sábado, 13 de janeiro de 2018

Victor Hugo - Os Miseráveis: Fantine I — O abade Myriel

Victor Hugo - Os Miseráveis


Primeira Parte - Fantine

Livro Primeiro - Um Justo




I — O abade Myriel 


Em 1815, era bispo de Digne o reverendo Carlos Francisco Bemvindo Myriel, o qual contava setenta e cinco anos de idade, e que desde 1806 ocupava aquela diocese. 

Embora seja estranho ao enredo desta história, não será demais referir, ainda que não seja senão para sermos exatos, os diversos boatos e conversas que tinham circulado a seu respeito, quando da sua chegada à diocese. Verdade ou não, o que se diz a respeito dos homens, ocupa muitas vezes na sua vida e, muito mais, no seu destino, um lugar tão importante como o mesmo que eles têm. 

Segundo se dizia, Carlos Myriel era filho de um juiz da Relação de Aix (aristocracia de toga) que, tendo-o destinado para sucessor do cargo que exercia, o casara muito novo ainda, apenas com dezoito ou vinte anos, como é costume em famílias pertencentes à magistratura. 

Apesar de casado, Carlos Myriel, pequeno de estatura, mas de agradável presença, elegante e muito espirituoso, dera, ao que constava, bastante que falar de si, por continuar dedicando a sua existência aos prazeres mundanos. Rebentou a revolução e os acontecimentos precipitaram-se rapidamente; as famílias dos magistrados dizimadas, expulsas, perseguidas, fugiram. Logo nos primeiros dias da revolução, Carlos Myriel emigrou para Itália, onde sua mulher sucumbiu, devido a uma afecção pulmonar de que há muito sofria, deixando-o sem descendência. Que se passou depois disto na vida de Carlos Myriel? Dar-se-ia o caso da ruína da anga sociedade francesa, a decadência da própria família, os trágicos acontecimentos de 93, talvez ainda mais pavorosos para os emigrados que os viam de longe aumentados pelo terror, lhe terem feito germinar no espírito ideias de solidão e de renúncia? Teria sido no meio das afeições e distrações em que ocupava a vida, alcançado subitamente por algum desses terríveis e misteriosos golpes, que às vezes vão direitos ao coração e fazem derribar o homem que as catástrofes públicas, mesmo ferindo-lhe a existência e a fortuna, não seriam capazes de abalar? Era impossível dizê-lo; o que se sabia é que, quando regressou de Itália, vinha padre. 

Em 1804, Carlos Myriel, já de idade avançada, era pároco da igreja de Brignolles e vivia na mais completa solidão. 

Por ocasião da coroação teve de ir a Paris por causa de uma pequena pretensão, a que andava ligado o interesse da sua paróquia. Entre as pessoas de influência, cuja proteção solicitou em favor dos seus paroquianos, contava-se o cardeal Tesch. Num dia em que o imperador foi visitar seu o, encontrou-se na passagem com o digno eclesiástico, que aguardava na antecâmara ocasião oportuna para ser admitido à audiência. Napoleão, notando a insistência com que aquele velho o observava, voltou-se de repente e perguntou: 

— Quem é este homem que não deixa de olhar para mim? 

— Sire — disse Myriel — Vossa Majestade reparou num pobre insignificante, eu olho para um grande homem. Podemos ambos aproveitar. 

Nessa mesma noite, o imperador perguntou ao cardeal o nome do abade e, pouco tempo depois, Carlos Myriel, surpreendido, recebeu a notícia de que havia sido nomeado bispo de Digne. 

Até que ponto, porém, era verdade o que se dizia relativamente à primeira parte da existência daquele homem? Ninguém o sabia, porque poucas famílias haviam conhecido a dele antes da revolução. 

Apesar de bispo e mesmo por o ser, Myriel teve de resignar-se à sorte de todas as pessoas que chegam a uma cidade pequena, onde é maior o número de bocas que falam do que cabeças que pensam. No fim de tudo, porém, as conversas em que o seu nome andava envolvido, não passavam de boatos. 

Fosse como fosse, decorridos nove anos de episcopado e de residência em Digne, todos esses mexericos, que nos primeiros tempos são o objecto constante das conversas entre o povo das terras pequenas, caíram em tão profundo esquecimento, que já ninguém ousava repeti-los, nem sequer recordar-se deles. 

O reverendo Myriel veio para Digne acompanhado de sua irmã Baptistina, mais nova do que ele dez anos e uma criada da mesma idade da irmã, chamada Magloire, a qual passara a exercer as duplas funções de criada grave da senhora e dispenseira do novo bispo. 

Alta, magra, pálida, delicada e afável, Baptistina, embora se não pudesse chamar o tipo da mulher veneranda, porque para isso era necessário que fosse mãe, realizava, todavia, a mais completa expressão da palavra respeitável. Nunca fora bonita, mas a sua existência, que se resumia numa longa série de obras de caridade, revestira-se, por fim, de uma espécie de alvura luminosa que lhe dava, depois de velha, aquilo a que poderemos chamar a beleza da bondade. O que na sua mocidade fora magreza, tornou-se na velhice em transparência, através da qual, como de um véu, se entrevia um anjo. Era em si mesma mais que uma virgem, era uma alma. O seu vulto parecia feito de sombra; apenas o corpo necessário para determinar o sexo; era pequena porção de matéria contendo uma chama celeste; olhos grandes e sempre fitos no chão, um pretexto para uma alma andar na terra. 

Magloire era uma velhinha baixa e muito gorda, sempre atarefada, sempre arquejante, não só por efeito da sua muita atividade, mas em consequência dos seus padecimentos asmáticos. 

Apenas chegou a Digne, o novo prelado tomou posse do palácio episcopal, com todas as honras concedidas pelos decretos imperiais, que classificam o bispo imediatamente após o marechal de campo. O maire e o presidente foram logo cumprimentá-lo, e ele, por sua vez, fez o mesmo ao general e ao prefeito. 

Depois de ver o novo prelado estabelecido no governo espiritual da diocese, a cidade esperou pelos seus atos.






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Enquanto existir nas leis e nos costumes uma organização social que cria infernos artificiais no seio da civilização, juntando ao destino, divino por natureza, um fatalismo que provém dos homens; enquanto não forem resolvidos os três problemas fundamentais a degradação do homem pela pobreza, o aviltamento da mulher pela fome, a atrofia da criança pelas trevas; enquanto, em certas classes, continuar a asfixia social ou, por outras palavras e sob um ponto de vista mais claro, enquanto houver no mundo ignorância e miséria, não serão de todo inúteis os livros desta natureza. 

Hauteville House, 1862




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Victor-Marie Hugo (1802—1885) foi um novelista, poeta, dramaturgo, ensaísta, artista, estadista e ativista pelos direitos humanos francês de grande atuação política em seu país. É autor de Les Misérables e de Notre-Dame de Paris, entre diversas outras obras clássicas de fama e renome mundial.


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