quinta-feira, 2 de maio de 2024

dor de cotovelo - cornitude

Lupicínio Rodrigues


"Vingança" (1972)´
Lupicínio Rodrigues canta uma música que ele próprio compôs, "Vingança", num programa da TV Cultura de 1972. (Fonte: "Arquivo N" da Globo News)




Eu gostei tanto
Tanto quando me contaram
Que a encontraram
Bebendo e chorando
Na mesa de um bar
E que quando os amigos do peito
Por mim perguntaram
Um soluço cortou sua voz
Não lhe deixou falar
Mas eu gostei tanto
Tanto, quando me contaram
Que tive mesmo de fazer esforço
Para ninguém notar

O remorso talvez seja a causa
Do seu desespero
Ela deve estar bem consciente
Do que praticou
Me fazer passar esta vergonha
Com um companheiro
E a vergonha
É a herança maior que meu pai me deixou
Mas, enquanto houver força no meu peito
Eu não quero mais nada
E pra todos os santos
Vingança, vingança
Clamar
Ela há de rolar qual as pedras
Que rolam na estrada
Sem ter nunca um cantinho de seu
Para poder descansar


Lupicínio Rodrigues (1914–1974) foi um importante compositor e cantor brasileiro. Suas composições o consagram como um nome referencial na formação da música popular brasileira da primeira metade do século XX, destacando-o como um dos principais representantes do samba-canção.


"Nervos de aço"
Lupicínio & Paulinho da Viola 

O samba-canção "Nervos de Aço", de Lupicínio Rodrigues, foi lançado originalmente em 1947 pelo cantor e compositor Francisco Alves, conhecido como O Rei da Voz e falecido em 1952 num acidente de carro na via Dutra. Em pouco tempo, a canção se tornaria um clássico de seu repertório e da própria música popular brasileira. Vale lembrar que Chico Alves foi o primeiro a gravar, em 1948, "Esses moços" (Pobres moços), outro clássico de Lupicínio.




Você sabe o que é ter um amor, meu senhor?
Ter loucura por uma mulher
E depois encontrar esse amor, meu senhor
Nos braços de um tipo qualquer?

Você sabe o que é ter um amor, meu senhor
E por ele quase morrer
E depois encontrá-lo em um braço
Que nem um pedaço do meu pode ser?

Há pessoas de nervos de aço
Sem sangue nas veias e sem coração
Mas não sei se passando o que eu passo
Talvez não lhes venha qualquer reação

Eu não sei se o que trago no peito
É ciúme, é despeito, amizade ou horror
Eu só sinto é que quando a vejo
Me dá um desejo de morte ou de dor

Você sabe o que é ter um amor, meu senhor?
Ter loucura por uma mulher
E depois encontrar esse amor, meu senhor
Nos braços de um tipo qualquer?

Você sabe o que é ter um amor, meu senhor
E por ele quase morrer
E depois encontrá-lo em um braço
Que nem um pedaço do meu pode ser?



Lupicínio Rodrigues nasceu em Porto Alegre, Rio Grande do Sul, no dia 16 de setembro de 1914. Ele compôs marchinhas de carnaval e sambas-canção, músicas que expressam muitos sentimentos, principalmente a melancolia por um amor perdido. Foi o inventor do termo “dor-de-cotovelo”, que se refere à prática de quem crava os cotovelos em um balcão ou mesa de bar, pede um uísque duplo e chora pela perda da pessoa amada.


"Cadeira vazia"
Elis Regina - (Lupicínio Rodrigues / Alcides Gonçalves)




Lupicínio buscou inspiração em sua própria vida, onde a traição e o amor andavam sempre juntos. Ele frequentemente foi abandonado pelas mulheres, e essa experiência pessoal refletiu em suas canções.

Durante sua vida, Lupicínio Rodrigues nunca morou fora do Rio Grande do Sul e raramente se afastava de seu estado por períodos prolongados. Ele viveu na antiga Ilhota, um núcleo de concentração da população negra em Porto Alegre. Boêmio, ele foi proprietário de diversos bares, churrascarias e restaurantes com música.


"Felicidade" (1974)
Caetano Veloso 





Como torcedor do Grêmio, Lupicínio compôs o hino tricolor em 1953:

Até a pé nós iremos, para que der e vier. Mas o certo é que nós estaremos com o Grêmio onde o Grêmio estiver.

Seu retrato está na Galeria dos Gremistas Imortais, no salão nobre do clube. Lupicínio deixou cerca de uma centena e meia de canções editadas, além de outras centenas que compôs e foram perdidas, esquecidas ou estão à espera de quem as resgate. Ele está sepultado no Cemitério São Miguel e Almas em Porto Alegre.


"Esses moços
Gilberto Gil e Rildo Hora - (Lupicínio Rodrigues)





Em 21 de agosto de 1974, Lupicínio foi internado no Hospital Ernesto Dornelles devido a uma insuficiência cardíaca, doença que provocou sua morte pouco menos de uma semana depois, no dia 27.

Em 4 de novembro de 2014, a Câmara Municipal de Porto Alegre concedeu o título in memoriam de Cidadão Emérito de Porto Alegre a Lupicínio Rodrigues.


Especial Lupicínio Rodrigues - O Amor deve ser Sagrado

   O cantor Zé Renato é quem comanda a atração. Ele recebe músicos renomados e jovens talentos da MPB: Ney Matogrosso, João Bosco, Dori Caymmi, Léo Gandelman, Júlia Vargas, Iara Ferreira e João Cavalcanti.
   Intimista, o especial conta com os clássicos sambas do tipo "dor de cotovelo", como o próprio Lupicínio os chamava: Quem há de dizer; Esses moços; Nervos de aço; Nunca; Vingança; Se acaso você chegasse; Cadeira vazia; Volta; Maria Rosa; Aves daninhas; Exemplo; Fuga; e uma das mais famosas, a canção Felicidade. As gravações aconteceram no teatro do Centro Municipal de Referência da Música Carioca Artur da Távola, no Rio de Janeiro.
   Para Zé Renato, “Lupicínio é um grande melodista. Ele tem esse jeito de contar a vida dele através da música e consegue transformar tudo isso em poesia com um refinamento melódico muito grande. E cada artista, no show, vai passar com sensibilidade essa história de Lupicínio.”
   Intérpretes como Jamelão, Elza Soares, Elis Regina, Paulinho da Viola, Ciro Monteiro, Francisco Alves, Caetano Veloso, e Gal Costa já gravaram canções de Lupicínio Rodrigues, que saiu de cena em 27 de agosto de 1974.
   Nascido em Porto Alegre, em 16 de setembro de 1914, Lupicínio preferiu os temas soturnos da desilusão, da saudade e do abandono. Seu centenário é a celebração da vida de um dos mais inquietos e originais criadores do Brasil, que, para compor, utilizava-se de assovios e casos de amor.





Direção e Criação: Locca Faria
Direção Musical: Zé Renato
Arranjos: João Carlos Coutinho e Zé Renato
Produção: Visom Digital
Realização: TV Brasil

Repertório e intérpretes:
Esses moços, Quem há de dizer, Fuga, Exemplo: Zé Renato
Nervos de Aço: Ney Matogrosso
Se acaso você chegasse: João Bosco
Ave Daninhas: Júlia Vargas
Maria Rosa: João Cavalcanti
Cadeira vazia: Ney Matogrosso e Zé Renato
Volta: Iara Ferreira
Nunca: Dori Caymmi
Vingança: João Bosco
Felicidade: todos os cantores
http://tvbrasil.ebc.com.br/especiaist...


LUPICÍNIO RODRIGUES - CONFISSÕES DE UM SOFREDOR 
| Trailer Oficial





LUPICÍNIO RODRIGUES: CONFISSÕES DE UM SOFREDOR 
| Entrevista com diretor




  O cineasta Alfredo Manevy conta histórias do compositor Lupicínio Rodrigues presentes no documentário biográfico que leva o nome do músico e o subtítulo "Confissões de um Sofredor"

Ulisses - Parte 2 (4c): Ele acomodou o livro

Ulisses

James Joyce

Parte 2

4

continuando...

   Ele acomodou o livro de qualquer jeito no seu bolso interior e, dando uma topada com os dedos dos pés contra a cômoda quebrada, saiu apressadamente em direção ao cheiro, descendo rapidamente a escada com pernas de uma cegonha agitada. Uma fumaça pungente se elevou com um jato raivoso de um lado da panela. Cutucando com um dente do garfo por baixo do rim ele o destacou e o virou de borco. Só um pouco queimado. E jogou-o então da panela num prato e deixou que o molho marrom reduzido gotejasse sobre ele.
   Uma xícara de chá agora. Ele se sentou, cortou uma fatia de pão e passou manteiga nela. Separou a superfície queimada e a jogou para a gata. Em seguida pôs uma garfada na boca, mastigando com discernimento a carne maleável e saborosa. No ponto exato. Um gole de chá. Então ele cortou fora pedacinhos de pão, embebeu um no molho e o pôs na boca. Que história era aquela de um jovem estudante e de um piquenique? Desamassou a carta ao seu lado e a leu lentamente enquanto mastigava, embebendo um outro pedacinho de pão no molho e o levando à boca.

Meu querido paizinho

Obrigadíssima pelo lindo presente de aniversário. Ele ficou esplêndido em mim. Todos dizem que eu fico uma beldade com o novo gorro escocês. Eu recebi a bonita caixa de bombons de chocolate de leite de mamãe e estou escrevendo. Eles são muito saborosos. Estou me saindo muito bem no negócio de fotografia agora. O Sr. Coghlan tirou uma foto de mim com a Sra. Vou mandar quando reproduzida. Ontem foi um dia ótimo para os negócios. Um dia bonito e todas as mulheres de pernas grossas estavam presentes. Na segunda-feira nós vamos com alguns amigos a um piquenique informal no lago Owel. Dê meu carinho a mamãe e para você um grande beijo e obrigada. Eu os ouço tocando piano lá embaixo. No sábado vai haver um concerto no Greville Arms. Há um jovem estudante chamado Bannon que vem algumas noites aqui seus primos ou coisa que o valha são da alta e ele canta a canção de Boylan (eu estava prestes a escrever Blazes Boylan) sobre as moças à beira da praia. Diga-lhe que a Silly-Milly lhe manda lembranças. Tenho que terminar agora com todo o meu amor.
A filha que o ama  
Milly
P.S. Desculpe a letra ruim estou apressada. Baibai.

M. 
   Quinze anos ontem. Curioso, dia quinze do mês também. Seu primeiro aniversário fora de casa. Separação. Eu me lembro da manhã de verão em que ela nasceu, correndo para bater na porta da Sra. Thornton em Denzille Street. Uma senhora idosa alegre. Ela deve ter contribuído para trazer ao mundo uma porção de bebês. Ela soube desde o início que o nosso pobre pequeno Rudy não viveria. Ora, Deus é bom, senhor. Ela soube imediatamente. Ele teria onze anos agora se tivesse vivido. 

   O rosto apático dele fixava compassivamente o pós-escrito. Desculpe a letra ruim. Pressa. Piano lá embaixo. Ela saindo da concha. A briga com ela no XLCafé sobre a pulseira. Não queria comer os bolos ou falar ou olhar. Atrevidinha. Ele embebeu outros pedacinhos de pão no molho e comeu pedaço por pedaço do rim. Doze shillings e seis por semana. Não muito. Assim mesmo ela podia estar em situação pior. Palco de musical. Jovem estudante. Ele tomou um gole de chá mais frio para banhar sua refeição. Em seguida leu a carta novamente: duas vezes. 
   Ó, tudo bem: ela sabe como se cuidar. Mas se não? Não, não aconteceu nada. Naturalmente que poderia. De qualquer jeito espere até que aconteça. Uma peça agreste de mercadoria. Suas pernas finas subindo correndo a escada. Destino. Amadurecendo agora. Vaidosa: muito. 
   Ele sorriu com uma preocupação afetiva para a janela da cozinha. O dia em que a peguei beliscando as bochechas para torná-las vermelhas. Um pouco anêmica. Foi-lhe dado leite tempo demais. Aquele dia no Rei de Erin em volta do Kish. Miserável barco velho jogando de popa a proa. Nem um pouco amedrontada. Sua echarpe azul-claro solta ao vento com o seu cabelo.  

Aquelas moças de se sonhar, 
Aquelas moças da beira-mar.

   Milly também. Beijos jovens: o primeiro. Bem longe agora o passado. Sra. Marion. Lendo, recostada agora, contando os fios de seus cabelos, sorrindo, trançando.
   Um suave receio, tristeza, percorreu sua espinha dorsal, num crescendo. Vai acontecer, sim. Impedir. Inútil: não posso alterar nada. Lábios delicados e doces de moça. Vai acontecer também. Sentiu o receio fluindo espalhar-se sobre ele. Inútil alterar agora. Lábios beijados, beijando, beijados. Lábios grossos e pegajosos de mulher.
   Melhor que esteja lá: longe. Ocupá-la. Queria um cachorro para passar o tempo. Podia viajar para lá. Feriado bancário de agosto, apenas duas e seis ida e volta. Seis semanas fora, no entanto. Podia cavar um passe de imprensa. Ou através de M’Coy.
   A gata, tendo limpado todo o seu pelo, voltou para o papel manchado de carne, cheirou-o e rastejou até a porta. Olhou de volta para ele, miando. Quer sair. Espere até que uma porta em determinado momento se abra. Que ela espere. Fica inquieta. Elétrica. Tempestade no ar. Estava lavando sua orelha com o dorso também voltado para a lareira.
   Ele se sentia pesado, cheio: então uma suave soltura de seus intestinos. Levantou-se, abrindo o cós da calça. A gata miou para ele.

– Miau – disse ele, em resposta. – Espere até eu terminar.

   Indolência: dia quente se aproximando. Trabalho demais se esfalfar subindo a escada até o patamar. 
   Um jornal. Ele gostava de ler na privada. Espero que nenhum chato venha bater na porta justo na hora em que eu estiver.
   Na gaveta da mesa ele encontrou um antigo número do Titbits. Dobrou-o e o pôs debaixo do braço, foi para a porta e a abriu. A gata subiu em saltos ágeis. Ah, queria ir lá para cima, enroscar-se como uma bola na cama.
   Escutando, ele ouviu a voz dela:

– Venha, venha, gatinha. Venha.

   Ele saiu pela porta dos fundos para o jardim: parou para escutar o que vinha do jardim vizinho. Nenhum som. Talvez estivesse pendurando roupas para secar. A empregada estava no jardim. Bela manhã.
   Ele se inclinou para contemplar uma magra fileira de hortelãs crescendo muro acima. Fazer um quiosque aqui. Feijões escarlates. Trepadeiras da Virgínia. É preciso estrumar todo o lugar, solo ingrato. Uma camada escura de potássio e enxofre. Todo solo seria assim se não se adubasse. Restos domésticos. Barro, o que é que é isso afinal? As galinhas do jardim vizinho: seus excrementos são adubo de primeira. No entanto o melhor é o do gado, especialmente quando eles são alimentados com torta de linhaça. Excremento arenoso. Melhor coisa para limpar luvas de senhoras de pele de cabra. A sujeira limpa. Cinza também. Reformar todo o lugar. Plantar ervilha naquele canto ali. Alface. Ter sempre então verduras frescas. Ainda assim os jardins têm seus inconvenientes. Aquela abelha ou mosca-varejeira aqui na segunda-feira de Páscoa. 
   Ele continuou a andar. Por falar nisso, onde está o meu chapéu? Devo tê-lo posto de volta no cabide. Ou deixado no chão. Engraçado, eu não me lembro disso. Cabideiro cheio demais. Quatro guarda-chuvas, capa de chuva dela. Pegando as cartas. A campainha da loja Drago tocando. Esquisito eu estava justamente pensando naquele momento. Cabelo castanho-escuro com brilhantina sobre o colarinho dele. Acabou de ser lavado e escovado. Eu me pergunto se vou ter tempo para um banho esta manhã. Tara Street. O camarada da caixa registradora ali ajudou James Stephens a escapar, dizem. O’Brien.
   Voz grave tem aquele camarada Dlugacz. Agendath o que é isso? Ora, minha senhorinha. Entusiasta.
   Chutando ele abriu a porta rachada do sanitário. É bom ter cuidado para não sujar esta calça para o enterro. Ele entrou, abaixando a cabeça sob o lintel baixo. Deixando a porta entreaberta, em meio ao mau cheiro de caiação mofada e teias de aranha bolorentas ele arriou o suspensório. Antes de se sentar deu uma olhadela através de uma fenda para a janela do vizinho. O rei estava no seu escritório de contabilidade. Ninguém.
   Acocorado no vaso sanitário ele abriu o jornal, virando as páginas sobre seus joelhos nus. Alguma coisa nova e fácil. Nada de muita pressa. Retenhamos um pouco. Nosso prêmio titbit: Golpe de mestre de Matcham. Escrito pelo Sr. Philip Beaufoy, Clube dos Aficionados do Teatro, Londres. Pagamento na base de um guinéu por coluna foi feito ao escritor. Três e meia. Três libras e três. Três libras, treze e seis.
   Tranquilamente ele leu, se contendo, a primeira coluna e, cedendo mas resistindo, começou a segunda. No meio do caminho, sua última resistência cedeu, ele permitiu que seus intestinos se esvaziassem tranquilamente enquanto ele lia, lendo ainda pacientemente aquela ligeira prisão de ventre da véspera tinha-se ido. Espero que não seja grande demais para não provocar novamente hemorroidas. Não, justo o tamanho. Assim. Ah! Prisão de ventre. Um tablete de cáscara-sagrada. A vida devia ser assim. Isso não o agitava nem o emocionava mas era alguma coisa rápida e limpa. Imprima qualquer coisa agora. Estação tola. Ele continuou a ler sentado calmamente sobre o seu próprio cheiro que se elevava. Limpo certamente. Matcham pensa frequentemente no golpe de mestre por meio do qual conquistou a feiticeira risonha com quem agora. Começa e termina moralmente. De mãos dadas. Esperto. Ele olhou para trás para o que tinha lido e, enquanto sentia a urina fluir tranquilamente, invejava brandamente o Sr. Beaufoy que tinha escrito isso e recebido pagamento de três libras, treze e seis.
   Podia arranjar um esquete. Pelo Sr. e a Sra. L. M. Bloom. Inventar uma história para algum provérbio. Qual? Houve tempo em que eu costumava tentar rabiscar no meu punho o que ela dizia ao se vestir. Não gosto que nos vistamos juntos. Me cortei ao me barbear. Ela mordendo o lábio inferior, ao enganchar a abertura de sua saia. Marcando o tempo dela. 9:15. Roberts já lhe pagou? 9:20. O que Gretta Conroy estava usando? 9:23. O que me fez comprar este pente? 9:24. Estou inchada depois daquele repolho. Um grão de pó na bota de verniz dela: esfregando vivamente de cada vez cada dobra da bota de encontro à barriga da perna com meia. Manhã depois da dança do bazar quando a banda de May tocou a dança das horas de Ponchielli. Explique-se isso: horas da manhã, meio-dia, então o entardecer chegando, então horas da noite. Ela lavando os dentes. Aquela foi sua primeira noite. Sua cabeça dançando. Seu leque clicando ao fechar. Esse tal de Boylan está bem de vida? Ele tem dinheiro. Por quê? Eu reparei que ele exala um cheiro bom da sua boca ao dançar. Não adianta cantarolar então. Aluda a isso. Tipo estranho de música naquela última noite. O espelho estava na sombra. Ela esfregou seu espelho de mão rapidamente na sua roupa de lã de encontro ao seio roliço e balouçante. Espreitando para dentro dele. Rugas nos seus olhos. De uma forma ou de outra não ia dar resultado.
   Horas crepusculares, moças em gaze cinza. Horas noturnas então: pretume com punhais e máscaras nos olhos. Ideia poética: rosa, e então dourado, e então cinza, e então preto. Ainda assim, fiel à realidade também. Dia: e então a noite.
   Ele rasgou com força metade da história premiada e se limpou com ela. Em seguida suspendeu a calça, pôs o suspensório e se abotoou. Puxou a porta desconjuntada do sanitário e saiu da penumbra para o ar livre.
   Na luz clara, com os membros frios e leves, ele olhou cuidadosamente para sua calça preta: as extremidades, os joelhos, os jarretes dos joelhos. A que horas é o enterro? Melhor verificar no jornal.
   Um rangido e um zunido sombrio bem alto no ar. Os sinos da igreja de São Jorge. Eles soaram a hora: elevado ferro escuro.

Haiho! Haiho! 
Haiho! Haiho! 
Haiho! Haiho!

   Um quarto para. Lá vai novamente: o som concomitante prosseguindo através do espaço. Um terceiro.
   Pobre Dignam!
 
continua na página 70...
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Ulisses - Parte 2 (4c): Ele acomodou o livro
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Joyce, James 
Ulisses [recurso eletrônico] / James Joyce ; tradução Bernardina da Silveira Pinheiro ; [seleção, elaboração e tradução das notas de capítulos Flavia Maria Samuda]. - Rio de Janeiro : Objetiva, 2010. Romance irlandês.

quarta-feira, 1 de maio de 2024

New York Jazz

Jazz Saxophone Instrumental Music


os corpos
a música
a dança

despiertan
ciúmes qui atormentan
es por ti
sax
tenor
soprano
es por ti
ouvi-lo 
me vem recordação
dessa paixão
havia luz 
e escuridão
loucura infinita
conforto e dor






🎧New York Jazz Playlist 🎧

00:00 Why Don’t You Do Right
04:12 Summertime
08:01 My Funny Valentine
14:37 It Had To Be You
18:38 The Girl From Ipanema
25:14 The Nearness Of You
32:04 Harlem Nocturne
37:32 Straighten Up & Fly Right
40:54 Barbados
45:40 Europa
51:37 Moonlight Serenade
57:41 Stranger On The Shore

O Apanhador no Campo de Centeio - 12 : O táxi que tomei era velho

 O Apanhador no Campo de Centeio


J.D. Salinger


12

   O táxi que tomei era velho pra chuchu e cheirava como se alguém tivesse acabado de vomitar ali mesmo. Sempre que tomo um táxi de madrugada, tem que estar fedendo a vômito. E o pior é que a rua estava um bocado silenciosa e deserta, embora fosse uma noite de sábado. Não se via quase ninguém. Aqui e ali tinha um homem e uma mulher atravessando a rua, abraçados pela cintura e tudo, ou um grupo de imbecis com as namoradas, todos rindo como umas hienas de qualquer coisa que, aposto, não tinha a menor graça. Nova York é terrível quando alguém ri de noite na rua; pode-se ouvir a gargalhada a quilômetros de distância. É o tipo do troço que faz a gente se sentir só e deprimido. Continuava com vontade de ir para casa e fazer um pouco de hora com a Phoebe. Mas afinal, depois de algum tempo no táxi, eu e o chofer começamos a conversar. O nome dele era Horwitz. Era um sujeito muito mais simpático do que o outro motorista com quem eu tinha andado antes. Seja como for, pensei que ele talvez soubesse alguma coisa sobre os patos.

- Êi, Horwitz. Você conhece aquele laguinho no Central Park? Aquele lá pro lado sul? 

- Conheço o quê

- O laguinho. Aquele lago pequeno que tem lá. Sabe qual é, onde ficam os patos... 

- Sei, mas quê que tem? 

- Bom, sabe aqueles patos que ficam nadando nele? Na primavera e tudo? Será que por acaso você sabe pra onde eles vão no inverno? 

- Pra onde vai quem

- Os patos. Será que você sabe, por um acaso? Será que alguém vai lá num caminhão ou sei lá o quê, e leva eles embora, ou será que eles voam sozinhos, pro sul ou coisa que o valha? 

   O tal do Horwitz virou para trás e me olhou. Era um sujeito do tipo impaciente pra burro. Mas não era má pessoa. 

- Como é que vou saber? Como é que vou saber um negócio idiota desses, pomba? 

- Tá bem, não precisa se aborrecer - falei. 

   Ele ficou danado com aquilo, sei lá por quê. 

- Quem é que está aborrecido? Ninguém tá aborrecido. 

   Se era para o sujeito ficar assim todo chateado, preferi suspender a conversa. Mas ele mesmo puxou assunto outra vez. Virou-se de novo para trás e disse: 

- Os peixes não vão pra lugar nenhum. Ficam lá mesmo onde estão, os peixes. Na droga do lago mesmo. 

- Com os peixes é diferente. Aí são outros quinhentos. Tou falando dos patos

- O quê que é diferente com eles? Não vejo nada de diferente - ele respondeu. 

   Tudo que ele falava parecia que estava aporrinhado com alguma coisa. E continuou: - É muito pior pros peixes, no inverno e tudo, do que pros patos, não vê logo? Usa a cabeça, pôxa! 

   Fiquei calado mais ou menos um minuto. Aí falei: 

- Tá bem. Então, o que é que os peixes fazem quando o laguinho vira um bloco de gelo e tem uma porção de gente patinando nele e tudo? 

   O Horwitz se virou para trás de novo. - O quê que os peixes fazem? - gritou para mim. 

- Pomba, ficam ali mesmo onde estão, ora essa! 

- Mas eles não podem simplesmente ignorar o gelo. Não podem só fazer de conta que não tem gelo. 

- Mas quem é que ignora o gelo? Ninguém tá ignorando nada!

   O sujeito estava tão excitado e tudo que pensei que ele ia se arrebentar em cima dum poste ou coisa parecida.

- Vivem ali mesmo, dentro da porcaria do gelo. Já são feitos assim mesmo, por natureza. Ficam congelados o inverno todo na mesma posição. 

- É? Então quê que eles comem, hem? Quer dizer, se ficam congelados, durinhos, então não podem nadar e procurar comida nem nada. 

- O corpo deles, pomba... Quê que há contigo? O corpo deles retira a nutrição e tudo da droga das algas e da merda toda que tem no gelo. Eles ficam com os poros abertos o tempo todo. São assim mesmo por natureza. Tá entendendo agora? - ele falou, e virou outra vez no banco para me olhar. 

- Tá bom - respondi. Deixei o assunto morrer. Estava com medo que ele arrebentasse a droga do táxi. Além disso, era um cara tão estourado que não dava prazer nenhum conversar com ele. 

- Você se incomoda de dar uma paradinha e tomar um trago comigo em algum lugar? - perguntei. 

   Mas não me respondeu. Acho que ainda estava pensando. De qualquer maneira, perguntei de novo. Era um sujeito um bocado simpático. Muito divertido e tudo.

- Não tenho tempo pra andar bebendo, ô meu. E, afinal, qual é a tua idade, hem? Por que é que você já não está dormindo a esta hora? 

- Não estou cansado. 

   Quando desci na frente do Ernie's e paguei a corrida, o tal Horwitz puxou o assunto do peixe outra vez. O troço não saía mesmo da cabeça do homenzinho.

- Escuta. Se você fosse um peixe, a Natureza ia tomar conta de você, não ia? É ou não é? Ou você acha que tudo quanto é peixe morre quando chega o inverno, hem? 

- Não, mas... 

- É claro que não, pomba - ele falou, e arrancou com o carro como se fosse o diabo fugindo da cruz. Era um dos sujeitos mais invocados que eu encontrei até hoje na minha vida. Tudo que a gente dizia deixava ele furioso.

   Embora já fosse um bocado tarde, o Ernie's estava entupido de gente. Na maioria eram esses palhações das universidades. Em quase todas as drogas dos colégios do mundo as férias de Natal começam antes do que nos colégios em que eu estou. A gente quase não podia pendurar o sobretudo, de tão cheio. Mas era um silêncio danado, porque o Ernie estava tocando. Parecia que era um troço sagrado, no duro, a hora em que ele sentava para tocar. Ninguém pode ser tão bom assim. Ao meu lado estavam três casais, esperando vagar mesa, e ficaram todos na ponta dos pés, se empurrando, só para dar uma olhada no Ernie, enquanto ele tocava. Tinha um baita espelho em frente do piano e um refletor bem em cima do Ernie, para que todo mundo pudesse ver a cara dele enquanto tocava. Não dava para ver os dedos, só a droga da cara do safado. Grande coisa. Não sei direito o nome da música que ele estava tocando quando entrei, mas só sei que ele estava esculhambando mesmo o troço pra valer. Dando uma porção de floreios imbecis nos agudos e outras palhaçadas que me aporrinham pra chuchu. Mas valia a pena ver os idiotas quando ele acabou. Era de vomitar. Entraram em órbita, igualzinho aos imbecis que riem como umas hienas, no cinema, das coisas sem graça. Juro por Deus que, se eu fosse um pianista, ou um autor, ou coisa que o valha, e todos aqueles bobalhões me achassem fabuloso, ia ter raiva de viver. Não ia querer nem que me aplaudissem. As pessoas sempre batem palmas pelas coisas erradas. Se eu fosse pianista, ia tocar dentro de um armário. Seja como for, na hora que ele acabou e todo mundo estava aplaudindo como uns alucinados, o safado do Ernie deu uma volta no banquinho e fez uma reverência fingida, bancando o humilde. Como se, além de ser um pianista bom pra burro, fosse também um sujeito um bocado humilde. Era um troço cretino pra diabo aquilo dele ser metido a besta e tudo. Mas, de um jeito meio engraçado, senti pena dele quando acabou a música. Acho que ele nem sabe mais quando está tocando bem ou não. A culpa não é toda dele. Em parte, os culpados são aqueles bobalhões que batem palmas como uns alucinados: eles são capazes de enganar qualquer um, se tiverem uma chance. De qualquer maneira, o troço me fez sentir deprimido e podre outra vez, e quase apanhei meu casaco e voltei para o hotel, mas era cedo demais e eu não estava com muita vontade de ficar sozinho.
   Afinal me arranjaram uma mesa nojenta, encostada à parede e bem atrás de uma droga duma coluna, de onde não dava para ver nada. Era uma dessas mesinhas pequenininhas que, se o pessoal da mesa ao lado não se levanta para dar passagem - e os filhos da mãe nunca se levantam - a gente tem praticamente de fazer uma escalada para chegar na cadeira. Mandei vir um uísque e soda, que é o drinque que eu prefiro se não tiver daiquiri. Qualquer sujeito com uns seis anos de idade pode pedir bebida alcoólica no Ernie's. Primeiro, porque o lugar é tão escuro e tudo, e depois porque ninguém está mesmo dando a mínima bola para a idade da gente. O sujeito pode ser até viciado em entorpecente que ninguém se importa.
   Eu estava cercado de imbecis. Fora de brincadeira. Na outra mesinha, bem do meu lado esquerdo, praticamente em cima de mim, tinha um casal com umas caras feiosas pra burro. Tinham mais ou menos a minha idade, ou um pouquinho mais. Era engraçado. A gente via logo que eles estavam tomando um cuidado tremendo para não beber a consumação mínima muito depressa. Fiquei ouvindo algum tempo a conversa deles, porque não tinha mesmo mais nada para fazer. Ele estava contando a ela uma droga dum jogo de futebol que tinha visto naquela tarde. E descreveu todas as jogadas da droga da partida, da primeira à última! - fora de brincadeira. Era o sujeito mais chato que já encontrei em toda a minha vida. E dava para ver que a garota dele nem estava interessada na droga do jogo, mas ela era ainda mais feiosa do que ele, por isso eu acho que ela tinha mesmo de ouvir. O negócio não é mole para as garotas feias. Às vezes, elas me dão muita pena, nem gosto de olhar para elas, especialmente quando estão com um idiota que fica contando toda uma porcaria duma partida de futebol. Mas, à minha direita, a conversa ainda estava pior. Tinha um sujeito metido a besta, com um terno de flanela cinza e um desses coletes afrescalhados. Todos esses filhos da mãe das universidades se vestem igual. Meu pai quer que eu vá para uma dessas universidades metidas a bem, Yale ou talvez Princeton, mas juro que não me pegam nesses lugares cretinos nem morto, no duro mesmo. Seja como for, esse sujeito com pinta de aluno da Yale estava com uma garota espetacular. Puxa, ela era um estouro. Mas valia a pena ouvir a conversa dos dois. Em primeiro lugar, os dois já estavam meio altos. Ele estava passando a mão nas coxas dela, por baixo da mesa e tudo, e ao mesmo tempo contando a estória dum colega dele que tinha engolido um vidro inteiro de aspirina e quase se suicidou. Ela ficava só dizendo para ele: "Que horrível... Não, querido. Por favor. Não, aqui não..." Imagina só, passar a mão numa garota e ao mesmo tempo contar a ela o caso de um cara que tentou se suicidar! Era o máximo!
   Mas acabei me sentindo meio jogado fora, sentado ali sozinho. Não tinha nada para fazer senão fumar e beber. Acabei dizendo ao garçom para convidar o safado do Ernie para tomar um drinque comigo. Mandei dizer ao Ernie que eu era o irmão do D. B. Mas acho que nem deu o meu recado. Esses sacanas nunca dão os recados da gente a ninguém.
   De repente, uma garota veio andando na minha direção e disse:

- Holden Caulfield!

   O nome dela era Lillian Simmons. Meu irmão D. B. andou saindo com ela algum tempo. Tinha uns peitões enormes. 

- Como vai - respondi. Naturalmente, tentei me levantar, mas era impossível ficar em pé num lugar daqueles. Ela estava acompanhada de um oficial da Marinha que parecia ter engolido um cabo de vassoura. 

- Que maravilhoso encontrar com você! - ela falou. Puro fingimento. - Como vai teu irmão? - perguntou. Era só isso que ela queria saber.   

- Está bem. Ele está em Hollywood. 

- Em Hollywood! Que fabuloso! Que é que ele está fazendo? 

- Sei lá... Escrevendo - respondi. Não estava com vontade de discutir o troço. Era evidente que ela achava um negócio espetacular, aquilo dele estar em Hollywood. Quase todo mundo acha, principalmente as pessoas que nunca leram nenhum dos contos que ele escreveu. Mas a coisa me deixa furioso. 

- Que formidável - ela continuou. Aí me apresentou ao cara da Marinha, um tal de Comandante Blop ou coisa que o valha. Era um desses sujeitos que acham que vão parecer veados se não quebrarem uns quarenta dedos da mão da gente na hora de serem apresentados. Pôxa, eu tenho ódio desse tipo de troço. 

- Você está sozinho, meu querido? - a safada da Lillian perguntou. Ela estava interrompendo a droga do trânsito todo na passagem. A gente via logo que ela gostava um bocado de parar o trânsito. Tinha um garçom esperando que ela saísse da frente, mas ela nem reparou no sujeito. Era engraçado. Estava na cara que o garçom não gostava dela e que nem o cara da Marinha gostava muito dela, embora estivesse saindo com ela. E eu não gostava muito dela. Ninguém gostava. De certa maneira, a gente tinha que sentir pena da infeliz. 

- Você não está acompanhado, meu bem? - ela me perguntou. A essa altura eu já estava em pé e ela nem me disse para sentar. Era do tipo que deixa a gente de pé horas a fio. 

- Ele não é bonitão? - ela perguntou ao sujeito da Marinha. - Holden, você está ficando cada vez mais bonitão. 

   O cara da Marinha disse a ela para seguir em frente, que estava bloqueando a passagem toda.

- Holden, vem sentar conosco. Traz o teu drinque. 

- Não, obrigado. Já estava saindo - respondi. - Tenho um encontro marcado.

   Era claro que ela estava só querendo bancar a boazinha comigo para eu contar tudo depois ao D.B.

- Está bem, seu bandido. Divirta-se. Quando encontrar teu irmão, diz a ele que eu tenho ódio dele.

   Aí foi embora. O cara da Marinha e eu dissemos que tinha sido um prazer conhecer um ao outro. Esse é um troço que me deixa maluco. Estou sempre dizendo: "Muito prazer em conhecê-lo" para alguém que não tenho nenhum prazer em conhecer. Mas a gente tem que fazer essas coisas para seguir vivendo.
   Depois que eu disse a ela que tinha um encontro marcado, não podia mesmo fazer droga nenhuma senão sair. Nem podia ficar por lá para ouvir o Ernie tocar alguma coisa minimamente decente. Mas não ia de jeito nenhum sentar numa mesa com a Lillian Simmons e com aquele cara da Marinha e morrer de chateação. Por isso saí. Mas fiquei danado quando apanhei meu sobretudo. As pessoas estão sempre atrapalhando a vida da gente.

O Apanhador no Campo de Centeio - 12 : O táxi que tomei era velho

terça-feira, 30 de abril de 2024

Jazz relaxante


um café quente
a boca sem pressa
a boa companhia 
de você mesmo
a chuva  out
a música dentro
e o seu livro preferido nas mãos
folheando a alma
reescrevendo letras
imaginando o tempo
pensando-se 
suspirando levemente
outro café quente






01 Quando-Quando
02 You Make Me Feel So Young
03 New York, New York
04 Fly Me to the Moon
05 A Kiss to Build a Dream On
06 Cheek to Cheek
07 Can't Take My Eyes Off You
08 What A Wonderful World
09 Smile
10 The Nearness Of You
11 Young at Heart
12 You Go To My Head
13 At Last
14 My Way
15 I Love You
16 Summertime
17 I've Been Waiting All My Life
18 Unforgettable
19 Back to Black
20 To Love Somebody

João Ubaldo Ribeiro - Política: Sistemas Eleitorais(1)

 QUEM Manda, POR QUE Manda, COMO Manda 


João Ubaldo Ribeiro 


Para meu amigo Glauber


13
Sistemas Eleitorais


   Basicamente existem dois tipos de sistema eleitoral: o majoritário (comumente chamado de voto distrital) e o proporcional. Estes dois sistemas pretendem responder à seguinte pergunta: o que se quer como resultado de uma eleição? Se o que se quer é uma eleição que gere maiorias, prefere-se o voto distrital; se o que se quer é que a eleição reflita a diversidade política, econômica, social e cultural existente numa sociedade, prefere-se o voto proporcional. 
   O sistema majoritário é o que ocorre mais facilmente à imaginação e também o que parece, à primeira vista, mais justo, racional e lógico, pois o princípio que o orienta pode ser resumido de maneira bastante simples: quem tem mais votos, ganha. Mas na prática a coisa não fica aí, e há diversas complicações envolvidas, algumas das quais vamos ver em seguida. Antes, contudo, cabe lembrar dois modelos de escrutínio majoritário de aplicação muito difundida, cujo entendimento nos será útil.
   O sistema majoritário pode ser uninominal, plurinominal ou por listas. É uninominal quando se vota em um só nome para um só cargo. É plurinominal quando se vota em mais de uma pessoa para o mesmo cargo; por exemplo, para duas vagas de senador. É por listas quando se vota em vários nomes para um órgão qualquer composto de várias pessoas. É o que chamamos de chapa, nas eleições para grêmios, centros acadêmicos, sindicatos, clubes e outras entidades. A chapa, por sua vez, pode ser fechada ou aberta. É aberta quando nomes de uma chapa podem ser combinados com nomes de outras chapas: posso votar no candidato a presidente da chapa A, no candidato a tesoureiro da chapa B e no candidato a secretário da chapa C. Já na chapa fechada ou bloqueada, o eleitor não pode compor sua própria chapa: ou vota em bloco na chapa de sua escolha ou não vota em nenhuma. 
   O sistema majoritário apresenta uma desvantagem grave: não permite que as minorias sejam representadas, o que pode render problemas sérios. Criando uma hipótese exagerada, mas que serve de boa ilustração, suponhamos que, num país qualquer, a chapa A ganha da chapa B por um milhão contra 999.990 votos. A diferença, sendo somente de dez votos, tornaria esse país muito difícil de governar, com tão marcada diferença entre a realidade da opinião pública e a composição do governo. Não seria justo nem prático que metade do país mandasse na outra metade, a qual não teria voz alguma nos negócios públicos. A metade sem representação poderia frustrar-se e revoltar-se.
   Deve-se levar em consideração também a possibilidade teórica de que, em tal sistema, uma minoria relativamente pequena venha a governar a maioria, traindo-se, assim, os objetivos do sistema majoritário. Admita-se, por exemplo, que concorram às eleições quatro listas, disputando um total de quatro milhões de votos. Se, por exemplo, a lista A ganhar com 1 milhão e 50 mil votos, os votos das outras chapas, evidentemente, somarão quase o triplo dos da eleita. Assim, a minoria representada pela chapa A governaria a maioria representada pelas outras. Ou seja, basta obter a maioria simples dos votos para ganhar todos os cargos em disputa. 
   Por essas e outras razões, o sistema majoritário tem que ser usado com grande cautela e, em muitas circunstâncias, é mesmo aconselhável que não seja empregado. Não obstante, pode-se pensar em listas abertas, o que parece melhorar bastante a situação. Mas somente parece, porque a realidade é diferente. Vamos supor um país em que houvesse cem vagas para o Parlamento e cada partido apresentasse sua lista de cem candidatos. Isto quereria dizer que as áreas mais populosas do país seriam super-representadas e as menos populosas sub-representadas, ou até não representadas. Se um sistema como este fosse adotado no Brasil, por exemplo, o Acre não teria deputados, já que dificilmente um candidato acreano teria condições de reunir um número de votos maior do que o menos votado dos candidatos paulistas. 
   Além disso, a depender das circunstâncias do país em questão, as listas abertas poderiam ainda suscitar outro problema. Caso houvesse um número muito grande de partidos, não seria impossível que a composição do Parlamento ficasse tão fracionada entre dezenas de tendências que a obtenção do consenso ou mesmo de uma simples maioria numa votação poderia tornar-se virtualmente impossível, dificultando sobremaneira a ação do governo. Em eleições para diretorias de entidades esse fenômeno é comum, razão por que é quase universal a adoção de listas bloqueadas ou chapas fechadas; eis que o funcionamento de um corpo dirigente composto por pessoas antagônicas e rivais — consequência previsível das listas abertas — será, no mínimo, tumultuado ou errático.  
   Muito bem, então introduzamos um aperfeiçoamento. Já que o Brasil é uma federação, vamos dividir as listas pelos estados, aproveitando a divisão política existente. Neste caso, haveria um conjunto de listas para cada estado, conjunto este composto pelas listas individuais de cada partido concorrente. Cada estado seria, portanto, uma circunscrição eleitoral. Mas isto também requer refinamentos. Em primeiro lugar, se houvesse o mesmo número de deputados para cada estado, a população do país, como um todo, estaria desigualmente representada. Por exemplo, havendo dez deputados para o Acre e dez para São Paulo, é claro que o deputado paulista precisaria de muito mais votos para eleger-se que o acreano, já que o número de eleitores paulistas dividido por dez seria bem maior do que o número de eleitores acreanos dividido por dez. O que quer dizer que um voto acreano valeria muito mais do que um voto paulista, com evidentes e gravíssimas distorções na representação. E, de mais a mais, onde o número de representantes é igual para todos os estados é o Senado, porque o senador é um representante da federação. Assim, o Acre (para ficarmos no exemplo) tem os mesmos três senadores que São Paulo, não importa a diferença populacional entre ambos.
   Para evitar esses problemas, países como a Inglaterra, o Japão e os Estados Unidos, por exemplo, adotaram a idéia de distritos, isto é, pequenas circunscrições eleitorais, com populações idealmente iguais. Idealmente, porque todos os países adotam uma certa compensação. Nos Estados Unidos, por exemplo, é preciso compensar, caso contrário estados como a Califórnia e Nova York ficariam super-representados e Nebraska e Arkansas ficariam sub-representados.
   Com a criação dos distritos, o problema fica consideravelmente abrandado, mas não deixam de existir problemas, pois nenhum sistema eleitoral pode aspirar a ser livre de defeitos de maior ou menor gravidade. Para começar, é necessário uma constante vigilância quanto à composição populacional dos distritos. Em alguns anos, uma área densamente povoada pode passar a ter menos gente, ou vice-versa. A autoridade eleitoral, por conseguinte, tem que exercer uma permanente fiscalização e providenciar a reformulação dos distritos, toda vez que o censo demográfico indicar que houve alteração populacional significativa, para cima ou para baixo. Nos Estados Unidos, por exemplo, o que se faz é um processo de redistritamento (nova divisão) ao final de cada eleição, isto é, de dois em dois anos, que é a duração dos mandatos dos deputados americanos. Esta divisão é sempre realizada pela Assembleia Legislativa de cada um dos cinquenta estados americanos.
   Entretanto, mesmo com a adoção dos distritos as minorias são sub-representadas, porque a tendência, historicamente observável, é de que o eleitorado se polarize em duas posições, excluindo os chamados terceiros partidos. Para ilustrar, vamos supor que haja três distritos e três partidos. No distrito 1, a votação para o partido A é de 2 mil, para o B 1.500, para o C 1.200; no 2, para o A 1.600, para o B 1.700 e para o C também 1.600; no 3, para o A novamente 2 mil, para o B 1.400 e para o C 1.800. Como se vê aí, o partido A fez dois deputados, o B um e o C nenhum. No entanto, existem muitas pessoas que votaram no partido C, mas que, pelas circunstâncias do sistema, não têm representação.
   Além de com isso obter-se um retrato falso da realidade, com o tempo os eleitores se cansam de nunca conseguirem eleger ninguém e se aproximam do partido A ou B — do que menos desgosta, enfim. Isto é, efetivamente, o que tem acontecido na maioria dos países que praticam o voto distrital, onde terceiros partidos são inexpressivos, engolidos pela lógica eleitoral bipartidária.

continua na página 096...

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Leia também:

João Ubaldo Ribeiro - Política: Sistemas Eleitorais(1)
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João Ubaldo Ribeiro (1941-2014) foi romancista, cronista, jornalista, tradutor e professor brasileiro. Membro da Academia Brasileira de Letras ocupou a cadeira n.º 34. Em 2008 recebeu o Prêmio Camões. Foi um grande disseminador da cultura brasileira, sobretudo a baiana. Entre suas obras que fizeram grande sucesso encontram-se "Sargento Getúlio", "Viva o Povo Brasileiro" e "O Sorriso do Lagarto".
João Ubaldo Ribeiro nasceu na ilha de Itaparica, na Bahia, no dia 23 de janeiro de 1941, na casa de seus avós. Era filho dos advogados Manuel Ribeiro e de Maria Filipa Osório Pimentel.
João Ubaldo foi criado até os 11 anos, em Sergipe, onde seu pai trabalhava como professor e político. Fez seus primeiros estudos em Aracaju, no Instituto Ipiranga.
Em 1951 ingressou no Colégio Estadual Atheneu Sergipense. Em 1955 mudou-se para Salvador, e ingressou no Colégio da Bahia. Estudou francês e latim.

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© 1998 by João Ubaldo Ribeiro
Direitos de edição da obra em língua portuguesa adquiridos pela
EDITORA NOVA FRONTEIRA S.A.
Rua Bambina, 25 — Botafogo .
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Equipe de Produção
Regina Marques
Leila Name
Michelle Chao
Sofia Sousa
e Silva Marcio Araujo
Revisão
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CIP-Brasil.
Catalogação-na-fonte S
indicato Nacional dos Editores de Livros, RJ
R369p
Ribeiro, João Ubaldo 3 ed. Política; quem manda, por que manda, como manda / João Ubaldo Ribeiro. — 3.ed.rev. por Lucia Hippolito. — Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998.
Apêndice
1. Ciência política. I. Título
CDD 320
CDU 32

segunda-feira, 29 de abril de 2024

Simon and Garfunkel

Simon and Garfunkel - The Boxer






Música composta em 1968 por Paul Simon e Art Garfunkel para o álbum "Bridge over Troubled Water". Simon disse que a música era sobre ele e a vida difícil que levou nos primeiros anos de carreira.


O Boxeador
The Boxer

Eu sou só um rapaz pobre
I am just a poor boy
Embora raramente minha história seja contada
Though my story's seldom told
Eu tenho desperdiçado meu esforço
I have squandered my resistance
Em troca de um bolso cheio de resmungos
For a pocketful of mumbles
Tais são as promessas
Such are promises

Tudo mentiras e deboches
All lies and jests
Ainda assim, um homem ouve o que quer ouvir
Still, a man hears what he wants to hear
E ignora o resto
And disregards the rest

Quando eu deixei meu lar e minha família
When I left my home and my family
Eu não era mais do que um menino
I was no more than a boy
Na companhia de estranhos
In the company of strangers
Na quietude de uma estação de trem
In the quiet of the railway station
Fugindo amedrontado
Running scared

Mantendo-me escondido
Laying low
Buscando os alojamentos mais baratos
Seeking out the poorer quarters
Onde o povo esfarrapado vai
Where the ragged people go
Procurando os lugares que apenas eles conheceriam
Looking for the places only they would know

Pedindo apenas o salário mínimo
Asking only workman's wages
Eu vim procurando um emprego
I come looking for a job
Mas não recebo ofertas
But I get no offers
Apenas um convite das prostitutas da Sétima Avenida
Just a come on from the whores on 7th Avenue

Eu admito
I do declare
Houve momentos em que estava tão solitário
There were times when I was so lonesome
Que eu tive algum aconchego lá
I took some comfort there

Então, estou separando minhas roupas de inverno
Then I'm laying out my winter clothes
E desejando estar longe, indo para casa
And wishing I was gone, going home
Onde os invernos da cidade de Nova York
Where the New York City winters
Não estão me esgotando
Aren't bleeding me
Me guiando
Leading me
De volta para casa
Going home

No ringue está um boxeador
In the clearing stands a boxer
E um lutador por ofício
And a fighter by his trade
E ele carrega as lembranças
And he carries the reminders
De cada luva que o derrubou
Of every glove that laid him down
Ou o cortou até ele gritar
Or cut him till he cried out
Em sua raiva e vergonha
In his anger and his shame
Estou indo embora, estou indo embora
I am leaving, I am leaving
Mas o lutador ainda permanece
But the fighter still remains

Composição: Paul Simon

A Hora da Estrela - Esqueci de dizer

Clarice Lispector

A Hora da Estrela


continuando...

   Esqueci de dizer que no dia seguinte ao que ele lhe dera o fora ela teve uma ideia. Já que ninguém lhe dava festa, muito menos noivado, daria uma festa para si mesma. A festa consistiu em comprar sem necessidade um batom novo, não cor-de-rosa como o que usava, mas vermelho vivante. No banheiro da firma pintou a boca toda e até fora dos contornos para que os seus lábios finos tivessem aquela coisa esquisita dos lábios de Marylin Monroe. Depois de pintada ficou olhando no espelho a figura que por sua vez a olhava espantada. Pois em vez de batom parecia que grosso sangue lhe tivesse brotado dos lábios por um soco em plena boca, com quebra-dentes e rasga-carne (pequena explosão). Quando voltou para a sala de trabalho Glória riu-se dela:

– Você endoidou, criatura? Pintar-se como uma endemoniada? Você até parece mulher de soldado.

– Sou moça virgem! Não sou mulher de soldado e marinheiro. 

– Me desculpe eu perguntar: ser feia dói?

– Nunca pensei nisso, acho que dói um pouquinho. Mas eu lhe pergunto se você que é feia sente dor.

– Eu não sou feia!!! — gritou Glória. 

   Depois tudo passou e Macabéa continuou a gostar de não pensar em nada. Vazia, vazia. Como eu disse, ela não tinha anjo da guarda. Mas se arranjava como podia. Quanto ao mais, ela era quase impessoal. Glória perguntou-lhe:

– Por que é que você me pede tanta aspirina? Não estou reclamando, embora isso custe dinheiro.

– É para eu não me doer.

– Como é que é? Hein? Você se dói?

– Eu me doo o tempo todo.  

– Aonde?

– Dentro, não sei explicar. 

   Aliás cada vez mais ela não se sabia explicar. Transformara-se em simplicidade orgânica. E arrumara um jeito de achar nas coisas simples e honestas a graça de um pecado. Gostava de sentir o tempo passar. Embora não tivesse relógio, ou por isso mesmo, gozava o grande tempo. Era supersônica de vida. Ninguém percebia que ela ultrapassava com sua existência a barreira do som. Para as pessoas outras ela não existia. A sua única vantagem sobre os outros era saber engolir pílulas sem água, assim a seco. Glória, que lhe dava aspirinas, admirava-a muito, o que dava a Macabéa um banho de calor gostoso no coração. Glória advertiu-a: 

– Um dia a pílula te cola na parede da garganta que nem galinha de pescoço meio cortado, correndo por aí. 

   Um dia teve um êxtase. Foi diante de uma árvore tão grande que no tronco ela nunca poderia abraça-la. Mas apesar do êxtase ela não morava com Deus. Rezava indiferentemente. Sim. Mas o misterioso Deus dos outros lhe dava às vezes um estado de graça. Feliz, feliz, feliz. Ela de alma quase voando. E também vira o disco-voador. Tentara contar a Glória mas não tivera jeito, não sabia falar e mesmo contar o quê? O ar? Não se conta tudo porque o tudo é um oco nada. 
   Às vezes a graça a pegava em pleno escritório. Então ela ia ao banheiro para ficar sozinha. De pé e sorrindo até passar (parece-me que esse Deus era muito misericordioso com ela: dava-lhe o que lhe tirava). Em pé pensando em nada, os olhos moles.
   Nem Glória era uma amiga: só colega. Glória roliça, branca e morna. Tinha um cheiro esquisito. Porque não se lavava muito, com certeza. Oxigenava os pelos das pernas cabeludas e das axilas que ela não raspava. Olímpico: será que ela é loura embaixo também?
   Em relação a Macabéa, Glória tinha um vago senso de maternidade. Quando Macabéa lhe parecia murcha demais, dizia:

– E esse ar é por causa de?

   Macabéa, que nunca se irritava com ninguém, arrepiava-se com o hábito que Glória tinha de deixar a frase inacabada. Glória usava uma forte água-de-colônia de sândalo e Macabéa, que tinha estômago delicado, quase vomitava ao sentir o cheiro. Nada dizia porque Glória era agora a sua conexão com o mundo. Este mundo fora composto pela tia, Glória, o Seu Raimundo e Olímpico — e de muito longe as moças com as quais repartia o quarto. Em compensação se conectava com o retrato de Greta Garbo quando moça. Para minha surpresa, pois eu não imaginava Macabéa capaz de sentir o que diz um rosto como esse. Greta Garbo, pensava ela sem se explicar, essa mulher deve ser a mulher mais importante do mundo. Mas o que ela queria mesmo ser não era a altiva Greta Garbo cuja trágica sensualidade estava em pedestal solitário. O que ela queria, como eu já disse era parecer com Marylin. Um dia, em raro momento de confissão, disse a Glória quem ela gostaria de ser. E Glória caiu na gargalhada:

– Logo ela, Maca? Vê se te manca!

   Glória era toda contente consigo mesma: dava-se grande valor. Sabia que o sestro molengole de mulata, uma pintinha marcada junto da boca, só para dar uma gostosura, e um buço forte que ela oxigenava. Sua boca era loura. Parecia até um bigode. Era uma safadinha esperta mas tinha força de coração. Penalizava-se com Macabéa mas ela que se arranjasse, quem mandava ser tola? E Glória pensava: não tenho nada a ver com ela.

continua pág 68...
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"Clarice Lispector deixou vários depoimentos sobre a sua produção literária. Em alguns, parecia se defender do estranhamento que causava em leitores e críticos.
Ela tinha consciência de sua diferença. Desde pequena, ao ver recusadas as histórias que mandava para um jornal de Recife, pressentia que era porque nenhuma “contava os fatos necessários a uma história”, nenhuma relatava um acontecimento. Sabia também, já adulta, que poderia tornar mais “atraente” o seu texto se usasse, “por exemplo, algumas das coisas que emolduram uma vida ou uma coisa ou romance ou um personagem”.
Entretanto, mesmo arriscando-se ao rótulo de escritora difícil, mesmo admitindo ter um público mais reduzido, ela não conseguiria abrir mão de seu traçado: “Tem gente que cose para fora, eu coso para dentro”. Ela se afastou dos “escritores que por opção e engajamento defendem valores morais, políticos e sociais, outros cuja literatura é dirigida ou planificada a fim de exaltar valores, geralmente impostos por poderes políticos, religiosos etc., muitas vezes alheios ao escritor”, em nome de uma outra forma de questionar a realidade e nela intervir, através da literatura." 
Clarisse Fukelman, Professora de Literatura Brasileira da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.

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Leia também:

A Hora da Estrela - Esqueci de dizer

Día Internacional de la Danza 2024

Día Internacional de la Danza 

2024

Ballet Nacional de España







Hoje é dia de festa! Vamos todos comemorar o Dia Internacional da Dança!
Como foram os ensaios da coreografia que propusemos para o flashmob digital? Deixamos aqui o nosso vídeo com o elenco do Balé Nacional de Espanha.
Esperamos que tenha gostado da coreografia de Miguel Ángel Corbacho.
Agora é sua vez. Nos vemos nas redes.
Feliz Dia Internacional da Dança!


Coreografía: Miguel Ángel Corbacho.
Música: José Suarez.
Grabación y realización video: María Salgado, Isabel Ruiz y Francisco Ruiz.
Elenco: Ballet Nacional de España.

domingo, 28 de abril de 2024

Cinema: O Vento Será Tua Herança

O Vento Será Tua Herança


qualquer semelhança com as teorias da Terra Plana e desejos sobre a Escola Sem Partido não é mera coincidência: a involução da espécie humana




* Para ativar a Legenda em PT-BR apenas clicar no ícone CC que aparece no canto inferior direito.


(O Vento Será Tua Herança 1999 - HDTV 720p) 
Jack Lemmon (February 8, 1925 – June 27, 2001), 76 anos 
George C. Scott (October 18, 1927 – September 22, 1999), 71 anos 
Lane Smith / Tom Everett Scott / Kathryn Morris 
John Cullum / Piper Laurie / Beau Bridges

• Sinopse: Numa cidade marcada pela forte presença da comunidade religiosa, professor é preso por ensinar a Teoria da Evolução de Darwin. O caso vai para o tribunal, onde acontece uma série de inflamados debates ideológicos, que mexem com a localidade e com seus habitantes. Baseado em caso real ocorrido em 1925.

• Direção: Daniel Petrie, Sr.

• Roteiro: Jerome Lawrence (peça), Robert E. Lee (peça), Nedrick Young (roteiro adaptado), Harold Jacob Smith (roteiro adaptado)

• Gênero: Drama/Histórico
• Origem: Estados Unidos
• Duração: 128 minutos
• Tipo: Longa-metragem
• 1999


Pense:
 "cada um tem a sua verdade, essa é a minha verdade", 
geralmente é usada para se falar absurdos

sábado, 27 de abril de 2024

Old jazz

Jazz relaxante

um café
em um lugar relaxante
a boa companhia
de você mesmo
a música
e o seu livro preferido





01 Unforgettable
02 I've Been Waiting All My Life
03 What A Wonderful World
04 My Way
05 Fly Me To The Moon
06 New York, New York
07 You Make Me Feel So Young
08 Cheek to Cheek
09 A Kiss to Build a Dream On
10 Can_t Take My Eyes Off You
11 QUANDO- QUANDO
12 Just The Way You Are
13 The Look Of Love
14 I Wish You Love
15 I Left My Heart In San Francisco
15 I Love You
16 When I fall in love
17 Let's fall in love
18 Don't Know Why
19 Back to Black
20 You Know I'm No Good

O Cortiço - IX: E os elogios não cessavam

O CORTIÇO


Aluísio Azevedo


IX 
.
continuando...

   E os elogios não cessavam:

- Rica pequena!...

- É um enlevo olhar a gente pro demoninho!

- É mesmo uma lindeza de criança!

- Uma criaturinha dos anjos!

- Uma boneca francesa!

- Uma menina Jesus!

   O pai acompanhava-a comovido, mas solene sempre, parando a todo momento, como em procissão, à espera que cada qual desafogasse por sua vez o entusiasmo pela criança. Silenciosamente risonho, com os olhos úmidos, patenteada em todo o seu carão mulato, de bigode que parecia postiço, um ar condolente e estúpido de um profundo reconhecimento por aquela fortuna, que Deus lhe dera à filha, enviando-lhe dos céus o ideal das madrinhas.
   E, enquanto Jujú percorria a estalagem, conduzida em triunfo, Léonie na casa da comadre, cercada por uma roda de lavadeiras e crianças, discreteava sobre assuntos sérios, falando compassadamente, cheia de inflexões de pessoa prática e ajuizada, condenando maus atos e desvarios, aplaudindo a moral e a virtude. E aquelas mulheres, aliás tão alegres e vivazes, não se animavam, defronte dela, a rir nem levantar a voz, e conversavam a medo cochichando, a tapar a boca com a mão, tolhidas de respeito pela cocote, que as dominava na sua sobranceria de mulher loura vestida de seda e coberta de brilhantes. A das Dores sentiu-se orgulhosa, quando Léonie lhe pousou no ombro a mãozinha enluvada e recendente, para lhe perguntar pelo seu homem. E não se fartavam de olhar para ela, de admirá-la; chegavam a examinar-lhe a roupa, revistar-lhe as salas, apalpar-lhe as meias, levantando-lhe o vestido, com exclamações de assombro à vista de tanto luxo de rendas e bordados. A visita sorria, por sua vez comovida. Piedade declarou que a roupa branca da madama era rica nem como a da Nossa Senhora da Penha. E Nenen, no seu entusiasmo, disse que a invejava do fundo do coração, ao que a mãe lhe observou que não fosse besta. O Albino contemplava-a em êxtase, de mão no queixo, o cotovelo no ar. A Rita Baiana levara-lhe um ramalhete de rosas. Esta não se iludia com a posição da loureira, mas dava-lhe apreço talvez por isso mesmo e, em parte, porque a achava deveras bonita. “Ora! era preciso ser bem esperta e valer muito para arrancar assim da pele dos homens ricos aquela porção de jóias e todo aquele luxo de roupa por dentro e por fora!”

- Não sei, filha! pregava depois a mulata, no pátio, a uma companheira; seja assim ou assado, a verdade é que ela passa muito bem de boca e nada lhe falta: sua boa casa; seu bom carro para passear à tarde; teatro toda a noite; bailes quando quer e, aos domingos, corridas, regatas, pagodes fora da cidade e dinheirama grossa para gastar à farta! Enfim, só o que afianço é que esta não está sujeita, como a Leocádia e outras, a pontapés e cachações de um bruto de marido! É dona das suas ações! livre como o lindo amor! Senhora do seu corpinho, que ela só entrega a quem muito bem lhe der na veneta!

- E Pombinha?... perguntou a visita. Não me apareceu ainda!...

- Ah! esclareceu Augusta. Não está ai, foi à sociedade de dança com a mãe.

   E, como a outra mostrasse na cara não ter compreendido, explicou que a filha de Dona Isabel ia todas as terças, quintas e sábados, mediante dois mil-réis por noite, servir de dama numa sociedade em que os caixeiros do comércio aprendiam a dançar.

- Foi lá que ela conheceu o Costa... acrescentou.

- Que Costa?

- O noivo! Então a Pombinha já não foi pedida?

- Ah! sei...

   E a cocote perguntou depois, abafando a voz:

- E aquilo?... Já veio afinal?...

- Qual! Não é por falta de boa vontade da parte delas, coitadas! Agora mesmo a velha fez uma nova promessa a Nossa Senhora da Anunciação... mas não há meio!

   Daí a pouco, Augusta apresentou-lhe uma xícara de café, que Léonie recusou por não poder beber. “Estava em uso de remédios...” Não disse, porém, quais eram estes, nem para que moléstia os tomava.

- Prefiro um copo de cerveja, declarou ela.

   E, sem dar tempo a que se opusessem, tirou da carteira uma nota de dez mil-réis, que deu a Agostinho para ir buscar três garrafas de Carls Berg.
   A vista dos copos, liberalmente cheios, formou-se um silêncio enternecido. A cocote distribuiu-os por sua própria mão aos circunstantes, reservando um para si. Não chegavam. Quis mandar buscar mais; não lho permitiram, objetando que duas e três pessoas podiam beber juntas.

- Para que gastar tanto?... Que alma grande!

   O troco ficou esquecido, de propósito, sobre a cômoda, entre uma infinita quinquilharia de coisas velhas e bem tratadas.

- Quando você, comadre, agora me aparece por lá?... quis saber Léonie.

- Pra semana, sem falta; levo-lhe toda a roupa. Agora, se a comadre tem precisão de alguma... podese aprontar com mais pressa...

- Então é bom mandar-me toalhas e lençóis... Camisas de dormir, é verdade! também tenho poucas.

- Depois d’amanhã está tudo lá.

   E a noite ia-se passando. Deram dez horas. Léonie, impaciente já pelo rapaz que ficara de ir buscá-la, mandou ver se ele por acaso estaria no portão, à espera.

- É aquele mesmo que veio da outra vez com a comadre?...

- Não. É um mais alto. De cartola branca.

   Correu muita gente até à rua. O rapaz não tinha chegado ainda. Léonie ficou contrariada.

- Imprestável!... resmungou. Faz-me ir sozinha por ai ou incomodar alguém que me acompanhe!

- Por que a comadre não dorme aqui?... lembrou Augusta. Se quiser, arranja-se tudo! Não passará bem como em sua casa, mas uma noite corre depressa!...

   Não! não era possível Precisava estar em casa essa noite: no dia seguinte pela manhã iriam procurá-la muito cedo.
   Nisto chegou Pombinha com Dona Isabel. Disseram-lhes logo à entrada que Léonie estava em casa do Alexandre, e a menina deixou a mãe um instante no número 15 e seguiu sozinha para ali, radiante de alegria. Gostavam-se muito uma da outra. A cocote recebeu-a com exclamações de agrado e beijou-a nos dentes e nos olhos repetidas vezes.

- Então, minha flor, como está essa lindeza! perguntou-lhe, mirando-a toda.

- Saudades suas... respondeu a moça, rindo bonito na sua boca ainda pura.

   E uma conversa amiga, cheia de interesse para ambas, estabeleceu-se, isolando-as de todas as outras. Léonie entregou à Pombinha uma medalha de prata que lhe trouxera; uma tetéia que valia só pela esquisitice, representando uma fatia de queijo com um camundongo em cima. Correu logo de mão em mão, levantando espantos e gargalhadas.

- Por um pouco que não me apanhas... continuou a cocote na sua conversa com a menina. Se a pessoa que me vem buscar tivesse chegado já, eu estaria longe. - E mudando de tom, a acarinhar-lhe os cabelos: - Por que não me apareces!... Não tens que recear: minha casa é muito sossegada... Já lá têm ido famílias!...

- Nunca vou à cidade... É raro! suspirou Pombinha.

- Vai amanhã com tua mãe; jantam as duas comigo...

- Se mamãe deixar... Olha! ela ai vem. Peça.

   Dona Isabel prometeu ir, não no dia seguinte, mas no outro imediato, que era domingo. E a palestra durou animada até que chegou, daí a um quarto de hora, o rapaz por quem esperava Léonie. Era um moço de vinte e poucos anos, sem emprego e sem fortuna, mas vestido com esmero e muito bem apessoado. A cocote, logo que o viu aproximar-se, disse baixinho à menina:

- Não é preciso que ele saiba que vais lá domingo, ouviste?

   Jujú dormia. Resolveram não acordá-la; iria no dia seguinte.
   Na ocasião em que Léonie partia pelo braço do amante, acompanhada até o portão por um séquito de lavadeiras, a Rita, no pátio, beliscou a coxa de Jerônimo e soprou-lhe à meia voz:

- Não lhe caia o queixo!...

   O cavouqueiro teve um desdenhoso sacudir d’ombros.

- Aquela pra cá nem pintada!

   E, para deixar bem patente as suas preferências, virou o pé do lado e bateu com o tamanco na canela da mulata.

- Olha o bruto!... queixou-se esta, levando a mão ao lugar da pancada. Sempre há de mostrar que é galego!

Continua página 57...
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O Cortiço - IX: E os elogios não cessavam
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   Aluísio Azevedo (Aluísio Tancredo Gonçalves de Azevedo), caricaturista, jornalista, romancista e diplomata, nasceu em São Luís, MA, em 14 de abril de 1857, e faleceu em Buenos Aires, Argentina, em 21 de janeiro de 1913.
   Era filho do vice-cônsul português David Gonçalves de Azevedo e de D. Emília Amália Pinto de Magalhães e irmão mais moço do comediógrafo Artur Azevedo. Sua mãe havia casado, aos 17 anos, com um comerciante português. O temperamento brutal do marido determinou o fim do casamento. Emília refugiou-se em casa de amigos, até conhecer o vice-cônsul de Portugal, o jovem viúvo David. Os dois passaram a viver juntos, sem contraírem segundas núpcias, o que à época foi considerado um escândalo na sociedade maranhense.
   Da infância à adolescência, Aluísio estudou em São Luís e trabalhou como caixeiro e guarda-livros. Desde cedo revelou grande interesse pelo desenho e pela pintura, o que certamente o auxiliou na aquisição da técnica que empregará mais tarde ao caracterizar os personagens de seus romances. Em 1876, embarcou para o Rio de Janeiro, onde já se encontrava o irmão mais velho, Artur. Matriculou-se na Imperial Academia de Belas Artes, hoje Escola Nacional de Belas Artes. Para manter-se fazia caricaturas para os jornais da época, como O Fígaro, O Mequetrefe, Zig-Zag e A Semana Ilustrada. A partir desses “bonecos”, que conservava sobre a mesa de trabalho, escrevia cenas de romances.
   A morte do pai, em 1878, obrigou-o a voltar a São Luís, para tomar conta da família. Ali começou a carreira de escritor, com a publicação, em 1879, do romance Uma lágrima de mulher, típico dramalhão romântico. Ajuda a lançar e colabora com o jornal anticlerical O Pensador, que defendia a abolição da escravatura, enquanto os padres mostravam-se contrários a ela. Em 1881, Aluísio lança O mulato, romance que causou escândalo entre a sociedade maranhense pela crua linguagem naturalista e pelo assunto tratado: o preconceito racial. O romance teve grande sucesso, foi bem recebido na Corte como exemplo de Naturalismo, e Aluísio pôde retornar para o Rio de Janeiro, embarcando em 7 de setembro de 1881, decidido a ganhar a vida como escritor.
   Quase todos os jornais da época tinham folhetins, e foi num deles que Aluísio passou a publicar seus romances. A princípio, eram obras menores, escritas apenas para garantir a sua sobrevivência. Depois, surgiu nova preocupação no universo de Aluísio: a observação e análise dos agrupamentos humanos, a degradação das casas de pensão e sua exploração pelo imigrante, principalmente o português. Dessa preocupação resultariam duas de suas melhores obras: Casa de pensão (1884) e O cortiço (1890). De 1882 a 1895 escreveu sem interrupção romances, contos e crônicas, além de peças de teatro em colaboração com Artur de Azevedo e Emílio Rouède.
   Em 1895 ingressou na diplomacia, momento em que praticamente cessa sua atividade literária. O primeiro posto foi em Vigo, na Espanha. Depois serviu no Japão, na Argentina, na Inglaterra e na Itália. Passara a viver em companhia de D. Pastora Luquez, de nacionalidade argentina, junto com os dois filhos, Pastor e Zulema, por ele adotados. Em 1910, foi nomeado cônsul de 1ª. classe, sendo removido para Assunção. Buenos Aires foi seu último posto. Ali faleceu, aos 56 anos. Foi enterrado naquela cidade. Seis anos depois, por uma iniciativa de Coelho Neto, a urna funerária de Aluísio Azevedo chegou a São Luís, onde o escritor foi sepultado.