quarta-feira, 29 de fevereiro de 2012

Queria que você estivesse aqui


Pink Floyd - Wish You Were Here




Wish You Were Here
Pink Floyd

So, so you think you can tell
Heaven from Hell
Blue skies from pain
Can you tell a green field
From a cold steel rail?
A smile from a veil?
Do you think you can tell?

Did they get you to trade
Your heroes for ghosts?
Hot ashes for trees?
Hot air for a cool breeze?
Cold comfort for change?
Did you exchange
A walk on part in the war
For a lead role in a cage?

How I wish
How I wish you were here
We're just two lost souls
Swimming in a fish bowl
Year after year
Running over the same old ground
What have we found?
The same old fears
Wish you were here


terça-feira, 28 de fevereiro de 2012

O Homem Que Plantava Árvores






Esta animação delicada e única - vencedora do OSCAR® de filme curto de animação - é um tributo ao trabalho árduo e à paciência.

Conta a história de um homem bom e simples, um pastor que, em total sintonia com a natureza, faz crescer uma floresta onde antes era uma região árida e inóspita. As sementes por ele plantadas representam a esperança de que podemos deixar pra trás um mundo mais belo e promissor do que aquele que herdamos.

Ser feliz é tudo que se quer

Kleiton e Kledir - Paixão






Paixão
Kleiton e Kledir


Amo tua voz e tua cor
E teu jeito de fazer amor
Revirando os olhos e o tapete,
Suspirando em falsete
Coisas que eu nem sei contar.

Ser feliz é tudo que se quer!
Ah! Esse maldito fecheclair!...
De repente, a gente rasga a roupa
E uma febre muito louca
Faz o corpo arrepiar.

Depois do terceiro ou quarto copo
Tudo que vier eu topo.
Tudo que vier, vem bem.
Quando bebo perco o juízo.
Não me responsabilizo
Nem por mim, nem por ninguém.

Não quero ficar na tua vida
Como uma paixão mal resolvida
Dessas que a gente tem ciúme
E se encharca de perfume,
Faz que tenta se matar.

Vou ficar até o fim do dia
Decorando tua geografia
E essa aventura
Em carne e osso
Deixa marcas no pescoço.
Faz a gente levitar.

Tens um não sei que de paraíso
E o corpo mais preciso
Que o mais lindo dos mortais.
Tens uma beleza infinita
E a boca mais bonita
Que a minha já tocou.

segunda-feira, 27 de fevereiro de 2012

Das vantagens de ser bobo

Clarice Lispector por Aracy Balabanian






O bobo, por não se ocupar com ambições, tem tempo para ver, ouvir e tocar o mundo. O bobo é capaz de ficar sentado quase sem se mexer por duas horas. Se perguntado por que não faz alguma coisa, responde: "Estou fazendo. Estou pensando."

Ser bobo às vezes oferece um mundo de saída porque os espertos só se lembram de sair por meio da esperteza, e o bobo tem originalidade, espontaneamente lhe vem a idéia.

O bobo tem oportunidade de ver coisas que os espertos não vêem. Os espertos estão sempre tão atentos às espertezas alheias que se descontraem diante dos bobos, e estes os vêem como simples pessoas humanas. O bobo ganha utilidade e sabedoria para viver. O bobo nunca parece ter tido vez. No entanto, muitas vezes, o bobo é um Dostoievski.

Há desvantagem, obviamente. Uma boba, por exemplo, confiou na palavra de um desconhecido para a compra de um ar refrigerado de segunda mão: ele disse que o aparelho era novo, praticamente sem uso porque se mudara para a Gávea onde é fresco. Vai a boba e compra o aparelho sem vê-lo sequer. Resultado: não funciona. Chamado um técnico, a opinião deste era de que o aparelho estava tão estragado que o conserto seria caríssimo: mais valia comprar outro. Mas, em contrapartida, a vantagem de ser bobo é ter boa-fé, não desconfiar, e portanto estar tranqüilo. Enquanto o esperto não dorme à noite com medo de ser ludibriado. O esperto vence com úlcera no estômago. O bobo não percebe que venceu.

Aviso: não confundir bobos com burros. Desvantagem: pode receber uma punhalada de quem menos espera. É uma das tristezas que o bobo não prevê. César terminou dizendo a célebre frase: "Até tu, Brutus?"

Bobo não reclama. Em compensação, como exclama!

Os bobos, com todas as suas palhaçadas, devem estar todos no céu. Se Cristo tivesse sido esperto não teria morrido na cruz.

O bobo é sempre tão simpático que há espertos que se fazem passar por bobos. Ser bobo é uma criatividade e, como toda criação, é difícil. Por isso é que os espertos não conseguem passar por bobos. Os espertos ganham dos outros. Em compensação os bobos ganham a vida. Bem-aventurados os bobos porque sabem sem que ninguém desconfie. Aliás não se importam que saibam que eles sabem.

Há lugares que facilitam mais as pessoas serem bobas (não confundir bobo com burro, com tolo, com fútil). Minas Gerais, por exemplo, facilita ser bobo. Ah, quantos perdem por não nascer em Minas!

Bobo é Chagall, que põe vaca no espaço, voando por cima das casas. É quase impossível evitar excesso de amor que o bobo provoca. É que só o bobo é capaz de excesso de amor. E só o amor faz o bobo.

Clarice Lispector

Eu Preciso Dizer Que Te Amo


Cazuza - Eu Preciso Dizer Que Te Amo





Preciso Dizer Que Eu Te Amo
Cazuza


Quando a gente conversa
Contando casos, besteiras
Tanta coisa em comum
Deixando escapar segredos
E eu não sei que hora dizer
Me dá um medo, que medo

É que eu preciso dizer que eu te amo
Te ganhar ou perder sem engano
É, eu preciso dizer que eu te amo tanto

E até o tempo passa arrastado
Só pra eu ficar do teu lado
Você me chora dores de outro amor
Se abre e acaba comigo
E nessa novela eu não quero
Ser teu amigo

É que eu preciso dizer que eu te amo
Te ganhar ou perder sem engano
É, eu preciso dizer que eu te amo tanto

Eu já nem sei se eu tô misturando
Eu perco o sono
Lembrando em cada riso teu
Qualquer bandeira
Fechando e abrindo a geladeira
A noite inteira

Eu preciso dizer que eu te amo
Te ganhar ou perder sem engano
Eu preciso dizer que eu te amo tanto

sábado, 25 de fevereiro de 2012

Cartola

Ensaboa Mulata





EnsaboaCartola


Ensaboa mulata, ensaboa
Ensaboa
Tô ensaboando
Ensaboa mulata, ensaboa
Ensaboa
Tô ensaboando
Tô lavando a minha roupa
Lá em casa estão me chamando Dondon
Ensaboa mulata, ensaboa
Ensaboa
Tô ensaboando

Os fio que é meu, que é meu
E que é dela
Rebenta a goela de tanto chorá
O rio tá seco, o sol não vem não
Vortemos pra casa
Chamando Dondon

La indígena de la Montaña


XVI (2ª) - No se puede hacer la revolución sin las mujeres
baitasar
(¡Cierre la puerta!) — gritou a mulher do patrão — No me gusta tu olor de la mañana – nem eu, pensei deitada em minha esteira. E perguntava-me como ela podia dormir con el patrón y su sudor de vaca con olor y mierda. Talvez, os segredos de las mujeres desenganadas por romance são os laços de sangue, ou talvez, elas façam o que precisam para garantir seus filhos e a si mesmas na folha de pagamento. Pronto. As medidas de uma hija nem sempre são as medidas de la tierra, quase nunca são as medidas dos avós, são as medidas da ilusão com outros jeitos de mentir, uma cilada sem freios ou desfechos, incansável, disimulada. Para dona Lara nunca houve outra realidade possível de mulher. Uma fidelidade religiosa de esperança e desesperança, um jogo de silêncios e insinuações, aparências e mortes, um tempo sem tempo. Assim ela é mostrada como exemplo, um bilhete premiado da loteria.
O galo tornava a convidar de maneira obscena para a vida fora da cama; espalhava a vitória diária do sol contra as forças da noite. As claridades da manhã devoravam as estrelas resmungonas: todo tiene su tiempo para elegir ser. Assim como Dona Lara, na escuridão do quarto, na maioria das vezes, não escolheu ser devorada pelo patrón, em outras escuridões quis devorar como las perras adultas
(Obrigado, por me deixar comer.) (Faça como quiser.) (Gosto assim...) (Assim como?) (Assim...)
Escolher ser e não parecer, em outras vezes, parecer e não ser, mas bastava o galo retornar o seu anúncio do dia e Dona Lara mostrava sua irritação com as tarefas da dona-de-casa
(Alguém poderia fazer esse bicho calar o bico?) (Não posso, mi mamá!) – isso foi mais um descuido de Dom Juan, com os pêlos arrepiados como espinhos de cactos, entre lamentos suspiros estalos. Eu cerrava com força meus olhos, apertava para ter certeza que estavam fechados
(Não pode ou não quer?) - resmungava Dona Lara
Ela virava para o lado e se enfiava abaixo do travesseiro. Agarrava a almofada de penas com todas as suas forças, jurava pra si mesma que não estava escutando coisa nenhuma de nada. E toda manhã anunciava
(Não me acordem o guri.)
Aquelas suas ordens siempre chegavam com atraso. O choro do menino, o canto do galo, os estalos do marido, uma só voz, um único grito, meio trágico, meio divertido, destrambelhado, como lhe cuspissem as mãos para disolver o sono da cara de vinagre, desunir lo que estaba unido de cualquier modo toda la mañana. Resmungava que não era justo, havia parido os efetivos de trabajo no reparte do leite, mas não lhe davam o justo merecimento.
Por sorte da senhora e meu destino de estar pronta para servir, o meu sono dormia siempre con un ojo abierto, meu corpo quase adormecido ficava estendido sobre a esteira aos pés da cama do casal: la cama del niño pequeño y la indígena de la Montaña vigiavam o sono do menino Leopoldino, nascido com o lábio fendido como o da lebre, por susto da mãe com La Leporina.
Quando a Senhora me deu missão de vigilância do menino leporino, por toda vivienda, fiquei preocupada com as extravagâncias e os instintos vis del patrón. Afinal, o quarto do casal é um território de constrangimentos e mistérios. Dona Lara pareceu adivinhar minha apreensão com o comportamento del patrón, disse que Dom Juan deveria se contentar en acostarse, agarrarse un buen pedo y adormecerse, durante quarenta dias e quarenta noites. Explicou que esse era seu tiempo de recolhimento das fomes libidinosas do patrón, tiempo em que não lhe era permitido enfiar as mãos de macho, e outras coisas mais, debaixo das saias.
Como se el patrón fosse impedido das suas vontades: cuando el quería, no era tema a tratar, el quería y listo.
Na primeira noite de fazer vigilância, o leporino acordou e nada fez o choro do guri se acalmar. Apresentei-me rápida para arraigar en mis manos el niño. O patrãozinho chorava com desespero, não tinha temores ou remorsos, sentia a fome pelo calor do colo, o aconchego da quietude protetora do regaço. Embalei el niño para acalmar suas lamentações e a senhora dormir un poco más
(¡Dios mio! Carajo…) – el patrón pedia que alguém fizesse alguma coisa com o guri marcado.
Deitei o menino na minha esteira de vigilância e ofereci ao leporino mis pechos pequeños para acalmá-lo; el niño se aquietou e não desatou da boca meus bicos quase sacados de sí.
Foi a primeira vez que meus peitos pequenos foram agarrados pela boca e mamados. Algo de vital aconteceu quando o patrãozinho dormiu pelos meus bicos, decidi que não queria filhos, queria acalmar a fome do Juanito. Essa foi a única das minhas vontades de oferecer-me que não realizei, incompleta para siempre. Sepultada embaixo de la Montaña del maíz. Não tive filhos e aquele niño das minhas lembranças nunca colocou sua boca em mis pechos. Os planos nem siempre se cumprem, nem siempre se bastam, quase sempre permanecem como planos. Fiquei enfeitiçada e resolvida quando atendi meu primeiro cliente: el leporino. Dizem que o primeiro não se esquece, pois para mim o Juanito poderia ser o primeiro para quem quis me dar. Ele não quis ou não sabia dizer que me queria, o resultado foi o mesmo: no me he olvidado.
Depois da bruxaria que me fez uma perra, atendi tantos clientes que nem mesmo lembro se os repeti, nem lembro as mentiras e as invencionices com os homens em minha cama. Houveram clientes que precisavam da luz, outros da escuridão, cada um com suas manias: aprendi de tudo, esquecer e manter o fogo acesso, selvagem, um animal das proezas da escuridão. É quando minha alma dorme.
Ainda sou um negócio ilegítimo, por isso uma afronta imoral, mas são os homens que nos trazem as doenças e a culpa também é nossa. Existem muitas lendas ou verdades sobre as minhas histórias de lascívia. Fui rainha no bordel, me oferecia em cenas obcenas, mas com brutalidade só em duas vezes: fui violada¿Ir a la policía? — eu sou a prostituta... queria ser cortejada e conquistada, talvez não quisessem perder tempo conquistando uma mulher
As manhãs começavam pela rotina de oferecer meus peitos aos pequeno leporino, depois de acalmado el niño lloroso estaba en mi esteira, chupava conformado seu dedo pulgar, viajava no mundo dos espíritos influenciando o humor do dia com seu temperamento.  
Dona Lara detestava sair do sono tão cedo ou abandonar a cama antes de estar preparada, acostumada. No seu gosto o dia poderia começar depois das dez horas da manhã e terminar às nove horas da noite, não era uma mulher noturna. Até as brincadeiras de bagaço com Dom Juan preferia fazer el la siesta.
Ser la sierva da tarde era bem mais chique, melhor que se apresentar cansada como a piranha da noite, aquela senhora que encena aos berros enquanto o homem se distrae em troca de migalhas. Na tarde, os barulhos do ar se disfarçavam e misturavam com os desmoronamentos da devassidão
(E o amor é quase o mesmo) – si quejó a mi entre dientes. Murmurei para o menino grudado en mis pechos que a mãe dele retrucava de barriga cheia, satisfeita con el patrón de la casa, aconselhei el niñoSigue siendo pequeño, lejos de los dolores y molétias adultos.
Uma das filhas da senhora entrou pelo quarto adentro procurando uma escova de cabelos, já seguida de outra querendo uso do cuarto de baño
(Usem o banheiro de vocês!) (Está embruxado.) (¿El cuarto de baño?) (Iso miesmo.) (É verdade, mamá... é um nojo!) – não tem importância a idade, niños y hombres son puercos, sucios y groseros
(Mamá, a minha escova.) (Não acho meus rabicós.) (Não estão aqui, Angélyca.) (Achei!) (O quê, minha filha?) (A escova.) (E os meus rabicós?) (¡Dios mío! Não se tem sossego nesta casa!) – a Senhora enfiava su cabeza dentro do travesseiro, junto com as plumas.
Uma das jovens saiu escovando os cabelos, enquanto outra enrolava os fios negros e longos em voltas e nós.
Dom Juan deu uma escovadela nos dentes e fez gargarejos de limpeza da garganta. Aumentava o barulho do gargarejo e ventava o seu mau cheiro, novamente. Fingia com a garganta o que saia pelas pernas
(O sapo quer parar de se espremer?) (Mi mamá, preciso de cuecas limpas.) (Mãe! O meu tênis...) (Já vou... já vou...) (Mãe, o Chiado não acorda.) (Dom Juan, esse é pra você.) – rolou para o lado até cair da cama, não tinha outro jeito para sair da cama de matrimonio, siempre caia de quatro.
Levantava já enrolada num roupão todo felpudo caminhava pela vivienda. Tinha um pequeno estremecimento de friúra. Saia pelos quartos resmungando
(¡Dios mio! No hay nobleza, entre el cielo y la tierra.) - resmungava enquanto percorria os cantos e frestas, catava os perdidos e não achados pela preguiça de procurar de uns e desatenção de outras.
Ela até conseguia entender que os meninos não achavam nada, homem é assim mesmo, descuidado de atenção, mas sus niñas estavam sempre desencontradas dos lugares das suas coisas. Isso não era normal. Las niñas têm por natureza cuidar dos quefazeres do lar. Lembra que lhe bastava o olhar de su madre para desempenhar as suas tarefas de niña dona-de-casa. Desde pequeña ensaiou ser a dona-de-casa de su propio hogar, de su propia casa
(Serão péssimas esposas.) – apenas repetia o que aprendeu desde muito pequeña El mínimo que un marido espera que su esposa está en casa organizada, a mesa recheada com temperos e cheiros, as crianças de banho tomado e a cama arrumada com o linho branco da pureza.
Meus ensinamentos foram outros. Gostava de pensar que minha irmã estava amando seu homem, em algum lugar, com a mesma vontade que ele a tomava em seus braços, con codicia, desesperación y promesas
(Onde está o saco das meias?) (Não sei, Dom Juan.) — o homem desaparece resmungando assovios no cuarto de baño para ressurgir com espuma branca na boca, no queixo e nos pêlos espetados do peito. A escova se mantinha firme nos dentes em movimentos de vai e vem, parecia mascar borrachas. Não tinha mais jeito, essa bondade natural e ingênua me trazia desconforto. Olhava o marido da Dona Lara, ele era o seu quebra-galho, apenas isso. Não sentia pena de mi patrona, acreditava ter sido feita para garantir uma boa família, a carne que originava tudo e tinha entalhada na testa: hogareña.
Ela virava sua cabeça na direção dos quartos. Os filhos brotavam nas portas do corredor comunitário
(Pai... estamos atrasados.)
Aliás, no andar de cima da vivienda, tinham dois espaços de uso geral da família: a casa de banho do casal e o corredor, uma passagem longa e estreita que comunicava os quartos, pequenas fortalezas de camuflagem dos filhos
(Dom Juan, não esquece de levar o acolchoado da Angélyca até a lavanderia.) (Aquela lavanderia da Boa Saúde?) (Acho que se mudou para a Boa Esperança.) (Até logo, mãe.) (Até a vista, queridos.) (Esperem por mim!) (Até logo, Aryani.) (Beijinho, mãe...) (Até logo, queridos.)
Dom Juan e as crianças saiam. Entravam na perua.
Uma furgoneta estranha, sem janelas, apenas o vidro do pára-brisa e das laterais do motorista permitiam uma visão embaçada do que acontecia lá dentro. Pensei que seria apropriada para transporte de pequenas cargas ou bagagens. Uma porta dupla do mesmo lado do carona era a saída e a entrada dos passageiros. Depois que a família entrava e as portas se fechavam não se ouvia nada. Nem mesmo se percebia que a carga não era o reparte de leite, mas os filhos de Dom Juan.
O homem levava um saco com as cobertas da filha. Partiam para seus destinos.
Anadyr e Calçado já estavam no tambo espremendo tetas e repartindo o leite.
Dona Lara olhava na sua volta para reconhecer que o seu destino já a havia encontrado, desde antes, lá na barriga da sua mãe. O sonho de ir morar na terra dos gringos morreu quando se deixou convencer de abrir as pernas para o homem gorila. Repetia que os formigamentos na virilha lhe eram impossíveis de resistir
(Menina, se permitir as mãos com dedos atrevidos entre as pernas... estás perdida.) (Entendi, mamá.) – não, essas meninas nunca entenderam.
Deixou cair o roupão e um pequeno arrepio lhe percorreu o corpo.
Eu ficava ali, parada. Olhando sem nada ver.
Ouviu os resmungos do menino, choramingo de fome. A senhora veio até o quarto e o agarrou no colo para oferecer a teta. Ficou ali, pelo tempo da fome do filho, ela sabia que a alegria vinha das tripas e a loucura das virilhas.
Todo a su tiempo.

quinta-feira, 23 de fevereiro de 2012

Federico García Lorca

Si mis manos pudieran deshojar




SI MIS MANOS PUDIERAN DESHOJAR
10 de noviembre de 1919. (Granada.)

Yo pronuncio tu nombre
en las noches oscuras,
cuando vienen los astros
a beber en la luna
y duermen los ramajes
de las frondas ocultas.
Y yo me siento hueco
de pasión y de música.
Loco reloj que canta
muertas horas antiguas.

Yo pronuncio tu nombre,
en esta noche oscura,
y tu nombre me suena
más lejano que nunca.
Más lejano que todas las estrellas
y más doliente que la mansa lluvia

¿Te querré como entonces
alguna vez? ¿Qué culpa
tiene mi corazón?
Si la niebla se esfuma
¿qué otra pasión me espera?
¿será tranquila y pura?
¡¡si mis dedos pudieran
deshojar a la luna!!

Federico García Lorca

Voz: María García Esperón
Música: Chris Spheeris

Comer o pão do diabo


XV (2ª) - No se puede hacer la revolución sin las mujeres
baitasar

Quiero te contar fatos e conversas que vi, outras tantas que ouvi, durante minha vida como escrava, aia, muro de lamentações, objeto e utensílio, para uso geral, até ser rejeitada pelo desgaste dos dias, mas não te preocupes que ainda não estou aguando as plantas quando chove: agotada, como una mujer abierta a los médios por el aburrimiento.
Por aqueles dias, depois do costume de ouvir a patroa, minha meninice sentia orgulho de importância quando la mujer do patrão se abria em confidências. Não me ocorria vontade de desocultar os segredos, mantinha silêncio da falação daquela mujer tão triste de sonhos. Não enxergava razão para fazer conversa de mexerico. Seguia a promissão de Blanca: comer el pan del diablo, mas não fazer da sua tristeza a tristeza para os outros. Carregamos nas entranhas os feitos e desfeitos, os ditos e silêncios, os cacoetes, as bondades, as malvadezas, as histórias, os costumes dos homens e mulheres que nos esculpiram com seu amor, às vezes com seu ódio, muito mais que podemos perceber.
La Montaña não tinha hábito de escuela, não havia precisão dessas futilidades para sobreviver. Era imposição a sabedoria de entender do tempo para semear e colher. Resistir com a enxada e as mãos nas suas entranhas. Aprender a ler as estrelas, a poeira cinza e os ventos quentes das queimadas, o brilhantismo do sol, o desassossego da seca, o imprevisto das chuvas e a abastança assassina da cheia das águas. Los hombres existiam nos dias subindo a Montaña y las mujeres viviam de esperar para serem fertilizadas en sus tumbas. Sem cobiça, sem desespero, sem promessas. A vida é o que é: una tumba para los pobres y una colmena de vacaciones para los ricos.
Fui aprender o significado de ler e escrever muito depois, por vontade própria, até então, não havia motivos para contar com o lápis e o papel a história desta luta eterna. Continuo misturada entre duas línguas, ao fim de tudo, não sei de nenhuma sozinha da outra e não sei das duas, mas não há de ter muita importância: la esclavitud es la misma en cualquier lenguaje. Minha querida, a importância da tua atenta escutação é o teu testemunho de ouvinte que não deixará que tudo seja esquecido. Depois de mim, você carrega a vida daqueles hombres y mujeres muertos en la  Montaña: los muertos vivientes.
Escucha: continuo sem jeito para escrituras, a imaginação não me sai na ponta do lápis, me falta o hábito de pensar con el lápiz, acostumei com a ponta da língua; assim, nessas inconfidências, siempre tenho a saída estratégica de quem disse, mas não disse. Entonces, cierra sus ojos y voltemos ao que interessa, como comer o pão do diabo e não desejar cobras e lagartos aos outros, pelo menos, não no meio da algazarra da casa que me acolhia.
Dona Lara vivia se queixando da sua requisição de privacidade, o banheiro de suíte virou de uso comum. Después del cuarto de baño construído perdeu a intimidade de ficar sozinha para lavar todo el cuerpo o parte de él. Gritava arrependida que todos faziam uso da sua pia e toalhas. Mastigava os seus gritos de trovão y escupía su destino contra os hijos, siempre que encontrava o assento da bacia sanitária molhado
(O que custa levantar o assento do vaso?) – perdeu a conta dos gritos com aquela caótica multidão de hijos — (¡Dios mío, cabellos caídos en el lavabo!)  — y hijas, destino de mierda.
Silêncio... siempre fingiam que ficavam calados para os gritos enfezados, mas para minhas orelhas acostumadas com os murmúrios da Montaña, aquelas lágrimas e ameaças de miedo produziam o mau humor da cólica: murmullos de excrementos y orina, entre los dientes
(Vaya a la mierda...) (Truchas de edad…) (No llena la paciencia...)
As respostas se mantinham no sigilo das bocas caladas com raiva y miedo
(É pedir muito?!) (¿Lo que mamá?) (É pedir muito que cada um erga a tampa antes de usar?) (¿Lo que mamá?) (... que cada uma pegue seus cabelos da pia?)
Todos resmungavam, mas não passavam do hábito de responder baixo, por entre dentes e com mau humor. Sabiam que a mãe tinha razão. Para o bem da verdade, as mães sempre têm juízo, bom senso e prudência quando o assunto são os filhos. Usam das garras e dentes para defendê-los. Enxergam de longe os discursos vazios ou falsas promessas. É o equipamento humano mais apurado da natureza: el instinto maternal. Ele enfrenta os desafios, independente de qualquer exercício ou aprendizado que tenha recebido, é um impulso espontâneo e alheio a razão. Como levar a boca ao peito para mamar. Intuição uterina. Para o bem da verdade, os filhos de Dona Lara fazem muxoxo de descontentamento, impaciência, indiferença, ficam calados, mas reconhecem o amor incondicionado, absoluto... regañóna
(¡Carajo, ahora le doy la teta!)
O único que não se habituava al miedo con la regaña era o leporino, chorava porque queria mamar. Não silenciava nem calava entre dentes. Não havia aprendido a resmungar
Sobrevivências.
Subvivências.
Era pegar no colo, dar a teta e o berreiro desaparecia.
Minha vida foi muito fácil com os homens, se tinham moedas trepavam em minhas virilhas, mais moedas e se agarravam em minhas tetas, mais moedas e beijavam minhas virilhas, outras moedas e beijavam la hendidura de mis nalgas — Quero teu cheiro em meus pelos do nariz — Carregar meus cheiros por aí, te custará mais trinta moedas — Não tem preço — não tenho ganâncias, mas os tontos não têm cuidado com o que dizem, tantos elogios fez o preço da mercadoria subir — La Española es la pena cada centavo atrapado en la bolsamas se não tivessem as moedas ficavam a mercê do meu querer. Não tive as aulas práticas dessas moças que berram e gritam desde muito pequenas, enquanto crescem e se comem têm o tempo das bonecas, casinhas, panelas, fogão. Nenhuma menina dos Caraca, em tempo algum, deixou de segurar uma boneca de louça, plástica ou pano, mas nunca o sabugo, elas não têm como escapar, rosa é menina, boneca é coisa de menina, carinho é jeito das meninas
(Tu é a mãe, cuida e protege teu filhinho.) (Tá na hora da comidinha...) (E depois?) (Nana nenê que o bicho vem aí...)
Enquanto o homem usa a instrução familiar da espada como um escudo, azul é menino, carrinho é coisa de menino. Sua insígnia de caçador, não importa se soldado de infantaria ou cavalaria ligeira, lhe diz que a implicação natural é o combate brandindo o gládio do poder e da força. Fendendo corpos de alto a baixo até ficar retalhado como um garanhão acabado: gordo e desdentado, sem jeito de levar à boca o peito e morder a teta. Mantido a distância pelo medo. Intuição peniana: enfiar a espada no fundo, alcançar e não mostrar misericórdia. Não pode ser fraco, mas duro e resistente. Pronto, ágil e decidido, mentir é coisa de menino
Nunca chora, carrega revólver na cintura, espada na mão e máscaras de super-heróis nos olhos: no puede escapar, as guerras em que irá combater já foram juradas.
A força é o jeito dos meninos
(Mostra esse tiquinho... que lindo!) (Grandão assim, hum, vai fazer muita mágica com as garotinhas.)
As vozes do passado estão quase sempre no presente. A família Caraca ensina seus meninos a ultrapassar corpos com espadas aos gritos e suas meninas a romperem suas fendas em segredo.
É assim desde sempre, las mujeres se rompem em cuidados e prudências, los hombres querem tudo e não se dispõem a quase nada. As moedas permitiam seus beijos, menos na boca. Não dava nem recebia beijos na boca, meu cuspe não se misturava por moedas. Muito poucos beijaram mi boca, Juanito foi o primeiro. Não tenho certeza de su beso quando agarrou mis senos, mas não importa, me basta recordar o gosto de su beso  inocente y sus manos pequeñas como conchas en mis pechos. Ou talvez tenha me beijado só em minhas memórias, ou nem isso: en esa época y todos otros momentos, quem sabe não tenha me beijado por conta do nosso destino cruel de prudências. Ensinamos o que aprendemos.
Dom Juan aprendeu o que ensina para os filhos sobre apertar tetas, enfiar espadas, cagar de bater e fugir das índias madraças que sonham com a comida de brancos. Sem rubor ou escrúpulos, fazia treinamento de guri para el tiempo del hombre.  Ninguém se escandalizava, nem com a fome, nem com o suor do cansaço amargurado, nem com o cheiro de podre, nem com as pancadas do amante.
Dona Lara aprendia o que ensinava às filhas: tiene tiempo para aprender y hacer.  Suas meninas apreendem que o poder não está nas virilhas, mas nos hijos de lo sangre. As virilhas se desencantam, mas o ventre é um negócio de segurança para o bem-estar. Assim, não será preciso esconder a amarga contrariedade, permanecer imóvel, olhar para não ver, como se não estivesse onde está, sendo ordenhada. Impotente. Escondida dos seus maus pensamientos. Sem lamentações. Un cadáver – un cuerpo muerto pálido y macilento – depósito de pagar la cuenta.
Dom Juan enfiava e Dona Lara murmurava
(Vai ser difícil encontrar outra...) — não era uma flagelada da monotonia, encharcada pelo chuvisco do santo suor maternal
(Quer mais?) (Sí, quiero mi patrón.)
Não se recordava de ter se negado ao marido, não se recordava do marido ter-se negado, mas lembrava das vezes em que os dois se entregaram juntos, como se ela empunhasse a espada e ele ficasse a mercê pela fenda das virilhas, fodas de rara beleza — Então, que venha.
Jamais sentiu dores de cabeza, apenas dores pelo cuerpo, e aquelas manchas que solicitavam esconder os caprichos nas noites mais negras. Nunca perdeu as vergonhas de abandonar as roupas íntimas na cama. Dava as tetas con miedo que su hombre a ordenhasse. E cumprido os caprichos de hombre y mujer, tombavam de sono.
Depois da crise do acordamento de todos, ela ficava só, por aquela casa de pedra toda desarrumada e calada, nua. A vozes da casa se foram e ela adorava isso, caminhar descoberta pela casa. Sentia como se cada esquina ou aresta estivesse a acariciá-la e ruborizava com sua ousadia. Encontrava sua maneira de infringir e relaxar.
Antes de visitar todas as frestas do casario, Dona Lara entrava na banheira, lentamente, a boa vida não queria pressa. A água morna perfumada era seu bem mais precioso. Assim, alcançava sentir alguma vantagem daquele quarto de banho. Ficava morneando, esquecida dos filhos e deslembrada do porco espinho, lembrança que tinha do marido quando estavam agitados por confusão
(Menina, tudo nesta vida tem os prós e os contra.)
Mais repetia para si, quando ele se metia apaixonado por ela e a deixava maluca
(Es un gran hijo de puta.)
Ele quase sempre começava por comê-la com os dedos. Adorava aqueles dedos felpudos e tarados se enfiando, derrubando seus muros, torturando suas vontades, golpeando su esclavitud
Hijo de puta... sí, quiero mi patrón!) — era quando perdia o medo do fracasso e cumpria o seu dever na ilusória personagem de esposa y hija de su madre.

quarta-feira, 22 de fevereiro de 2012

Zé Ramalho - Avôhai

Avôhai ( Ao Vivo )





Avôhai

Zé Ramalho


Um velho cruza a soleira
De botas longas, de barbas longas
De ouro o brilho do seu colar
Na laje fria onde quarava
Sua camisa e seu alforje
De caçador...

Oh! Meu velho e Invisível
Avôhai!
Oh! Meu velho e Indivisível
Avôhai!

Neblina turva e brilhante
Em meu cérebro coágulos de sol
Amanita matutina
E que transparente cortina
Ao meu redor...

E se eu disser
Que é meio sabido
Você diz que é meio pior
Mas e pior do que planeta
Quando perde o girassol...

É o terço de brilhante
Nos dedos de minha avó
E nunca mais eu tive medo
Da porteira
Nem também da companheira
Que nunca dormia só...

Avôhai!
Avôhai!
Avôhai!

O brejo cruza a poeira
De fato existe
Um tom mais leve
Na palidez desse pessoal
Pares de olhos tão profundos
Que amargam as pessoas
Que fitar...

Mas que bebem sua vida
Sua alma na altura que mandar
São os olhos, são as asas
Cabelos de Avôhai...

Na pedra de turmalina
E no terreiro da usina
Eu me criei
Voava de madrugada
E na cratera condenada
Eu me calei
E se eu calei foi de tristeza
Você cala por calar
Mas e calado vai ficando
Só fala quando eu mandar...

Rebuscando a consciência
Com medo de viajar
Até o meio da cabeça do cometa
Girando na carrapeta
No jogo de improvisar
Entrecortando
Eu sigo dentro a linha reta
Eu tenho a palavra certa
Prá doutor não reclamar...

Avôhai! Avôhai!
Avôhai! Avôhai!

quarta-feira, 15 de fevereiro de 2012

Enfie a sua alma onde lhe achar conveniente


XIV (2ª) - No se puede hacer la revolución sin las mujeres 

baitasar

O meu primeiro ano na família Caraca foi cheio de novidades, nem poderia ser diferente para a menina saída das montanhas para o litoral. A ramagem cheia e espessa da selva com seus coiotes, macacos, veados, porcos-do-mato, pacas, coelhos, morcegos, cobras venenosas, haviam dado seus lugares para os automóveis, as charretes, os vestidos e anáguas, os trilhos do trem, as cabanas crescidas uma em cima das outras. O milho desapareceu das vistas e cedeu seu lugar para prédios e casas de tijolo que engalanavam a paisagem.
As pessoas iam e vinham compenetradas, quietas, em silêncio, mas acima de todos, pairando sobre tudo, havia um murmúrio indecifrável, misterioso, como se todos estivessem satisfeitos com a própria insatisfação, con miedo daquela alegria que haveria de terminar, nada dura para sempre, nem lo miedo dos mendigos, homens e mulheres jogados pelo chão com as mãos estendidas. Olhares tristes. Todos pareciam tristes. E morreriam aborrecidos com seus melhores feitos inacabados, irrealizados como as pás da hélice, girando indefinidamente, até que param: nascidos, crescidos e morridos ali, na hélice, sem nunca terem saído dos redemoinhos de vento da própria vida e daquelas vozes desfeitas pelo miedo dos mendigos, homens jogados pelo chão com as mãos estendidas. Todos pareciam tristes. La tierra estava enterrada por calçadas, pisoteadas por passeantes, sufocando as entranhas de sua lama fértil, escondida, impedida de florir e se dar à chuva, prevenida do calor do sol e dos vientos arrebatados, protegida dos relâmpagos.
Minha irmã Blanca veio visitar-me duas vezes, neste primeiro ano de exílio, mas La Leporina quando descia a Montaña perdia a proteção dos deuses e era vista como uma visão estranha que as mulheres grávidas não poderiam conhecer, para não influenciar no jeito dos filhos que carregavam em suas barrigas. Longe dos olhos, do coração e do ventre germinando: lo que no se ve no hay, si no hay no va a ocurrir.
A sua primeira visitação foi logo após minha chegada. Meu coração estava no tiempo, jogado ao relento todo apertado, assustado e curioso. Desatei meu choro antes de chegar em seus braços, as águas desceram dos meus olhos até salgar nossos pés. Fiquei ali, agarrada em sua cintura. Não me pediu nada, não me negou o seu refúgio, ficou comigo até que as águas de meus pés secassem. Então, cantarolou as mesmas canções que afastavam os muertos da minha volta. Não brigava, nem alterava sua voz, apenas ninava a eles e a mim com o poder de montanha de la Leporina.
Jamais esqueci o calor de seu cuerpo e a paz invadindo mi propio cuerpo: este soplo los arrojó en mi vida y mi trabajo. Nunca desgostei de un hombre que me paga, nem daqueles que jamais aceito um tostão de lucro. Aprendi que todos que me procuram carregam uma angústia, um desespero, um despreparo, eu os acolho no refúgio das minhas piernas: como una trampa que protege las tormentas, para calmar las aguas embalsadas. Não os faço sentirem culpas ou glórias, apenas o conforto de se terem despejado dos fantasmas que rondam a todos os homens: su dureza. Um medo que se enraíza desde pequenino, quando o pepino se entorta com os medos e as fantasias dos agoniados.
Las rameras y atormentados são invencionice, existem como sombras refrescando o mormaço das outras vidas escondidas com as claridades do dia e suas aparências. Ninguém vive apenas nos feitios. Las perras são a chance dos atormentados esconderem as aparências, mas é preciso pagar — ¡Hombre! Ninguna cosa es grátis ni la cruz.
Na segunda vinda, La Leporina foi avisada que Dona Lara estava com o ventre encantado por uma criança, então, foi proibida de vir até o casario dos Caraca. Pelo menos, até a criança nascer. Mas a vida de uns parece que não se submete aos planos de outros, faz parecer que nunca se refreia ao contrário da sua vontade; às vezes, dá a entender que não é bem assim, resmunga que podemos comandar nossas escolhas, como se comanda a montaria em cima do lombo do animal. Quero acreditar que sei comandar a minha montaria, mas sem sempre, nem sempre... têm vezes que a montaria me faz esquecer quem sou e o quanto fui paga para representar no meu palco, a calma me foge e todas as virgens me socorrem e rezam por mim: que mujer despreciable, hija de puta... goza por todas: en nombre de la madre, hyja y todos los santos.
Tudo é teatro.
E acertou que nesta sua segunda visitação, La Leporina defrontou-se com Dona Lara e sua barriga arredondada como uma lua cheia. A sementeira levou as mãos cruzadas e assustadas ao ventre agitado. Instinto. A fêmea lutando por sua cria. Todos correram pelo casario gritando, chorando que a desgraça estava por acontecer e não seria pouca desgraça, e nem seria bobagem pequena.
Um dia para nunca ser esquecido: lo que hace que un dia no se puede olvidar es la distancia del tiempo que se adapte a nuestras memorias, mas num relâmpago lá está ele, intacto, melodioso, brilhante, enquanto os outros dias comuns que carregaram nas costas todas as vidas são deslembrados e tratados com indiferença, acusados rotineiros: dias comuns que todos têm. Não queremos o que todos têm.
Até que sentimos falta do herói: los hombres y mujeres comunes protegen el héroe en el anonimatoIlustre y famoso por sus hazaña o virtude, heroico, protagonista, nacido de un dios o una diosa y de una persona humana: más que hombre y menos que dios.
Somos vividos pelos sobressaltos e arrumações: pecados y el arrepentimiento, menos pecados y más arrepentimientos.
O dia em que a criança na barriga da mãe foi assustada por La Leporina, poderia ser apenas mais outro dia caindo no esquecido, outra história para assustar as crianças, palavras que sussurramos à alma, para que acreditem além dos olhos, não fosse por um detalhe: o filho de Dom Juan nasceu com uma fissura no lábio superior, e os detalhes fazem as diferenças.
Era tão óbvio que aconteceria o que aconteceu: nació en un atormentado por las apariencias, todos somos diferentes, mas não podemos ser tão diferentes sem pagar uma portagem de atormentado — Espelho, espelho meu, existe alguém tão feio como eu — Sí, joven — Quem — Los hombres del maíz de la Montaña!
A aparição do milagre ao contrário, o que não se quer que aconteça é o que acontece. Y la Leporina ficou proibida de abaixar de la Montaña. Eu queria voltar com todas minhas forças, mas continuava apenas girando como uma hélice, as pás se movendo no rumo contrário.
Hoje, não sei se quero prolongar minha vida e por influência de feitiçaria voltar en la Montaña. Essa cor do nada e formas de tudo encantam aos espíritos, mas eu não me deixo seduzir. Os homens todos juram que me comeram, tolos que respiram como o gado e adubam a Montaña, mesmo de longe. Minha cama contaria se falasse: esas huellas fueron colgados trofeos louros, morenos, negros, caçadores abatidos enquanto martelavam minhas virilhas, procurando o meu gozo infranqueável aos tolos
(¡La española no es tonta!)
La Montaña começou esse meu desencanto. Não sei se vou deixar meu espírito retornar. Quero abandonar tudo para trás. Carrego minhas histórias enquanto houver madrugadas para contar os feitos e desfeitos, esses são eternos: têm a velhice do universo, são o próprio espírito da Montaña com seus delírios e alucinações. Na escuridão só existe nada, mas vejo sombras de purgatórios, voltam a reivindicar mi cuerpo para sus viajes. Chamo Blanca, preciso das suas cantorias que suavizam o embate entre dois mundos: advierten de que mi cuerpo está aislado.
Recebo um jovem senhor e já vou avisando — Nunca voy a besar — o atormentado quer saber por que — Saliva lleva el alma — retruca que não entende por que lhe deixo beijar minhas intimidades com o seu cuspe — A alma é minha única intimidade, você enfie a sua alma onde lhe achar conveniente.
Os cuspes dos meus pedidos me voltavam na cara, Blanca me deixou sozinha: aparece la fatiga completa, passa às noites alimentada de frutas, e estrelas, e bosques, não consegue sair do purgatório nem para beber água. Virou um fantasma sem olhos usa máscaras para ocultar seus rostos das ameaças do fim del tiempo, sem o oceano das folhas verdes en la Montaña, sem pegadas, apenas a saliva en el viento que me cuspia dos milharais
(Soy el fantasma de los  espíritus.)
Outra noite, dessas que afundamos no sono para espantar o espanto, não acordei, mas lembro da necessidade de levantar e sentar no banco sanitário. Sonhei que fui — Fue muy duro para salir de la cama — meu fantasma sentou no banco das bacias e derramou a dor que me incomodava, depois duvidei ou pensei que foi apenas um sonho, precisava sair novamente da cama — Fue maís difícil para mí salir de la cama despierta — levantei resmungando que a preguiça me obrigava sair duas vezes da cama, até que voltei para a segurança do sono, fugindo dos barulhos gigantes das esporas castelhanas: en las noches de los fuertes vientos y lluvias excesivas los espíritus vinieron a llevarse a su hija que había quedado; até que o cantar do galo dava início a mais um dia na família Caraca.
Ainda na antemanhã, antepasto, ante tudo, o movimento dos vivos já tinha início. O dono do galo e do tambo de leite soltava un pedo ao levantar as pernas, ainda embaixo das cobertas. A dona do dono do galo e das vacas enfiava os dois pés no homem e o fazia saltar da cama
(Que nojo!) (O que foi mi mamá?) (Não sei por que fui casar com um homem tão porco!) (Tesão, minha querida, ninguém jamais te jodió como eu!) (Ahhhhhhhh! Meu Deus! Isso é coisa que se pode mudar!) (Não entendi...) (Sai... sai da cama.) (Já vou taradinha...) (Vá cuidar das tuas vacas!) (Querida, eu espremo úberes...) (Eu sei, não és hombre de negócios.) (As vacas continuam a pagar a comida desta casa.) (E de quantas mais?) (Fica linda quando ponerse celosa.) (Um dia destes...)
Levantava nu em pelo, bem assim, era puro pelo. Seu corpo imenso produzia uma pelugem que o fazia parecer um gorila, parecido com aquelas bobagens que os gringos teimam em filmar para fazer esquecer que nos matam todos os dias. O homem macaco erguia os braços como se estivesse em fúria, soltava um urro e olhava para sua cobiçada mulher. Pensava naqueles quadris mágicos. Adorava agarrá-los com as duas mãos enquanto ia adentrando ao salão de festas
(Dom Juan, me responde...) (Pergunta, minha cabeluda...) (Por que os homens adoram a desarrumação da saída do esgoto, mesmo com um salão de festas tão pertinho.) (O que é isso mulher?) (Não vai responder?)
Nessas horas, bem que ela gostava que ele tivesse mais mãos e se pusesse a fazer mais viagens. Era um belo macho peludo. Ele rezingava que ela era um tesão de mulher, uma mãe gostosona. A fera peluda caminhava pelo quarto assobiando. Um gorila branco de pelo preto... suado e desabusado. Seu corpo parecia um imenso couro cabeludo, tudo se escondia por baixo dos pelos. O que não se ocultava era a aborrecível pouca vergonha.
Soltava mais um estalo de vento e mau cheiro
(Por favor, Dom Juan Pedro Caraca!)
Pronto, o gorila peludo, porco e careca estava apresentado. Não mantinha um fio de pelo na cabeça. Sempre foi careca e peludo: um marido com umas partes com tanto y otras con tan poco o nada. Era uma efígie tão acostumada com o retrato de si mesma que achava os demais diferentes e regulares. Muito iguais para o seu gosto. Entrava no banheiro
(¡Carajo, que el agua fría!) — tinham uma suíte. A única exigência da patroa quando Dom Juan sugeriu o aumento do casario da família — Quero paredes de tijolos, piso de tábuas e um banheiro dentro do quarto do casal.
Como sei de tanto segredo abrigado?
Minha amiga, não esqueça, eu lavava as intimidades daquela gente toda e dormia no chão ao lado do leporino, aos pés do casal. E os segredos da cama se confessam no dia seguinte, em meio à confusão dos lençóis, calcinhas, cuecas; bastava ter um bom nariz e olhos atentos. Não saia só vento pelo fim de Dom Juan, o homem era descuidado com sua ventosidade. E tinha compulsão para comer as calcinhas da Dona Lara. As rendas não chegavam ao fim da luta, elas eram martirizadas na pilhagem daquele pirata, o Capitão Gancho das vacas. E tão certo, como o sol nasce com o dia e as estrelas surgem à noite, o gancho do capitão fuçava no salão de festas e no esgoto, sem dó nem piedade — Yo estaba fuera de control de mi propia voluntad, escoava minhas águas limpas e sujas.
Depois, a patroa passava o dia ditando ordens, desabafando, explicando manchas e cheiros. Ela não precisava dizer qualquer coisa, mas encontrou uma ouvinte para sua falação, alguém sem palpites para oferecer: uma sombra com voz. Não procurava opiniões ou sugestões, queria desafogar da raiva de se dar sem limites. Contar da sua história aquilo que lhe interessava contar, sem gritarias ou escândalos.
Os fingimentos da senhora eram outros.
Foi quando aprendi que uma mesma história tem muitos jeitos para ser contada ou descontada. Tudo são interesses da lei que não é justiça, mas invenção do apatacado que não quer morrer enforcado. Já sei, não precisa olhar desse seu jeito canino, minha língua não tem osso, de qualquer maneira descobri cedo, ainda menina, que mais se arrepende quem fala do que quem cala. Passei pela vida calada; fingindo que não fingia, escorada em mentiras e fantasias que não desfazia. Esta história é apenas outra de tantas outras de mentira e faz-de-conta que aquecem o coração da sinhazinha bela e adormecida que alimenta o seu homem à mesa, mas tem medo de ser comida pelo avesso — Si usted supiera lo que sé — por aqueles dias nunca soube o que minha patroa havia descoberto.
E aqui, entre nós, aquela mulher me assustava. Acho que fazia de propósito, sabia do meu jeito assustadiço y lengua sumisa. Eu procurava ficar firme, sem estardalhaços. Apertava as pernas e segurava o xixi, sempre fui muito mijona. Depois corria, as tábuas do chão estalavam com meus passos apertados; como los dientes gimiendo, una sensación de frío violenta acompañada de contracciones de fiebre. Con un vagido me tiré en la cama. O rosto enfiado no travesseiro, uma tristeza áspera e quente se derramando de mim — Vuelvo a mi casa — chorava de saudade. Queria resistir, mas não conseguia.
Lembro da minha outra amiga com muita saudade e aflição — Espere um instante, já volto — quero mostrar essa minha amiga de muitos tiempos atrás que larguei sem mesmo me dar conta da abandonação. Tudo passa e quando é demais aborrece.
Volto do nosso quarto com a minha almofada de cabeceira. Uma grande companheira e confidente. Só ela e eu sabemos quantas lágrimas me vazaram em seus plumaços. Descobri a duras penas que tempo é remédio, mas ele vai e não volta — El tiempo cura, amiga mia, pero no vuelve. Segue sempre em frente, não faz meia volta nem volta e meia. Aproveita e recolhe com os goles da memória as lembranças que te importa fazer voltar, mas não te deixa enganar — é bem assim, o que foi feito não pode ser mais desfeito: uma flor caída que não volta mais ao galho. Sou despojada da coloração vistosa da juventude. Não posso mais salvar vidas com o colorido da minha beleza, esse tiempo atravessou para o lado do passado em algum lugar. Minhas virilhas não são mais virilhas, mas histórias antigas.
Claro, minha querida, essa história me veio pela imaginação com alguns detalhes verídicos, fica atenta às minudências. Não quis deixar de colocar todos os pontos na agulha, deixar ponto sem nó. Considere como minha contribuição para ilustrar melhorar a biografia da ascensão da família Caraca, no entorno das leiteiras