quinta-feira, 30 de junho de 2011

feita para os serviços de varrer e secar


Vestida para limpar

baitasar

Aquela mulher como corpo desalinhado, olhar desatento desassossegado melancólico, jeito cansado, lábios secos frouxos, dentes descarnados, nunca existiu, mas tanto pediu que um gentil senhor recitou as escrituras da placa no poste, Mercado Madalena presiça ausiliar de limpessa.

Era uma chance de emprego. Varrer e limpar. Foi admitida, mas avisada, Nada de conversar com a freguesia, isso é deselegante, Sim, senhor, Um dia de experiência... aceita, Sim, senhor. Estava colocada. Submetida à prova da limpeza. Precisava mostrar que foi feita para os serviços de varrer e secar.

Estava vestida para limpar.

O último aviso, A cabeça do pensamento pode estar longe, mas a vassoura não pode se dar conta disso, sempre atenta, Sim, senhor. Dora foi contratada para experiência de competência como a vassoura da loja de secos e molhados. Uniforme de guerra, armada com uma piaçaba, balde, pano de chão, pá de lixo, Você entra e sai invisível.

A empregada doméstica do mercado Madalena estava preocupada, desconfiava que a vassoura não acabava bem o dia, nenhum ferramental resistiria a sua vontade de mostrar serventia. Comida na mesa.

Varre-varre, vassourinha!

Estava chovendo quando as portas foram abertas. A sentinela dentro do seu uniforme. A freguesia entrava e saia. Ela varrendo. Um só corpo, uma só vítima. Aguardando. Inchando. Sem vida dela. Xingavam. Lamentavam. A Dora da vassoura entregava seu melhor sorriso destampado, deselegante, Dora, por favor, não precisa sorrir, limpar e sair. Seguiu deslizando pelos corredores. A cada pouco varrendo um pouco. A primeira que chegou. Fez tudo. A última que saiu.

Era deslocada de lá para cá e daqui para lá, linha de frente dos combates e controle do limpo e saudável. Funcionária de uso sem descansos, limpava limpava limpava. O pano de chão deslizava, sobrevoava o chão amarrotado. Os calçados chegavam e partiam, Muito serviço, Muito, ergueu os olhos do chão, a moça organizadora das prateleiras sorria para Dora, Com essa chuva, É pior no açougue, nas verduras e frutas. Conversa fugida, Faz muito que trabalha no mercado, Nem uma semana, Hoje é o meu primeiro dia, Antes, vivia da faxina, Era papeleira.

A vida era dura para todos. A jovem corrigiu Dora, Não é dura para todos, alguns levam mais jeito que outros, Mas são poucos, minha linda, O seu Bento, as caixas do mercado. Foi falar o nome do diabo, As duas estão na hora do lanche, Não, senhor, É o que parece. Dora rebaixou os olhos e desapareceu entre os corredores de higiene e massa.

Varre-varre, vassourinha!

Deslizava como se usasse patins, Dora Dora, urgente. Chamavam a piaçaba. Foi às pressas. Vassoura velha, escrava nova, Dora, limpa essa nojeira, rápido, O que é isso, meu Deus, Aquela senhora passou mal e vomitou por tudo, Preciso do balde com água, Vai buscar, rápido.


Respirou aliviada. Não queria ficar metida na vomitação. Mas não tinha jeito de fugir do serviço. Olhou devagarzinho. O mau cheiro ficou insuportável. Isso, ela não tinha estômago. Viu que não era apenas no chão sua missão. As prateleiras e as mercadorias foram atacadas.

Saiu livre de peso e chegou com balde de água e pano. Pegou a vassoura. Pareceu que a piaçaba lhe gritava para largá-la. Não adiantou espernear. Enfiou a vassourinha com pano e água no vomitório. O estômago da Dora chegou tantas vezes na boca que sentiu o gosto do pão e água.

As prateleiras foram atingidas pelo jacto na altura dos joelhos. O mandador estava com as mãos à cabeça, Alguém me chama os guris da fruteira. A vassoura faz jeito de ir. Fugir, Você, não. Continuava mergulhada até a cintura. Congelada. Ninguém ouvia seus pedidos de socorro. Continuava a retirada dos resíduos sólidos. Desinfetante cheiroso. Não resmungava.

Soldada, marche-marche!

Estava no ponto de lançar pela boca todo seu estômago. Sentia o gosto do pão velho voltar até o pescoço. Sufocava. A barriga empurrava para fora, as mãos apertavam o pescoço. Não tinha como impedir o desembuchar do apetite pela garganta afora. Estava se engolindo. Resistindo e comendo o pão velho mais uma vez.

Os guris da fruteira chegaram, Rapazes, peguem esses pacotes de farinha e levem para o depósito, tudo bem, seu Bento, Limpem o que for possível, e se não der seu Bento, Vocês podem levar na metade do preço, vou buscar as luvas. O capitão-do-mato fez sinal para que parassem, enfiem sacos na mão, desapareçam com a mercadoria.

A operação rescaldo prosseguiu. Chão. Mercadorias. Tudo foi parecendo novinho. Apenas Dora não ia bem. Estava mergulhada dentro do balde, enfiada nos restos juntados. Precisava afrouxar os nervos. Respirava com indiferença.


Explodiu a corneta no quartel. Tempestade. A chuva parcimoniosa no início da manhã, agora desabava violenta e imensa. Chamam a vassoura com a Dora. Uma bucha de canhão, Quebraram dois potes de maionese, quase não escutou as ordens, O que eu faço, Porra, limpa essa merda, ela não tinha tempo para dores físicas ou morais. Fez a varredura do campo minado. Estilhaços da granada do molho frio e ovo batido estavam espalhados. Mais um campo liberado com prontidão e rapidez.

Pronto, os sinais da batalha foram removidos. O caminho estava livre e não haviam feridos. Mais uma obrigação cumprida no silêncio. Nenhum nome. Nenhum agradecimento. Soldada desconhecida sem monumentos. Invisível.

A chuva e a ventania chegaram de vez. Ensurdecedoras. Extraordinário. O barro entrava nos pés da freguesia. A vassoura seguia atrás dos embarrados. Apagando as pegadas, os rastros borrados.
Outro toque de reunir. Outra tarefa.

O chão da entrada, Quero o piso brilhando. Recuou os olhos até o chão. Apertava o cabo da piaçaba entre as mãos. Serviço dos grandes, mas se estava alistada, Sim, senhor, meu sargento.

Apagava as marcas, desfazia as trilhas, arrastava para lá, escorregava para cá, cumpriu a missão sem abatimento ou jeito de desconforto. Nenhum muxoxo. Nada. Silenciosa.


A manhã chegava ao fim junto com a chuva, escorreu toda sua água. Dora olhou para cima, Acabou a chuva por falta de água. Fez respiração de alívio, foi quando sentiu a fome de três dias. Precisava comer. Qualquer comida.

Distraída com as dores da fome, não percebeu o perigo. Caiu de joelhos, as mãos na barriga, enquanto seus olhos suplicavam. Ela pensava que rezava, mas flutuava. Murmurava com o vento. Invisível. Desabada.

Os olhos ardiam e não evitavam as lágrimas. Continuava deitada. Passou a manhã querendo descansar, pois chegou o tempo da trégua. A vassoura inerte ao seu lado, não era nada sem as mãos da Dora. Outra desfalecida, O que foi, Dora, tentou responder que só precisava respirar e comer. Continuava calada.

Ela sabia que o chão da terra é o único que acolhe os semeados pobres. Ficam no chão batido. Campo de descanso da miséria. Desamparados. Quase enterrada.

Continuava prisioneira dos milagres, nunca desistiu por desânimo. Sabia, mas não sabia, enriqueceu o patrão, encheu a vida dele de vida, enquanto foi encurtando a vida que lhe cabia, Chamem a Dora Dora Dora!

A soldada desconhecida levantou de arma em punho. Tinha o olhar descolorido, não lamentava nenhuma sorte. Tirou o uniforme, nua de qualquer insígnia varreu os corredores, Sou invisível, ninguém vê, ninguém sabe de alma penada.

Exumando a alma do corpo adormecido, passou pelas massas e biscoito, depois farinhas e açúcares, até as frutas e verduras.

Os olhos arregalados estavam fechados. As mãos tapavam as bocas. O seu Bento comentou a desestima daquele corpo desembainhado da roupa. A faz-tudo era carne e osso. O homem gritou por um lençol para cobrir as vergonhas da doida. O açougueiro largou das facas e com o avental de sangue cobriu Dora. Caminharam para os vestiários.

O seu Bento mandou que se pregasse de novo o aviso de vaga na vassoura. A tabuleta nem havia sido retirada.

Com sorte, o encarregado já preenchia a vaga para o restante do dia, Como é seu nome, Maria Cariciosa, Vejo que tem os dentes perfeitos...

sábado, 25 de junho de 2011

Una mujer desnuda y en lo oscuro

Mario Benedetti


Una mujer desnuda y en lo oscuro
tiene una claridad que nos alumbra
de modo que si ocurre un desconsuelo
un apagón o una noche sin luna
es conveniente y hasta imprescindible
tener a mano una mujer desnuda.

Una mujer desnuda y en lo oscuro
genera un resplandor que da confianza
entonces dominguea el almanaque
vibran en su rincón las telarañas
y los ojos felices y felinos
miran y de mirar nunca se cansan.

Una mujer desnuda y en lo oscuro
es una vocación para las manos
para los labios es casi un destino
y para el corazón un despilfarro
una mujer desnuda es un enigma
y siempre es una fiesta descifrarlo.

Una mujer desnuda y en lo oscuro
genera una luz propia y nos enciende
el cielo raso se convierte en cielo
y es una gloria no ser inocente
una mujer querida o vislumbrada
desbarata por una vez la muerte.

Una mujer desnuda y en lo oscuro
tiene una claridad que nos alumbra
de modo que si ocurre un desconsuelo
un apagón o una noche sin luna
es conveniente y hasta imprescindible
tener a mano una mujer desnuda.

Tinha os nós dos dedos esfolados


Natal Novo, Ano Velho

baitasar

Maria Cariciosa chegava no sítio de trabalho e, no mesmo instante, suas crianças gêmeas ficavam ocultas do pensamento, vivia a fantasia de agradar à patroa. Personagem do cotidiano serviçal, Bom dia, dona Clara, Bom dia, Maria.

A vida é assim, Clara era a dona; Maria foi criada para servir. Mandava quem podia, obedecia quem precisava.

As preocupações com os seus gêmeos ficavam diluídas, entregues ao sono da tarefas. Estava largada nas vontades da patroa. Entrava no quarto das bebês. Duas meninas.

Olhava a sua volta e pegava as coleiras.

Saia para passear com as duas presas em suas gargalheiras. Tuca e Farofa abanavam saltavam latiam.

Dona Clara fazia as recomendações de sempre, Maria... não esquece que você é quem pensa melhor, não perca o controle da situação, Pode deixar, dona Clara.

Na volta do passeio, dona Clara colocava as três sentadas, sempre cheia de cuidados para aclarar que o lugar do xixi e do cocô não era nas calçadas e gramados dos vizinhos, Onde eu faço, dona Clara, Leva as minhas crianças na praça do chafariz, Au au au, Viu, Maria, as minhas filhas parecem gente.

Os dias e noites passavam. O cotidiano chegava para todos, até para os cachorreiros. O Natal estava montando os enfeites das casas e diminuindo o dinheiro dos bolsos.

As festas do final do ano, todos os anos, traziam esperança, talvez no ano que vem uma vida nova, talvez talvez... Quem sabe, ela e o Manualdo terminavam o levantamento de tijolo da casa. Cada um ia ao mundo procurando emprego de mais ganho, talvez talvez...

As crianças da Cariciosa usavam suas roupinhas novas de segundo dono. Dona Clara estava se desfazendo das coisas de costume da sua filhinha Maria Clara. Morta num pulo sobre uma vara de bambu. Foi para a Terra dos anjos.. Soldados do Senhor. Finou-se.

O marido da dona Clara fugia da casa e das lembranças. A patroa não reclamava, mas toda mulher reconhece outra que vive infeliz... com nenhum amor, mas isso era lá com a patroa e o delegado.

Naquele Natal, depois da ceia com galinha e farofa, a família estava quase toda na praça do chafariz. O prefeito mandou estourar fogos de artifício, ensaio para o ano novo.

Ali, no terreno da praça curado dos ferimentos, a escuridão da noite foi rasgada por riscos barulhentos, recheados de brilho e sonhos, mas não assustavam mais aquelas terras, aprenderam a fixar as raízes das histórias escondidas.

Retornaram às suas casas.

Maria Memória levava em seus braços Maria Destino, a menina dormia sono solto. Cariciosa e Manualdo, cada um do seu jeito, carregavam os gêmeos, Pena que acabou, Será que no ano que vem tem mais, Mais do quê, Estouros e luzes.

Acomodaram as crianças e continuaram com as conversas comidas bebidas. A cervejaria ia solta de mão em mão, de copo em copo. Os quitutes na volta da galinha eram saboreados na farra. Arroz com banana, lentilha, batata-doce com maçã. Manualdo queria mais cerveja, Agora chega, Minha preta, é Natal, quero beber até cair, Isso é que não, bêbado vestido é sempre borracho, Minha preta, não sou nenhum idiota, Cachaça não dá juízo.

Memória e Cariciosa lavavam copos pratos talheres, não deixavam vestígios de comida para baratas.

Ogum e Manualdo limpavam a última garrafa de cerveja. Não deixavam vestígios de sóbrios. Estavam bebãos.

A festa do Natal acabou.

A Cariciosa colocou olho de curiosa no Manualdo. O bugre estava jogado de barriga na cama, babava pela boca aberta e ventilava pela cueca. Dormia o sono solto. Ela revirou os olhos para cima e agradeceu a graça divina.

Na manhã seguinte, a ressaca levantou e comeu o que achou. Não falava. Não abria os olhos. Respirava e abocanhava as sobras.

Quando Manualdo decidiu que apenas sobreviver não bastava, levantou do coma. O borrachudo hesitava entre coisa alguma e nada.

Foi até o portão. Aquela cerca de madeiras precisava reparos. Naquele dia, não.

Um cachorro desorientado e perdido vagava de portão em portão. Ia e vinha. Cheirava. Acuava. Reconheceu o animal pelas fitinhas, Tuca Tuca. A cadelinha olhou na sua direção, mas continuou seu destino desatinado. Chamou pela Cariciosa e seguiu o bicho.

A sua preta chegou para serviço extra de socorro. A Tuca seguiu fugindo. Estava fora do lugar e desajuizada. Gente ou bicho desamparado fica surdo e vê malquerença por toda parte. Olha e não enxerga. Escuta e não ouve. Caminha e não sai do lugar. Tem fome, mas não é da comida.

Gente ou bicho é tudo igual quando estão apartados da vida, Tuca Tuca.

O bugre lembrou-se da avenida de movimento, estava lá, mais na frente. Imaginou o bicho esparramado. A Cariciosa e a cachorra iam adiantadas dele. Seguia como podia. Atrasado. A cabeça latejava. A claridade, os olhos de bebedeira, a correria das duas. O coração estava na boca. Desejava estar dirigindo a empilhadeira. Viu quando sua Maria entrou na avenida. Um carro todo preto freou bruscamente. Os pneus arrastavam o chão.

O coração descontrolou.

Quando conseguiu espichar melhor a sua visão de ver longe, lá estavam as duas. Paradas no meio da avenida, entre fuscas e opalas. Os carros acuados. A mulher segurava a cachorra no colo. A boca aberta, a língua caída da boca, os olhos arregalados. O coração galopava no seu peito peludo. Estavam salvas.

O coração do Manualdo quase lhe fugiu em desatino, mas já lhe obedecia.

Quando chegaram a sua casa, dona Clara já os esperava. Foi avisada pelos gêmeos. O marido Calçacurta estava junto, Obrigada, Maria, Vê se isso tem razão de acontecer, Os fogos de ontem enlouqueceram as duas, Os bichos não aguentam.

A beleza e o brilho das explosões de ontem virou queixume, Dinheiro colocado fora, Barulho de mais, Estava preocupada, a coitadinha perdida por essas vilas, cheia de cachorros vira-latas.

Cuidado com esses... criados soltos feito bezerros, Vileros, foi a rezinga imperceptível da dona Clara.

Maria Memória apareceu quase no fim da emergência, carregava a menina Destino no colo dos braços e fazia da teta a mamadeira de serventia, Seu delegado, Sim, Como o Supimpa tem se saído nas tarefas de polícia, O rapaz é muito bom, tem futuro.

O filho não haveria de gostar do intrometimento da mãe, É que ele não tem aparecido em casa, Estamos envolvidos com uns serviços extras, mas não é para tanto.

A mulher do delegado estava sentada no carro, já tomada de impaciência. O delegado desenhou um sorriso breve. Maria Memória sentiu o frio que lhe descia pela espinha do corpo. Esse tal Calçacurta não perdia viagem, Nem um pequeno e sincero... obrigado, Isso não tem importância, Cale o que deu e fale o que recebeu.

O dia seguiu mormacento.

Supimpa chegou em casa. Era o polícia paisano da família. A mãe desconfiava que o rapaz tivesse outro domicílio de uso, pois não parava mais, É muito serviço, mãe, mas que diabo de serviço, Não tenho permissão de contar, Eu sou sua mãe, Tem coisa que é melhor desconhecer.

Ogum chegou a se mexer na cadeira para fazer pergunta, mas, por dentro da cachola, pensou que não valia nenhum intrometimento. Imaginação demais espanta o bom senso. Voltou à ressaca de dormir.

Tudo se acostuma ou, pelo menos, faz cara de conformação.

A conversa foi à cozinha, terminavam na mesa tudo que começavam sempre na volta do fogo.

Maria Memória sentou ao lado do filho, Tem galinha, você quer, Quero, estou com fome. Serviu o guri e fez mais perguntas, Meu filho, ta enrabichado em rabo de saia, Mãe... é o serviço, tem certeza, filho, Não se preocupe, Nunca vou deixar de me preocupar.

O rapaz levou as mãos para ajeitar os cabelos. Esse filho sentou praça no quartel, deu baixa da vida de milico e seguiu na vida, com convite do delegado Calçacurta, como soldado carcereiro, Meu filho, você machucou as mãos, Isso... não é nada, mãe.

Tinha os nós dos dedos esfolados.

quinta-feira, 23 de junho de 2011

Te quiero

Mario Benedetti



"Tus manos son mi caricia
mis acordes cotidianos
te quiero porque tus manos
trabajan por la justicia
si te quiero es porque sos
mi amor mi cómplice y todo
y en la calle codo a codo
somos mucho más que dos
tus ojos son mi conjuro
contra la mala jornada
te quiero por tu mirada
que mira y siembra futuro
tu boca que es tuya y mía
tu boca no se equivoca
te quiero porque tu boca
sabe gritar rebeldía
si te quiero es porque sos
mi amor mi cómplice y todo
y en la calle codo a codo
somos mucho más que dos
y por tu rostro sincero
y tu paso vagabundo
y tu llanto por el mundo
porque sos pueblo te quiero
y porque amor no es aureola
ni cándida moraleja
y porque somos pareja
que sabe que no está sola
te quiero en mi paraíso
es decir que en mi país
la gente viva feliz
aunque no tenga permiso
si te quiero es porque sos
mi amor mi cómplice y todo
y en la calle codo a codo
somos mucho más que dos."

Arretado pela brabeza

Crescia por dentro, estufando

baitasar

Manualdo passou todo o dia saboreando sua mulher, enquanto executava os empilhamentos. 

Sentia o gosto. 

Experimentava os aromas. 

Desfiava o tricô com os dedos, ponto por ponto, apertava os nós. Não a perdia da lembrança, se entrassem em sua cabeça seria um escândalo. Era uma assombração entrando nas carnes novas da mulher. Segurava com as mãos o vai-e-vem dos quadris. As cadeiras carnudas provocavam suas vontades, as mãos dele em alvoroço, as mãos dela erguidas atrás da nuca. Balançando à frente, voltando atrás. Montava em garupa.

Gostava de crescer por dentro, estufando.

O seu avivamento começava nas mãos antes de abraçar, os olhares antes de beijar.

Abraçava-a e as garras da cobiça não paravam, desciam e subiam sua pele negra. Dois que saboreavam o gosto do encanto, as bocas descobrindo quanto da vontade de comer e beber conseguiam experimentar. Prolongavam. Demoravam. Esvaziavam. Recheios das delícias do sem fim.

Terminou os empilhamentos sem afobação. Assobiava a canção vaporosa do sorriso nos lábios. As claridades do dia se acabavam. Ele seguiu sem sustos até as bicicletas. Todas saiam para seus lares.

Pedalava para casa. Devagar.


A cada movimento dos pedais avisava, Estou chegando, minha preta. Olhava para o céu entrelaçado, não tinha muita atenção no trânsito. Ruas de submissão.
Cariciosa seguia à sua frente nua, quase podia tocá-la. Despreocupado. A pouca vergonha sempre desmanchava nos primeiros carinhos. As virilhas lhe queimavam. Rachas de lenha ao fogo. Ardiam. Estalavam.

Sabia que flutuava, Seu idiota, sai da frente, O que foi, Deixa passar quem tem pressa, seu imbecil. O susto do início se acomodou e apareceu no seu lugar o Manualdo arreitado pela brabeza. Ergueu uma das mãos com o punho fechado e deixou o obsceno dedo do meio firme, reto.
O inimigo acelerou, pedalavam lado a lado. Mãos crispadas ao guidom. O coração pedalava no limite das pernas. Ombro a ombro. Cabeça com cabeça. Desgovernados pela intolerância. Carros, buzinas e faróis desatinados. A fúria insana, nenhum sentido nos olhos. A boca não engolia, babava. Gritavam. Cuspiam. Tudo contrário à razão, o brete da cegueira que não se enxerga, Chega, ordenou Maria.

Manualdo estacionou, a respiração desacelerava, grita com raiva da sua covardia, Seu corno, tomara que se desmanche na carreteira. O desafiante seguiu em frente, olhava com o sorriso da vitória. O genro da Maria Memória ergueu seu dedo obsceno. As mãos suadas tremiam. Aquele dedo ereto era o palavrão que simbolizava sua resistência.
O oponente fugia das suas vistas, pedalava com fúria. Manualdo ficou parado. Importante era chegar. Ordenou calma ao coração. O suor lhe escorria pernas abaixo. A cabeça latejava, os braços não davam conta da direita e da esquerda. Uma dor intensa abaixo das costelas prescrevia que continuasse parado. Não tinha nas intenções morrer pedalando, Agora chega, comandava Cariciosa, volta pra casa.

Recomeçou os movimentos da bicicleta. Precisava vencer a crista arredondada da coxilha, quando seria apenas descida. Pedalava lentamente. Reiniciar parecia mais dolorido, Minha preta, não devia ter ficado estacionário, Bobagem, morrer pedalando, depois que morre... acabou, estraga, nem o cheiro tem proveito.

Estava no topo. As luzes da vila embaixo do céu estrelado. Agora, precisava controlar as vontades da máquina, o animal parecia querer despencar lomba abaixo. Homem e maquinário se desafiando. A traição da locomotora. Perderam-se os freios. O instinto e a botina cingiram fortemente a roda dianteira. Manualdo estremecia tentando firmeza nos braços para controlar a bicicleta. A ladeira parecia subir, mas era ele que descia descabelado.
A memória trouxe lembrança do cruzamento, logo à frente. Tentou rezar. Desistiu. Grudou a botina na roda. Homem e máquina pararam. Naquele instante, ou quase isso, um caminhão cruzou a estrada, assoviava e revirava vento, Seu bobo, quase não me chega.

Os freios não tinham conserto sem o ferramental. Desceu o restante da colina caminhando, lado a lado, com sua bicicleta. Na estrada plana, desmanchada de subidas e descidas, montou no selim e pedalou com moderação. Afastava-se do mundo civilizatório e escorria adentro dos escolhidos à miséria, Sem queixumes, Manualdo... sem queixumes. Lembrava do capataz Cícero, o homem lhe repetia, Rapaz, trabalho não enriquece, mas recheia à mesa. Era isso que lhe bastava saber, sua gente alimentada.
Empurrava os pedais da bicicleta, um depois o outro, lentamente. Diminuiu o ritmo, alguns metros à frente, viu um ajuntamento de gente. Parecia um acidente. O ciclístico acidentado era o corno. Desmontou da máquina em duas rodas. Caminhava lentamente. Quando os olhos se cruzaram repetiram as obscenidades.

Manualdo ergueu o punho fechado da mão direita e deixou o dedo indicador e o mínimo esticados. Imitava um par de chifres. O inimigo lhe devolveu um olhar de ódio, Cuidado moço, o castigo tarda, mas não falha, Verdade seja dita, lhe dou razão, seu corno. Saboreava tudo aquilo.
Saiu dali, sorrindo. Seguiu pedalando, não tirava os olhos do ciclista caído, a bicicleta sozinha, sem direção. A vingança era doce.

Não teve tempo de desviar do poste, Merda, no seu caminho.
Bateu com todas as vontades. Rolou pelo asfalto. As buzinas. As freadas. Cego pelos faróis.

O inimigo sorria.
Estavam quites, Filho-da-puta, Corno!

domingo, 19 de junho de 2011

Precisavam escolher entre a escola e as serventias do dinheiro


As crianças da vila Boa Esperança
baitasar
Desde o seu nascimento, as crianças da vila Boa Esperança guardavam em seus pequeninos corpos a esperança num outro jeito de viver, até o dia em que precisavam escolher entre a escola e as serventias do dinheiro.
Então, os sonhos ficavam guardados numa caixinha de fósforos. As coisas da escola nem eram tão admiráveis, as dores do estômago vazio tinham mais importância e urgência.
As barrigas da Maria Memória e da Maria Cariciosa cresceram, o prenhamento brilhava nas formas redondas. Mãe e filha haviam chegado juntas no tempo da colheita. Mais crianças encolhidas em caixinhas de fósforos.
A ida para o hospital dos nascimentos precisava da carroça das núpcias. Já toda preparada para a ocasião. Graxa nos eixos. Pintura no capricho. Cavalo bem tratado. Rédeas novinhas. Assento estofado.
Encilharam o Ícaro, ele estava pronto, como qualquer soldado em prontidão de alerta no quartel. O dedo no gatilho e a baioneta calada no fuzil. A bala faminta para voar.
Nas horas de apuro eram preciso as rezas e os cuidados do costume.
Manualdo deixava na vista de todos a carteira do INAMPS, para garantir atendimento de segurado. A autoridade da carteira assinada. O mais novo não cansava de repetir ao mais velho, mais valia ganhar menos, assinando a carteira de trabalhador e garantir médico e hospital na família. Ogum resmungava que tinha carnê de pagamento, Meu sogro, é preciso menos preocupação de compras, não esqueça, a gente nasce nu e não se enterra de chapéu.
Mas, enfim, esse era assunto acabado. Precisavam levar as duas para os nascimentos. Memória e Cariciosa embarcaram na gôndola. Manualdo com as rédeas e Ogum sentado ao lado. As crianças chorando na volta. A carroça atolada no valo das águas de esgoto. Um rego da terra que se encarrega da água fedida.
O Ícaro não dava conta de puxar a carruagem.
Os dois homens desceram e juntos com a criançada ajudavam na empurração e animação do bicho. A Cariciosa fez sinal em cruz, a Memória pegou seu colar de contas e parecia conversar com alguém, que não estava ali, mas estava ali. O animal não desatolava a caleça.
O menino Supimpa se aproximou com o cabo do relho nas mãos e enfiou no rabo do Ícaro. O animal empinou depois de anos de abatimento e tolerância. A diligência foi desatolada.
O destino se mudava de lado, o que foi um dia volta a ser de novo e o que será repete o que já foi. Voltas e voltas e o início nunca tem fim.
A vida é cheia de altos e baixos.
Lá se foi o Ícaro a todo galope, já recuperado na importância da missão. O som das patas faiscava pelo caminho. O orgulhoso animal enfeitava seu tropel.
A lua acompanhava a viagem de afobação dos nascimentos, pendurada no alto, entre estrelas e escuridão, mostrava o caminho, clareava assombrações. Até que estacionaram na porta da emergência, o casarão dos nascimentos.
Estava amanhecendo.
Mãe e filha foram separadas.
Maria Cariciosa desapareceu entre as paredes brancas dos segurados do INAMPS. Maria Memória entrou pelas portas da ala reservada à indigência de ajuda. Gritavam pelos corredores, Eu quero ficar com mamã, Eu quero minha filha.
Os dois homens se aproximaram da enfermeira e pediram que as duas ficassem ficar juntas, Senhor, o INAMPS só atende os segurados.
Manualdo assegurou ao sogro que a missão de ambos estava cumprida, até ali, mas reclamava que todo nascimento deveria ser com o pai e a mãe juntos, semeando e colhendo.
Naquele dia, a empilhadeira teve que esperar, Quem é o pai dos nascidos da mãe Cariciosa, Sou eu, a senhora disse mais de um, Sim, um casal, meus parabéns, E como eles estão, Todos muito bem.
A sua preta foi corajosa, Essa mãezinha não deu um ai ai ai. A voz saiu como se fosse uma esfinge, devorava o coração do Manualdo pela boca, dentro da sua garganta.
O tempo passava, mas não passava e a mais velha não se desembaraçava da barriga.
Manualdo e Ogum acordaram com os gritos da Memória. Chamava por Socorro. O pai mais antigo enveredou pelos labirintos, Meu nego, chama a Socorro, Minha preta, não dá, ela é parteira, Quero ir pra casa, Não pode, minha preta, só sai depois de consertada, Ou estragada.
A mulher do Ogum estava deitada em uma maca, empurrada contra a parede do corredor. As dores na árvore velha chegavam com mais intensidade, o tempo da colheita sacudia suas raízes e dobrava os galhos, Minha preta, vou buscar um copo d’água.
Ogum caminhava assustado, por ali, tudo se parecia com um campo de refugiados. Desses que só vemos em fotografia das revistas. Na dobra de uma esquina daquelas paredes brancas ele foi encontrado por Maria Socorro, O que a senhora faz aqui, Estou atrás da minha menina, Como a senhora soube, É o chamado de Deus, Venha comigo.
Quando chegaram no lugar marcado, Maria Memória tinha sumido. Restava a maca vazia, Minha preta, Calma, meu sogro, Onde está a Memória, Aqui.
O Manualdo armou confusão na ausência do mais velho. Exigiu que a Avó dos gêmeos fosse melhor tratada. Parece que as coisas não mudam, boa educação não funciona em correria de emergência, gritos e um bom barraco acordam funcionários que deviam estar atentos à humanidade dos humanos.
Quando entraram no quarto, onde as gestantes filantrópicas esperavam pelos trabalhos, Maria Memória exclamou entre choros, eram as lágrimas que tinham restado para cantar, Socorro, ajuda meu bebê, Calma, minha filha, estou aqui para ajudar em nome do Nosso Senhor, Minha Socorro, como você demorou, Vim a pé. E começou a cantar canções de conforto do candomblé que desfez a zanga da Memória, ela sabia que cantiga velha valia a pena entoar, mas as cantigas da África soam mágicas, como todo mundo que já foi criança, Que Oxalá e Iemanjá nos abençoe
Ori, ori axé,
Axé ori ô!
Odoiá!
A parteira Socorro não tinha pressa, deixava a natureza agir, mas não arredava o pé do alcance dos olhos e das mãos. Estava ali, para proteger aquele que nascia da mãe. Sempre foi assim e será sua vida inteira.
Os dois homens foram mandados sair, Isso não está certo, O que foi, Manualdo, Meu sogro, na hora da colheita, a mãe e o pai tem que estar junto, Bobagem, não sinto necessidade. O rapaz olhou o outro, resmungou que voltava para sua Cariciosa e os gêmeos, mas qualquer necessidade de ajuda bastava chamar.
Nas passagens da enfermeira, as gestantes metiam a Socorro em esconderijo. Quando a curiosidade da mulher doutora sumia pelos corredores daquela hotelaria infame, a Socorro reaparecia com suas cantigas e histórias. Tinha voz iluminada, Minhas filhas, vocês sabem que as parteiras são mencionadas na Bíblia, É, a exclamação de dúvida foi conjunta, Queremos ouvir, e aquelas mulheres relegadas ao atendimento filantrópico, caridoso sem carinho, ficaram atentas para ouvir da experiência que ensina, O Faraó do Egito disse às parteiras dos hebreus, Sifra e Fuá: ’Quando ajudardes as mulheres dos hebreus a darem a luz, olhai o sexo das crianças. Se for um menino mate-o. Se for uma menina deixe-a viver.’ As parteiras, porém, temiam a Deus. Não cumpriram aquelas ordens do rei do Egito lhes ordenara e deixaram os meninos viverem. Então, o rei do Egito lhes convocou e disse: ‘Por que fizestes isso e deixastes viver os meninos?’ As parteiras responderam que as mulheres dos hebreus não são como as egípcias; são cheias de vida, antes da parteira chegar já deram à luz. Deus tornou as parteiras eficazes e o povo se multiplicou e se tornou bem forte.
No final da história, Memória fez sinal que havia chegado a hora, O nosso Deus é grande e o mundo é largo, que seja uma boa hora, Amém.
A parteira largou as atenções das histórias e passou a comandar de maneira metódica os momentos que se vieram, um a um, Preciso de lençóis e toalhas limpas, Deixa pra mim, Alguma de vocês pode diminuir a claridade do quarto, Eu dou um jeito. Logo, aquela que foi na procura de panos limpos estava de volta, arrastava os pés e caminhava com as pernas abertas, Chega, Está ótimo.
Todas fizeram silêncio, Socorro e Memória faziam conversa de oração, tudo passa pela calma do coração e clareza da mente. Socorro pediu que a Memória ficasse de cócoras. Duas das companheiras de quarto estavam amparando-a pelos braços, a parteira ficava de frente com as mãos na forma de bacia aparando o bebê.
Começou o nascimento, Isso menina, um pouco de força, Ai, Outro tanto de coragem, Ai, Ele quer vir para nós, Ai, Mais um pouco.
Todas observavam e rezavam, tudo estava entregue nas mãos de Deus e daquela mãe antiga, Ai, Tudo bem, descansa.
Essa Socorro era a única que faria Memória descansar em tempo de nascimento. Um andamento extraordinário da vida, cheio das esperanças que fazem uma mulher seguir em frente, pisando em brasas e a alma retorcida, Ai, Eu já estou sentindo o nosso bebê.
Senhora de respeito e reconhecimento nas dores de cada uma. Não perdoava o cansaço e os desvios dos tolos que preferiam os atalhos das epidemias de cesáreas, gente faminta de lucros, Ai, Ele está vindo, minha menina, ele está vindo.
Aquele que vem em nome do amor deveria ser bem recebido, sem açodamento, Ai, Mais um pouco, assim, menina. Um pouco mais de força e tudo se faz de novo, Ai, minha mãe, Ela chegou.



quinta-feira, 16 de junho de 2011

As hienas e os buracos

Outra história sobre árvores e homens

baitasar

Outra história da mesma história, outro arranjo. Nada é apenas de um jeito ao redor da fogueira, é um lugar de muitas memórias brotando com outras aparências de viver e morrer. Não têm dono porque estão dentro de cada um. São para sempre, enquanto existir o fogo. É preciso compreender os segredos das estrelas, é preciso entender o silêncio dos homens, mulheres, fantasmas, vagando assustados com as gargalhadas das hienas, enquanto esquecem a língua das plantas e animais. Entediados, viram hienas que se desaprendem, tornam-se guardiãs impiedosas do fogo, calam a todos, impõem as suas histórias do medo, juram viver pela existência do bem em todos. Fingidas.

As árvores arrancadas da praça com chafariz deixaram muitos buracos insepultos e um desaparecido. Denunciaram a submissão dos homens ao coveiro. Feridas abertas de um tempo com fartura de medo, palmatórias, socos, empurrões, pancadas, tudo no mal-intencionado pau-de-arara. Um tempo de vendavais varrendo as folhas da alegria, garis de capacete e baionetas. Os cruzados matavam em nome do pai, torturavam em nome do filho e ameaçavam em nome das almas piedosas. Penadas.

As hienas queriam os responsáveis, Culpados do quê, chefe, A grama sumiu, chuparracha, gente desaparece, mas grama... não, gritava o alcaide da zona da segurança. Chefe nomeado pelo General, para defender a cidade do avanço comunista, Buracos não crescem, não afundam sem o uso da pá e da enxada. Era um homem em agitação, precisava acabar com a história custasse o que custar, Buracos não são criaturas vivas, quero os culpados. As hienas na sua volta babavam e sorriam. Eram da confiança do alcaide, e por lógica, íntimos do General. Quarteladas.

O problema com os buracos era a resistência dos buracos, o alcaide não aceitava nada que lhe amarrasse às vontades, Levem o caminhão e o trator, escondam os buracos. Carregar terra e encher os buracos foram as ordens. Passavam o dia assim, transbordando de terra o vazio do chão de dentro. Na manhã seguinte, os chãos tinham se afundado mais um tanto, os buracos estavam maiores. Parecia que durante a noite, seja o que for que tivesse nos subterrâneos, era alimentado por todo aquele entulho do caminhão, Merda, quanto mais tentamos esconder, mais cresce o chão abaixo. Esburacadas.

Os funcionários da pá e enxada reclamavam a repetição do serviço e sua inutilidade, Por que não deixam pra lá, isso se resolve pela natureza, Jeito inútil de fazer um trabalho inútil, não leva a nada, Quem manda, melhor faz. A hiena capataz precisava acabar com o falatório subversivo. Manda trocar os malcontentes. Desvia os assalariados para o carregamento. Promove os carimbados pelo ferro frio, escolhidos no dedo para aquele serviço de risco e repetição inútil, A negrada das cadeias. Destemidos, Povo sem serventia e desnecessários, Muito bem pensado, senhor, Desses aí, ninguém reclama desaparecimento, Caso se pergunte, saíram de viagem em navio negreiro. Caíram nas gargalhadas, como as hienas quando avistam a presa indefesa, querem assustar e avisar o bando. Negadas.

A proposta era boa, como disse o capataz hiena, É fazer o recheio da buracada ou apodrecer no buraco da prisão.

Saíram na primeira luz do dia. Carregados em gaiolas para dias inteiros de trabalhos. O caminhão ia e voltava com terra de aterro. E homens negros com enxadas, pás e picaretas esparramavam as ruínas. Nada muito diferente da enxada, do pilão ou moenda de carne, sempre no serviço do patrão. Os donos da chibata continuavam duros e cruéis, apenas o chicote mudou e virou espada de borracha. Chibatadas.

No caminhão, fazendo caminho de volta, o preto mais velho, fez juízo daquele costume de estragar o chão, sentença de morte, A terra geme de doença, precisa de benzedura, Isso não adianta, velho, essa gente só enxerga o que vê com as vistas, Traria serenidade ao terreiro uma oferenda de respeito ao guerreiro das matas, Oxóssi, com cabrito, coelho e milho, pedir sua proteção, Já ajudava perfumar o lugar, É cheiro da morte,guri, Velho, é preciso muito feitiço pra desenfeitiçar a terra, Tem mais urgência desenfeitiçar o coração. Ofertadas.

Recebem ordem para calarem a boca. Retornam ao silêncio. Homens negros e mulheres negras de muitos tempos encontraram na religião motivo de reencontrar suas histórias, seguirem suas vidas vigiadas pelo patrão ou sentinela, não importava. São sempre aguardados com medo, a desconfiança da dominação; desprezados com arrogância, o preconceito que não tem sentido além do ritmo próprio do ódio. Negrada.

Na manhã seguinte, o alcaide recebe as notícias da praça esburacada, Ficou pior, chefe, Porra, me chamem o Antena. Não eram ordens, mas sentença de extermínio. Ali mesmo, decretou lei marcial na praça, Quem entrar sem autorização... morre. Quando a hiena da polícia secreta chegou, a ordem dada foi simples, Vá, descubra o que acontece e tome as decisões necessárias. A hiena secreta não carregava consigo nenhuma pergunta.

O submundo da vila Boa Esperança morria a céu aberto. Quem não tem o necessário à vida de fartura precisa resistir, enquanto morre. O polícia secreto Antena vigiava com olhos caçadores, a hiena e os ferimentos da terra.

Na tocaia encontrou os comandos militaristas. Todos em campana para acabar com o conflito campesino. Estava desencadeada a Operação Sendor. A missão era descobrir quem impedia a cicatrização das mágoas da terra. Buracos derrubados para dentro. Engolidos, Comandante, precisamos acabar com essa bobagem de terra ofendida, Senhor Antena, essa gente não tem terras de superfície, então, está roubando as terras de baixo, Com que intenção, E vagabundo precisa de intenção, A reforma agrária, Reforma agrária de merda alguma, esses comunistas vão levar chumbo.

Tudo sempre foi dividido desigual entre os desiguais, É isso rapaz, vagabundo só no cacete, Ainda não chegou o tempo do poste mijar nos cachorros, Bem dito, soldado.

Estavam de tocaia. Café. Resistência. E o fuzil na mão.

Seis homens e um destino, prontos para o sinal de atacar. Feras enjauladas. Perseguindo. Impressionando. Importunando. Castigando. Torturando. Matando. Gladiadores. Elmos. Granadas. Pederneiras. Escudos. Espadas de borracha. Zumbis adestrados com cuidado para o uso da força desmedida e violenta, Somos necessários para sua segurança.

As primeiras noites de campana foram ansiosas pelo enfrentamento.  Precisavam do choque com a multidão desautorizada de caminhar na praça. O tempo ocioso do pensamento anulava a vontade, cresceu o sentido desnecessário de tanta cautela, Quando chega a ordem de ir para cima... eu vou, mas sei que os caras do outro lado vão reagir, Todos ficam feridos. Os soldados rasos olhavam uns aos outros, diminuiram na euforia. Sabiam que ordens são para cumprir. Dever do ofício. Aquilo que é necessário ser feito, é feito. Paus mandados. Aliás, pão mandado não tem cara.

A madrugada prometia um frio intenso que o nevoeiro anunciava. Tudo ficou branco. A missão de espiamento estava comprometida. O comandante baixou ordem de silêncio. Olhos e ouvidos atentos. Dedo no gatilho.

As têmporas latejavam.

Os olhos perderam serventia, era preciso as orelhas e a coceira no gatilho. Estopim da falta de raciocínio. O comandante apurava o sentido do nariz, sentia cheiro de vagabundo na distância.

Passos descuidados brotaram no nevoeiro. Prestavam atenção com as orelhas. Apertavam as vistas. A tensão lhes aumentava os ânimos, Quietos... já tenho na mira.

A cegueira não via além, estava cega. A ordem de manter o silêncio foi levada ao limite do medo e do desejo de agir, Seja o que Deus quiser, O meu dedo só aperta com ordem, E se a ordem não chega, Sempre existe uma ordem, Alto lá, identifique-se. Nada.

Os passos não se intimidaram. Arqueiros e artilheiros levaram suas armas aos ombros, em mira, Alto lá, identifique-se. E nada. Os dedos começaram de coceira, acariciavam o metal disparador. Um passo depois o outro. O comandante solicita autoridade de reagir, Senhor Antena, precisamos tomar posição, Calma, comandante, O inimigo toma as melhores disposições, as nossas perdas vão ser elevadas, Qual o plano, Entrar atirando, Não, só um tiro, Um tiro, Isso mesmo, apenas um tiro, Vou ver como resolvo isso.

O comandante chamou seu melhor atirador, Um tiro só, Merda, à noite todos os gatos são pardos, Então não tem risco de errar. O homem fechou os olhos e a mira foi conduzida pelos passos no chão agonizando. Não respiravam. O dedo e o metal do gatilho eram um só. Não coçavam mais.

O barulho da pólvora rasgou os segredos do nevoeiro e abriu a boca da noite. O corpo caiu. Entraram na praça nevoenta atrás do disparo. Pronto, acharam. Estava ali, aos pés da grande cruz de madeira. Um furo entre os olhos. Um cavalo miserável. Perdido no fogo cruzado, Por isso não se identificou, ele não fala, Merda, O que foi, senhor Antena, Limpem tudo... desapareçam com o corpo, Onde, Joguem no mar... enterrem... sei lá, Vamos enfiar num dos buracos da praça, Muito bem, dá menos trabalho, Isso, defunto não enjeita cova, Com sorte vira jatobá, Esse ninguém reclama.

Tempos de chumbo.