVEMBER WITHOUT WATER
Olha-me p´ra estas crianças de vidro
cheias de água até às lágrimas
enchendo a cidade de estilhaços
procurando a vida
nos caixotes de lixo.
Olha-me estas crianças
transporte
animais de cargas sobre os dias
percorrendo a cidade até os bordos
carregam a morte sobre os ombros
despejam-se sobre o espaço
enchendo a cidade de estilhaços.
*
Chegas
eu digo sede as mãos
fico
bebendo do ar que respiras
a brevidade
assim as águas
a espera
o cansaço.
EX-VOTO
O tempo pode medir-se
No corpo
As palavras de volta tecem cadeias de sombra
Tombando sobre os ombros
A cera derrete
No altar do corpo
Depois de perdida, podem tirar-se
Os relevos
ADORNO
Toda a noite chorei na casa velha
Provei, da terra, as veias finas,
Um nome um nome a causa das coisas
Eu terra eu árvore eu sinto
todas as veias da terra
em mim e
o doce silêncio da noite.
CIRCUM-NAVEGAÇÃO
Em volta da flor fez
a abelha
a primeira viagem
circum-navegando
a esfera
Achado o perímetro
suicidou-se, LÚCIDA
no rio de pólen
descoberto.
Ritos de Passagem, é um livro de poesia escritas entre: 1983-1985 e foi a obra inaugural da autora Ana Paula Tavares.
O livro gira em torno do universo feminino africano e é por meio da metáfora dos frutos, aborda temas como: amor, nascimento, traição, morte...
Pela primeira vez a imagem da mulher, vista como simples pro-criadora, foi desconstruída para dar lugar a mulher que tem sentimentos, ideias, que ama e sente prazer...
Hoje o livro é considerado o marco na literatura angolana, justamente pela introdução de novos temas, porque abriu portas para outras escritoras e porque contribuiu significativamente para a construção da identidade nacional da mulher angolana.
_________________
Ana Paula Tavares - Poetisa e historiadora nascida em Lubango, na província de Huila, em 30 de outubro de 1952. Obteve o grau de Mestre em Literaturas Africanas pela Universidade de Lisboa.
Iniciou o seu curso de história na Faculdade de Letras do Lubango (hoje ISCED, Instituto Superior de Ciências da Educação do Lubango), terminando-o em Lisboa. Em 1996 concluiu o Mestrado em Literaturas Africanas. Atualmente vive em Portugal, faz o Doutoramento em literatura e leciona na Universidade Católica de Lisboa. Sempre trabalhou na área da cultura, museologia, arqueologia e etnologia, património, animação cultural e ensino.
Tanto a prosa como a poesia de Ana Paula Tavares estão presentes em várias antologias publicadas em Portugal, no Brasil, em França, na Alemanha, em Espanha e na Suécia.
A escrita de Ana Paula Tavares sofreu influência de autores brasileiros, como Manuel Bandeira, Jorge Amado, Carlos Drummond de Andrade e João Cabral de Mello Neto, cujas obras chegavam a Angola por meio de viajantes. Segundo a poeta, não só a literatura, mas também a música brasileira influenciou sua escrita.
Obras: Ritos de passagem (poesia). Luanda: UEA, 1985 [2ª ed. Lisboa: Caminho, 2007]. Sangue da buganvília: crônicas (prosa). Centro Cultural Português Praia-Mindelo, 1998. O Lago da Lua (poesia). Lisboa: Caminho, 1999. Dizes-me coisas amargas como os frutos (poesia). Lisboa: Caminho, 2001. Ex- votos, 2003. A Cabeça de Salomé (prosa). Lisboa: Caminho, 2004. Os olhos do homem que chorava no rio (romance), em coautoria com Manuel Jorge Marmelo. Lisboa: Caminho, 2005. Manual Para Amantes Desesperados (poesia). Lisboa: Caminho, 2007.
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Ana Paula Tavares - Poetisa e historiadora nascida em Lubango, na província de Huila, em 30 de outubro de 1952. Obteve o grau de Mestre em Literaturas Africanas pela Universidade de Lisboa.
Iniciou o seu curso de história na Faculdade de Letras do Lubango (hoje ISCED, Instituto Superior de Ciências da Educação do Lubango), terminando-o em Lisboa. Em 1996 concluiu o Mestrado em Literaturas Africanas. Atualmente vive em Portugal, faz o Doutoramento em literatura e leciona na Universidade Católica de Lisboa. Sempre trabalhou na área da cultura, museologia, arqueologia e etnologia, património, animação cultural e ensino.
Tanto a prosa como a poesia de Ana Paula Tavares estão presentes em várias antologias publicadas em Portugal, no Brasil, em França, na Alemanha, em Espanha e na Suécia.
A escrita de Ana Paula Tavares sofreu influência de autores brasileiros, como Manuel Bandeira, Jorge Amado, Carlos Drummond de Andrade e João Cabral de Mello Neto, cujas obras chegavam a Angola por meio de viajantes. Segundo a poeta, não só a literatura, mas também a música brasileira influenciou sua escrita.
Obras: Ritos de passagem (poesia). Luanda: UEA, 1985 [2ª ed. Lisboa: Caminho, 2007]. Sangue da buganvília: crônicas (prosa). Centro Cultural Português Praia-Mindelo, 1998. O Lago da Lua (poesia). Lisboa: Caminho, 1999. Dizes-me coisas amargas como os frutos (poesia). Lisboa: Caminho, 2001. Ex- votos, 2003. A Cabeça de Salomé (prosa). Lisboa: Caminho, 2004. Os olhos do homem que chorava no rio (romance), em coautoria com Manuel Jorge Marmelo. Lisboa: Caminho, 2005. Manual Para Amantes Desesperados (poesia). Lisboa: Caminho, 2007.
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