domingo, 25 de novembro de 2018

Stanislaw PP - FeBeAPá: O Festival de Besteira (1)

O Festival de Besteira

Festival de Besteira que Assola o País





É difícil ao historiador precisar o dia em que o Festival de Besteira começou a assolar o país. Pouco depois da “redentora”, cocorocas de diversas classes sociais e algumas autoridades que geralmente se dizem “otoridades”, sentindo a oportunidade de aparecer, já que a “redentora”, entre outras coisas, incentivou a política do dedurismo (corruptela de dedodurismo, isto é, a arte de apontar com o dedo um colega, um vizinho, o próximo enfim, como corrupto ou subversivo — alguns apontavam dois dedos duros, para ambas as coisas), iniciaram essa feia prática, advindo daí cada besteira que eu vou te contar.

Lembrem-se que notei o alastramento do Festival de Besteira depois que uma inspetora de ensino no interior de São Paulo, portanto uma senhora de um nível intelectual mais elevado pouquinha coisa, ao saber que seu filho tirara zero numa prova de matemática, embora sabendo que o filho era um debiloide, não vacilou em apontar às autoridades o professor da criança como perigoso agente comunista. Foi um pega pra capar e o professor quase penetra pelo cano. Foi preciso que vários pedagogos da região — todos de passado ilibado — se movimentassem em defesa do caluniado, para que ele se livrasse de um IPM. (1) 

Mas tais casos, surgidos ainda no primeiro semestre de 1964, foram arrolados no livro Garoto linha-dura, que antecede este volume na série que se iniciou em 1961 com Tia Zulmira e eu e aumentou nos anos subsequentes com a publicação de Primo Altamirando e elas e Rosamundo e os outros. Garoto linha-dura apareceu em fins de 1964 e, no ano passado, nenhum livro da série foi publicado. Portanto, as manifestações do Festival de Besteira que Assola o País — Febeapá, para os íntimos — só aparecem no GLD, quando de suas manifestações iniciais, e — no presente volume, que leva seu título como homenagem — estão casos ocorridos no ano passado e no ano corrente de 1966. 

O resumo abaixo foi feito na coluna “Fofocalizando”, publicada no vespertino Última Hora, junto com as crônicas que motivaram a série de livros. São apenas tópicos colhidos pela agência informativa Pretapress — a maior do mundo, porque nela colaboram todos os leitores de Stanislaw — e aqui relembrados sem a menor preocupação de exaltar este ou aquele membro do Febeapá. Vão na base da bagunça, para respeitar a atual conjuntura, e sua ordem é apenas cronológica.

O ministro da (que Deus nos perdoe) Educação, sr. Suplicy de Lacerda, que viria a se tornar um dos mais eminentes membros do Festival, reunia a imprensa para explicar aquilo que o coleguinha Nelson Rodrigues apelidou de óbvio ululante. Disse que ia diminuir os cursos superiores de cinco para quatro anos. E acrescentou: “Agora, os cursos que tinham normalmente cinco anos, passam a ser feitos em quatro”. Não é bacaninha?

Ibrahim Sued, que já era do Festival antes de sua oficialização, estreava num programa de televisão e avisava ao público: “Estarei aqui diariamente às terças e quintas”. No mesmo dia, aliás, o governo tomava uma resolução interessante: depois da intervenção em todos os sindicatos, resolvia enviar uma delegação à 16a Sessão do Conselho de Administração da OIT, (2) em Genebra. O Brasil faria parte, justamente, da Comissão de Liberdade Sindical.

Um time da Alemanha Oriental vinha disputar alguns jogos no Brasil e o Itamaraty distribuiu uma nota avisando que os alemães só jogariam se a partida não tivesse cunho político. “Cunho político” — explicaria depois o próprio Itamaraty — era tocar o hino nacional dos dois países que iriam jogar. Um dia eu vou contar isto aos meus netinhos e os garotos vão comentar: “Esse vovô inventa cada besteira!”. 

Em Mariana (MG) um delegado de polícia proibiu casais de sentarem juntos na única praça namorável da cidade e baixou portaria dizendo que moça só poderia ir ao cinema com atestado dos pais. No mesmo estado, mas em Belo Horizonte, um outro delegado distribuía espiões da polícia pelas arquibancadas dos estádios porque “daqui para a frente quem disser mais de três palavrões, torcendo pelo seu clube, vai preso”.

Era o IV Centenário do Rio e, apesar da penúria, o governo da Guanabara ia oferecer à plebe ignara o maior bolo do mundo. Sugestão do poeta Carlos Drummond de Andrade, quando soube que o bolo ia ter cinco metros de altura, cinco toneladas, duzentos e cinquenta quilos de açúcar, quatro mil ovos e doze litros de rum: “Bota mais rum”. 

O secretário de Segurança de Minas Gerais, um cavalheiro chamado José Monteiro de Castro — grande entusiasta do Festival de Besteira — proibia (já que fevereiro ia entrar) que mulher se apresentasse com pernas de fora em bailes carnavalescos “para impedir que apareçam fantasias que ofendam as Forças Armadas”. Como se perna de mulher alguma vez na vida tivesse ofendido as armas de alguém!

Já era fevereiro quando o diretor de Suprimento, em Brasília, proibia a venda de vodca “para combater o comunismo”. E Minas continuava fervendo: depois de aparecer um delegado em Ouro Preto que tentou proibir serenata; depois de aparecer um delegado em Mariana que proibiu namorar em jardim de praça pública; depois de aparecer um delegado em Belo Horizonte que proibia o beijo (mesmo em estação de trem na hora do trem partir); depois de aparecer, na mesma cidade, uma autoridade que não queria mulher de perna de fora no Carnaval, um juiz de menores proibia as alunas dos colégios de fazer ginástica “porque aula de educação física não é desfile de pernas”. Mas impressionante mesmo foi o prefeito de Petrópolis, que baixou uma portaria ditando normas para banhos de mar à fantasia. Eu escrevi prefeito de Petrópolis, cidade serrana do estado do Rio. 

Em Niterói — isto é até pecado, cruzes!!! —, numa feira de livros instalada na praça Martim Afonso, a polícia apreendeu vários exemplares da encíclica papal Mater et magistra, sob a alegação de que aquilo era material subversivo. Para representar o mês de março de 65 no Festival, isso é mais do que suficiente. 

Abril, mês que marcava o primeiro aniversário da “redentora”, marcou também uma bruta espinafração do juiz Whitaker da Cunha no Departamento Nacional de Estradas de Rodagem, que enviara seis ofícios ao magistrado e, em todos os seis, chamava-o de “meritríssimo”. Na sua bronca o juiz dizia que “meritíssimo” vem de mérito e “meritríssimo” vem de uma coisa sem mérito nenhum.

Quando se desenhou a perspectiva de uma seca no interior cearense, as autoridades dirigiram uma circular aos prefeitos, solicitando informações sobre a situação local depois da passagem do equinócio. Um prefeito enviou a seguinte resposta à circular: “Dr. Equinócio ainda não passou por aqui. Se chegar será recebido como amigo, com foguetes, passeata e festas”. 

Ainda na faixa do Nordeste: um telegrama informava que, para não morrerem de fome, os retirantes nordestinos estavam comendo formiga saúva. Isto bastou para que vários jornais consultassem nutrólogos, tendo eles afirmado que, de fato, a formiga apresentava qualidades nutritivas. Era uma temeridade tal afirmação, pois isso talvez fosse o bastante para que tirassem a formiga da boca do nordestino.

Uma das mais belas manifestações do Festival, entretanto, estava reservada para o mês de maio. Eis a solução encontrada pelos técnicos do governo para o pagamento dos novos aluguéis. Simplíssimo: no caso de aluguéis que não sofreram aumento porque o inquilino já pagava a mais do que a majoração autorizada pela lei, a pessoa deve subtrair do aluguel vigente o aluguel que teria que pagar por lei e multiplicar a diferença encontrada por 1,079, que dará “X”. Depois multiplica o aluguel que seria o corrigido pela lei por 1,17235, conforme manda a tabela, obtendo o resultado “Y” da terceira operação. A soma de “X” e “Y” é igual ao novo aluguel a pagar. 

As besteiras andando soltas pela aí provocaram — como era justo de esperar — mau exemplo em todo o interior. No nordeste de Minas a cidade de Itaobim, que fica à beira da estrada Rio-Bahia, viria para o noticiário depois que o prefeito local plantou lindas e tenras palmeiras para enfeitar a estrada, e a oposição — com inveja — soltou cem cabritos de madrugada, que jantaram as palmeiras. 

Em Fortaleza um colunista político, irritado com as bandalheiras dos vereadores em nome da liberdade, escreveu em sua coluna que metade da Câmara era composta de ladrões. No dia seguinte saiu fumacinha e fizeram ameaças ao colunista se ele não desmentisse. Ele, em vez de desmentir, ratificou e ninguém percebeu, pois deu uma segunda notícia, dizendo que havia uma metade na Câmara de Vereadores que não era composta de ladrões. 

Chovia muito em maio e os sonegadores do leite estavam em plena sonegação sem a menor punição. Houve um cavalheiro, presidente da CCPL (3) e da Cia. Fluminense de Laticínios, que veio a público para explicar que, com chuva, as vacas dão menos leite. O interessante é que a Holanda é uma super produtora de leite, lá chove três quartos do ano, e as vacas não encolhem. Mas isto é um detalhe sem importância, que não iria barrar a trajetória vitoriosa do Festival de Besteira que Assola o País.



Continua...


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Leia também:

Stanislaw PP - FeBeAPá: O Festival de Besteira (2)



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(1) Inquérito policial-militar. [Todas as notas são do editor.]
(2) Organização Internacional do Trabalho.
(3) Cooperativa Central dos Produtores de Leite.


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SÉRGIO PORTO nasceu no Rio de Janeiro em 1923 e morreu na mesma cidade em 1968. Foi cronista, radialista, homem de teatro e TV, compositor. Conhecido nacionalmente por meio do pseudônimo Stanislaw Ponte Preta, publicou, além de Febeapá, coletâneas de crônicas, textos sobre futebol, entre outros.


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