James Joyce
Introdução
Dublinenses, a primeira obra em prosa de James Joyce, é um livro de contos que, revelando as frustrações, a inação e, até mesmo, as perversões ocasionais de seus personagens, denuncia a inércia da cidade em que vivem. No entanto, Dublin não é apenas o centro da paralisia, mas também a segunda cidade do império britânico, quase três vezes maior do que Veneza, merecendo, portanto, que algum artista a ofereça ao mundo. E Joyce a descreve com minucioso carinho, de Dublinenses a Finnegans Wake e, em particular, em Ulisses, a fim de que, se algum dia for destruída por uma guerra ou um terremoto, ela possa ser reconstruída através de seus escritos.
Em seguida Joyce escreve um romance, inicialmente Stephen Hero, do qual só restam fragmentos, que transforma em Um Retrato do Artista Quando Jovem. Nesta obra primorosa, ele evolui para o monólogo interior, a narrativa do fluxo da consciência, de que se serve para acompanhar, através de recursos de linguagem e musicalidade incomparável, a evolução psíquica do seu personagem Stephen Dedalus, desde sua mais tenra idade até o final da adolescência.
Em Ulisses, teremos, então, uma paródia de A Odisseia de Homero. Elaborada com sucesso extraordinário e de forma abrangente, ela corresponde perfeitamente ao conceito atual deste gênero literário. A paródia moderna é, na realidade, uma forma de arte em que predomina a auto-reflexividade, proporcionando um novo modelo para o processo artístico. É uma inversão irônica do modelo inicial.
A paródia moderna, afirma Linda Hutcheon, se distingue da imitação ridicularizante mencionada nas definições padrões dos dicionários. Além de reativar o passado, dando-lhe contexto novo e frequentemente irônico, ela exige do leitor maior atualização e melhor conhecimento deste passado, levando-o, se preciso for, a voltar a ele para uma maior integração com a obra. Em sua inversão irônica, é um jogo com convenções múltiplas, uma prolongada repetição com diferença crítica, uma confrontação estilística que, longe de desmerecer o original, ressalta nele apenas a diferença. Por seu aspecto sofisticado, a paródia faz exigências não apenas daqueles que a utilizam como também de seus intérpretes. De fato, tanto o escritor quanto o leitor devem efetuar uma superposição estrutural dos textos, que incorpore o antigo ao novo, visto que ela é uma síntese bitextual.
Em Ulisses, Joyce combina o virtuosismo técnico da paródia com o tratamento psicológico dado aos seus três personagens principais: Stephen Dedalus, Leopold Bloom e Molly Bloom. Assim, ao compor seu romance em dezoito episódios, portanto menos seis do que aqueles em que se divide A Odisseia, Joyce vai abandonar alguns da obra grega, alterar a ordem daqueles que usa, antecipando certos episódios e pospondo outros, criando um episódio onde não havia um no original, a fim de enfatizar os processos psíquicos e os conflitos psicológicos de seus personagens, que são os que mais lhe interessam.
Inúmeros são os recursos paródicos empregados por Joyce, quanto ao tema propriamente dito, aos personagens e ao papel que desempenham, aos episódios de que se apropria, sem obedecer à ordem em que ocorrem no modelo homérico, à diversidade dos estilos usados com finalidade precisa, às inúmeras citações de obras, sobretudo shakespearianas, ou aos vocábulos latinos, hebraicos, franceses, irlandeses, italianos, espanhóis, alemães, inseridos naturalmente no texto.
Consideremos inicialmente o tema de ambas as obras. A Odisseia narra a história de um herói, Odisseu, rei de Ítaca, casado com Penélope, que, depois de ter se distinguido durante dez anos na guerra contra Tróia, por sua prudência e sagacidade, levou mais dez anos para retornar ao seu reino e à sua casa. Viu cidades e povos diferentes e passou a conhecer-lhes os costumes. No caminho de volta, enfrentou uma série de aventuras e provações, ficando muitas vezes à mercê de feiticeiros, monstros e deuses vingativos. Lutou para preservar sua vida e as de seus companheiros, mas não conseguiu salvá-los.
Mostra-nos também, paralelamente, a história de como sua mulher, Penélope, o aguardou fielmente, embora assediada por pretendentes à sua mão que, instalados em sua propriedade, esperavam ansiosos serem os substitutos escolhidos do marido desaparecido. Seu filho, Telêmaco, vendo-se despojado de seus bens e aconselhado pela deusa Palas Atena, protetora de Odisseu, sai em busca do pai.
Temos, assim, em resumo, as aventuras do herói Odisseu em sua epopeia de volta à pátria, a fidelidade da mulher ao marido ausente e um filho à procura do pai.
Em Ulisses, naquele longo dia 16 de junho de 1904, Leopold Bloom – o Ulisses de Joyce –, depois de um dia particularmente atribulado, perambulando por Dublin, retorna à sua casa e ao se deitar ao lado da mulher, Molly, pede-lhe que lhe traga, no dia seguinte, o café-da-manhã na cama, fato inusitado que não ocorria havia onze anos, desde a morte do filho Rudy. Durante todo aquele tempo fora ele que a servira.
Naquele mesmo dia, Molly, que além de ser a Sra. Marion Bloom também era uma cantora, cometia adultério com seu empresário Blaze Boylan. Desta traição, Bloom tivera plena consciência o dia todo.
Diferentemente de A Odisseia, Stephen Dedalus – o Telêmaco da obra de Joyce –, embora insatisfeito com o pai que tem, não está interessado em procurar-lhe um substituto, como o desejara no final de Um Retrato do Artista Quando Jovem. Aquele que, na verdade, continua sonhando em ter um filho homem é Bloom, e será ele que tentará, através de uma proposta que lhe parece interessante, convencer Stephen a morar com ele e Molly. Tal proposta, no entanto, será delicadamente recusada pelo jovem.
Temos, assim, diversamente do modelo grego, um marido traído que, ao invés de lavar a honra com sangue, inverterá com palavras uma situação existente há onze anos; uma mulher que não se mostra fiel, cometendo naquele dia adultério, e um pai procurando um filho, ao invés de um filho em busca de um pai.
Para Joyce, como ele o confessa ao amigo Frank Budgen, o mais completo herói clássico, e por isso por ele escolhido, é Ulisses, por ser filho de Laerte, pai de Telêmaco, marido de Penélope, amante de Calipso, companheiro de armas dos guerreiros gregos em Tróia e rei de Ítaca. Submetido a inúmeras provações, superou-as com sabedoria e coragem.
Seu Ulisses moderno, Leopold Bloom, também é por ele descrito como “filho, pai, amante, amigo, trabalhador e cidadão”. É, além do mais, ainda sempre a mesma pessoa bondosa, humana, prudente, equilibrada, submissa, tragicamente isolada, astuta, cética, simples, não reprovadora, com um exterior aparentemente suave e maleável, mas com uma essência íntima, inflexível, de auto-suficiência. No entanto, diversamente de Odisseu, ele não tem uma deusa Palas Atena para protegê-lo. Terá de depender de sua própria sabedoria e de seus frágeis recursos humanos.
Molly Bloom, a Penélope de Joyce, totalmente diversa de seu modelo grego, é assim descrita por seu criador: uma “Weib (mulher) sã de espírito, totalmente amoral, fertilizável, inconfiável, cativante, perspicaz, limitada, prudente, indiferente – Ich bin das Fleisch das stets bejaht”. Ou seja: “Eu sou a carne que sempre diz sim.” Na verdade é isso que ela faz, ela diz sim à vida, no sentido mais amplo da palavra.
Outras inversões irônicas ainda ocorrem, como no caso do Sr. Deasy, diretor da escola em que Stephen leciona, que parodia Nestor, o mais sábio dos guerreiros gregos, embora esteja longe de possuir a sabedoria do modelo grego. Imbuído de preconceitos, considera as mulheres, a partir de Eva e de seu pecado original, responsáveis por todo o mal existente na terra, e os judeus, com suas riquezas, merecedores de continuar errantes pelo mundo afora. Para ele o dinheiro é tudo na vida, pois “dinheiro é poder”, o que leva Stephen a se indagar se é isso a “sabedoria”.
Contrastando com as sereias que, em A Odisseia, são perigosas por enfeitiçarem os homens com sua música e seus encantos e os arrastarem para a morte, as sereias em Ulisses são duas garçonetes do bar do Hotel Ormond. Uma delas, senhorita Douce, tem o cabelo bronzeado e a outra, senhorita Kennedy, o tem dourado. Elas tentam em vão ser sedutoras, desdenhando quem por elas mostra interesse, como Lenehan, embora sejam menosprezadas por aquele que desejariam seduzir, Blaze Boylan.
A Nausicaa do Ulisses de Joyce, Gertie MacDowell, é uma jovem bonita de rosto que, diversamente da moça ingênua e pura do original grego, é provocante. Conhecedora de seus dons e de sua beleza, seduz aquele homem mais velho e interessante – Bloom – que fantasia ser o homem ideal de sua vida.
Parodiando Circe que, em A Odisseia, é uma feiticeira fascinante que atrai os homens que dela se aproximam e os transforma em porcos, mantendo-os aprisionados em seu covil, em Ulisses a luxúria, o egoísmo, a sordidez, simbolizando os porcos do modelo grego, estão presentes na zona dos bordéis em que Bloom penetra em busca de Stephen e nas fantasias de toda sorte, inclusive as de poder e de perversão do herói joyciano.
Em Ulisses, além da inovação de uma narrativa revolucionária, baseada no fluxo da consciência através do monólogo interior, Joyce criou um herói muito especial, totalmente diferente do herói-padrão do início do século XX. De fato, ciente da traição da mulher naquele atormentado dia 16 de junho de 1904, ele reage de uma forma inesperada para a época. Embora enciumado, atormentado e sofrido, ele reflete com clareza que “cada um que entra (na cama) se imagina ser o primeiro a entrar enquanto ele é sempre o último termo de uma série precedente mesmo se ele for o primeiro de uma série subsequente, cada um se imaginando ser o primeiro, último, único e sozinho, enquanto não é nem o primeiro nem o último nem o único nem sozinho numa série originada então e repetida ao infinito”.
Tal pensamento jamais poderia ser admitido por um homem preso aos códigos vigentes na sociedade do início de século XX. Seria inadmissível para ele chegar à conclusão à qual Bloom chegou, ao considerar a atitude a tomar diante da situação que enfrentava: “Assassinato, nunca, visto que dois erros não tornam um certo. Duelo por combate, não. Divórcio, agora não.”
Bloom é, na verdade, um homem muito bom e avesso à violência que sabe conviver com suas frustrações, limitações e fraquezas; que, em sua visão realista de si mesmo, aceita a traição por saber que, ao menos naquele momento de sua vida, não consegue existir sem a mulher amada. Ele é o herói moderno, ou melhor, o anti-herói que, em sua luta diária pela sobrevivência, nem mesmo sabe o quão heroico é e tanto nos seduz.
Lembra-nos o homem absurdo de Camus que aceita a luta, não despreza de forma alguma a razão e admite o irracional, pois reconhece que o absurdo é a razão lúcida que constata seus limites.
Ao se referir a Ulisses em conversa com o jovem amigo Arthur Power, em Conversations with James Joyce, Joyce, plenamente consciente da revolução que efetuava na literatura, diz: “Quanto ao classicismo romântico que você tanto admira, Ulisses mudou tudo isso, pois nele eu abri um novo caminho e você vai ver que ele será seguido cada vez mais. De fato a partir dele você pode datar uma nova orientação na literatura – o novo realismo, pois embora você critique Ulisses, contudo a única coisa que você tem que admitir que eu fiz foi liberar a literatura de seus grilhões antiquados. Você é evidentemente um tradicionalista intransigente, mas deve perceber que uma maneira nova de pensar e de escrever foi iniciada, e aqueles que não concordarem com ela serão deixados para trás.” E em seguida acrescenta: “Em Ulisses procurei expressar as múltiplas variações que constituem a vida social de uma cidade – suas degradações e suas exaltações.”
Realmente tudo acontece naquele bendito dia 16 de junho de 1904: nascimento, morte, frustração, alegria, rejeição, traição, prazer, masturbação, menstruação, tudo, enfim, que um ser humano vivencia. Ulisses é, na realidade, uma extraordinária comédia humana.
Entre o Ulisses de Joyce e A Odisseia de Homero vários séculos se interpõem. O tempo pode, sem dúvida alguma, distanciá-los, mas o virtuosismo, o requinte técnico da paródia joyciana amarra, implacavelmente, os dois gênios da expressão artística.
Por que, então, me decidi a enfrentar a tradução de uma obra tão complexa? Certamente para mostrar que a leitura de Ulisses não era uma aventura intransponível, que a linguagem de Joyce não era tão difícil e pesada quanto se dizia, mas uma linguagem coloquial convidativa e ao alcance do leitor, embora lexicamente muito rica. Maior do que o desafio assustador da empreitada era o meu desejo de, através de uma linguagem coloquial semelhante à de Joyce, permitir que o maior número possível de leitores usufruísse, como eu usufruíra, de suas criações narrativas inovadoras, através de sua diversidade de estilos, sua musicalidade, sua riqueza vocabular e seu uso do monólogo interior em sua acepção mais completa. Eu desejava, sobretudo, dar-lhes a oportunidade de se divertirem com a leitura deste livro invulgar como eu me divertira ao lê-lo e traduzi-lo.
Em 1992, quando traduzi Um Retrato do Artista Quando Jovem, eu já me deparara com o desafio um tanto assustador de traduzir Joyce. Somente o encantamento que me proporcionara sempre a sua leitura, devido ao seu estilo harmoniosamente adequado ao conteúdo, à sonoridade das palavras por ele empregadas, à melodia, cadência e ritmo de sua linguagem, me armara de coragem. De fato, transpor para o português, com sua música própria, a riqueza musical estilística e poética de um livro que é a própria poesia em prosa, não foi uma tarefa fácil. Na verdade o som é tão importante para Joyce em Um Retrato que é possível acompanhar a evolução psíquica de seu personagem Stephen Dedalus através dos efeitos que o autor lhe empresta, partindo de um som monocórdio no capítulo inicial e prosseguindo, num crescendo, até atingir uma sonoridade polifônica e orquestral na descoberta que o jovem faz de sua verdadeira vocação artística.
Em Ulisses, o elemento sonoro vai ser igualmente marcante. Se como Joyce dissera em Um Retrato que “havia diferentes tipos de dor para todos os diferentes tipos de som”, também em Ulisses ele imprimirá ritmos próprios e distintos aos monólogos dos três personagens principais do romance, apropriados às suas respectivas personalidades.
O monólogo de Stephen Dedalus, meditativo, mutável como Proteu, se manterá mais lento, intercalando palavras longas e curtas, de origem latina ou saxônica, refletindo a complexidade de seus pensamentos filosóficos e metafísicos. Tudo nele é pensamento ou sensação. O de Leopold Bloom, todo ele em stacatto, com o ritmo brusco de alguém capaz de superar as próprias dificuldades, se constituirá de frases primordialmente curtas, de omissão de sujeitos, de palavras frequentemente monossilábicas, às vezes mesmo reduzidas por aférese, refletindo o seu ser interior que sempre tenta imaginar um sentido lógico nas coisas. O de Molly Bloom, sem pontuação, sem maiúsculas, sem fazer diferença entre os homens – todos eles são he –, fluirá, incontido e incontrolável, de uma mente liberta de qualquer grilhão.
É de grande importância, na tradução de um escritor genial como Joyce, estar bastante familiarizado com o autor e sua obra como um todo e tentar ser, ao máximo, fiel à sua linguagem e à sua maneira de escrever, para que o leitor possa, através delas, percebê-lo e entender os seus objetivos. Conseqüentemente, se sua linguagem é coloquial, como no caso de Ulisses, é indispensável usar a mesma linguagem coloquial na tradução. Cabe, no entanto, ter bem claro em mente que uma tradução nunca pode ser perfeita, pois são distintas as índoles das línguas em questão e há, às vezes, coisas intraduzíveis, armadilhas a serem vencidas, como é o caso dos puns – jogos de palavras – tão usuais entre os escritores de língua inglesa, como Shakespeare e Joyce. Puns ou jogos de palavras cada língua tem os seus, e eles são intransferíveis, precisando ser, portanto, de uma certa forma contornados, sempre que possível, sem alterar o sentido dado pelo autor ao contexto. O que fazer, por exemplo, com a expressão seguinte, usada por Stephen Dedalus ao falar sobre a mulher de Shakespeare, Ann Hathaway: “If others have their will, Ann hath a way”, isto é, “Se as outras têm sua vontade, Ann tem sua maneira de ser”. Neste caso, porém, o jogo de palavras e a brincadeira do trocadilho se perdem se literalmente traduzidos e, então, apelei, como em outras ocasiões para o emprego da aliteração, tão característica na poesia e na prosa de língua inglesa, ou seja, a repetição de uma mesma consoante inicial: “Se as outras têm sua vontade, Ann tem sua veneta.”
Há ocasiões em que Joyce trocará uma palavra por outra, como world por word, para mostrar uma certa ignorância de determinado personagem, em que eu troquei “palavra” por “planeta”, ou ainda outras em que cometerá propositalmente erros de concordância verbal e eu, para lhe ser fiel, farei o mesmo.
São essas dificuldades, entre outras, que tornam maior o desafio de traduzir uma obra como esta, e somente o leitor poderá testemunhar se o meu objetivo de divulgar o Ulisses de Joyce foi alcançado, ao se aventurar comigo nesta jornada de Bloom, do dia 16 de junho de 1904, data celebrada todo ano, em diferentes recantos do mundo, pelos admiradores deste genial escritor irlandês.
Agradeço a Flavia Maria Samuda que me auxiliou na revisão do meu trabalho, e a todos aqueles alunos e amigos queridos que comigo leram Ulisses, particularmente Eduardo Vidal, Maria Helena Carneiro da Cunha, Renata Salgado, Emilia Lobato, Maria Julia Goldwasser, Virginia Murad e Pedro Otavio Prado, que contribuíram, com suas observações e seu incentivo, para que eu prosseguisse nesta árdua, mas tão prazerosa tarefa.
Introdução
Dublinenses, a primeira obra em prosa de James Joyce, é um livro de contos que, revelando as frustrações, a inação e, até mesmo, as perversões ocasionais de seus personagens, denuncia a inércia da cidade em que vivem. No entanto, Dublin não é apenas o centro da paralisia, mas também a segunda cidade do império britânico, quase três vezes maior do que Veneza, merecendo, portanto, que algum artista a ofereça ao mundo. E Joyce a descreve com minucioso carinho, de Dublinenses a Finnegans Wake e, em particular, em Ulisses, a fim de que, se algum dia for destruída por uma guerra ou um terremoto, ela possa ser reconstruída através de seus escritos.
Em seguida Joyce escreve um romance, inicialmente Stephen Hero, do qual só restam fragmentos, que transforma em Um Retrato do Artista Quando Jovem. Nesta obra primorosa, ele evolui para o monólogo interior, a narrativa do fluxo da consciência, de que se serve para acompanhar, através de recursos de linguagem e musicalidade incomparável, a evolução psíquica do seu personagem Stephen Dedalus, desde sua mais tenra idade até o final da adolescência.
Em Ulisses, teremos, então, uma paródia de A Odisseia de Homero. Elaborada com sucesso extraordinário e de forma abrangente, ela corresponde perfeitamente ao conceito atual deste gênero literário. A paródia moderna é, na realidade, uma forma de arte em que predomina a auto-reflexividade, proporcionando um novo modelo para o processo artístico. É uma inversão irônica do modelo inicial.
A paródia moderna, afirma Linda Hutcheon, se distingue da imitação ridicularizante mencionada nas definições padrões dos dicionários. Além de reativar o passado, dando-lhe contexto novo e frequentemente irônico, ela exige do leitor maior atualização e melhor conhecimento deste passado, levando-o, se preciso for, a voltar a ele para uma maior integração com a obra. Em sua inversão irônica, é um jogo com convenções múltiplas, uma prolongada repetição com diferença crítica, uma confrontação estilística que, longe de desmerecer o original, ressalta nele apenas a diferença. Por seu aspecto sofisticado, a paródia faz exigências não apenas daqueles que a utilizam como também de seus intérpretes. De fato, tanto o escritor quanto o leitor devem efetuar uma superposição estrutural dos textos, que incorpore o antigo ao novo, visto que ela é uma síntese bitextual.
Em Ulisses, Joyce combina o virtuosismo técnico da paródia com o tratamento psicológico dado aos seus três personagens principais: Stephen Dedalus, Leopold Bloom e Molly Bloom. Assim, ao compor seu romance em dezoito episódios, portanto menos seis do que aqueles em que se divide A Odisseia, Joyce vai abandonar alguns da obra grega, alterar a ordem daqueles que usa, antecipando certos episódios e pospondo outros, criando um episódio onde não havia um no original, a fim de enfatizar os processos psíquicos e os conflitos psicológicos de seus personagens, que são os que mais lhe interessam.
Inúmeros são os recursos paródicos empregados por Joyce, quanto ao tema propriamente dito, aos personagens e ao papel que desempenham, aos episódios de que se apropria, sem obedecer à ordem em que ocorrem no modelo homérico, à diversidade dos estilos usados com finalidade precisa, às inúmeras citações de obras, sobretudo shakespearianas, ou aos vocábulos latinos, hebraicos, franceses, irlandeses, italianos, espanhóis, alemães, inseridos naturalmente no texto.
Consideremos inicialmente o tema de ambas as obras. A Odisseia narra a história de um herói, Odisseu, rei de Ítaca, casado com Penélope, que, depois de ter se distinguido durante dez anos na guerra contra Tróia, por sua prudência e sagacidade, levou mais dez anos para retornar ao seu reino e à sua casa. Viu cidades e povos diferentes e passou a conhecer-lhes os costumes. No caminho de volta, enfrentou uma série de aventuras e provações, ficando muitas vezes à mercê de feiticeiros, monstros e deuses vingativos. Lutou para preservar sua vida e as de seus companheiros, mas não conseguiu salvá-los.
Mostra-nos também, paralelamente, a história de como sua mulher, Penélope, o aguardou fielmente, embora assediada por pretendentes à sua mão que, instalados em sua propriedade, esperavam ansiosos serem os substitutos escolhidos do marido desaparecido. Seu filho, Telêmaco, vendo-se despojado de seus bens e aconselhado pela deusa Palas Atena, protetora de Odisseu, sai em busca do pai.
Temos, assim, em resumo, as aventuras do herói Odisseu em sua epopeia de volta à pátria, a fidelidade da mulher ao marido ausente e um filho à procura do pai.
Em Ulisses, naquele longo dia 16 de junho de 1904, Leopold Bloom – o Ulisses de Joyce –, depois de um dia particularmente atribulado, perambulando por Dublin, retorna à sua casa e ao se deitar ao lado da mulher, Molly, pede-lhe que lhe traga, no dia seguinte, o café-da-manhã na cama, fato inusitado que não ocorria havia onze anos, desde a morte do filho Rudy. Durante todo aquele tempo fora ele que a servira.
Naquele mesmo dia, Molly, que além de ser a Sra. Marion Bloom também era uma cantora, cometia adultério com seu empresário Blaze Boylan. Desta traição, Bloom tivera plena consciência o dia todo.
Diferentemente de A Odisseia, Stephen Dedalus – o Telêmaco da obra de Joyce –, embora insatisfeito com o pai que tem, não está interessado em procurar-lhe um substituto, como o desejara no final de Um Retrato do Artista Quando Jovem. Aquele que, na verdade, continua sonhando em ter um filho homem é Bloom, e será ele que tentará, através de uma proposta que lhe parece interessante, convencer Stephen a morar com ele e Molly. Tal proposta, no entanto, será delicadamente recusada pelo jovem.
Temos, assim, diversamente do modelo grego, um marido traído que, ao invés de lavar a honra com sangue, inverterá com palavras uma situação existente há onze anos; uma mulher que não se mostra fiel, cometendo naquele dia adultério, e um pai procurando um filho, ao invés de um filho em busca de um pai.
Para Joyce, como ele o confessa ao amigo Frank Budgen, o mais completo herói clássico, e por isso por ele escolhido, é Ulisses, por ser filho de Laerte, pai de Telêmaco, marido de Penélope, amante de Calipso, companheiro de armas dos guerreiros gregos em Tróia e rei de Ítaca. Submetido a inúmeras provações, superou-as com sabedoria e coragem.
Seu Ulisses moderno, Leopold Bloom, também é por ele descrito como “filho, pai, amante, amigo, trabalhador e cidadão”. É, além do mais, ainda sempre a mesma pessoa bondosa, humana, prudente, equilibrada, submissa, tragicamente isolada, astuta, cética, simples, não reprovadora, com um exterior aparentemente suave e maleável, mas com uma essência íntima, inflexível, de auto-suficiência. No entanto, diversamente de Odisseu, ele não tem uma deusa Palas Atena para protegê-lo. Terá de depender de sua própria sabedoria e de seus frágeis recursos humanos.
Molly Bloom, a Penélope de Joyce, totalmente diversa de seu modelo grego, é assim descrita por seu criador: uma “Weib (mulher) sã de espírito, totalmente amoral, fertilizável, inconfiável, cativante, perspicaz, limitada, prudente, indiferente – Ich bin das Fleisch das stets bejaht”. Ou seja: “Eu sou a carne que sempre diz sim.” Na verdade é isso que ela faz, ela diz sim à vida, no sentido mais amplo da palavra.
Outras inversões irônicas ainda ocorrem, como no caso do Sr. Deasy, diretor da escola em que Stephen leciona, que parodia Nestor, o mais sábio dos guerreiros gregos, embora esteja longe de possuir a sabedoria do modelo grego. Imbuído de preconceitos, considera as mulheres, a partir de Eva e de seu pecado original, responsáveis por todo o mal existente na terra, e os judeus, com suas riquezas, merecedores de continuar errantes pelo mundo afora. Para ele o dinheiro é tudo na vida, pois “dinheiro é poder”, o que leva Stephen a se indagar se é isso a “sabedoria”.
Contrastando com as sereias que, em A Odisseia, são perigosas por enfeitiçarem os homens com sua música e seus encantos e os arrastarem para a morte, as sereias em Ulisses são duas garçonetes do bar do Hotel Ormond. Uma delas, senhorita Douce, tem o cabelo bronzeado e a outra, senhorita Kennedy, o tem dourado. Elas tentam em vão ser sedutoras, desdenhando quem por elas mostra interesse, como Lenehan, embora sejam menosprezadas por aquele que desejariam seduzir, Blaze Boylan.
A Nausicaa do Ulisses de Joyce, Gertie MacDowell, é uma jovem bonita de rosto que, diversamente da moça ingênua e pura do original grego, é provocante. Conhecedora de seus dons e de sua beleza, seduz aquele homem mais velho e interessante – Bloom – que fantasia ser o homem ideal de sua vida.
Parodiando Circe que, em A Odisseia, é uma feiticeira fascinante que atrai os homens que dela se aproximam e os transforma em porcos, mantendo-os aprisionados em seu covil, em Ulisses a luxúria, o egoísmo, a sordidez, simbolizando os porcos do modelo grego, estão presentes na zona dos bordéis em que Bloom penetra em busca de Stephen e nas fantasias de toda sorte, inclusive as de poder e de perversão do herói joyciano.
Em Ulisses, além da inovação de uma narrativa revolucionária, baseada no fluxo da consciência através do monólogo interior, Joyce criou um herói muito especial, totalmente diferente do herói-padrão do início do século XX. De fato, ciente da traição da mulher naquele atormentado dia 16 de junho de 1904, ele reage de uma forma inesperada para a época. Embora enciumado, atormentado e sofrido, ele reflete com clareza que “cada um que entra (na cama) se imagina ser o primeiro a entrar enquanto ele é sempre o último termo de uma série precedente mesmo se ele for o primeiro de uma série subsequente, cada um se imaginando ser o primeiro, último, único e sozinho, enquanto não é nem o primeiro nem o último nem o único nem sozinho numa série originada então e repetida ao infinito”.
Tal pensamento jamais poderia ser admitido por um homem preso aos códigos vigentes na sociedade do início de século XX. Seria inadmissível para ele chegar à conclusão à qual Bloom chegou, ao considerar a atitude a tomar diante da situação que enfrentava: “Assassinato, nunca, visto que dois erros não tornam um certo. Duelo por combate, não. Divórcio, agora não.”
Bloom é, na verdade, um homem muito bom e avesso à violência que sabe conviver com suas frustrações, limitações e fraquezas; que, em sua visão realista de si mesmo, aceita a traição por saber que, ao menos naquele momento de sua vida, não consegue existir sem a mulher amada. Ele é o herói moderno, ou melhor, o anti-herói que, em sua luta diária pela sobrevivência, nem mesmo sabe o quão heroico é e tanto nos seduz.
Lembra-nos o homem absurdo de Camus que aceita a luta, não despreza de forma alguma a razão e admite o irracional, pois reconhece que o absurdo é a razão lúcida que constata seus limites.
Ao se referir a Ulisses em conversa com o jovem amigo Arthur Power, em Conversations with James Joyce, Joyce, plenamente consciente da revolução que efetuava na literatura, diz: “Quanto ao classicismo romântico que você tanto admira, Ulisses mudou tudo isso, pois nele eu abri um novo caminho e você vai ver que ele será seguido cada vez mais. De fato a partir dele você pode datar uma nova orientação na literatura – o novo realismo, pois embora você critique Ulisses, contudo a única coisa que você tem que admitir que eu fiz foi liberar a literatura de seus grilhões antiquados. Você é evidentemente um tradicionalista intransigente, mas deve perceber que uma maneira nova de pensar e de escrever foi iniciada, e aqueles que não concordarem com ela serão deixados para trás.” E em seguida acrescenta: “Em Ulisses procurei expressar as múltiplas variações que constituem a vida social de uma cidade – suas degradações e suas exaltações.”
Realmente tudo acontece naquele bendito dia 16 de junho de 1904: nascimento, morte, frustração, alegria, rejeição, traição, prazer, masturbação, menstruação, tudo, enfim, que um ser humano vivencia. Ulisses é, na realidade, uma extraordinária comédia humana.
Entre o Ulisses de Joyce e A Odisseia de Homero vários séculos se interpõem. O tempo pode, sem dúvida alguma, distanciá-los, mas o virtuosismo, o requinte técnico da paródia joyciana amarra, implacavelmente, os dois gênios da expressão artística.
Por que, então, me decidi a enfrentar a tradução de uma obra tão complexa? Certamente para mostrar que a leitura de Ulisses não era uma aventura intransponível, que a linguagem de Joyce não era tão difícil e pesada quanto se dizia, mas uma linguagem coloquial convidativa e ao alcance do leitor, embora lexicamente muito rica. Maior do que o desafio assustador da empreitada era o meu desejo de, através de uma linguagem coloquial semelhante à de Joyce, permitir que o maior número possível de leitores usufruísse, como eu usufruíra, de suas criações narrativas inovadoras, através de sua diversidade de estilos, sua musicalidade, sua riqueza vocabular e seu uso do monólogo interior em sua acepção mais completa. Eu desejava, sobretudo, dar-lhes a oportunidade de se divertirem com a leitura deste livro invulgar como eu me divertira ao lê-lo e traduzi-lo.
Em 1992, quando traduzi Um Retrato do Artista Quando Jovem, eu já me deparara com o desafio um tanto assustador de traduzir Joyce. Somente o encantamento que me proporcionara sempre a sua leitura, devido ao seu estilo harmoniosamente adequado ao conteúdo, à sonoridade das palavras por ele empregadas, à melodia, cadência e ritmo de sua linguagem, me armara de coragem. De fato, transpor para o português, com sua música própria, a riqueza musical estilística e poética de um livro que é a própria poesia em prosa, não foi uma tarefa fácil. Na verdade o som é tão importante para Joyce em Um Retrato que é possível acompanhar a evolução psíquica de seu personagem Stephen Dedalus através dos efeitos que o autor lhe empresta, partindo de um som monocórdio no capítulo inicial e prosseguindo, num crescendo, até atingir uma sonoridade polifônica e orquestral na descoberta que o jovem faz de sua verdadeira vocação artística.
Em Ulisses, o elemento sonoro vai ser igualmente marcante. Se como Joyce dissera em Um Retrato que “havia diferentes tipos de dor para todos os diferentes tipos de som”, também em Ulisses ele imprimirá ritmos próprios e distintos aos monólogos dos três personagens principais do romance, apropriados às suas respectivas personalidades.
O monólogo de Stephen Dedalus, meditativo, mutável como Proteu, se manterá mais lento, intercalando palavras longas e curtas, de origem latina ou saxônica, refletindo a complexidade de seus pensamentos filosóficos e metafísicos. Tudo nele é pensamento ou sensação. O de Leopold Bloom, todo ele em stacatto, com o ritmo brusco de alguém capaz de superar as próprias dificuldades, se constituirá de frases primordialmente curtas, de omissão de sujeitos, de palavras frequentemente monossilábicas, às vezes mesmo reduzidas por aférese, refletindo o seu ser interior que sempre tenta imaginar um sentido lógico nas coisas. O de Molly Bloom, sem pontuação, sem maiúsculas, sem fazer diferença entre os homens – todos eles são he –, fluirá, incontido e incontrolável, de uma mente liberta de qualquer grilhão.
É de grande importância, na tradução de um escritor genial como Joyce, estar bastante familiarizado com o autor e sua obra como um todo e tentar ser, ao máximo, fiel à sua linguagem e à sua maneira de escrever, para que o leitor possa, através delas, percebê-lo e entender os seus objetivos. Conseqüentemente, se sua linguagem é coloquial, como no caso de Ulisses, é indispensável usar a mesma linguagem coloquial na tradução. Cabe, no entanto, ter bem claro em mente que uma tradução nunca pode ser perfeita, pois são distintas as índoles das línguas em questão e há, às vezes, coisas intraduzíveis, armadilhas a serem vencidas, como é o caso dos puns – jogos de palavras – tão usuais entre os escritores de língua inglesa, como Shakespeare e Joyce. Puns ou jogos de palavras cada língua tem os seus, e eles são intransferíveis, precisando ser, portanto, de uma certa forma contornados, sempre que possível, sem alterar o sentido dado pelo autor ao contexto. O que fazer, por exemplo, com a expressão seguinte, usada por Stephen Dedalus ao falar sobre a mulher de Shakespeare, Ann Hathaway: “If others have their will, Ann hath a way”, isto é, “Se as outras têm sua vontade, Ann tem sua maneira de ser”. Neste caso, porém, o jogo de palavras e a brincadeira do trocadilho se perdem se literalmente traduzidos e, então, apelei, como em outras ocasiões para o emprego da aliteração, tão característica na poesia e na prosa de língua inglesa, ou seja, a repetição de uma mesma consoante inicial: “Se as outras têm sua vontade, Ann tem sua veneta.”
Há ocasiões em que Joyce trocará uma palavra por outra, como world por word, para mostrar uma certa ignorância de determinado personagem, em que eu troquei “palavra” por “planeta”, ou ainda outras em que cometerá propositalmente erros de concordância verbal e eu, para lhe ser fiel, farei o mesmo.
São essas dificuldades, entre outras, que tornam maior o desafio de traduzir uma obra como esta, e somente o leitor poderá testemunhar se o meu objetivo de divulgar o Ulisses de Joyce foi alcançado, ao se aventurar comigo nesta jornada de Bloom, do dia 16 de junho de 1904, data celebrada todo ano, em diferentes recantos do mundo, pelos admiradores deste genial escritor irlandês.
Agradeço a Flavia Maria Samuda que me auxiliou na revisão do meu trabalho, e a todos aqueles alunos e amigos queridos que comigo leram Ulisses, particularmente Eduardo Vidal, Maria Helena Carneiro da Cunha, Renata Salgado, Emilia Lobato, Maria Julia Goldwasser, Virginia Murad e Pedro Otavio Prado, que contribuíram, com suas observações e seu incentivo, para que eu prosseguisse nesta árdua, mas tão prazerosa tarefa.
continua na página 16...
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O escritor tornou-se célebre por sua experimentação com a linguagem e por suas inovações estilísticas, que incluem o uso extenso do monólogo interior, do fluxo de consciência e de uma complexa rede de referências simbólicas emprestadas à mitologia, à história e à literatura, além de um vocabulário peculiar feito de palavras inventadas, trocadilhos e alusões. Em Ulisses, Joyce descreve um dia inteiro de seu personagem principal, Leopold Bloom, em sua jornada pela cidade de Dublin. Considerado o precursor do romance moderno, Ulisses é um épico moderno livremente inspirado na Odisseia de Homero, repleto de alusões a lugares, personagens e acontecimentos reais. Proibido nos Estados Unidos e no Reino Unido na época de sua primeira publicação, é considerado o mais representativo romance do século XX
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Joyce, James
Ulisses [recurso eletrônico] / James Joyce ; tradução Bernardina da Silveira Pinheiro ; [seleção, elaboração e tradução das notas de capítulos Flavia Maria Samuda]. - Rio de Janeiro : Objetiva, 2010. Romance irlandês.
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