Nós chorámos pelo Cão Tinhoso
Ondjaki
Para a Isaura. Para o Luís B. Honwana
Foi no tempo da oitava classe, na aula de português.
Eu já tinha lido esse texto dois anos antes mas daquela vez a estória me parecia mais bem contada com detalhes que atrapalhavam uma pessoa só de ler ainda em leitura silenciosa – como a camarada professora de português tinha mandado. Era um texto muito conhecido em Luanda: “Nós matámos o Cão tinhoso”.
Eu lembrava-me de tudo: do Ginho, da pressão de ar, da Isaura e das feridas penduradas do Cão Tinhoso. Nunca me esqueci disso: um cão com feridas penduradas. Os olhos do cão. Os olhos da Isaura. E agora de repente me aparecia tudo ali de novo. Fiquei atrapalhado.
A camarada professora selecionou uns tantos para a leitura integral do texto. Assim queria dizer que íamos ler o texto todo de rajada. Para não demorar muito, ela escolheu os que liam melhor. Nós, os da minha turma da oitava, éramos cinquenta e dois. Eu era o número cinquenta e um. Embora noutras turmas tentassem arranjar alcunhas para os colegas, aquela era a minha primeira turma onde ninguém tinha escapado de ser alcunhado. E alguns eram nomes de estiga[1] violenta.
Muitos eram nomes de animais: havia o Serpente, o Cabrito, o Pacaça, a Barata-da-Sibéria, a Joana Voa-voa, a Gazela, e o Jacó, que era eu. Deve ser porque eu mesmo falava muito nessa altura. Havia o É-tê, o Agostinho-Neto, a Scubidú e mesmo alguns professores também não escapavam da nossa lista. Por acaso a camarada professora de português era bem porreira e nunca chegámos a lhe alcunhar.
Os outros começaram a ler a parte deles. No início, o texto ainda está naquela parte que na prova perguntam qual é e uma pessoa diz que é só introdução. Os nomes dos personagens, a situação assim no geral, e a maka[2] do cão. Mas depois o texto ficava duro: tinham dado ordem num grupo de miúdos para bondar[3] o Cão Tinhoso. Os miúdos tinham ficado contentes com essa ordem assim muito adulta, só uma menina chamada Isaura afinal queria dar proteção ao cão. O cão se chamava Cão Tinhoso e tinha feridas penduradas, eu sei que já falei isto, mas eu gosto muito do Cão Tinhoso.
Na sexta classe eu também tinha gostado bué[4] dele e eu sabia que aquele texto era duro de ler. Mas nunca pensei que umas lágrimas pudessem ficar tão pesadas dentro duma pessoa. Se calhar é porque uma pessoa na oitava classe já cresceu um bocadinho mais, a voz já está mais grossa, já ficamos toda hora a olhar as cuecas[5] das meninas “entaladas na gaveta”, queremos beijos na boca mais demorados e na dança de slow[6] ficámos todos agarrados até os pais e os primos das moças virem perguntar se estamos com frio mesmo assim em Luanda a fazer tanto calor. Se calhar é isso, eu estava mais crescido na maneira de ler o texto, porque comecei a pensar que aquele grupo que lhes mandaram matar o Cão Tinhoso com tiros de pressão de ar, era como o grupo que tinha sido escolhido para ler o texto.
Não quero dar essa responsabilidade na camarada professora de português, mas foi isso que eu pensei na minha cabeça cheia de pensamentos tristes: se essa professora nos manda ler este texto outra vez, a Isaura vai chorar bué, o Cão tinhoso vai sofrer mais outra vez e vão rebolar no chão a rir do Ginho que tem medo de disparar por causa dos olhos do Cão Tinhoso.
O meu pensamento afinal não estava muito longe do que foi acontecendo na minha sala de aulas, no tempo da oitava classe, turma dois, na escola Mutu Ya Kevela, no ano de mil novecentos e noventa: quando a Scubidú leu a segunda parte do texto, os que tinham começado a rir só para estigar os outros, começaram a sentir o peso do texto. As palavras já não eram lidas com rapidez de dizer quem era o mais rápido da turma a despachar um parágrafo. Não. Uma pessoa afinal e de repente tinha medo do próximo parágrafo, escolhia bem a voz de falar a voz dos personagens, olhava para a porta da sala como se alguém fosse disparar uma pressão de ar a qualquer momento. Era assim na oitava classe: ninguém lia o texto do Cão Tinhoso sem ter medo de chegar ao fim. Ninguém admitia isso, eu sei, ninguém nunca disse, mas bastava estar atento à voa de quem lia e aos olhos de quem escutava.
O céu ficou carregado de nuvens escurecidas. Olhei lá para fora à espera de uma trovoada que trouxesse uma chuva de meia hora. Mas nada.
Na terceira parte até a camarada professora começou a engolir cuspe seco na garganta bonita que ela tinha, os rapazes mexeram os pés com nervoso miudinho, algumas meninas começaram a ficar de olhos molhados. O Olavo avisou: “quem chorar é maricas então”! e os rapazes todos ficaram com essa responsabilidade de fazer uma cara como se nada daquilo estivesse a ser lido.
Um silêncio muito estranho invadiu a sala quando o Cabrito se sentou. A camarada professora não disse nada. Ficou a olhar para mim. Respirei fundo.
Levantei-me e toda a turma estava também com os olhos pendurados em mim. Uns tinham-se virado para trás para ver bem a minha cara, outros fungavam do nariz tipo constipação de cacimbo. A Aina e a Rafaela que eram muito branquinhas estavam com as bochechas todas vermelhas e os olhos também, o Olavo ameaçou-me devagar com o dedo dele a apontar para mim. Engoli também em cuspe seco porque eu já tinha aprendido há muito tempo a ler um parágrafo depressa antes de ler em voz alta: era aquela parte do texto em que os miúdos já não têm pena do Cão tinhoso e querem lhe matar a qualquer momento. Mas o Ginho não queria. A Isaura não queria.
A camarada professora levantou-se, veio devagar para perto de mim, ficou quietinha. Como se quisesse me dizer alguma coisa com o corpo dela ali tão perto. Aliás, ela já tinha dito, ao me escolher para ser o último a fechar o texto, e eu estava vaidoso dessa escolha, o último normalmente era o que lia já mesmo bem. Mas naquele dia, com aquele texto, ela não sabia que em vez de me estar a premiar, estava a me castigar nessa responsabilidade de falar do Cão Tinhoso sem chorar.
— Camarada professora — interrompi numa dificuldade de falar. — Não tocou para a saída?
Ela mandou-me continuar. Voltei ao texto. Um peso me atrapalhava e eu nem podia fazer uma pausa de olhar as nuvens porque tinha que estar atento ao texto e às lágrimas. Só depois o sino tocou.
Os olhos do Ginho. Os olhos da Isaura. A mira da pressão de ar nos olhos do Cão Tinhoso com as feridas dele penduradas. Os olhos do Olavo. Os olhos da camarada professora nos meus olhos. Os meus olhos nos olhos da Isaura nos olhos do Cão Tinhoso.
Houve um silêncio como se tivessem disparado bué de tiros dentro da sala de aulas. Fechei o livro.
Olhei as nuvens.
Na oitava classe, era proibido chorar à frente dos outros rapazes.
Ondjaki nasceu em 1977, em Luanda, Angola. Autor da novíssima geração de escritores africanos, antes de publicar seu primeiro romance Ondjaki já era reconhecido como contista, poeta, roteirista e artista plástico. Sua obra, ganhadora de diversos prêmios literários, já foi traduzida para diferentes línguas, como alemão e chinês. Entre seus livros estão Bom dia camarada (romance) e Os da minha rua (contos), ambos publicados no Brasil.
Contos africanos dos países de língua portuguesa / Albertino Bragança...[et al.]; organizadora Rita Chaves; ilustrador Apo Fousek – 1ª ed – São Paulo: Ática. 2009. il. – (Para gostar de ler: 44)
[1] Palavra usada para caçoar ou ridicularizar, muito presente no universo infantil. (N.E.)
[2] Discussão, debate, briga, confusão. (N.E.)
[3] Matar. (N.E.)
[4] Gíria que significa “muito”, “bastante”. (N.E.)
[5] Calcinha. (N.E.)
[6] Diz-se de qualquer tipo de dança em que o casal dança aconchegado, em ritmo lento. (N.E.)