Vestida para limpar
baitasar
Aquela mulher como corpo desalinhado, olhar desatento desassossegado melancólico, jeito cansado, lábios secos frouxos, dentes descarnados, nunca existiu, mas tanto pediu que um gentil senhor recitou as escrituras da placa no poste, Mercado Madalena presiça ausiliar de limpessa.
Era uma chance de emprego. Varrer e limpar. Foi admitida, mas avisada, Nada de conversar com a freguesia, isso é deselegante, Sim, senhor, Um dia de experiência... aceita, Sim, senhor. Estava colocada. Submetida à prova da limpeza. Precisava mostrar que foi feita para os serviços de varrer e secar.
Estava vestida para limpar.
O último aviso, A cabeça do pensamento pode estar longe, mas a vassoura não pode se dar conta disso, sempre atenta, Sim, senhor. Dora foi contratada para experiência de competência como a vassoura da loja de secos e molhados. Uniforme de guerra, armada com uma piaçaba, balde, pano de chão, pá de lixo, Você entra e sai invisível.
A empregada doméstica do mercado Madalena estava preocupada, desconfiava que a vassoura não acabava bem o dia, nenhum ferramental resistiria a sua vontade de mostrar serventia. Comida na mesa.
Varre-varre, vassourinha!
Estava chovendo quando as portas foram abertas. A sentinela dentro do seu uniforme. A freguesia entrava e saia. Ela varrendo. Um só corpo, uma só vítima. Aguardando. Inchando. Sem vida dela. Xingavam. Lamentavam. A Dora da vassoura entregava seu melhor sorriso destampado, deselegante, Dora, por favor, não precisa sorrir, limpar e sair. Seguiu deslizando pelos corredores. A cada pouco varrendo um pouco. A primeira que chegou. Fez tudo. A última que saiu.
Era deslocada de lá para cá e daqui para lá, linha de frente dos combates e controle do limpo e saudável. Funcionária de uso sem descansos, limpava limpava limpava. O pano de chão deslizava, sobrevoava o chão amarrotado. Os calçados chegavam e partiam, Muito serviço, Muito, ergueu os olhos do chão, a moça organizadora das prateleiras sorria para Dora, Com essa chuva, É pior no açougue, nas verduras e frutas. Conversa fugida, Faz muito que trabalha no mercado, Nem uma semana, Hoje é o meu primeiro dia, Antes, vivia da faxina, Era papeleira.
A vida era dura para todos. A jovem corrigiu Dora, Não é dura para todos, alguns levam mais jeito que outros, Mas são poucos, minha linda, O seu Bento, as caixas do mercado. Foi falar o nome do diabo, As duas estão na hora do lanche, Não, senhor, É o que parece. Dora rebaixou os olhos e desapareceu entre os corredores de higiene e massa.
Varre-varre, vassourinha!
Deslizava como se usasse patins, Dora Dora, urgente. Chamavam a piaçaba. Foi às pressas. Vassoura velha, escrava nova, Dora, limpa essa nojeira, rápido, O que é isso, meu Deus, Aquela senhora passou mal e vomitou por tudo, Preciso do balde com água, Vai buscar, rápido.
Respirou aliviada. Não queria ficar metida na vomitação. Mas não tinha jeito de fugir do serviço. Olhou devagarzinho. O mau cheiro ficou insuportável. Isso, ela não tinha estômago. Viu que não era apenas no chão sua missão. As prateleiras e as mercadorias foram atacadas.
Saiu livre de peso e chegou com balde de água e pano. Pegou a vassoura. Pareceu que a piaçaba lhe gritava para largá-la. Não adiantou espernear. Enfiou a vassourinha com pano e água no vomitório. O estômago da Dora chegou tantas vezes na boca que sentiu o gosto do pão e água.
As prateleiras foram atingidas pelo jacto na altura dos joelhos. O mandador estava com as mãos à cabeça, Alguém me chama os guris da fruteira. A vassoura faz jeito de ir. Fugir, Você, não. Continuava mergulhada até a cintura. Congelada. Ninguém ouvia seus pedidos de socorro. Continuava a retirada dos resíduos sólidos. Desinfetante cheiroso. Não resmungava.
Soldada, marche-marche!
Estava no ponto de lançar pela boca todo seu estômago. Sentia o gosto do pão velho voltar até o pescoço. Sufocava. A barriga empurrava para fora, as mãos apertavam o pescoço. Não tinha como impedir o desembuchar do apetite pela garganta afora. Estava se engolindo. Resistindo e comendo o pão velho mais uma vez.
Os guris da fruteira chegaram, Rapazes, peguem esses pacotes de farinha e levem para o depósito, tudo bem, seu Bento, Limpem o que for possível, e se não der seu Bento, Vocês podem levar na metade do preço, vou buscar as luvas. O capitão-do-mato fez sinal para que parassem, enfiem sacos na mão, desapareçam com a mercadoria.
A operação rescaldo prosseguiu. Chão. Mercadorias. Tudo foi parecendo novinho. Apenas Dora não ia bem. Estava mergulhada dentro do balde, enfiada nos restos juntados. Precisava afrouxar os nervos. Respirava com indiferença.
Explodiu a corneta no quartel. Tempestade. A chuva parcimoniosa no início da manhã, agora desabava violenta e imensa. Chamam a vassoura com a Dora. Uma bucha de canhão, Quebraram dois potes de maionese, quase não escutou as ordens, O que eu faço, Porra, limpa essa merda, ela não tinha tempo para dores físicas ou morais. Fez a varredura do campo minado. Estilhaços da granada do molho frio e ovo batido estavam espalhados. Mais um campo liberado com prontidão e rapidez.
Pronto, os sinais da batalha foram removidos. O caminho estava livre e não haviam feridos. Mais uma obrigação cumprida no silêncio. Nenhum nome. Nenhum agradecimento. Soldada desconhecida sem monumentos. Invisível.
A chuva e a ventania chegaram de vez. Ensurdecedoras. Extraordinário. O barro entrava nos pés da freguesia. A vassoura seguia atrás dos embarrados. Apagando as pegadas, os rastros borrados.
Outro toque de reunir. Outra tarefa.
O chão da entrada, Quero o piso brilhando. Recuou os olhos até o chão. Apertava o cabo da piaçaba entre as mãos. Serviço dos grandes, mas se estava alistada, Sim, senhor, meu sargento.
Apagava as marcas, desfazia as trilhas, arrastava para lá, escorregava para cá, cumpriu a missão sem abatimento ou jeito de desconforto. Nenhum muxoxo. Nada. Silenciosa.
A manhã chegava ao fim junto com a chuva, escorreu toda sua água. Dora olhou para cima, Acabou a chuva por falta de água. Fez respiração de alívio, foi quando sentiu a fome de três dias. Precisava comer. Qualquer comida.
Distraída com as dores da fome, não percebeu o perigo. Caiu de joelhos, as mãos na barriga, enquanto seus olhos suplicavam. Ela pensava que rezava, mas flutuava. Murmurava com o vento. Invisível. Desabada.
Os olhos ardiam e não evitavam as lágrimas. Continuava deitada. Passou a manhã querendo descansar, pois chegou o tempo da trégua. A vassoura inerte ao seu lado, não era nada sem as mãos da Dora. Outra desfalecida, O que foi, Dora, tentou responder que só precisava respirar e comer. Continuava calada.
Ela sabia que o chão da terra é o único que acolhe os semeados pobres. Ficam no chão batido. Campo de descanso da miséria. Desamparados. Quase enterrada.
Continuava prisioneira dos milagres, nunca desistiu por desânimo. Sabia, mas não sabia, enriqueceu o patrão, encheu a vida dele de vida, enquanto foi encurtando a vida que lhe cabia, Chamem a Dora Dora Dora!
A soldada desconhecida levantou de arma em punho. Tinha o olhar descolorido, não lamentava nenhuma sorte. Tirou o uniforme, nua de qualquer insígnia varreu os corredores, Sou invisível, ninguém vê, ninguém sabe de alma penada.
Exumando a alma do corpo adormecido, passou pelas massas e biscoito, depois farinhas e açúcares, até as frutas e verduras.
Os olhos arregalados estavam fechados. As mãos tapavam as bocas. O seu Bento comentou a desestima daquele corpo desembainhado da roupa. A faz-tudo era carne e osso. O homem gritou por um lençol para cobrir as vergonhas da doida. O açougueiro largou das facas e com o avental de sangue cobriu Dora. Caminharam para os vestiários.
O seu Bento mandou que se pregasse de novo o aviso de vaga na vassoura. A tabuleta nem havia sido retirada.
Com sorte, o encarregado já preenchia a vaga para o restante do dia, Como é seu nome, Maria Cariciosa, Vejo que tem os dentes perfeitos...