sexta-feira, 21 de agosto de 2020

histórias davóinha: becos sem saída (I) 01bs - as águas que vêm e vão

becos sem saída

(I) o descolocado
01bs - as águas que vêm e vão


baitasar



o velho acena à miúda que carrega olhar de muita tristeza vazia, ela se aproxima do chamado feito, está vestida e forrada da casca resistente da última madrugada, os becos fazem a pele ficar cascuda e dura, os cabelo caóticos, os pés descalços, dentes arroxeados e quebrados, parecia um acidente andando nas ruas da villa, desfazendo a vida, ainda assim, bonita e rude, parecia que só precisava do repouso e reparação para ter existência

a vida não lhe vale de nada, mas lhe impõe preço, cobra mais de uns e esquece de anotar na conta de outros, faz o tipo mãezona com os escolhidos e vira as costa para os desajudados

o velho antigo continua chamando a miúda, saio da dormência de ficar pensando em nada, divagando sobre coisa alguma, a guria parece que vai reclamar, não gosta ou não sabe de agradar, na verdade, não tem o que agradecer, O que foi?

não é apenas uma pergunta, é uma valentia do seu jeito para colocar distância e avisar para ser largada em paz, exercita mais solidão que já vive, sempre desacompanhada, sabe que caída não passa o chão 
– e se passar é porque chegou o tempo de fazer uso do cobertor de terra  lhe agrada demorar a viagem, assim é que sobe a queixada e o canto canhoto da boca enquanto encarquilha a testa, os olhos macambúzios acompanham as caretas de ataque para avisar que está sem vontade e animação para as bisbilhotices

tudo que é gente aprende se defender de uma maneira ou de outra, fingir fortaleza faz parte da vida, pena que é incerto descolocar o coração do rumo e fingir ser alegre quando triste de verdade e triste quando está alegre mesmo, muitas vezes, durante a caminhada é difícil saber qual é o rumo, acho que um bom começo é não fingir alegria quando a tristeza é tristeza mesmo

o velho faltoso de uma das perna olha em seu redor, não fica pasmo comigo, pareço num existir, eu mesmo duvido se existo, ele tem os olhos das lembranças vividas aqui em outros tempos, não reconhece mais nada, tudo parece sem o lugar de antes

a memória não é tão boa, mas tem certeza que as cinzas da villa risonha viraram papelão com muro que guarda um lado do outro

o faltoso da perna acredita que os muros que já foram brancos dão acobertamento para o passado que ainda vivi esmolando aqui, o desenfeitamento das mortes desaparecidas é o conforto necessário às crianças que chegam e partem sem saberem que suas vidas foram invadidas, arrastadas e levadas sem vontade de serem levadas

jamais alguém saiu da ilha afundada, ficou tudo escondido em algum lugar abaixo da superfície da vida, o povoamento da ilha madalena nas cercanias da cicatriz é terra de abundância que cresceu e virou estação de banho dos bem de vida, antes do afundamento vieram as tropas e ficaram as lembranças das paredes caiadas de branco que continuam escondendo as histórias daqueles dias, uma paz sem sepultura

a míngua e a fartura segue acomodadas no entorno da fome engolida e da fartura vomitada, as duas vivem de costas uma para outra, os ricos do latifúndio improdutivo de um lado e a miséria farta no quarto de despejo

as histórias da fartura são escritas com letra dourada enquanto a vida da miséria é gravada nas areias da praia deserta, que o vento e as águas que vêm e vão desescrevem

as gentes com privilégios de fartura ganham nomes de ruas, praças e escolas enquanto a maioria quer apenas ter reconhecido o seu direito de viver, Senta aí, guria... preciso contar uma história.





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