sábado, 17 de julho de 2021

Poemança Africana: Alice Palmira (Angola)

Poesia Africana - 31


língua portuguesa




Certo Olhar


Estimula
A natureza
Certo
Aberto
Afasta-se
Ao ritmo
Sedutor
Do amor
Sem cor
Sem fronteira
Com firmeza
Com conhecimento
Com confirmação
O teu certo olhar
Não abraça o pejo
E não é ausência
Mas desperta
A duração
Das coisas






Teu Nome

Sou feliz
Ao escrever
O teu nome
Poesio-te
Ouço o sussurro
Das tuas palavras
De amor que guardo
No meu peito
Em cada palavra
Existe um lugar
Partilhando a nossa
Vontade de amar
Ao longo do tempo
Idealizo-te
Vivo-te
Esperando o momento
Propício
Com o tempo leva tudo
Ouvindo a tua voz
De sexo a limpo





Sou Sacana 

Se a amargura do amor 
Me sacode 
Vou a banho 
Molho bem a cabeça 
Que é o responsável de tudo 
Sem confiança 
E sem modo 
Uiii sou sacana 
Não quero esta 
Amargura 
Entre as costelas 
E no sexo 
Não quero morrer 
De trombose 
Mas sim 
Quero essa 
Amargura 
Do amor por você





MINHA POESIA

Dá-me a tua luz
A verdade do olhar
Não é mal nenhum escrever meu nome
Não é mal nenhum escrever poesia
Não é mal nenhum escrever teu nome
Não é mal nenhum escrever teu gozo
Não é mal nenhum escrever liberdade
A paz
O amor
A bondade
A mansidão
A temperança
Dá-me a tua luz
A verdade do teu olhar
Onde vai a poesia?
Onde para a poesia?
Se a sinceridade e a poesia dói, isto é
Escrever um poema.






A MULEMBA DA ESPERANÇA

        A Mulemba do Huambo
É também a mulemba de renascer
E vim replantar o meu sentido ao pé de ti
Havemos de nos encontrar um dia para nos perdoar

        A mulemba da saudade
É também a mulemba do nosso ponto de encontro semanal
O homem vale o que vale pelas suas armas
Havemos de nos encontrar um dia para dar-nos kandandu

       A mulemba da esperança
É também a mulemba do regresso ao país, da qual nos
Sentamos a contemplar a paisagem para escrever a
Literatura e o jornalismo da nossa terra Angola
Havemos de nos encontrar um dia para dar-nos kandandu






Dormir no Chão


Narração Jorge Manuel Ramos




Alice Palmira nasceu em Brazzaville, República do Congo, a 7 de Julho de 1944, mas de nacionalidade angolana. Descendente de angolanos, aí fez os estudos primários e liceais. Para ajudar a família em dificuldades, teve que abandonar os seus estudos liceais para se matricular numa escola de dactilografia.

Foi secretária do Bureau Político do Partido Congolês do Trabalho. Trabalhou sucessivamente no Ministério do Trabalho, Previdência Social, Ministério da Indústria e na Direcção Geral do Trabalho da República do Congo.

Regressou a Angola em 1976 integrada na comitiva de António Agostinho Neto tendo sido redactora estagiária na Rádio Nacional de Angola e tradutora na Angodiplo, U.E.E. em Luanda.

Por razões pessoais abandona Angola e estabelece-se em Portugal onde vive desde 1982.
É membro e co-fundadora da União de Escritores Angolanos.

Publicou em Brazzaville em 1981, a obra poética "Liberté". Em 2005 publica em Luanda a obra "Mulemba da Saudade".

__________


VASCONCELOS, Adriano Botelho de, org. Todos os sonhos. Antologia da Poesia Moderna Angolana. Luanda: União dos Escritores Angolanos "Guaches da Vida", 2005. 593 p.




Através 

Não é através 
Da poesia 
Das histórias 
Das pesquisas 
Que é possível 
Humanizar 
A criatura 
Mas é através 
Da atitude 
Na vida 
Na observação 
E no dia-a-dia 
É ter sensação 
De gostar 
A natureza 
É através 
Da poesia 
A criatura precisa 
Dos atos de presença 
De diálogo 
Da procura 
Que dá origem 
À identidade 
Se torna mais 
Generosa 
E mais Solidária





Cabeça rapada


Irei a África
Os meus olhos lembram-se
O mufete com mandioca e
Feijão de óleo de palma

Irei cumprimentar a rainha
De cabeça rapada de joelhos
A África é um fogo de mata que conheço
Como os segundos dos meus minutos esfaimados

Não tenho, agora, de comum com África
O fogo que habita África, berço do meu ombro.





Nota de André Capilé retirada do blog Revista Modo de Usa & Co.


As comunidades linguísticas de origem bantu comportam um sem número de idiomas, com características mais ou menos aparentadas, criando um complexo emaranhado de significações que nem a violência dos processos de colonização conseguiu extinguir. Contudo, elementos de contaminação entre elas, as línguas nativas, e também a língua dos colonizadores, gerou em seu cerne uma série de variantes. Algumas delas saborosas; outras, nem tanto. Todavia, diante de determinados cenários, a linguagem comparece como efeito de resistência, rasurando espaços de enunciação que entregam corpos e cenários, não apenas como nuance de cor local, mas como registro de reconhecimento dos circuitos de ancestralidade – o que não quer dizer que sejam fenômenos apaziguadores.

Entre nós, falantes da língua brasileira, em muito devemos, também, a esses complexos linguísticos. Embora tenhamos apagado certos rastros de origem, são idiomas que espectram a nossa fala cotidiana. “Moleque”, por exemplo, do kimbundu “mulêke”, se dá como acepção: “garoto; rapaz; criado de servir” – embora o termo, sob certos aspectos, tenha sido ressemantizado, devemos, ainda, brigar com certas fixações nos dicionários. “Kandenge”, por exemplo, poderia hoje ser traduzido, no Brasil, como “de menor”? O mesmo serviria para “kafioto”?

O recente interesse pelas literaturas de expressão portuguesa em África gerou uma série de consequências interessantes no Brasil. Uma delas, e é uma hipótese em que não se pode contar certeza, renovou um olhar diferenciado para alguns segmentos das religiões de matriz africana, principalmente as de origem bantu – o candomblé de raiz Angola-Kongo. Talvez seja assunto para outro momento, embora ao ler “A mulemba da esperança”, poema de Alice Palmira, alguns desses caminhos se cruzem.

A escolha pela “mulemba” é muito significativa, a meu ver, por dois vetores: 1) árvore muito importante para a tradição bantu, por ser um lugar de encontro – principalmente dos guardiões dos clãs – é, também, um espaço de um processo de iniciação que só ocorre durante a noite – o que garante a enunciação mística da mulemba; 2) no Brasil, a figueira é uma das mais importantes árvores rituais no circuito das religiões de matriz africana. Nas raízes Angola-Kongo, a mulemba – ou Figueira – está intimamente ligada ao culto da ancestralidade e ao nkisi Kitembo [ou Kindembu] que é o rei da nação – assim como Oxóssi está para o Ketu e Besen está para os Fon. Kitembo é um nkisi ligado à atmosfera e o vento, também às estações do ano, o tempo cronológico e mitológico. Entre os elementos que o representam, há uma bandeira branca que serve como referência espacial para a chegada da caça, o registro de que naquele lugar há água, entre outras coisas. Nas casas de santo no Brasil é marca, também, de identidade ritual.

Outra palavra que vemos no poema é “kandandu”. A acepção direta desse termo signifca “abraço”. Contudo, há uma variante que liga a palavra a uma presença familiar. O termo “ka” é um artigo definido, “ndandu” comparece como “consanguinidade; parentesco” e, por extensão, “afinidade”; “o parente”, por assim dizer. O último termo, do qual tomo nota agora, é “Huambo”, uma província de Benguela. O termo chegou nessa forma como uma corruptela da língua portuguesa, antes funcionava como adjetivação para “mar grande”, ou, melhor dito: “wambu kalunga”.

Acredito que tanto conhecer as acepções duras dos vocábulos, quanto tomar a partida de possíveis ressemantizações desses mesmos termos, podem render, e muito, na leitura desse, e de outros, poemas africanos de expressão portuguesa.

Embora não vá mais me extender, cabe, a título de registro, que entre os poetas brasileiros vivos, e muito vivos, tenho visto Edimilson de Almeida Pereira fazer, com seu arsenal e repertório de linguagem, o uso mais significativo das nuances das línguas de matriz bantu. A nossa rotina, por aqui, é entender África sob perspectivas nagôs –admito o reducionismo generalista, contudo temos notícia dos itans e orikis, traduzidos por Risério e, também, reconfigurados por Ricardo Aleixo e, ainda, o próprio Edimilson com o seu belo Livro de Falas – talvez por conta dos orixás, e suas comidas votivas, estarem mais aclimatados em nosso imaginário, mas muito pouco se diz, e se faz, com e sobre a incidência bantu em nossos repertórios de leitura e escrita.

Uma anedota: imagino que um número considerável de pessoas tenha assistido o desenho Bambi, aquele de Walt Disney, ora pois: “Mbambi”: “Antílope maior que a Corça; Cervo; Veado”.


Kandandu.


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