segunda-feira, 23 de janeiro de 2012

Acaba em desforra : General Calçacurta


Minha desforra!
baitasar 

Quando entro no corredor, o quarto de Moriá está dormindo. Ouço ruídos e fico assustada, a casa não dorme. Penso em chamar Himineu. Desisto. A curiosidade me faz ir em direção aos murmúrios. Passo pelo quarto da Moriá, está em silêncio e escuro. Talvez intrusos que estão no térreo. Aproximo-me do parapeito e olho para baixo. Ninguém. Penso que sou uma louca.
Decido descer. Meus passos não são fortes. Estão indecisos. Tudo está envolto na penumbra da madrugada.
No meio da descida, os barulhos no quarto do guardião chegam mais fortes e decido seguir.
Faço olhar de espiã através da porta entreaberta.
Himineu está todo enfiado na Moriá.
Essa putinha sem-vergonha, pelo visto só tem a perna mais curta, o resto está tudo no lugar.
Tenho vontade de entrar e aos gritos mostrar meu ódio.
Bem feito pra mim.
Olho para ele, ali.
Cedo a minha vontade de contemplar de perto.
Vou em direção daqueles dois e me convido. Não sou recusada
─         Soldado filho-da-puta deixa a guria em paz!
Jogo a faca do faqueiro no chão e sinto quando ele me entra sem oposição.
O corpo do soldado me deixa estendida no chão. Não quero desmontar da montaria empinada. Adoro encenar essa cavalgada.
Sou a mulher mais promíscua deste Continente.

Está tudo pronto para o desaparecimento físico do morto. Não escuto choro, nem vejo lágrimas. Gente durona. Recolho a bandeira que cobria o caixão. Eu e o Jacaré fazemos as dobraduras oficiais do lábaro estrelado, com toda a pompa que o momento merece, e o entregamos à viúva. Todos estão visivelmente emocionados, mesmo sem o fausto da salva de tiros e toques de clarin. Alguns dirão que as honras foram feitas meio às escondidas. Outros vão jurar que estamos provocando com tanta ostentação solene. Na verdade, quero que tudo se acabe logo. E que os segredos do General se fiquem engavetados com ele. Tudo se encaminha para o sepultamento. Até mesmo aqueles comunistas enraivecidos estão a se dispersar aos poucos.
O general-de-exército em pijama pede o uso da palavra. Sinto o meu próprio murmúrio de descontentamento
─         Merda.
Não posso nada, nem aconselhar que a hora não se põe a favor das palavras provocativas. Não sei o que pode ser feito além de escutar
─         Amigos, cansei. Hoje, estamos mais desprotegidos, mais a mercê destes baderneiros porque homens como o General se foram, nos traíram morrendo e deixando os vivos na servidão desta caravana de bestas domesticadas para tração e carga. Estamos a serviço desta gentalha, eles fazem qualquer coisa por um prato de arroz e feijão — o cadeirante para e retoma o fôlego — O nosso sonho não acaba por aqui, estamos abertos a adesão de pessoas e entidades. Não fazemos convites e a ideia é contar com a iniciativa de cada um. Não priorizamos ninguém...
De repente, três disparos de pistola
─         Bang, bang, bang!
Uma correria incontrolável tem início. Os cartazes e as faixas são deixados para trás. As pessoas caem umas por sobre as outras. O cortejo foge em debandada desorganizada, é o salve-se quem puder, cada um que cuide de si. As cruzes cravadas são derrubadas. Ninguém é de ninguém. A capela é invadida. O sacristão da confiança do General sumiu na correria, era o homem encarregado da guarda da sacristia e da arrumação dos jardins da capela dominical, desde guri. Nomeado pelo próprio General, sem direito a vetos. A última vez que fora avistado, dizia aos gritos que o tempo dos acertos de contas estava chegando. Até sumir na multidão, corria com a batina vermelha erguida pelas mãos até a cintura, pedia socorro contra os diabos vermelhos. Tenho dúvidas se o General não sentiu as velhas vontades de sacar suas armas e sair atirando a esmo. Bem no seu feitio de espalhar aglomerado de gente. Afinal, era uma figura mista, ainda metade deste lado, mundo dos vivos, e a outra metade do outro lado, dos fantasmas e da visagem de alma dos mortos.
Assim, o cortejo se dispersa aos gritos
─         Os comunistas estão atacando!
─         Meu Deus, o que vai ser de nós?
─         Fujam, corram para seus carros!
—        Tenho armas na cobertura... me sigam!
O anfiteatro dos mortos foi vitimado por vivos, mortos de medo. Todos correm do mesmo receio: morrer. No condomínio das gavetas, os mortos se debruçavam sobre seus ossos e apreciavam o descontrole, tinham um pequeno sorriso nos lábios desossados
─         Eles voltaram, eles voltaram!
─         Os companheiros estão caindo!
Todos estão tombando, de um jeito ou de outro.
Olho para o lado e vejo o Jacaré encilhando a sua arma
─         O General merecia a sua salva de tiros.
Fala de um jeito que parece estar sacudindo os ombros com indiferença. Não lhe importa o que pensamos dos tiros dados para o alto
─         Jacaré, você devia ter avisado.
─         Não tinha intenção nenhuma, foi tudo espontâneo.
─         Veja a confusão que você arrumou.
─         Deixa prá lá, a gente só lembrou que ainda temos as armas.
Os que ficaram terminaram a cerimônia
─         'Urra! Urra! Urra!', grito de guerra puxado por mim, seu fiel escudeiro.
Erguemos o ataúde do chão e o encilhamos no buraco da parede. Com um ruído arrastado empurramos o General para dentro do sepulcro. O emparedador vem com sua colher de pedreiro e um balde de argamassa. Com movimentos rápidos e controlados lacra a abertura. As coroas são penduradas em pequenos ganchos, outras ficam depositadas no chão. Tudo em silêncio.
As pessoas se retiram depois do tumulto esfumaçado e o tapamento da. Acabara a farra. Estou desnorteado. Minha farda não tem qualquer uso de finalidade militar. Pensando melhor, a minha fantasia só foi de utilidade para deixar as pessoas amedrontadas. Agora, eu estou com medo. Quero sair dali e respirar diferente, mas aguardo até todos se irem. A missão ainda não havia terminado. Olho para o Jacaré e nos despedimos com um pequeno aceno de mãos. Ele dá meia-volta e se afasta perdido entre as pessoas do povo. O seu uniforme vai aos poucos se parecendo com as roupas paisanas.
Sou o último.
Estou na deriva
─         Himineu, Himineu.
Estendo os olhos para trás. A viúva me chama
─         Sim, dona Clara?
─         Você não vai com a gente?
─         Isso mesmo, mamãe, eu tenho medo daquele casarão assombrado.
─         Senhora, não sei o que vou fazer.
─         Nos leve e fique descansando até tomar alguma decisão.
Caminhamos lado a lado, Moriá a nossa frente. Nossas mãos se tocam em outro gesto voluntário. Levo as minhas ao bolso das calças
─         O que você achou?
─         Sobre o quê, dona Clara?
─         Do desaparecimento do bigode.
─         Que bigode?
─         O bigode do General.
─         Não sei, foi uma surpresa, mas sei lá, depois acostumei.
─         Fui eu.
─         A senhora?
─         Isso mesmo.
─         Por quê?
─         Minha desforra! Ele vai passar a sua eternidade sem os cheiros que carregava abaixo do nariz.

Ricardo Queiroga

SONHOS 



OS AFOITOS E DESPREPARADOS PENSARIAM LOGO EM COME-LOS
OS REFLEXIVOS E PROFUNDOS VIAJARIAM EM SEUS DESEJOS
QUEM NÃO OS TEM VIVERÁ AMARGURADO E SISUDO
QUEM OS IMAGINAM VERÁ SEMPRE UM SENTIDO EM TUDO


PARA OS SONHOS NÃO TEM LIMITE NEM PREÇO
BASTA FECHAR OS OLHOS E TRANSCEDER O CORPO
PERCORRA DETALHES E SENSAÇÕES SEM TROPEÇOS
DEPOIS VOLTE E CONSPIRE COM A VIDA PARA MATERIALIZA-LOS


EM SEUS SONHOS ESCOLHA O QUE E QUEM VAI ACOMPANHA-LO
COM OU SEM PERMISSÃO , VIAJE, PODE ATÉ USA-LO
MAS NUNCA ESQUEÇA A REALIDADE, EXISTA E VIVA
ELES NÃO PODEM SER A RAZÃO QUE NUNCA SE CONCRETIZA




DESNUDAR


OLHA E ENXERGA
A APARÊNCIA NÃO É O PENSAR
O INTERNO NÃO SE EXPRESSA
É DIFÍCIL SE ENTREGAR


A FALA NÃO É O REAL
HÁ DISTÂNCIA NO SENTIR E PRATICAR
O CONCRETO ESTÁ NO INCONSCIENTE, ESPECIAL
QUEM INTERPRETA TEM QUE DECODIFICAR


COM ANÁLISE ATENTA
DO PERCURSO A SE PERSONALIZAR
TIRANDO DESEJOS, SENTINDO O QUE REPRESENTA
REFLETINDO SENTIMENTOS NO FORMAR


CONCEITUA NA SOMA
DISCERNINDO RESULTADO E TENTAR
VONTADE NUNCA FALTA
MAS É RARO DESNUDAR

domingo, 22 de janeiro de 2012

XXII - General Calçacurta

Essa gente não sabe lamber as feridas em silêncio
baitasar

Eu e o Jacaré nos olhamos, estamos acertando o andamento pra sepultar o General. O Cemitério do Arrependimento.

A situação tornou-se irrefreável. O ruído das pessoas que estão do nosso lado são as suas vontades de gritar e balançar as mãos pra que todos voltem, sigam pra suas casas. Um dos carregadores da alça de caixão, devidamente pago com horas-extras, me chega por trás e segreda

─         Esse povinho tem muitas cabeças e nenhum miolo.

Continuo controlado.

Num dado momento, aqueles comunistas desgraçados começam a cravar cruzes brancas pelo campo verde daquela alameda amarelada com folhas mortas. Carregam uma faixa

(Desaparecidos políticos desde 1964)

Ficaram mudos, não xingam, não gritam, apenas vazam o gramado com suas cruzes. O cortejo segue em passos lentos e graduais, as ordens são pra não acelerar nada. O General nunca correu em vida e, por certo, não vai querer correr depois de morto. Enquanto vou lendo aqueles nomes minha memória de motorista de prostíbulo não me faz dizer nada. Percebo que o general-de-exército tem ganas de sair passando por cima de todos empunhando nosso estandarte, mas a cadeira de rodas o prende. As suas pernas imprestáveis, as suas mãos agarradas e enterradas na madeira da cruz fazem um último ataque: atira o estandarte naquelas cruzes fincadas na carne da terra.

Vamos caminhando e os nomes vão sendo cravados

(Adriano Fonseca Fernandes Filho – 1973/Araguaia, Aluízio Palhano Pedreira Ferreira – 1971, Ana Rosa Kucinski Silva – 1974, André Gabois – 1973/Araguaia, Antônio “Alfaiate” – 1974/Araguaia, Antônio Alfredo Campos – 1973/Araguaia, Antônio Carlos Monteiro Teixeira – 1972/Araguaia, Antônio Guilherme Ribeiro Ribas – 1973/Araguaia, Antônio Joaquim Machado – 1971, Antônio de Pádua Costa – 1974/Araguaia, Antônio Teodoro de Castro – 1973/Araguaia, Arildo Valadão – 1973/Araguaia, Armando Teixeira Frutuoso – 1975, Áurea Eliza Pereira Valadão – 1974/ Araguaia, Ayrton Adalberto Mortati – 1971, Bérgson Gurjão de Farias – 1972/Araguaia, Caiuby Alves de Castro – 1973, Carlos Alberto Soares de Freitas – 1971, Celso Gilberto de Oliveira – 1970, Cilon da Cunha Brun – 1973/Araguaia, Ciro Flávio Oliveira Salazar – 1972/Araguaia, Custódio Saraiva Neto - 1974/ Araguaia, Daniel José de Carvalho – 1973, Daniel Ribeiro Calado – 1973/Araguaia, David Capistrano da Costa – 1974, Denis Antônio Casemiro – 1971, Dermeval da Silva Pereira – 1974/Araguaia, Dinaelsa Soares Santana Coqueiro – 1973/ Araguaia, Dinalva Oliveira Teixeira – 1973/Araguaia, Divino Ferreira de Souza - 1973/Araguaia, Durvalino de Souza – 1973, Edgar de Aquino Duarte – 1974, Eduardo Collier Filho – 1974, Elmo Corrêa – 1974/Araguaia, Élson Costa – 1975, Ezequias Bezerra da Rocha – 1973, Félix Escobar Sobrinho – 1971, Fernando Augusto de Santa Cruz Oliveira – 1974, Gilberto Olímpio Maria – 1973/Araguaia, Guilherme Gomes Lund – 1973/Araguaia, Heleni Pereira Teles Guariba – 1971, Helenira Rezende de Souza Nazareth – 1972/Araguaia, Hélio Luiz Navarro de Magalhães – 1974/Araguaia, Hiram de Lima Pereira – 1975, Honestino Monteiro Guimarães – 1973, Humberto Albuquerque Câmara Neto – 1973, Idalísio Soares Aranha Filho – 1972/Araguaia, Ieda Santos Delgado – 1974, Isís Dias de Oliveira – 1972, Issami Nakamura Okano – 1974, Itair José Veloso – 1975, Ivan Mota Dias - 1971, Jaime Petit da Silva – 1973/Araguaia, Jana Moroni Barroso – 1974/ Araguaia, Jayme Amorim de Miranda – 1975, João Alfredo – 1964, João Batista Rita Pereda – 1973, João Carlos Haas Sobrinho – 1972/Araguaia, João Gualberto – 1973/Araguaia, João Massena Melo – 1974, Joaquim Pires Cerveira – 1973, Joel José de Carvalho – 1973, Joel Vasconcelos dos Santos – 1971, Jorge Leal Gonçalves Pereira – 1970, José Francisco Chaves – 1972/Araguaia, José Humberto Bronca – 1973/ Araguaia, José Lavechia – 1973, José Lima Piauhy Dourado – 1973/Araguaia, José Maurílio Patrício – 1974/Araguaia, José Montenegro de Lima – 1975, José Porfírio de Souza – 1973, José Romam – 1974, José Toledo de Oliveira – 1972/Araguaia, Kleber Lemos da Silva – 1972/Araguaia, Líbero Giancarlo Castiglia – 1973/Araguaia, Lúcia Maria de Souza – 1973/Araguaia, Lúcio Petit da Silva – 1974/Araguaia, Luís de Almeida Araújo – 1971, Luís Inácio Maranhão Filho – 1974, Luiz Renê Silveira e Silva – 1974/Araguaia, Luíza Augusta Garlippe – 1973/Araguaia, Lourival Paulino – 1972/Araguaia, Manuel José Murchis – 1972/Araguaia, Márcio Beck Machado – 1973, Marco Antônio Dias Batista – 1970, Maria Augusta Thomaz – 1973, Maria Célia Corrêa – 1974/Araguaia, Maria Lúcia Petit da Silva – 1972/Araguaia, Mariano Joaquim da Silva – 1971, Mário Alves de Souza Vieira – 1970, Maurício Grabois – 1973/Araguaia, Miguel Pereira dos Santos – 1972/ Araguaia, Nélson de Lima Piahuy Dourado – 1974/Araguaia, Nestor Veras – 1975, Orlando Momente – 1974/Araguaia, Orlando Rosa Bonfim Júnior – 1975, Osvaldo Orlando da Costa – 1974/Araguaia, Paulo César Botelho Massa – 1972, Paulo costa Ribeiro Bastos – 1972, Paulo Mendes Rodrigues – 1973/Araguaia, Paulo Roberto Pereira Marques – 1973/Araguaia, Paulo Stuart Wright – 1973, Paulo de Tarso Celestino da Silva – 1971, Pedro Alexandrino de Oliveira – 1974/Araguaia, Pedro Inácio de Araújo – 1964, Ramires Maranhão do Valle – 1973, Rodolfo de Carvalho Troiano – 1974/Araguaia, Rosalindo Souza – 1973/Araguaia, Rubens Beirodt Paiva – 1971, Rui Carlos Vieira Berbert – 1971, Rui Frazão Soares – 1974, Sérgio Landulfo Furtado – 1972, Stuart Edgar Angel Jones – 1971, Suely Yomiko Kanayama – 1974/Araguaia, Telma Regina Cordeiro Corrêa – 1974/Araguaia, Thomas Antônio da Silva Meirelles Netto – 1974, Tobias Pereira Júnior – 1974/Araguaia, Uirassu de Assis Batista – 1974/Araguaia, Vandik Reidner Pereira Coqueiro – 1973/Araguaia, Virgílio Gomes da Silva – 1969, Vitorino Alves Moitinho – 1973, Wlaquíria Afonso Costa – 1974/Araguaia, Walter Ribeiro Novais – 1971, Walter de Souza Ribeiro – 1974, Wilson Silva - 1974)

─         Meu Deus deixem os mortos como estão... mortos!

─         Isso é bobagem Chupa-racha, muitos destes aí já apareceram...

─         Mortos, General!

─         Mas apareceram...

—        General!

—        Outros foram para Portugal ou ficaram no jatobá.

—        General... nenhum arrependimento — sussurro que é sua última chance de contrição — Se essa gente tivesse ficado em casa e deixado a revolução para os milicos: estavam criando os netos!

Não sei o que me acontece, talvez o cansaço da noite sem dormir esteja cobrando seu preço, sei lá, não estou sentido minhas pernas e braços, e uma loucura qualquer me faz ver uma procissão. Caminham todos vestidos de preto. As mulheres levam um véu sobre a cabeça e os homens estão cobertos por um capuz. Marcham e cantam de cabeça baixa. Não entendo o que dizem, mas minha atenção está toda voltada pra seus cânticos fúnebres. De repente a manhã escurece e fica fria, sinto o desconforto atravessando meu corpo. Procuro com os olhos pelo Jacaré, mas ele está perdido na aglomeração do bando. A ladainha aumenta. Quero apressar meus passos, mas não consigo. Estamos marchando pelo descompasso daquele ritual de orações curtas e respostas repetidas. Direita, direita, esquerda. Quando as mulheres retiram seus véus e os homens arrancam os capuzes, vejo que são apenas caveiras que têm no lugar das cabeças. São apenas ossadas em vestimenta de luto.

Tenho vontade de largar o caixão do General e gritar para que se vão e aceitem que enterremos o nosso morto em paz

─         Chupa-racha, faça alguma coisa!

─         Calma, General.

─         Chupa-racha, nada de vexame e fraqueza!

─         Mas General...

─         Rapaz, todos foram perdoados por que esse ódio todo?

─         É gente que não sabe lamber as feridas em silêncio.

A ladainha de gritos e lamentos tristes, chorando os mortos não acaba. Ao redor do fogo uma vasilha bojuda de metal com bico e tampa geme a dor da quentura da água, são inevitáveis as dores da chaleira e a angústia nos vivos.

O dia fica camuflado sob o véu da noite: desaparece de susto, fica metido em algum canto de olhos fechados, não tem gosto de ver os mortos saindo do sono das gavetas. Os morto-vivos emergem das covas da terra como raízes desabrochando. Brotam por todos os cantos. Árvores mortas de flores ou folhas. Secas e marrons. Espinhentas. O jatobá lança as suas folhas pra todos os lados e geme a dor da dor.

A voz dessa turba se torna insuportável pra pessoas de bem — Essa raça de mortos — não são mais que lembranças maltratadas. Desmanchadas. Ordeno que parem. Não obedecem e se aproximam arrogantes. Sinto o cheiro podre daquelas carnes. Escuto o rangido dos ossos.

Como um hábito, começo a contagem dos desaparecidos. Tenho a mania da conferência. São muitos. Desisto de medir os descarnados, não tenho jeito de contar na rapidez em que brotam.
Avançam juntos, perfilados em passo de ganso. Em frente, direita, esquerda, direita, esquerda, olhar à direita

─         Alto!

Estão aqui, um ao lado do outro e o outro atrás do um. No meio da tropa ecoa uma ordem

─         Fora daqui!

Já não tenho as alças do General nas mãos, começo minha retirada entre as cruzes e os mortos. Outra ordem

─         Debandar!

Agarram e atropelam, sou jogado como uma bola. Começo a reagir com as mãos e os pés. Abro caminho com tapas e pernadas. Não tenho como correr. São muitos e continuo cercado: empurrado de costas pro lago. Viro a cabeça e vejo os cisnes deslizando sobre as águas. Elegantes. Delicados. Fingem que não sabem o que me acontece

─         Essa coisa de fingir você entende...

─         Bem observado, senhor Paiva.

Esfrego os olhos e teimo em deixá-los abertos, jamais dormi na sentinela. Viro as costas às ossadas e na beirada do lago penso em fugir

─         No dorso de um cisne, quem sabe?

Olho pro chão e não vejo meus pés. Foram enterrados naquelas bordas. Afogados. Dobro meu corpo e desato as cordas das botas, preciso me libertar e fugir. Afundo mais um tanto.

Olho pelo canto do olho e vejo os cisnes se aproximando. Deslizam ansiosos pelas águas agitadas. Mergulham suas cabeças na água e quando reaparecem não são mais cisnes, mas os mortos da ilha Madalena, afundada desde o primeiro dia do nosso golpe de milicos e manobristas traiçoeiros. As memórias passadas estão voltando, querem a sepultura da verdade

─         Alguém lhes diga que foram os cadáveres necessários!

—        Necessários pra quê, assssino!

Chegam da retaguarda caminhando sobre as águas, abandonaram a renúncia paciente.

Ali, enquanto estou dobrado sobre as botas, a escuridão é rasgada por um feixe luminoso branco e irreal, sou refletido no espelho do lago, mas é o General Calçacurta que passa a existir. Sou o homem de bigodes fartos e mão pesada. Eu sou ele.

Ergo o corpo do General e encaro os maltratados. Mesmo cansados e sem rosto ainda resistem. Não se assustam mais, já perderam tudo.

O General Calçacurta vive e me tornei a carne que o sustenta. Não morre enquanto estou vivo. Meu corpo é sua vida.

A ladainha aumenta.

A viúva... onde está a menina... — General, perdi-me das duas!

Avançam sobre o Calçacurta. Arremessam-se contra mim. Arrancam aos dois do atoleiro e nos transportam sobre suas cabeças. Vamos carregados de mãos em mãos.

Arrancam meus pedaços e comem o General. Vou perdendo partes e o outro vai sendo engolido. É tirado de mim, pedaços por pedaços e grita ordens de resistir e atacar

─         Atacar quem, General?

Arrancam um braço inteiro, perco uma das pernas, outro braço, outra perna. Assisto minha morte ali, em pé, sou uma sentinela que não dorme. Não fecho os olhos.

As ossadas insaciáveis retomam suas carnes de gente.

Olho para os rostos: foram tão jovens... quanto desperdício de vidas.

Voltaram pras despedidas.

O General devorado sorri, ele vive na lembrança de cada desaparecido

─         Estou por aí, Chuparacha...

─         Foda-se, General!

─         O que é isso, soldado!

─         Enchi o saco!

─         Soldado... Sentido!

─         Vai à merda! Morri por nada e deixei morrer por menos, ainda.

Deito na sombra do jatobá com um fiapo de grama no canto da boca.

Um pequeno sorriso me escapa e sai pulando pelos seus galhos...

Levanto, a obrigação é maior que a minha consciência e volto à ficção de sepultar o General Calçacurta

─         General, me diga, o que aconteceu com esses cravados pelo campo?

─         Guri, eles quiseram brincar de dar tiros, tudo muito amador...

─         O que aconteceu?

─         Muita loucura.

─         E daí?

─         Foram varridos.

Aperto com força a alça do caixão. Pior cego é aquele que não quer ver, mas fica se fingindo de bom moço. Disfarçando que está dormindo, mas espiando com o rabo do olho. O General fora metade homem e metade monstro: gritando, espancando e fazendo os presos perderem o juízo. Eu me distraí com seus encantos e larguei o controle da minha vida. Coisas de guri e homem ambicioso. Agora o filho-da-puta está despencado no abismo inevitável da morte, mas segue repetindo essa conversa mole de guerra e tudo mais

─         Chega, Chupa-racha! Relaxa e goza!

—        General, deveria seguir o próprio conselho: seu discurso é o resumo da obviedade já anunciada durante a sua vida de lorotas e trogloditas. Ficou velho, General!

Eu preciso continuar a viver. Os seus inimigos jurados de morte não são meus inimigos. Aliás, nem tenho vontade de ter inimigos. Não quero bloquear portas nem gastar energias com confrontos: prefiro contornar meus obstáculos sem discutir. Estou aprendendo a amar sem esperar muito dos outros. Sinto a necessidade de um descanso prolongado. Colocar em repouso as ideias. Ficar atirado à sombra de alguma árvore, em lugar longe de divisas ou cercas, folheando algum gibi que me caísse nas mãos. Andar desarmado de qualquer arma. Longe de qualquer caçada. Dar-me uma oportunidade pra recomeçar. Pra mim, isso tudo se acaba quando cimentar o General naquelas paredes que guardam os mortos

─         Chega, general! Relaxa e goza!

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XXI - General Calçacurta

sábado, 21 de janeiro de 2012

Gal Costa

Baby






Baby
Gal Costa


Você precisa saber da piscina
Da margarina, da Carolina, da gasolina
Você precisa saber de mim
Baby, baby, eu sei que é assim

Você precisa tomar um sorvete
Na lanchonete, andar com a gente
Me ver de perto
Ouvir aquela canção do Roberto
Baby, baby, há quanto tempo

Você precisa aprender inglês
Precisa aprender o que eu sei
E o que eu não sei mais, e o que eu não sei mais
Não sei comigo vai tudo azul
Contigo vai tudo em paz
Vivemos na melhor cidade
Da América do Sul, da América do Sul
Você precisa, você precisa
Não sei leia na minha camisa
Baby, baby, I love you

Composição: Caetano Veloso

XXI - General Calçacurta


Vim ajudar a morte
baitasar

Naquela manhã dolorida já havia tomado minha decisão. O tormento estava por terminar ─ Bom dia, Calçacurta! — abro as cortinas e aquele quarto mal iluminado, com cheiro de carne humana podre, se torna claro como a decisão que já tomei
─         E aí, Calçacurta, ainda não vieram trocar as fraldas?
Não responde.
Não quer ou não pode, pouco importa, quase sinto ternura por aquele ali
─         Falta pouco, meu marido.
Botei a propósito esta fina transparência sobre meu corpo nu. A luz me passa e fico nua para aqueles olhos inválidos de contemplação. Isso é o mais perto que vai chegar de tocar e comer alguém, seu filho-da-puta. Estou adorando esta tortura, quase que o espasmo me pega, ele chega dos seus olhos que me perseguem pelo aposento. O ódio mantém muitos de nós vivos.
Hoje, esse tempo termina.
Tenho tudo preparado ─ Hum, Calçacurta, triste fim... hein — respiro profundo e aproximo meu corpo do homem que deixou de ser homem e não se conforma
─         Cheguei para lhe ajudar...
Estou com o travesseiro de penas nas mãos. No derradeiro minuto o General muda as ideias, solta um assopro de ar e se caga todo ─ General, não adianta, levo a incumbência até o fim — muito tarde para mudanças repentinas.
Vim ajudar a morte.
O travesseiro de penas é a última visão da vida de farras e suplícios. Vida dedicada à aplicação do castigo corporal duro, impiedoso, sistemático e calibrado para infligir fundo no espírito e na carne. Possuía tudo do atormentado. Estava abatendo o corpo e não estava lá, mas além, estava no pensamento do torturado
─         Vou esquecê-lo, Calçacurta.— os tempos mudaram de dono — Nunca mais me possuir, nem matar, nem foder a paciência dos outros — as suas artes acabaram, menos violência, menos sangue, menos mentiras, menos merda.
Enquanto seguro o travesseiro de penas, olho para minhas unhas bem vermelhas. Reparo que estão curtas. Tomo a decisão de deixá-las crescer. Como são surpreendentes os momentos que escolhemos para cogitar bobagens em nossa vida. Queria ter um espelho para olhar e ver de mim o olhar.

Durante o andamento do passeio funéreo ouvia palavras de ordem e via cartazes saudando a morte da ditadura. Frases e mais frases
(Abaixo a ditadura)
(A rebelião vai tomar conta do mundo)
(O povo somos nós, abaixo a repressão)
─         Mamãe olha aquele ali, o que quer dizer...
(Brasil, nunca mais espancamentos, torturas, gente desaparecida ou no exílio)
─         Nada, minha filha, são só uns baderneiros! — a viúva parecia intrigar nos ouvidos da filha manca
(Contra a censura)
(Édson Luis de Lima Souto)
─         Mamãe, quem é esse? — apenas mais uma cara e um nome sem sentido, sem memória, sem necessidade de lembrar — Pra quê? Não vai mudar nada! — bem isso, dona Clara, o que se passou é passado
(Bala mata fome?)
─         Não sei, minha filha. Só sei que nunca passamos fome.
(Mataram um estudante, podia ser seu filho)
─         Será que foi dos que papai matou? — o morto para, nunca admitir... negar sempre
(É proibido proibir)
─         Minha filha, não olha — se eu pudesse aconselhar a menina, lhe diria que a dona Clara está certa — Faça de conta que nada aconteceu
(Pai afasta de mim este cálice, de vinho tinto de sangue)
(Não queremos liberdade pela metade)
Aumento a velocidade da marcha, corro o risco de matar alguns dos velhos amigos. Dois ajudantes de ordens do cadeirante empurram o engenho e a cruz das almas. Apenas um não deu conta da missão: empurrar o cadeirante e segurar-se na bengala. Uma retirada de velhinhos.
Não está bem claro, se estamos em acuamento ou movimento de avançar, mas de todas as maneiras o pânico está batendo à porta e não podemos ficar parados — Jacaré, amigo que é amigo haveria de entender, o homem precisa do sossego daquela gaveta — Cabo, acho que o melhor é o ataque. — nós precisamos de serenidade e viver a vida daqui pra frente. Esquecer esses erros do passado — Gente, todos erraram e precisamos perdoar! — fazem ouvidos de mouco.
A multidão de desgraçados vem junta. Num súbito de arrojamento me desprendo de mim mesmo, caminho para a aquela multidão de sem nada, tenho o fuzil na mão e a baioneta calada ─ Aqui, se tem alguém que nunca pecou que atire a primeira pedra! — foi o que pensei... esse chamado fode com todo mundo. Para alguma coisa houve de servir aquelas aulas de catequese.
Uma pedra passa pelo meu capacete e me atravessa, faz um buraco em minha testa. Ergo as vistas na procura do meliante. Lá está àquela velha grávida de quem ninguém jamais irá nascer
─         Foi o que pensei mesmo, gente como essa só matando!
Ela se abaixa e recarrega o seu armamento, tem outra pedra na mão
─         Essa barriga não se desmancha mais, são os teus ódios que te incham!
Outro míssil de curto alcance se aproxima, não tenho tempo de desviar e me pega em cheio. Outro buraco ─ Velha estúpida, grávida de memórias!
Ela procura no seu chão de mortos mais munição.
Com essa não tem jeito mesmo, pulo em cima da velhota parda e bato até ter os nós dos dedos molhados de sangue, dou-lhe as costas e volto para as fileiras da marcha fúnebre. Ao silêncio junta-se o medo. Os velhos estão acuados e amedrontados, não parece, mas estão. Olho pelos cantos da vista e caminhamos de olhos abaixados ─ General, pena que seja curta a vida, seria bom conferir as decorrências das merdas que fazemos.
─         Chupa-racha, pobre daqueles que ficam — acho que entendo o General: teremos que usar as próprias mãos — Sofreremos pelos que se foram...
─         Sentiram saudades!
─         Valeu a pena, General? — junto com a dúvida, a vergonha disfarçada, nada pode justificar tantos crimes ─ Lutamos em nome da pacificação.
─         E General, quem estava certo? — quem pode quer estar certo
─         Não foi possível acabar com as mazelas — interrompo antes que o General declare que faltou um tempo mais de tirania ─ E nós, como vamos ficar?
─         Chupa-racha me escuta!
─         Fala, General...
─         Chupa-racha, ainda vão sentir saudades do AI-5, das baionetas e da tortura — lembro-me dos discursos do General: tempos difíceis requerem medidas duras
─         General, escuta: essa gente não me parece com saudades — coloco os fones no General e aumento o volume até o máximo — Assassino! Ditador! Canalha mentiroso!
─         Esses não contam: fedem mais que cavalo.
Quase chegando. E a marcha se desmancha da direita que não é mais direita nem a esquerda se reconhece. Os passos não se combinam para o mesmo tempo. Balançam por não estarem firmes e fixos na mesma andadura. Mesmo assim, estamos pouco menos a cada passo de lá e a cruz das almas seguem à frente.

Eu perdoo todos.
Quiseram de mim uma violência passageira, como se fosse possível deter a mão depois que o braço desce com a vontade de destruir. Eu não consigo e não quero me adaptar aos novos tempos. Fui julgado descartável. Um funcionário obsoleto para as novas tarefas de fingir e dominar sem o uso das minhas forças físicas. Idiotas, este País não pode abrir mão do chicote. A bigorna deve estar sempre em posição de uso. É inevitável ─ Por que abrir mão desse domínio e poder?
─         General, as pessoas se revoltaram...
─         Quem se revoltou, Chupa-racha?
─         O povo...
─         O povo é o gado que empurramos de acordo com nossa vontade.
─         Nem sempre, General.
─         Bobagem, é somente uma questão de inspiração da pena do Zé Barriga — esses medíocres ficaram com medo de continuar a fazer da minha força a sua autoridade. E me vieram com essa conversa de não é mais momento de descer o cacete e o diabo a quatro. Queriam me instruir nas virtudes da diplomacia
─         Calçacurta, não podemos perder o tempo das mudanças — as mudanças que eles queriam não me disseram, estavam ocupados apagando os próprios vestígios colaboracionistas — Eu me retiro.
Não era mais suficiente ser bom, precisava ser bom para outra coisa além de torturar de maneira implacável ─  Calçacurta, chegou ao fim o tempo das torturas.
─         E vocês acreditam nisso?
─         Não se trata mais em que acreditamos, mas naquilo que não pode mais ser feito.
Fiquei em silêncio, essas estratégias me escapavam da compreensão
─         Precisamos preparar a saída e a nossa permanência.
É duro descobrir que não sou mais adequado. Virei estorvo. Minha arte provoca constrangimentos. Começam a sugerir que aquela guerra não foi bem uma guerra. Para bom entendedor, piscada de olho é ordem mandada — Chupa-racha... vou ser sacrificado — mas quero que seja impondo o controle ─ A dúvida da vida é a morte.
Não quero abrir meus arquivos: a menos que forcem o uso do meu ventilador.
Enfio as mãos no bolso e abandono essa conversa de desfile, a certeza do caminho diminui a canseira.
Saio à rua em passos lentos.
É um fim de tarde frio e chuvoso. Caminho pelas ruas lentamente, quero me despedir. Renuncio às despedidas das pessoas, mas preciso dizer adeus às alamedas e avenidas que foram decoradas como meus caminhos de retiradas e entregas em domicílio.
Bons tempos.

XX - General Calçacurta


Eu sou a sua cela

baitasar 

Acordo no meio da noite. Imagino ter ouvido meus gritos. Tenho a garganta seca e dolorida. Existo com sede. Sinto vontade de saborear as águas que escorrem da bica. Muita água. Muito fluido de macho e a despedida sem vulgaridades ─ Boa noite, Clara. ─ Boa noite, querido — talvez fosse bom ter o Himineu nesta cama, alguém que já me conhece e sabe o seu lugar... depois eu resolvo. Um passo de cada vez, águas passadas não movem moinhos. Ele é a minha sela.
A imobilidade me impede de sair logo da cama. Olho no relógio e lá se vão duas horas da madrugada, estou cansada e sonolenta. Pensei que está seria uma noite de sono profundo, mas aqui estou acordada e precisando de ajuda. Aproveito e vou ao banheiro, sento na bacia sanitária e espero pelo xixi. Abro a torneira, o ruído da água sempre dá jeito. É como um ligar e desligar.
Estou suando.
Lembro que as pílulas para dormir acabaram. Vai ser uma longa noite. Nenhuma ponta de esperança.
Olho na volta e as memórias me provocam, apareço num pequeno sorriso. Ainda queimam as lembranças do fogo descarado. As toalhas estão jogadas. O chão está molhado pelas águas da banheira. Amanhã a camareira esvazia e arruma as provas da delinquência. Pronto, agora lavo as mãos visto um roupão e vou até a cozinha, passo em frente ao espelho. Não consigo me impedir de perguntar a imagem do cristal ─ Como me sai — vejo um pequeno sorriso no amigo
─         Bem, muito bem!
─         Obrigada...
─         Deveria se deixar enlouquecer mais seguido.
─         Você acha?
─         Por que não?
─         Sei lá, é complicado achar um homem.
─         E esse?
─         Por favor, é apenas um soldado...
─         E daí, ele não tem aquela espada?
─         Ei, ei, chega.
─         Tá bom, tá bom.
Saio. Sinto que o olhar dele me acompanha. Caminho pelo túnel em escuridão profunda. Não quero acordar Moriá, que pelo menos ela tenha um sono justo. Não quero abrir os olhos e descobrir que tudo são invenções do travesseiro de penas.
Levo em uma das mãos o espadim que descobri entre as coisas do General: é útil nos passeios da madrugada. Os olhos já começam o costume de ver na ausência de qualquer luz. Lembro das matinês de cinema, passeio vesperal com minha blusa solta e folgada. O pronto socorro do lanternista, todo empenhado em acomodar os atrasados. Chegava retardada à sessão de cinema e ficava parada no escuro, em pé, com os olhos fechados, era o meu truque para acostumar com o negrume do cinema. O lanternista chegava quase correndo no auxílio, iluminando os pés que se moviam vacilantes e confusos, até alguma poltrona desocupada. Depois que o visitante sentava, ele fechava a luz da lanterna com a palma da outra mão e saia na proteção de outro atendimento. Um iluminador de caminhos.
A sala de cinema sobrevivia da penumbra e resistia nas claridades refletidas na tela de pano. Quando o filme se mostrava aborrecido erguia meus olhos e acompanhava aquele cordão umbilical iluminado que ia do aparelho projetor à tela. Lá atrás, protegido dos nossos ruídos, o cinematógrafo trabalhava como um parteiro para garantir o divertimento de alguns minutos. Não vou mais aos cinemas, mas o lanternista deixou de existir antes da minha desistência. O cuidado de iluminar caminhos perdeu importância para a prioridade de gastar menos. O lanternista foi trocado pelo pipoqueiro das máquinas automáticas. Largou as lanternas para estalar milhos.
Uma tênue pista de luz clareia meus pés, escapa por baixo da porta do quarto da menina Moriá. Deve estar sem sono ou dorme com o televisor ligado. Encosto-me na porta. Murmúrios escapam junto com a réstia iluminada. Por certo, a televisão ficou funcionando.
Pego suavemente a maçaneta da porta e giro, não quero acordar a menina.
Entro e não consigo conter o meu grito de surpresa e ódio
─         General! Saia de cima da menina!
Não há tempo para respostas inúteis ou conversas fúteis. É tempo de agir. Atravesso o quarto em passos rápidos e em desconserto de ódio faço uso do espadim. Sinto pela força da mão a maneira gentil como as carnes do General recebem a lâmina. Coloco-a toda dentro do homem, enquanto o sangue verte e escorre sobre as pernas abertas da menina Moriá
─         Mãe, o que você fez?
─         Matei esse monstro torturador!
─         Mãe, é o Himineu!
─         O quê?
─         Mãe, enlouqueceu? A senhora matou o Himineu!
Não e não, isso é um pesadelo. Eu vou acordar, eu sei que vou...
Os suores do pavor me percorrem o corpo. Para fugir da demência me atiro dormindo dentro daquele pesadelo. Durmo dentro do sono. Estou com frio. Como se a cada sono inventado estivesse soltando demônios de olhos tristes. Queria poder inventar um sono de fugir para sempre. Um dormir com sonos de amor. Parece que ao meu dormir não me foi dado realizar desejos de amor. Envelheço antes do corpo, pulando os maus sonhos, apenas num pé.
Eu sou a minha cela.

Na hora de fechar o caixão não houve maiores ataques de choro. Foi tudo muito comedido. A viúva e a filha estavam contidas, repetia que já haviam chorado o bastante durante a noite de vigília. Agora, seria outra demonstração de tristeza inútil, todos estavam cansados.
Na verdade, o General morreu mesmo foi lá atrás, quando sofreu aquele derrame. Nunca mais se recuperou, aliás, ali começou o declínio da verdade. Perdeu a disposição pra continuar lutando e pediu trégua pros moços. Passou a se preocupar com os soldos devidos pelos senhores. Esses novos senhores não têm cuidados com os velhos — General, quem não pode mais correr vira estorvo.
Os preparativos pra levar o general pra solidão daquelas gavetas estavam terminados. O capelão já se fora, depois de cumprimentar pessoas que nada tinham de iminência com o morto. A confusão era grande. Não me entendam mal, não havia desordem, apenas não acreditei que esse homem morto tivesse tantos influenciados — E benza Deus, Chupa-racha, ainda somos muitos.
Gente que influi e decide. O General morreu sem ter morrido. O mundo estancou de repente e o destino que roda a todo instante tem medo de viver sem ele. Já estão com saudades do homem. Nesse podiam confiar, desde que não se metessem à besta. Esse foi o último canalha romântico que nos tomou a vida como se a nossa vida fosse dele.
Faço sinal pro Jacaré e ele se aproxima
─         O que falta?
Pergunta já na intenção de prosseguimento das homenagens
─         Agora fazemos o desfile a pé do corpo do General.
─         Já aluguei a força de carregamento de uns sujeitos reforçados.
Como devo ter feito cara de não saber, e não gosto de subalterno me deixar desentendido das novidades, ele acrescentou enquanto subia e descia os ombros sem estrelas
─         Para ajudar a carregar o corpo.
─         Gente nova?
─         Claro, os conhecidos de antigamente do General não aguentam mais.
─         Tudo bem, vamos tomar posição.
Ele permanece me olhando, decidindo se havia mais alguma coisa pra dizer
─         Desembucha, Jacaré.
─         Precisei molhar a mãos dos caras...
─         O quê?
─         Hora-extra, cabo. Hoje em dia é tudo com o encosto do dinheiro.
─         Tudo bem.
─         Tem mais uma coisa...
─         O que, Jacaré?
Confesso que a paciência estava ficando perdida em algum canto do cansaço. É dura essa vida de comandar. Ninguém tem iniciativa, estão sempre esperando um passo atrás
─         Faltou gente para carregar a cruz.
─         Vou pensar em algo.
Volto pra cabeceira do morto. Fazer a guarda funerária do General Calçacurta deveria ser motivo de orgulho pra todo soldado. O homem foi lenda ainda em vida. Extraordinário por seus feitos guerreiros e durante o tempo mais duro foi o centro das atenções na luta contra a guerrilha ─  Obrigado, cabo Himineu.
─         Não há do quê, General Calçacurta — estendo a mão em continência
─         Banquei as decisões de sobrevoar as águas do nosso oceano com aquela carga inútil, deveria ter descarregado os carregamentos no pátio das suas casas.
─         Do que o senhor ta falando?
─         Nada... nada, apenas desabafo.
O Jacaré sai da minha visão, enquanto dona Clara se aproxima: está linda de preto
─         Himineu, o que acontece agora?
─         Senhora, fazemos uma caminhada até o local do sepultamento.
─         Onde eu fico?
─         Venha com a menina Moriá logo atrás do esquife.
─         Tudo bem.
O Jacaré me chega com a ajudância paga, tudo novinho em folha. Mercenários de funeral. Última geração de brutamontes. Altos, corpulentos, monstruosos e cobiçosos. Não precisam chorar, apenas carregar o defunto. Tenho a impressão que somente um desses monstros leva o General. São seis asas do caixão a serem preenchidas por mãos que suportem o peso de tantos anos. Três alças de cada lado. Eu e o Jacaré seguramos as argolas que ficam do lado da cabeça do General. Ele ao lado esquerdo e eu no andamento direito. Reina o silêncio quando erguemos o ataúde e começamos a caminhada fúnebre.
A cruz das almas vai à frente, carregada pelo General cadeirante.
O Parque Jardim em Paz está em silêncio. É o minuto de silêncio de referência dos mortos, fazem mudez o mais alto que podem.
Sinto orgulho de fazer parte deste momento e colaborar de alguma maneira pra tudo sair perfeito. Gosto dos desfiles militares
─         General, estamos saindo...
─         Vamos acabar logo com isso.
Na medida em que nos retiramos da câmara mortuária as pessoas vão se afastando e se colocam naturalmente atrás da viúva e da filha, acompanhando esse último passeio do General. Procuro manter o ritmo do andar do Jacaré, passo a passo, lentamente. Mas é a cruz das almas que dá cadência à marcha. Vai à frente como nosso estandarte. Vai empurrada por mais um desses amigos anônimos. Direita, esquerda, direita, esquerda. Viramos à direita saindo da sede social do velório e depois de alguns passos viramos à direita no rumo dos apartamentos. Um caminho de guinadas à direita, como a ecoar que a história se repete. O condomínio está em silêncio. Apenas nossos passos são ouvidos e um pequeno rangido que começa a sair da roda direita do nosso guia, como se estivesse se lamentando. Começo a chorar.
Uma pequena subida em nosso trajeto, mas o braço movedor da cadeira pede socorro. Está cansado. Um suspiro de espanto e terror na caravana de carga. Paramos. A cruz das almas impede nosso avanço. Um dos convidados sai do anonimato da tropa e carregado por seu cajado chega até a cadeira agonizante. Um pequeno empurrão na cadeira e voltamos a arremeter. A ladeira foi vencida. O novo ajudante-de-ordens vai o restante do caminho um passo atrás da cruz das almas, por via das dúvidas. Tropa de reforço.
Estamos passando por um gramado muito verde à esquerda e um lago à nossa direita. Olho pelo canto do olho e vejo muitos cisnes naquele lago. Deslizam suavemente por sobre águas tranquilas. Enfiam suas cabeças na água. Parecem envergonhados. A exuberância da sua beleza aparece quando deslizam erguidos pelas águas, com seus alongados pescoços sustentando suas cabeças bem acima dos seus regaços. Tenho curiosidade de saber o que estariam pensando.
Ergo o meu gargalo de soldado. Deslizo minha marcha fúnebre sob meus passos de direita, esquerda, direita, esquerda. Não posso me esconder. Não tenho onde enfiar a cabeça.
Naquele amplo gramado à esquerda vão se aglomerando pessoas. Chegam de todos os lados em silêncio. Meus olhos voltam a ficarem úmidos. O General ainda é muito desejado pela sua gente: seu povo querido que defendeu com unhas e dentes e cacete.
Aqueles dois também estão aqui, ali no jatobá. A jovem carrega uma barriga imensa, com certeza irá parir o filho por essa vida afora, mas está avelhantada e descascada. O juvenil se ajoelha na frente da jovem velha e acaricia seu ventre curvo, todo arredondado. Tem a bunda caída. O rapaz está sujo, com a roupa malroupida, assim de longe me parece que se meteu em confusão. Sussurra algumas palavras que não consigo distinguir. Ela está chorando, parece se despedindo e não fosse mais vê-lo. Engraçado, mas essa envelhecida parece ser a única cara viva por aqui. Tudo mais parece buscando algum perdão que jamais conseguirá.
De repente, as pessoas aglomeradas no gramado, ao comando da velha barriguda, abrem cartazes com palavras de ordem que jamais pensei tornar a ver. Olho pro Jacaré, ele me olha perguntando sobre o que fazer. Virei os olhos no contorno da tripa amiga que nos seguia e só reconheci velhos. Gente de muito tempo de existência, gastos pelo uso. Todos pouco dispostos em revidar, velhuscos do tempo que não volta e abandona a todos a sua própria sorte
─         Chupa-racha, não vai fazer nada?
Já estava esperando pela intervenção do morto, estava preparado
─         General, os camaradas de armas envelheceram e não têm saúde pra correr atrás de comunistas.
─         Pelo amor de Deus, Chupa-racha faça alguma coisa!
─         General, pra fazer alguma coisa tenho que largar o senhor no chão.
─         Isso não!
─         Eu sei, então o senhor vai ter que se aguentar.
─         Caralho! Essa gente fede!
─         Calma, General, são as suas exéquias, não vá dar vexame.
─         Porra, mas que merda é essa?
─         Frieza, General, agora é hora de descansar. 
─         Mas de que jeito? Esse cheiro de carne podre me entra pelas ventas! É repugnante!
─         Esquece, General. Faça de conta que não é com o senhor. Melhor ainda, General Calçacurta, pense que qualquer grosseria é melhor que o silêncio de ser ignorado...

sexta-feira, 20 de janeiro de 2012

NANA CAYMMI & ERASMO CARLOS

NÃO SE ESQUEÇA DE MIM





Não Se Esqueça de Mim
Nana Caymmi


Onde você estiver,
Não se esqueça de mim
Com quem você estiver não se esqueça de mim
Eu quero apenas estar no seu pensamento
Por um momento pensar que você pensa em mim
Onde você estiver, não se esqueça de mim
Mesmo que exista outro amor que te faça feliz
Se resta, em sua lembrança, um pouco do muito que eu te quis
Onde você estiver, não se esqueça de mim
Eu quero apenas estar no seu pensamento
Por um momento pensar que você pensa em mim
Onde você estiver, não se esqueça de mim
Quando você se lembrar não se esqueça que eu
Que eu não consigo apagar você da minha vida
Onde você estiver não se esqueça de mim

Composição: Erasmo Carlos / Roberto Carlos

XIX - General Calçacurta


Fico na posição de sentido

baitasar

Está chegando a hora das despedidas derradeiras. O término de tudo. A última olhadinha, mais um suspiro, uma gotinha de lágrima, um sorriso encoberto pelo véu da lamúria. Mas antes, tem a tal missa com o corpo presente — Santo Deus, não imaginava que o General tivesse tanto apreciador — isso aqui está insuportável: metediços, delator, abelhudos, falsários, informante, a imprensa do país está presente — É o mínimo, depois de tudo que o senhor fez — chega o momento do encerramento, sinto uma mistura de pena e alívio
─         Até pro senhor foi uma surpresa, hein... General?
─         Engana-se quem me pensa morto.
Tenho certeza que o senhor não vai confessar isso, mas sua morte de homem não foi prematura: foi espremida até a última gotinha
─         Chupa-racha, ainda tinha muito por fazer.
─         Só se é pra ficar cagando e mijando nas fraldas.
─         Chupa-racha!
─         Desculpe, General, mas é isso: quando acaba... acabou.
Reconheço que a casa ainda não está arrumada. Tem muito desordeiro solto. A corrupção corre e come solta. A mão do General vai fazer falta. Admito que algumas vezes ela desceu muito pesada, mas não tem como medir a força da mão quando se está em estado raivoso. Ela simplesmente bate.
Penso cá com meus botões: vou perder as simpatias de muita gente, as portas vão se fechar depois do confinamento do General Calçacurta no buraco de concreto
─         General, não sei se estaremos vivendo uma democracia no futuro, mas...
─         Soldado, talvez chegue o dia que a nossa gloriosa legião vá para as ruas garantir a segurança das pessoas de bem, defender os nossos valores de vida, colocando essa gentinha no seu devido lugar.
─         Quem sabe, General...
─         Chupa-racha, ficar engraxando fuzil e botina enche a paciência e o saco.
─         Como as pessoas vão entender o que o senhor fez?
─         Muitas coisas sobre esses anos serão descritas de forma invertida!
─         Seremos os vilões?
─         Isso, Chupa-racha, e não teremos como contestar. A verdade é que não há provas concretas acerca das torturas.
Baixa a voz e sussurra pra não ser ouvido
─         Falácias não são provas e as evidências se houveram... sumiram.
Espero que o Jacaré não tenha esquecido de buscar o padre. Coisa de ficção pro General. Enquanto viveu não respeitou nenhum padre, se tivesse que baixar o porrete não era algum eclesiástico que o impediria. O religioso que abandonou a fé e a razão levou cacete — Chupa-racha, quem mandou colaborar com os comunistas que não tinham fé e pensavam terem razão, mandei descer o cacete — não tinha jeito, com batina ou sem batina a madeira cantava.
Vejo, lá pelos meios do povaréu, o Jacaré trazendo o padre. Espero que o discurso seja pequeno. Sem provocações.
Junto com o Jacaré chegou o casal de namorados. Ficam pra trás, à sombra do jatobá de mãos dadas, olham pro funeral
─         Beijamim, acho que todos vão gostar.
─         Vamos festejar isto...
─         Mas ninguém sabe quem somos.
─         A gente precisa se organizar e lutar pelos nossos direitos.
─         Precisamos da ajuda do povo.
─         Não dá, tá tudo censurado.
─         Beijamim, o que estamos fazendo com a nossa vida?
─         Usamos a nossa vida na luta para acabar com a miséria, a injustiça e o sofrimento do povo.
─         Amor, essa luta já ta perdida. É a guerra do pobre contra o rico.
─         Pois que seja.
─         Amorzinho, estou grávida.
Estico o pescoço no tempo de ver o rapaz abraçar a menina e ergue-la do chão
—        O amor é lindo — tenho a boca amarga e com gosto de esgoto. Não deveria ter dito nada, minha voz soou traidora e velhaca. Recebo um pezão no pé e não disfarço a dor — Merda! Olha por onde pisa — já tenho muito disfarce pela cara, chega um tempo que qualquer motivo é motivo — Desculpe, coronel U — esse foi mais sinistro que o General, não ganhou sua estrela porque tem muito sangue nas mãos.
Gente, o que já estava ruim, pela multidão que se via, ficou pior. As pessoas perceberam que a tal missa com o corpo presente as despedidas finais estavam pra começar, como rastilho de pólvora o aviso da missa do General se espalha. Aquela gente toda adiantava e recuava em movimento de pinça: compartilhava da maneira mais próxima àquela cena de adeus e indulto. Como se as gotas da benção sobre o morto pudessem se estender a todos os presentes
—        Chupa-racha, a alma do negócio foi o segredo, não é preciso perdão.
—        O problema não é esse, General.
—        Desembucha, soldado.
—        Não se fala em perdão, mas em prisão — de repente, lembrei que não treinei o Jacaré sobre o assunto do padre. Não sei o que esse padreco tem pra falar do General, não conheceu o cadáver em vida, com toda certeza não o conheceu o nosso morto. Espero que o Jacaré tenha instruído bem o eclesiástico.
Já passamos a metade da manhã e a hora se aproxima. O calor fica a cada minuto mais intolerável. O Jacaré me acena de longe, não consegue se aproximar. Peço que as peças do tabuleiro se afastem um pouquinho pra que o padre possa chegar perto do morto
─         Por favor, um pouquinho de paciência.
─         Está muito desorganizado.
─         É muita gente, senhor.
─         Isso é para mostrar que não terminou.
─         O que não terminou, senhor?
─         A nossa luta pela liberdade e contra a corrupção.
Estou atropelando os fãs suavemente, empurro o general-de-exército e a sua cadeira de rodas entre os que ficam no caminho até o esquife do General Calçacurta
─         Não poderia deixar de vir e render minhas homenagens a esse camarada de armas.
─         Por certo, onde quer que o General esteja ele está agradecido.
─         Não fala bobagem soldado, o homem está morto.
─         Mas senhor...
─         Soldado!
─         Sim, senhor! — parei de empurrar a cadeira rolante e me coloquei à sua frente, em posição de sentido, aguardando o que tinha pra me dizer
─         Eu venho me mostrar para os vivos.
Decido fazer silêncio e volto pra minha posição de guardar o defunto.
Com o padre já em posição, todos fazem o sinal da cruz e rezam. Eu continuo na dúvida se saio da minha atitude de guarda-costas e participo junto das benzeduras ou faço de conta que é mais importante manter meu posto de sentinela. Merda, não tem ninguém pra me mandar. Tem certas coisas que tenho que decidir sozinho. É a vida. Meu Senhor me perdoe, mas o ritualístico da guarda de honra não pode se misturar com essas coisas de religião. Fico na posição de sentido
─         E que Deus me perdoe! — sussurro para que o menino Jesus me escute e perdoe.
 O capelão começa a falar depois das rezas
─         Meus queridos irmãos e irmãs, estamos aqui para honrar a memória deste ente querido que se foi, atendendo ao chamado do Senhor...
A voz do capelão se vem e se vai, resolvi que não quero estar mais ali.
Este é o meu inferno, o que decido não vale, não tem importância pra ninguém, nem pra mim. Por isso, continuo em pé, imóvel, aguardando as ordens de avançar e dispersar
─         Irmãos e irmãs, o inferno de cada um por certo é carregado em vida...
—        E o paraíso podemos carregar em vida — como um ladrão disfarçado, procuro pelo Jacaré. O diabo sumiu.
Lá estão os dois mancebos doidos do jatobá
─         Precisamos de ajuda pra tirar ela daqui.
─         Estou grávida.
─         Que encrenca, menina...
─         Essa criança vai viver numa terra de gente livre.
A voz do capelão some e retorna. Vai e vem em ondas. Olho pras pessoas e as vejo em total concentração, como se cada palavra ali pronunciada fosse a redenção, e assim, pudesse justificar nossas vidas, mentem pra si mesmas, nenhuma lágrima
─         Irmãs e irmãos, não existe maior tortura que vivermos longe do Senhor...
Talvez o capelão tenha razão ou minta pra si mesmo. Talvez não tenha assistido nenhuma tortura, nem mesmo eu assisti, mas os gritos eu não posso negar. Ficava sentado no carro enquanto aquelas súplicas desesperadas saiam pelas frestas da Adega. Folheava nervoso o gibi do Super-Homem e enfiava chicles na boca até quase não respirar. Não posso recusar a minha culpa de eliminação. Eu ouvi e fiz que não ouvi, mas pelo jeito não foi só eu
─         Chupa-racha, não fraqueja1 Era uma guerra!
─         Mas, General, mulheres grávidas...
─         Ah, por acaso queria que aqueles pequenos comunistas nascessem?
─         O senhor não está dizendo isto.
─         Mataram e mutilaram quem os combatia. Muitos outros inocentes foram mortos.
A voz do capelão volta a se fazer insinuante
─         É hora de se virar a página do livro definitivamente, já é hora de esquecer. Perdoar. Amém — uma salva de palmas agradece as palavras do eclesiástico e um coro entusiasmado responde ─ Amém!
─         Oremos, irmãos.
O Jacaré me olha pedindo aprovação... ergo o polegar.