sábado, 16 de maio de 2020

Gabriel G Márquez - Cem Anos de Solidão (1.1) - Muitos anos depois...

Cem Anos de Solidão



Gabriel Garcia Márquez


(1.1)



para jomí garcía ascot 

e maría luisa elío





MUITOS ANOS DEPOIS, diante do pelotão de fuzilamento, o Coronel Aureliano Buendía havia de recordar aquela tarde remota em que seu pai o levou para conhecer o gelo. Macondo era então uma aldeia de vinte casas de barro e taquara, construídas à margem de um rio de águas diáfanas que se precipitavam por um leito de pedras polidas, brancas e enormes como ovos pré-históricos. O mundo era tão recente que muitas coisas careciam de nome e para mencioná-las se precisava apontar com o dedo. Todos os anos, pelo mês de março, uma família de ciganos esfarrapados plantava a sua tenda perto da aldeia e, com um grande alvoroço de apitos e tambores,dava a conhecer os novos inventos. Primeiro trouxeram o imã. Um cigano corpulento, de barba rude e mãos de pardal, {1} que se apresentou com o nome de Melquíades, fez uma truculenta demonstração pública daquilo que ele mesmo chamava de a oitava maravilha dos sábios alquimistas da Macedônia. Foi de casa em casa arrastando dois lingotes metálicos, e todo o mundo se espantou ao ver que os caldeirões, os tachos, as tenazes e os fogareiros caíam do lugar, e as madeiras estalavam com o desespero dos pregos e dos parafusos tentando se desencravar, e até os objetos perdidos há muito tempo apareciam onde mais tinham sido procurados, e se arrastavam em debandada turbulenta atrás dos ferros mágicos de Melquíades. “As coisas têm vida própria”, apregoava o cigano com áspero sotaque, “tudo é questão de despertar a sua alma.” José Arcadio Buendía, cuja desatada imaginação ia sempre mais longe que o engenho da natureza, e até mesmo além do milagre e da magia, pensou que era possível se servir daquela invenção inútil para desentranhar o ouro da terra. Melquíades, que era um homem honrado, preveniu-o: “Para isso não serve.” Mas José Arcadio Buendía não acreditava, naquele tempo, na honradez dos ciganos de modo que trocou o seu jumento e um rebanho de cabritos pelos dois lingotes imantados. Úrsula Iguaráni sua mulher, a que contava com aqueles animais para aumentar o raquítico patrimônio doméstico, não conseguiu dissuadi-lo. “Muito em breve vamos ter ouro de sobra para assoalhar a casa”, respondeu o marido. Durante vários meses empenhou-se em demonstrar o acerto das suas conjeturas. Explorou palmo a palmo a região, inclusive o fundo do rio, arrastando os dois lingotes de ferro e recitando em voz alta o conjuro de Melquíades. A única coisa que conseguiu desenterrar foi uma armadura do século XV, com todas as suas partes soldadas por uma camada de óxido, cujo interior tinha a ressonância oca de uma enorme cabaça cheia de pedras. Quando José Arcadio Buendía e os quatro homens da sua expedição conseguiram desarticular a armadura, encontraram um esqueleto calcificado que trazia pendurado no pescoço um relicário de cobre com um cacho de cabelo de mulher. 

Em março os ciganos voltaram. Desta vez traziam um óculos ao alcance e uma lupa do tamanho de um tambor, que exibiram como a última descoberta dos judeus de Amsterdam. Sentaram uma cigana num extremo da aldeia e instalaram o óculo de alcance na entrada da tenda. Mediante o pagamento cinco reais, o povo se aproximava do óculo e via a cigana ao alcance da mão. “A ciência eliminou as distâncias”, apregoava Melquíades. “Dentro em pouco o homem poderá ver acontece em qualquer lugar da terra, sem sair de sua casa.“ Num meio-dia ardente, fizeram uma assombrosa demonstração com a lupa gigantesca: puseram um montão de seco na metade da rua e atearam fogo nele pela concentração dos raios solares. José Arcadio Buendía, que ainda não se consolara de todo do fracasso dos seus ímãs, concebeu a ideia de utilizar aquele invento como uma arma de guerra. Melquíades, outra vez, tratou de dissuadi-lo. Mas terminou os dois lingotes imantados e três peças de dinheiro colonial em troca da lupa. Úrsula chorou de consternação. Aquele dinheiro fazia parte de um cofre de moedas de ouro que seu pai acumulara em toda uma vida de privações e que havia enterrado debaixo da cama, à espera de uma boa ocasião para investi-las. José Arcadio Buendía nem sequer tentou consolá-la, entregue que estava por inteiro às suas experiências táticas, com a abnegação de um cientista e até mesmo com o risco da própria vida. Tentando demonstrar os efeitos da lupa na tropa inimiga, ele mesmo se expôs à concentração dos raios solares e sofreu queimaduras que se transformaram em úlceras e demoraram muito tempo para sarar. Diante dos protestos da mulher, alarmada por tão perigosa inventiva por pouco não incendiou a casa. Passava longas horas no quarto, fazendo os cálculos das possibilidades estratégicas da nova arma, até que conseguiu compor um manual de uma assombrosa clareza didática e um poder de convicção irresistível. Enviou-o às autoridades, acompanhado de numerosos testemunhos sobre as suas experiências e de vários apêndices de desenhos explicativos, aos cuidados de um mensageiro que atravessou a serra, extraviou-se em pântanos desmesurados, subiu rios tormentosos e esteve a ponto de perecer sob o ataque das feras, o desespero e a peste, até encontrar um caminho que o levasse às mulas do correio. Embora a viagem à capital fosse naquele tempo quase impossível, José Arcadio Buendía prometia tentá-la logo que o Governo ordenasse, com o fim de fazer demonstrações práticas do seu invento diante dos poderes militares, e adestrá-los pessoalmente nas complicadas artes da guerra solar. Durante vários anos esperou a resposta. Por fim, cansado de esperar, lamentou-se diante de Melquíades do fracasso da sua iniciativa e o cigano, então, deu uma prova convincente de honradez: devolveu-lhe os dobrões em troca da lupa e deixou, para ele, além disso, uns mapas portugueses e vários instrumentos de navegação. De seu próprio punho e letra escreveu uma apertada síntese dos estudos do monge Hermann, que deixou à sua disposição para que pudesse se servir do astrolábio, da bússola e do sextante. José Arcadio Buendía passou os longos meses de chuva fechado num quartinho que construíra no fundo da casa, para que ninguém perturbasse as suas experiências. Tendo abandonado completamente as obrigações domésticas, permaneceu noites inteiras no quintal, vigiando o movimento dos astros, e quase sofreu uma insolação, por tentar estabelecer um método exato para determinar o meiodia. Quando se tornou perito no uso e manejo dos seus instrumentos, passou a ter uma noção do espaço que lhe permitiu navegar por mares incógnitos, visitar territórios desabitados e travar relações com seres esplêndidos, sem necessidade de abandonar o seu gabinete. Foi por essa ocasião que adquiriu o hábito de falar sozinho, passeando pela casa sem se incomodar com ninguém, enquanto Úrsula e as crianças suavam em bicas na horta cuidando da banana e da taioba, do aipim e do inhame, do cará e da berinjela. De repente, sem anúncio prévio, a sua atividade febril se interrompeu e foi substituída por uma espécie de fascinação. Esteve vários dias como que enfeitiçado, repetindo para si mesmo em voz baixa um rosário de assombrosas conjeturas, sem dar crédito ao próprio entendimento. Por fim, numa terça-feira de dezembro, na hora do almoço, soltou de uma vez todo peso do seu tormento. As crianças haviam de recordar o resto da vida a augusta solenidade com que o pai se sentou na cabeceira da mesa, tremendo de febre, devastado pela prolongada vigília e pela pertinácia da sua imaginação, e revelou a eles a sua descoberta: 

— A terra é redonda como uma laranja. 

Úrsula perdeu a paciência. “Se você pretende ficar louco fique sozinho”, gritou. 

“Não tente incutir nas crianças as suas ideias de cigano.” José Arcadio Buendía, impassível, não se deixou amedrontar pelo desespero da mulher que, num impulso de cólera, destroçou o astrolábio contra o solo. Construiu outro, reuniu no quartinho os homens do povoado e demonstrou a eles, com teorias que acabaram sendo incompreensíveis para todos, a possibilidade de regressar ao ponto de partida navegando sempre para o Oriente. A aldeia inteira já estava convencida de que José Arcadio Buendía tinha perdido juízo, quando Melquíades chegou para pôr a coisa em pratos limpos. Ressaltou em público a inteligência daquele homem que, por pura especulação astronômica, construíra uma teoria já comprovada na prática, se bem que desconhecida até então em Macondo, e como uma prova da sua admiração deu lhe um presente que havia de exercer uma influência decisiva o futuro da aldeia: um laboratório de alquimia. 

Por essa época, Melquíades tinha envelhecido com uma rapidez assombrosa. Nas suas primeiras viagens parecia ter a mesma idade de José Arcadio Buendía. Mas enquanto este conservava a sua força descomunal, que lhe permitia derrubar um cavalo agarrando-o pelas orelhas, o cigano parecia estragado por um mal tenaz. Era, na realidade, o resultado de múltiplas estranhas doenças contraídas nas suas incontáveis viagens o redor do mundo. Conforme ele mesmo contou a José Arcadio Buendía, enquanto o ajudava a montar o laboratório, morte o seguia por todas as partes, farejando-lhe as calças, as sem se decidir a dar o bote final. Era um fugitivo de quantas pragas e catástrofes haviam flagelado o gênero humano. Sobreviveu à pelagra na Pérsia, ao escorbuto no arquipélago da Malásia, à lepra em Alexandria, ao beribéri no Japão, à peste bubônica em Madagascar, ao terremoto na Sicília e a um naufrágio multitudinário no estreito de Magalhães. Aquele ser prodigioso que dizia possuir as chaves de Nostradamus era um homem lúgubre, envolto numa aura triste, com um olhar asiático que parecia conhecer o outro lado das coisas. Usava um chapéu grande e negro, como as asas estendidas de um corvo, e um casaco de veludo patinado pelo limo dos séculos. Mas, apesar da sua imensa sabedoria e de sua aura misteriosa, tinha um peso humano, uma condição terrestre que o mantinha atrapalhado com os minúsculos problemas da vida cotidiana. Queixava-se de achaques de velho, sofria pelos mais insignificantes prejuízos econômicos e tinha deixado de rir há muito tempo, porque o escorbuto lhe havia arrancado os dentes. No sufocante meio-dia em que revelou os seus segredos, José Arcadio Buendía teve a certeza de que aquele era o princípio de uma grande amizade. As crianças se assombraram com os seus relatos fantásticos. Aureliano, que naquele tempo não tinha mais de cinco anos, havia de recordar pelo resto da vida como o viu naquela tarde, sentado contra a claridade metálica e reverberante da janela, iluminando com a sua profunda voz de órgão os territórios mais escuros da imaginação, enquanto esguichava pelas têmporas a gordura derretida pelo calor. José Arcadio, seu irmão mais velho, havia de transmitir aquela imagem maravilhosa, corno uma recordação hereditária, a toda a sua descendência. Úrsula, pelo contrário, conservou uma lembrança desagradável daquela visita, porque entrou no quarto no momento em que Melquíades quebrava por distração um frasco de bicloreto de mercúrio. 

— É o cheiro do demônio-ela disse. 

— Absolutamente — corrigiu Melquíades. — Está comprovado que o demônio tem propriedades sulfúricas, e isto não passa de um pouco de sublimado corrosivo. 

Sempre didático, fez uma sábia exposição sobre as virtudes diabólicas do cinabre, mas Úrsula não lhe deu a menor atenção e levou as crianças para rezar. Aquele cheiro acre ficaria para sempre em sua memória vinculado à lembrança de Melquíades. 

O laboratório rudimentar — não se falando na profusão e caçarolas, funis, retortas, filtros e coadores — estava composto de uma tubulação primitiva; uma proveta de cristal, de pescoço comprido e estreito, imitação do ovo filosófico; e um alambique construído pelos próprios ciganos, de acordo com as descrições daquele de três braços, de Maria, a judia. Além destas coisas, Melquíades deixou amostras dos sete metais correspondentes aos Sete planetas, as fórmulas de Moisés e Zózimo para a duplicação do ouro, e uma série de notas e desenhos sobre os processos do Grande Magistério, que permitiam a quem os soubesse interpretar a tentativa de fabricação da pedra filosofal. Seduzido pela simplicidade das fórmulas para duplicar o ouro, José Arcádio Buendía adulou Úrsula durante várias semanas, para que lhe permitisse desenterrar as suas moedas coloniais e aumentá-las tantas vezes quantas fosse possível subdividir o azougue. Úrsula cedeu, como acontecia sempre, diante da inquebrantável obstinação do marido. Então, José Arcádio Buendía jogou trinta dobrões numa caçarola e os fundiu com raspa de cobre, ouro-pigmento, enxofre e chumbo. Pôs tudo para ferver em fogo forte, num caldeirão de óleo de rícino, até obter um xarope espesso e fedorento, mais parecido com uma calda vulgar do que com o ouro magnífico. Em azarados e desesperados processos de destilação, fundida com os sete metais planetários, trabalhada com o mercúrio hermético e o vitríolo de Chipre, e novamente cozida em banha de porco na falta de óleo de rábano, a preciosa herança de Úrsula ficou reduzida a um torresmo carbonizado que não pôde ser desprendido do fundo do caldeirão


continua página 10...


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{1} No original manos de gorrión. Explicação do autor à tradutora: “O importante da imagem é que esse pássaro tem patas de ave de rapina, mas é bom e inofensivo. Melquíades também, por suas mãos, e à primeira vista, podia parecer uma ave de rapina, mas não o era, como se viu mais tarde.”
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Leia também:

Gabriel G Márquez - Cem Anos de Solidão (1.1) - Muitos anos depois...
Gabriel G Márquez - Cem Anos de Solidão (1.2) - Quando os ciganos voltaram...


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Literatura Fundamental - Cem anos de solidão
- Joana Rodrigues





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Prefácio

O colombiano Gabriel García Márquez (1928) é o último grande contador de histórias do século XX — e, até prova em contrário, da própria literatura ocidental. Depois de cem anos marcados por revoluções literárias radicais, não deixa de ser surpreendente que ele tenha conquistado tamanha notoriedade — nem o Nobel lhe falta ganhou-o em 1982 — enquanto tentava apenas imitar o tom com que sua avo materna lhe contava episódios mais fantásticos: sem alterar um só traço do rosto. Em nenhum outro livro García Márquez empenhou-se tanto para alcançar aquele tom como em Cem anos de solidão (1967). Assim, ao mesmo tempo em que a incrível e triste história dos Buendía — a estirpe de solitários para a qual não será dada “uma segunda oportunidade sobre a terra” — pode ser entendida como uma autêntica enciclopédia do imaginário, ela é narrada de modo a parecer sempre que tudo faz parte da mais banal das realidades. Seria ingênuo procurar uma chave que explicasse toda a grandeza deste livro diante do qual o repertório de adjetivos torna-se espantosamente ineficaz. Porém, é razoável atribuir parte do êxito de Cem anos àquela contaminação, pelo real, do universo maravilhoso da fictícia Macondo, onde se passa o romance. Aqui pesou muito a experiência jornalística de García Márquez. E também a sombra do tcheco Franz Kafka (foi depois de ler a primeira frase de A metamorfose que García Márquez decidiu que seria escritor). Mas, para além desses artifícios técnicos e influências literárias, é preciso que se diga que a atordoante sensação de realidade que transborda do livro deve-se ainda ao fato de que ele foi escrito, segundo o autor, para “dar uma saída às experiências que de algum modo me afetaram durante a infância”. Tome-se, por exemplo, a primeira frase de Cem anos. Quando o escritor era pequeno, seu avô, o coronel Márquez, o apresentou mesmo, maravilhado, ao gelo, tal como José Arcadio Buendía faz com o filho Aureliano. Do mesmo modo que José Arcadio, o avô de García Márquez também carregava, na vigília e nos sonhos, o peso de um morto — o homem que havia assassinado. O coronel era marido de Tranquilina, aquela avó que encheu os primeiros anos e o resto da vida do neto Gabriel de histórias bem contadas. García Márquez costuma dizer que todo grande escritor está sempre escrevendo o mesmo livro. “E qual seria o seu?”, perguntaram-lhe. “O livro da solidão”, foi a resposta. Apesar disso, ele não considera Cem anos sua melhor obra (gosta demais de O outono do patriarca, onde o tema também está presente). O que importa? O certo é que nenhum outro romance resume tão completamente o formidável talento deste contador de histórias de solitários — que se espalham e se espalharão por muito mais de cem anos pelas Macondos de todo o mundo. Rinaldo Gama


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Gabriel García Márquez
CEM ANOS DE SOLIDÃO
Título original: Cien Años de Solead
Tradução de ELIANE ZAGURY
48ª EDIÇÃO EDITORA RECORD
RIO DE JANEIRO • SÃO PAULO
© 1967 by Gabriel García Márquez



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