Poesia Africana - 23
língua portuguesa
"Não me reconheço em mim. Sinto-me carente e à minha volta apertam-se-me os círculos concêntricos de involuntária clausura. Sons estranhos e profundos vindos dos mais interiores de mim e de um tempo remotíssimo continuamente se despedaçam de encontro a uma parede castrante erguida não sei por quem, erguida não sei por quê?"
SORTILÉGIO
Queria percorrer longamente
"Despir-me sim desta loucura que me rói e dói. Afinal a imagem sedutora daqueles que nos circundavam não trouxe genuínas emoções, pureza original, aquilo com que contávamos. E, com o olhar naufragado em desamparo e solidão, continuei carregando a minha paixão, apesar das juras nocturnas de que amanhã a compartilharia. Despir-me sim do odor camuflado das coisas e do ar que sufocadamente me cerca. Sinto-me perseguida. Sem razão aparente mas perseguida. Ter-me-ei esquecido que a mancha que permanentemente acompanha meus passos é apenas a minha sombra e não um qualquer processo persecutório movido não sei por quem, movido não sei porquê?"
Sentir - Vera Duarte
| Poema dito por Sara Spínola
Vera Duarte
- 1995
Entrevista à escritora Vera Duarte, realizada em Tenerife, à margem do Campus África.
"À noitinha, qual feiticeira medrosa, percorro os meus interiores em busca de saídas. Sem cessar perco-me nos meus labirintos. Não encontro respostas para os porquês que me atormentam. Manhana pela manhana em meu cavalinho doirado, irei pelo mundo fora à procura do sentido da vida."
MOMENTO VI
(desabafo)
Vai e grita pelas achadas imensas
que a vida se conquista
contra a violência e a morte.
Diz
do amor que brota das areias
do mar solitário
do abraço fecundo que nasce
dos confins de nossos seres.
Diz tudo
mas não digas que te amei
— e amo —
pois chega-me a morte pela recusa.
Não quero morrer duas vezes!
DESEJOS
Queria ser um poema lindo
cheirando a terra
com sabor a cana
Queria ver morrer assassinado
um tempo de luto
de homens indignos
Queria desabrochar
— flor rubra —
do chão fecundado da terra
ver raiar a aurora transparente
ser r´beira d´julion
em tempo de são João
nos anos de fartura d´espiga d´midje
E ser
riso
flor
fragrante
em cânticos na manhã renovada
Vera Duarte, de seu nome completo Vera Valentina Benrós de Melo Duarte Lobo de Pina, nasceu no Mindelo, Cabo Verde. Poeta, e ministra da Educação e do Ensino Superior
Depois esteve em Portugal para fazer o curso de Direito na Universidade Clássica de Lisboa e posteriormente para fazer formação na Magistratura Judicial, pelo Centro de Estudos Judiciários de Lisboa, tendo voltado a cidade da Praia, Cabo Verde, no sentido de trabalhar na justiça e como Juíza Conselheira do Supremo Tribunal da Justiça. Após se ter afastado do referido cargo assumiu a responsabilidade e honra de exercer as funções de Conselheira do Presidente da República.
Orgulha-se de ter sido galardoada em 1995 em Portugal pelo então presidente português Dr.Mário Soares com o Prémio Norte-Sul de Lisboa do Conselho da Europa, pelas suas actividades em prol dos Direitos Humanos. Sobretudo enquanto membro da Comissão Africana dos Direitos do Homem e dos Povos e da Comissão Internacional de Juristas.
Actualmente é Presidente da Associação Cabo-verdiana de Mulheres Juristas (AMJ), membro do Comité Executivo da Comissão Internacional de Juristas, além de ser membro de várias associações oriundas da sociedade civil cabo-verdiana, nomeadamente a Associação de Escritores Cabo-verdianos (AEC).
língua portuguesa
"Não me reconheço em mim. Sinto-me carente e à minha volta apertam-se-me os círculos concêntricos de involuntária clausura. Sons estranhos e profundos vindos dos mais interiores de mim e de um tempo remotíssimo continuamente se despedaçam de encontro a uma parede castrante erguida não sei por quem, erguida não sei por quê?"
Vera Duarte
SORTILÉGIO
Queria percorrer longamente
os estranhos corredores interiores
encontrar em cada esquina
multidões em delírio
penetrar no limiar inolvidável
das grandes emoções colectivas
sentir
criar
viver
azul
e bela
a amizade na ladeira da vida
abater
com fuzis de raiva
os homens de moral pirata
"É esta paixão que não me deixa friamente analisar, dissecar, asseptizar. Como é do meu gosto. E como é linda esta folha de papel que nervosamente vou cobrindo de pequenas formas arredondadas que talvez morram no caixote de lixo mais próximo ou levem ao próximo milénio a mensagem do milénio mil, rica e sinuosa, vermelha como um grito, injusta e sombria, mas, acima de tudo, MULHER."
COMPANHEIRO
E ao findar
esta injusta caminhada
longa e dolorosa
e da qual nos ficou
para sempre
uma subterrânea marca de dor...
quero-te debaixo dos frescos lençóis
feitos das ervas dos campos
que
nossos corpos ardentes
tornarão húmidos de amor
quero-te vindo cansado
ao sol fecundo do meu país
buscando em meus lábios frescos
descanso
e força para a nova caminhada
quero-te nas tardes tranquilas
quando as trincheiras se calam
e o pensamento
voa
os homens de moral pirata
que não nos deixam amar
Mas sinto-me bloqueada
e quedo-me
à espera
que um vento forte
trazendo o odor do sangue silenciado
e o som de bombas assassinas
Me possa arrancar
deste sortilégio
que me alucina
e mata
"A minha ancestralidade plasmada sobre a baía e o Porto Grande que se abre ao infinito gerou-me. O que eu própria fiz por mim foram pequenos retoques de (dita) cultura. Pergunto-me se a imagem se desfigurou. Ter-se-á o meu futuro diluído na memória de um passado que não vivi mas de que para sempre me ficou a nostalgia?"
MORREU UMA COMBATENTE
Sol poente de domingo
o dia a cambar
e a peste a subir nos ares
a encher
a sufocar
Na cidade ouve-se um grito
- MORREU UMA COMBATENTE
Morta jaz a meus pés a mulher indócil
o corpo em espuma que me inebriou
já não é!
a luz fosforescente
foi apagada por mãos cruéis
Ah, tivera eu exércitos
armados até aos dentes
e lançar-me-ia
touro furibundo
sobre os seus algozes
- desditosa sina de amar a luta
Teus cabelos se espalham
ensanguentados
sobre teu fato de guerrilheira
e jazes inerte
Mas em ti a vida se futurou
e em mil manhãs de luz
ela se multiplicará
"A minha ancestralidade plasmada sobre a baía e o Porto Grande que se abre ao infinito gerou-me. O que eu própria fiz por mim foram pequenos retoques de (dita) cultura. Pergunto-me se a imagem se desfigurou. Ter-se-á o meu futuro diluído na memória de um passado que não vivi mas de que para sempre me ficou a nostalgia?"
Vera Duarte
MORREU UMA COMBATENTE
Sol poente de domingo
o dia a cambar
e a peste a subir nos ares
a encher
a sufocar
Na cidade ouve-se um grito
- MORREU UMA COMBATENTE
Morta jaz a meus pés a mulher indócil
o corpo em espuma que me inebriou
já não é!
a luz fosforescente
foi apagada por mãos cruéis
Ah, tivera eu exércitos
armados até aos dentes
e lançar-me-ia
touro furibundo
sobre os seus algozes
- desditosa sina de amar a luta
Teus cabelos se espalham
ensanguentados
sobre teu fato de guerrilheira
e jazes inerte
Mas em ti a vida se futurou
e em mil manhãs de luz
ela se multiplicará
"É esta paixão que não me deixa friamente analisar, dissecar, asseptizar. Como é do meu gosto. E como é linda esta folha de papel que nervosamente vou cobrindo de pequenas formas arredondadas que talvez morram no caixote de lixo mais próximo ou levem ao próximo milénio a mensagem do milénio mil, rica e sinuosa, vermelha como um grito, injusta e sombria, mas, acima de tudo, MULHER."
Vera Duarte
COMPANHEIRO
E ao findar
esta injusta caminhada
longa e dolorosa
e da qual nos ficou
para sempre
uma subterrânea marca de dor...
quero-te debaixo dos frescos lençóis
feitos das ervas dos campos
que
nossos corpos ardentes
tornarão húmidos de amor
quero-te vindo cansado
ao sol fecundo do meu país
buscando em meus lábios frescos
descanso
e força para a nova caminhada
quero-te nas tardes tranquilas
quando as trincheiras se calam
e o pensamento
voa
em sonhos de sahel redimido
e à noite quando o escuro vier
despir-me-ei de tudo menos de ti
abraçar-te-ei forte quanto puder
e, sobre esta terra
sagrada
abriremos nossas comportas
e à noite quando o escuro vier
despir-me-ei de tudo menos de ti
abraçar-te-ei forte quanto puder
e, sobre esta terra
sagrada
abriremos nossas comportas
Vera Duarte
Sentir - Vera Duarte
| Poema dito por Sara Spínola
Vera Duarte
- 1995
Entrevista à escritora Vera Duarte, realizada em Tenerife, à margem do Campus África.
"À noitinha, qual feiticeira medrosa, percorro os meus interiores em busca de saídas. Sem cessar perco-me nos meus labirintos. Não encontro respostas para os porquês que me atormentam. Manhana pela manhana em meu cavalinho doirado, irei pelo mundo fora à procura do sentido da vida."
Vera Duarte
MOMENTO VI
(desabafo)
Vai e grita pelas achadas imensas
que a vida se conquista
contra a violência e a morte.
Diz
do amor que brota das areias
do mar solitário
do abraço fecundo que nasce
dos confins de nossos seres.
Diz tudo
mas não digas que te amei
— e amo —
pois chega-me a morte pela recusa.
Não quero morrer duas vezes!
DESEJOS
Queria ser um poema lindo
cheirando a terra
com sabor a cana
Queria ver morrer assassinado
um tempo de luto
de homens indignos
Queria desabrochar
— flor rubra —
do chão fecundado da terra
ver raiar a aurora transparente
ser r´beira d´julion
em tempo de são João
nos anos de fartura d´espiga d´midje
E ser
riso
flor
fragrante
em cânticos na manhã renovada
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Vera Duarte, de seu nome completo Vera Valentina Benrós de Melo Duarte Lobo de Pina, nasceu no Mindelo, Cabo Verde. Poeta, e ministra da Educação e do Ensino Superior
Depois esteve em Portugal para fazer o curso de Direito na Universidade Clássica de Lisboa e posteriormente para fazer formação na Magistratura Judicial, pelo Centro de Estudos Judiciários de Lisboa, tendo voltado a cidade da Praia, Cabo Verde, no sentido de trabalhar na justiça e como Juíza Conselheira do Supremo Tribunal da Justiça. Após se ter afastado do referido cargo assumiu a responsabilidade e honra de exercer as funções de Conselheira do Presidente da República.
Orgulha-se de ter sido galardoada em 1995 em Portugal pelo então presidente português Dr.Mário Soares com o Prémio Norte-Sul de Lisboa do Conselho da Europa, pelas suas actividades em prol dos Direitos Humanos. Sobretudo enquanto membro da Comissão Africana dos Direitos do Homem e dos Povos e da Comissão Internacional de Juristas.
Actualmente é Presidente da Associação Cabo-verdiana de Mulheres Juristas (AMJ), membro do Comité Executivo da Comissão Internacional de Juristas, além de ser membro de várias associações oriundas da sociedade civil cabo-verdiana, nomeadamente a Associação de Escritores Cabo-verdianos (AEC).
Fonte: www.caboverde.com
Amanhã amadrugada, publicado em 1993, este livro se estrutura em quatro Cadernos (“15 momentos de um longo poema dedicado ao amor”, “Exercícios poéticos”, “Poemas de bloqueio – e de amor e ausência” e “de quando se soltaram as amarras”) e é composto por um total de 15 momentos (Caderno I), 10 exercícios poéticos (Caderno II) e 34 poemas (Cadernos III e IV), todos organizados em obediência a uma ordem cronológica regressiva, fato que, de acordo com Alberto Carvalho (2010, p. 23), faz com que o livro ganhe “forma simbólica ao chamar ao incipit o tempo próximo (1985), ponto de partida crono-lógica para o „Amanhã‟ proposto em título”.
Amanhã amadrugada, publicado em 1993, este livro se estrutura em quatro Cadernos (“15 momentos de um longo poema dedicado ao amor”, “Exercícios poéticos”, “Poemas de bloqueio – e de amor e ausência” e “de quando se soltaram as amarras”) e é composto por um total de 15 momentos (Caderno I), 10 exercícios poéticos (Caderno II) e 34 poemas (Cadernos III e IV), todos organizados em obediência a uma ordem cronológica regressiva, fato que, de acordo com Alberto Carvalho (2010, p. 23), faz com que o livro ganhe “forma simbólica ao chamar ao incipit o tempo próximo (1985), ponto de partida crono-lógica para o „Amanhã‟ proposto em título”.
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