quarta-feira, 30 de maio de 2012

Venha e me entre

Becos sem saída - Comunistas desgraçados
II
baitasar
Enquanto Manualdo sonha com baratas, Cariciosa sonha com convidados, festa, bolo, convites e músicas. Sonhar é bom, mas que não caia da cama. Revira o pensamento atrás da roupa do noivo, solução resolvida por ela, que não seria doida de deixar na mão dele tudo isso. Quem sabe um dia, outro casamento. Sem tanta pressa. Por ora, prefere entregar àquelas mãos outras coisinhas
—        Vamos dar um jeito, filha.
—        Mamã, eu estou apaixonada. – a Memória olhou sua menina, precisou reconhecer que nunca se viu assim, com aquela vontade de se dar perdida da razão
—        Vai dar tudo certo, Deus seja louvado.
—        Mamã, Saravá... Deus te ouça.
Enquanto a menina fala, Memória vai de um lugar a outro, arredondando, naquela diminuta cozinha. Prepara seu copo de água, alho e mel
—        O que é isso, mamã? — a guria estava com a mania de relancear os olhos na mãe, não era só simpatia, duas mulheres se destampando
—        Receita da vovó. — a mãe que ela tão pouco conheceu e os seus filhos nada sabem. Lembra de sentar em suas pernas e ser sacudida para cima e baixo enquanto sua mãe cantava e sonhava se a rua fosse dela, iria mandar esconder a lama com ladrilhos brilhantes, para o seu amor passar. Filha de escravo, não teve instrução de livro, sobreviveu por teimosia. Tirou os filhos que pode e criou os filhos que teve vontade de criar. Vá lá saber qual foi a vontade dela em me criar. Ninguém se interessa em contar histórias de negro e pobre.
—        É?
—        Um dente de alho dentro de um copo com três dedos de água, o alho precisa dormir na água e, assim que acordo, bem cedinho, tomo com mel.
—        E daí?
—        Antibiótico dos antepassados. — a mãe, a nêga Falda, se tornou antepassado, ela também se tornará uma gente que já se passou e ninguém sabe que existiu, um rastro de poeira da estrada
—        Contra o quê?
—        Resfriado.
—        É?
—        É assim mesmo, experimenta...
—        Hum, não quero.
Tem algumas coisas da mãe que a Cariciosa invoca de não imitar. Nunca. Na sua casa não vai ter isso de foto de padre, santo ou não. Mas queria ter a memória de elefante da mãe. Depois do gole com alho, Maria Memória se dispõe em arrumações. Cariciosa lhe fica cravando às vistas. Estão no quarto da mãe, ela junta meias e camisas jogadas pelo chão
—        Minha filha, são todos parentes.
—        Não sou empregada de ninguém. — a mãe lembra que ela precisa manter a casa na faxina
—        Pode até que seja, mas limpeza de sujeira fedida, não. Saio na corrida e não volto. — a mais velha desdenha da sua conversa e assegura que vai aprender a limpar o que precisa
—        Tem coisa que não aprendo. — a mãe dá aquela conversação por acabada.
A aranha vive do que tece, pega o retrato do padre morto, pensa que ninguém escapa dessa viagem até a fronteira do sumidiço, mais dias ou menos dias, a estrada se acaba e não tem onde se embocar, não tem refúgio
—        Que Deus o tenha. — reza para que a graça de Deus e dos seus Orixás os protejam
—        Por certo há de ter, mamã.
—        Depois de tantos anos, até já tinha acostumado com ele me vigiando.
—        Virou Papa faz tempo.
—        Minha filha, o teu irmão Lamparina mamava no peito, quando esse virou Papa. — a Memória trocou de homem, mas não mudou de retrato, e a vida futura, a vida depois da morte lhe faz seguir, no que lhe é possível, as regras do Papa e dos seus Orixás. Sabem mais do que ela sobre céu de rosas e céu aberto, só se vê o que se deseja, ela não quer se meter em abismo onde só há choro e ranger de dentes. A guria que continuava menina na cabeça da Memória lhe retoma o assunto dos papas, um interesse de caridade e santidade
—        Mamã, e o outro?
—        Coitado, não durou um mês. — mais dias ou menos dias, não tem justeza, é assim
—        Pobre do infeliz, nem esquentou a cadeira.
—        É isso, hoje aqui, amanhã, ninguém sabe, nem o santo padre.
—        Não deu tempo nem de pendurar o retrato na parede. — a nova morte de um papa, o luto, e os preparativos da eleição de outro, é muito rápido para entender. É preciso continuar, apesar das maldades. A vida não pode parar, tanto faz que a água corra para cima como para baixo — Eles o mataram, por certo, um papa breve.
—        Quem, mamã?
—        O que morreu agora, esse João Paulo I.
—        Mamã, por favor, vamos pensar nas árvores. — a filha Cariciosa muda o rumo do palavrório, vai de um lugar ao outro sem muitos nervosismos. Não tem muitas vontades de demorar-se fincada num mesmo assunto, o ar lhe escapa e parece não regressar. Memória leva as mãos à cintura e endireita o jeito de respirar. Ainda pode com o tamanho da barriga. Pequena de não aparecer. Essa tem muito que arredondar. É somente nestes tempos de ficar redonda que sente o desenquadramento das pernas. Tudo pesa mais no lado da curta. Perde a habilidade de disfarçar o balanço das ancas. Deixa ao gosto da natureza.
A sineta do portão estala nos ouvidos da Maria Cariciosa, a mocinha sai correndo
—        É o Manualdo! — grita de puro contentamento
—        Minha filha, deixa o rapaz entrar.
Juro que nunca vi gente mais tranqüila que esse Manualdo. Muito parado. Profundo no seu jeito matutoso de desfazer o que se fica a pensar dele. O contrário do seu benzinho que vai de um lugar ao outro, inquieta com a sua donzelice. Ele tem os cabelos muito lisos, muito escorridos, acompanhados de um farto bigode. Índio puro. A guria chega aos atropelos. Quer pular em seus braços e o enlaçar com as pernas. Olha o rapagão e mede a distância pouca do nariz até a boca, mas pára de súbito e lhe ordena que entre, em disfarce amornado sussurra no pé do ouvido
—        Ó meu amado, que ele venha e me entre.
Fica fubento quando recebe os beijos da guria, cor de vermelho envergonhado. O coitado parece sentir a gravidade do olhar da Memória, a moça casadoira se põe em socorro de ajuda, recoloca assunto na conversa
—        Amorzinho, a gente só vai poder casar se plantar umas vinte árvores.
—        Não são dez árvores, minha filha?
—        Mamã, quem planta dez faz mais um esforcinho e já deixa mais algumas pelo chão se enraizando.
O moço não parece preocupado, nem espantado com a novidade, acredita que há males que vêm por bem
—        Meu benzinho, esse vai ser um jeito lindo de casar.
—        Isso aí, Manualdo.
O dono do boné ferroviário se mexe e sai do velório da televisão. Maria Memória lança o seu olhar de leoa em defesa da ninhada, Ogum até pensa em recolher o dito, mas já foi lançado pela boca a fora. A leoa retruca do outro lado do rio, um rugido que faz tremer as terras do chão batido
—        Jacaré é pra quem é e não pra quem quer.
—        Já não está mais aqui quem falou. — a fêmea é que faz o ninho
—        Negão, não vai atrasar pros afazeres.
—        Minha preta, hoje é sábado. — responde para lhe alumbrar, hoje é noite com festejos de cama, no domingo não se tem exatidão de acordar
—        Ah, então, vê se fica quieto por aí, com os meninos.
Não trabalhar no sábado é decisão do Ogum, quer aproveitar as instruções da estação televisora. Para Memória, é dia de fazer render mais uns trocados, mas enfim, esse negão não deixa nada faltar, ainda é da sua confiança. A Memória controladora não sabe parar de reprimir a si mesma, pisa no coração do amoroso com os pés. Nus. Em desgasto, nem sabe bem porque faz uso desse mau humor contra o negão, mal com ele pior seria sem ele
—        Negão, o sábado pode render mais uns trocados.
—        Os gurizim são felizes assim, comigo ficando aqui, por perto.
Diz apontando para os gêmeos, os guris estão enrolados em suas pernas como as varizes azuladas das canelas. Esse graúdo faz isso com os pequenos, não tem precisão de meter medo, leva as crianças no respeito de autoridade
—        Que seja...
Foi dada a última palavra.
Ogum está levantado, já não se sente mais nas vontades de adormecer na frente do televisor. E o assunto está ficando curioso. Não é metediço, mas tem algumas ideias e sugestões de aconselhamento, sabe que água e conselho só se dá a quem pede. Muda de assunto enquanto faz aproximação
—        Rapaz, quero fazer compra destas coloridas.
—        Seu Ogum, deve de ser muito puxado.
—        É uma beleza de ver com as cores todas.
—        Com que pagamento? — quer saber Maria, mas o negão Ogum não estremece, até parece que tem tudo já respondido, e cá entre nós, essa Maria é uma rixenta que nem o diabo aguenta, veste a fantasia de espinhenta, se perde em lamúrias desimportantes, vazias de felicidade
—        Faço na prestação do crediário.
—        Acho melhor tirar isso das ideias, essa coisa colorida é pra rico.
—        Minha preta, vou fazer servidiço em sábados. — a Memória não pode deixar passar, não consegue desvestir a fantasia, já é maior que a própria vontade
—        Vez que outra, negão, esse servidiço de sábado só de quando em vez.
Pelo tempo, desse entrevero, Manualdo fica apreciando Maria Cariciosa com as mãos cheias de amor. Sabe que o não visto naquela rapariga é ainda mais cobiçado. O feitiço com as mãos, esse índio Manualdo aprendeu de ouvir o Ogum. O sogro futuroso lhe dizia do tempo em que as mãos e dedos tinham mais serventia que segurar garfo e faca ou enfiar no nariz. São dois pra cá e um pra lá. Tempos de língua afiada e dedos atrevidos, tem medo que lhe faltem algum dia. Sente desvergonha no corpo da sua preta, adora quando a saliva engrossa e aos poucos se desmancha nos serviços das carnes.

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05 - Só casa se plantar dez árvores 

07 - Todos dormem. Até as galinhas.

Banco$, bibliotecas e comunistas

MAFALDA


Quino

Fui manchada com o meu sangue


XXX (2ª) - No se puede hacer la revolución sin las mujeres

o pecado só é pecado quando você come a tentação
baitasar
Os dias e as noites desembarcavam e marchavam para avante, como soldados que recebem ordens para saírem das trincheiras e avançar, fuzil na mão, balas zumbindo, procurando um inimigo para rasgar, fazer sangrar. O chão encharcado do sangue como vestidura fúnebre, jovens zumbis desfeitos por armadilhas para separar o pé da perna, a perna do joelho, o joelho do quadril, o quadril da vida. Gritando por suas mães, tão longe, tão tristes, tão orgulhosas.
Essa vida de soldado pode ser boa em tempo sem guerra. Empacados no quartel, limpando o fuzil, brilhando as botas, cabelo cortado rente, a fila do rancho, mas quando o corneteiro toca avançar é bom saber quem está ao seu lado, se morrer você morre, se viver você vive.
A minha guerrilha de trincheiras seguia em trégua, nenhuma resposta para minha contraproposta de oferecimento deles. Tentava mentir para mim mesma que essa esperação não me importava, mas não conseguia explicar a queimação na barriga e o acaloramento das virilhas. Mais parecia que estava querendo mostrar a oferenda para as obras de imaginação do guri e a latência do seu desespero.
Fechada a porta, a escuridão ficava presa no quarto, uma fresta de luz escapava pelo ar desocupado entre a porta e o assoalho, avisava a chegada da visita. Nas noites com escuridão esperava com os olhos estrelados na fresta uma anunciação que não se apresentava. O guri manobreiro era um segredo que não se manifestava, mas que me queria e iria pagar. Por enquanto, continuava esperando com meu instinto de morcego. O meu mundo se encantava e o silêncio ficava quebrado, a minha voz tinha voz, até que o sono me chegava sem avisos
— Preta... — me fiz surda
— Preta. — me fiz desentendida
— Porra, Preta! — me fiz acordada
— O que o guri quer?
— Examinar se o preço vai valer o cobrado. — quando o assunto chegou por esta clarividência, já estava sentada em cima da tal mina de ouro. Nenhum bandoleiro ranhoso haveria de roubar minha donzelice
— Examinar o quê? — pergunta de idiotice, mas necessária para ganhar algum tempo e pensamento de vantagem
— As virilhas da índia, saber do cheiro e do gosto. — pensei em mandar que fosse cheirar as leiteiras e lamber sabão, mas calculei que seria provocação de inutilidade
— O patrãozinho pode ser o dono das vacas, não das minhas virilhas. — o acaso não viria em auxílio, nem o miudim que dormia com os irmãos — Filhos-da-puta, foi tudo preparado, me tiraram o gurizim de estorvo.
— É apenas olhar de vistoria. — esfreguei os olhos para o ataque das palavras
— Vá dar olhada nas leiteiras e lamber sabão! — decidi que iria cair atirando, não lhe tinha feito nenhum convite
— Cruz e credo... quanta impertinência. — foi aquela zombaria que me colocou em alerta, o filho do patrão se achava em segurança
— Não lhe fiz nenhuma proposta de oferecimento. — não podia deixar os meus olhos com vontade própria, iriam se debulhar em lágrimas
— O que é de um é de todos, como se fosse herança carnal, irmão para irmão. — não conseguia lembrar nenhuma feitiçaria de enrolamento. Estava encarcerada na armadilha da domação de uso, o bicho se fingiu desinteressado

— Pois vá acreditando que a mentira é a verdade, assim a mão do guri vai lhe bastar — quase no arrependimento sussurrei a intenção do dito — hacerse una paja.
— O que você disse? — o peste não havia escutado, queria repetição. Não medi o meu ódio e joguei gasolina ao fogo
— Vai lhe bastar uma punheta! — a coragem despreparada da juventude
— Índia madraça... atrevida! — tinha mexido no abelheiro, provoquei a onça com a vara curta e não precisava feitiçaria de adivinhação pra saber que o bicho se virou na minha direção.
A sina da mulher tinha me alcançado e a espada já estava erguida sobre minha cabeça, bastava descer o fio sobre meu ventre para abrir-me ao meio. Assim, iria conhecer minhas entranhas, ver o que um saco carrega quando está vazio de criança. Ainda tentei aduzir razões e a sensação de medo do abismo das sombras. Fiz o sinal da cruz antes de recitar um ditado de la Montaña, modificado para a ocasião de ameaça
— A tentação não é pecado, o pecado só é pecado quando você come a tentação.
— Que conversa é essa, índia madraça?
— Foi esse o sermão de domingo do padre comunista. — menti
— Esse padre é tão comunista como dizer que tu não é putinha, mas se paga, tudo bem, ele até reza junto.
A armadilha tinha se fechado
— Não lhe dei o direito... —foi quando senti o peso da insânia daquela borboleta transformada em lagarta, queimava em meu rosto. As suas mãos não eram asas, mas ferros em brasa entalhando minhas carnes.
Aquela visitação no meio da noite não queria se contentar com pouco. Queria ser como um galo na sua bravura com os nus da índia madraça, murmurava em meus ouvidos
— Ninguém vai saber, e no final das contas, sou teu dono.
Mas de tudo, o mais nojento foi suportar aquele ruído fraco e indistinto do ar que lhe saia pelo buraco do olho, suspiros da chaleira no fogo... olho do cu.
A espada erguida acima da cabeça desceu e me partiu ao meio, olhei para baixo e não vi sua lâmina, mas me senti manchada com o meu sangue. Acho que depois da morte não sentimos mais nada. Eu devo ter morrido e os meus espíritos morreram comigo
— Preta... — me fiz de surda
— Preta. — me fiz desentendida
— Porra, Preta! — me fiz acordada, sentei na cama esfregando os olhos
— O que o guri quer?
— Chega de mentira e enganação, chegou a hora. — precisava controlar-me, por pouco um pouco mais, estava amarrada pelos pesadelos e não havia uma saída fácil. Não queria render-me. Precisava de um anjo.
Dei-lhe um soco nos bagos e recebi um soco na orelha, pelas costas.
Ele não estava sozinho.

Ideias perigosas

MAFALDA

Quino


terça-feira, 29 de maio de 2012

de água, de chão, de rãs, de árvores, de brisas e de graças!

Poema Inédito de Manoel de Barros:



Fôssemos merecidos de água, de chão, de rãs, de árvores, de brisas e de graças!
Nossas palavras não tinham lugar marcado. A gente andava atoamente em nossas origens.
Só as pedras sabiam o formato do silêncio. A gente não queria significar, mas só cantar.
A gente só queria demais era mudar as feições da natureza. Tipo assim: Hoje eu vi um lagarto lamber as pernas da manhã. Ou tipo assim: Nós vimos uma formiga frondosa ajoelhada na pedra.
Aliás, depois de grandes a gente viu que o cu de uma formiga é mais importante para a humanidade do que a Bomba Atômica.



"Escova"

segunda-feira, 28 de maio de 2012

Morangos Silvestres

Ingmar Bergman





Cineplayers


cartaz de Morangos SilvestresMorangos Silvestres
(Smultronstället, 1957)
• Direção: Ingmar Bergman
• Roteiro: Ingmar Bergman (escrito por)
• Gênero: Drama
• Origem: Suécia
• Duração: 91 minutos
• Tipo: Longa-metragem


• Sinopse: O velho professor Isak Borg viaja de carro para uma universidade para receber uma homenagem. No caminho, depara-se com estranhos e parentes, o que faz ele reviver velhos momentos de sua vida e tentar descobrir o significado de estranhos sonhos que vinha tendo.
• Palavras-chave: adultériohomenagemmemória
Elenco
• Gunnar Björnstrand  Dr. Evald Borg
• Bibi Andersson  Sara
• Victor Sjöström  Dr. Isak Borg
• Ingrid Thulin  Marianne Borg
• Gunnar SjöbergSten Alman / O Examinador
• Jullan KindahlAgda
• Folke SundquistAnders
• Max von Sydow  Henrik Åkerman

Só casa se plantar dez árvores

Becos sem saída - Comunistas desgraçados
I
baitasar
A jovem Maria Cariciosa entra pela pequena casa em rajadas rápidas, como o vento que se antecipa a tempestade. Num assopro passa do pórtico de entrada à cozinha do fogo a lenha. Cortinas de pano esvoaçam e se abrem, janelas se batem naquele entardecer mormacento. As paredes sem reboco gemem de desconcerto, estão desguarnecidas na sua feiúra, ressentidas pela luz da menina e sua beleza anatomista. Ela não é destas paredes, mas vai morrer aqui. O ar venta todo desconjuntado na sua passagem. O assoalho de madeira estremece e geme. As galinhas engordando no porão da casa se agitam em cocorocós. As pulgas pulam nas frestas do assoalho.
A mãe, Maria Memória, recolhe os olhos dos afazeres domésticos, quefazeres dignos de toda mulher que preze o seu lar. Ainda não está gordinha, mas já vive época de útero cheio. É o sexto vivo. É quase tempo de apontar o brotamento. Uns poucos dias atrás, se percebeu com embaraço de barriga. Justo quando as regras teimaram em não sangrar. Mas é noticiário de poucos dias, vai deixar passar mais um tempo da semeadura do Ogum. Está surpresa que ele não tenha feito nenhum comentário de curiosidade, com os gêmeos foi o primeiro a apontar o brotamento. Logo, todos se vão movimentar na expectativa da colheita do plantado. Mais uma boca, mais um filho do Ogum. Passa as mãos sobre o ventre livre, sente crescendo a beleza escura-como-a-noite da criança, com se fosse uma encantaria. Tem na certeza que será outra Maria.
Olha para aquela que educa com carinho, renúncia e devotamento, ela chega em redemoinhos, linda na sua cor de negra e carapinha dura, desenrolada em dezenas de finas tranças, corridinhas, enfeitadas com miçangas. Os olhos amendoados são duros de enfrentar. Jura que ela está fora de lugar. É uma boa menina, não aprendeu as maldades que a vida tem
—        Mamã, mamã!
—        O quê, minha filha?
—        Acabei de ouvir na praça...
—        Fala logo, guria.
—        Criaram uma nova lei.
—        Isso lá, é novidade, mocinha...
—        Mamã, agora só pode casar quem planta dez árvores.
—        O quê?
Memória para de se afumentar. Isso é novidade pra lá de grande. Esquisita. Não via serventia imediata de plantar tanta árvore, será que vão aumentar o mato do capão? Ali, só tem corvo vestido de preto. Nem imagina como alguém tenha chegado nesse número de dez árvores. Mas enfim, nunca se sabe quem vai abrir a porta antes dela ser aberta
—        Isso mesmo que a senhora escutou.
—        Por quê?
—        Deve ser pra ajudar a diminuir o calor fazendo mais sombra
—        Tem coisa aí, algum safado querendo vender semente ou buraco no chão.
—        E tem mais...
—        Diz tudo de vez, menina.
—        E pra separar depois de casados tem que plantar vinte árvores.
—        Por quê?
—        É certo, tem lógica.
Maria Cariciosa se vira e encara o pai não natural, aquele que recria os filhos do Virgílio, sabe que cavalo dado não se olha os dentes
—        Qual a justeza desse raciocínio, Ogum?
—        Pra reparar o paraíso destruído custa mais caro, minha postiça.
—        Mas que paraíso, negão?
Memória se intromete de supetão, não tem medo de escorregar da língua e atravessar o samba
—        Minha preta, o lugar das delícias é o casamento.
—        Sse existe céu o inferno é por aqui.
O Ogum amoroso não se deixa assustar, a colher é que sabe a quentura da panela, ignora que a sua preta graúda vive de provocar, é o seu jeito de viver um dia depois do outro
—        O que Deus uniu ninguém pode separar, minha preta.
—        Nem sempre, negão, nem sempre.
—        De acordo minha preta, temos casos e casos, conheço casal amigado com fé que pra mim casado é.
—        E daí?
—        Agora, com uma ajudazinha pra natureza, já pode estender o pé até onde lhe chega o lençol, casamento naturalista.
Maria Cariciosa apenas observa, aprendeu que no duelo daqueles dois não há espaço para desgarrados. Os gêmeos brincam na volta do Ogum.
Maria Memória desmancha aquela disputa com um virar de ombros. Olha para sua menina, pensa no vestido branco preparado para Maria Cariciosa, em moldes de casamento. Vê a si mesma, entrando na igreja, feliz, radiante, o beco em alvoroço de festa, e agora, mais isso de plantar árvores, grita com raiva
—        Isso é coisa desses comunistas.
—        Mas que droga mamã, isso lá interessa?
—        Interessa, sim.
—        Mamã, quero saber do meu casório com o Manualdo.
—        Calma, mocinha, nos últimos recursos o negão sai plantando árvores pela rua.
A menina ainda solteira de direito, quase casada pelos fatos, lança olhar para a sala da televisão, preto e branco, mas, também, sala do jantar, visita ou quarto dos irmãos, vê o paizão da mãe, agarrado nos gêmeos
—        Você planta, Ogum?
—        Já tenho tudo em incubação.
Esse é o tal que vai resolver com as plantações de árvores quando tudo o mais tiver falhado. Um pai biônico. Boné de couro enfiado na cabeça, ferroviário, na cor preta, lembrança dos tempos de ferrovia. Barba branca falhada, por fazer. Não se lembra de ver o pai Ogum sem o boné. Nem percebe algum aforçuramento de empolgação. Começa a duvidar que esse casamento arrede das intenções. Aqui na vila ou no beco, tudo é apenas vontade. Ainda vivem sem esgoto e a energia continua a chegar num único poste. A força sai num emaranhado de fios desencontrados. O beco do pau dos fios da luz. Fincado bem na entrada. A cada novo morador mais fios nascem naquele emaranhado. E, a cada dia, as chances de uma desgraça são maiores. Bombeiro ou ambulância não entra no beco, só derrubando o pau cravado no chão. A água não chegou em todas as casas, não existem milagres. É preciso fazer fila de espera na bica pública com as latas de recolher água nas mãos
—        Donde menos se espera não sai nada.
—        O que foi, minha filha?
—        Nada, mamã, apenas resmungos.
Até nem parece que é com Ogum essa emergência das árvores, já está voltado para o televisor, a Cariciosa olha para o homem que tem préstimos de pai emprestado e desvenda mais outro mistério, é verdade que cada um só dá o que tem
—        Mamã, que jeito de árvore se planta nestas quenturas?
—        Não sei, não.
—        É não ter o que fazer!
—        Tanta coisa pra meter na cabeça e agora mais essa.
Pensam no barraco que precisa ser construído. Nada dessas coisas de madeira e lona. Tudo bem feitinho pra não ter rato e barata e sapo. Têm nojo de sapo, odeiam ratos, mas da barata fogem como condenadas. Não basta afugentá-las, é preciso exterminar. Entram em pânico. Assustam todos na volta. Até quem não tem medo se assusta com a algazarra, a desordem e a bagunça. Correm para longe. Elas jamais se atrevem a enfrentar o feitiço das baratas. Saem em retirada e aos gritos, acho que para afastar o pesadelo ou assustar os insetos se deixam ficar com estremecimentos pelo corpo.
Antigamente, quando os navios carregavam gente como escrava, de um lugar para outro, houve uma vez um rei, o chamavam pelo alusivo de Mularara, que cuidava de baratas para tirar remédios e alimentos. A presença de baratas no reino era presságio de felicidade. Menos para o rei que não achava esposa que lhe desse um filho para continuar sua linhagem. Nenhuma mulher aceitava morar em sua casa simples, infestada de baratas, distante do palácio real. Certo dia, Mularara fez uma longa viagem em busca de esposa. Após percorrer muitos caminhos, o rei retornou com a bela Moliehi. Quando chegou à casa do rei, a esposa que era muito aguardada ordenou o extermínio das baratas. O rei de superstição maior que o amor por Moliehi desordenou o mata-mata das baratas. Muito entristecido mandou que a esposa fosse isolada do reino. E as baratas saíram poupadas, para a felicidade do seu povo. Moliehi, a partir daquele dia, desejou que todas as mulheres tivessem nojo das baratas e obrigassem com gritos de desespero que os homens as esmagassem. Casamento de imposição tem pouca duração, mas dobrada é a maldição feita com cor de verdade da esposa desprezada.
Em uma destas noites de muito calor, depois do banheiro construído e os canos dos esgotos chegarem ao valo das águas escuras, Manualdo estava em visita de reconhecimento. Ogum não chegara do trabalho. Naquele sábado arrumara hora extra. Todos estavam constrangidos, evitavam dizer alguma bobagem e estragar a primeira visita de consideração. Cariciosa foi a primeira a quebrar o gelo do acontecimento, correu aos gritos pela casa
—        Barata, uma barata!
Era a maldição da bela Moliehi que se cumpria.
Manualdo, que só estava em visita de primeiros cumprimentos com a família da menina, se armou com o tênis e esmagou a nojenta no chão. Ergueu o corpo e com pose de macho protetor gritou
—        Outra barata, mais uma e outra...
Correu atrás das baratas. Os bichos procuravam as frestas e os buracos no assoalho. As mulheres procuravam as cadeiras e as mesas. Umas fugiam das outras. E o Manualdo seguia esmagando. Achatou uma... depois outra e mais outra. Um rastro de Moliehi com tripas esmagadas
—        Onde?
—        Ali, ali e ali!
—        Ai, ai, ai, meu Deus!
—        Outra, tem outra!

O jovem guerreiro esmagava uma a uma aquelas que tentavam entrar. Elas vinham por baixo da porta. Paredes e chão estavam repletos de corpos esmagados pelo cassete do Manualdo. O rapaz, depois de perceber que se tratava de uma invasão, tirou o outro tênis e armado atirava como uma metralhadora, com as duas mãos. Quando parte do exército invasor pareceu recuar, o artilheiro abriu a porta e seguiu a trilha das fujonas. Ele caminhava descalço sobre os corpos feridos, pequenos ou grandes. Nem todas puderam retornar para a escuridão do esgoto da casa, seus corpos ficaram estendidos sobre o chão de terra. Trucidados. O rapaz tomou uma decisão rápida
—        Cariciosa, me alcança o querosene! — a solução final
—        Cuidado, meu amor.

Levantou a tampa da caixa do esgoto e os gritos de pavor tomaram conta de todos, eram muitas, milhares de baratas se reunindo para o ataque final. Famílias inteiras. Quem sabe, o final dos sonhos fosse uma invasão de baratas

—        Meu Deus!
—        Vamos fugir!
—        Chamem mais ajuda!
Manualdo jogou o querosene no buraco e riscou um fósforo. O buraco se desfez em chamas, sob o clarão da fornalha. Foram torradas. Naquela noite, Manualdo conquistou o direito de entrar para a família. O preço pago é continuar a sentir as baratas descascadas rastejando por suas pernas, mas de qualquer modo dos males o menor. A Maria Memória saiu com o rapaz pelo braço a apresentar pelo beco
—        Esse é o Manualdo, rapaz de coragem e desembaraço, matou as comunistas!

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Leia também: 
04 - O domingo

06 - Venha e me entre

É / O que é, o que é?

Gonzaguinha





É
Gonzaguinha


É!
A gente quer valer o nosso amor
A gente quer valer nosso suor
A gente quer valer o nosso humor
A gente quer do bom e do melhor...

A gente quer carinho e atenção
A gente quer calor no coração
A gente quer suar, mas de prazer
A gente quer é ter muita saúde
A gente quer viver a liberdade
A gente quer viver felicidade...

É!
A gente não tem cara de panaca
A gente não tem jeito de babaca
A gente não está
Com a bunda exposta na janela
Prá passar a mão nela...

É!
A gente quer viver pleno direito
A gente quer viver todo respeito
A gente quer viver uma nação
A gente quer é ser um cidadão
A gente quer viver uma nação...

É! É! É! É! É! É! É!...

É!
A gente quer valer o nosso amor
A gente quer valer nosso suor
A gente quer valer o nosso humor
A gente quer do bom e do melhor...

A gente quer carinho e atenção
A gente quer calor no coração
A gente quer suar, mas de prazer
A gente quer é ter muita saúde
A gente quer viver a liberdade
A gente quer viver felicidade...

É!
A gente não tem cara de panaca
A gente não tem jeito de babaca
A gente não está
Com a bunda exposta na janela
Prá passar a mão nela...

É!
A gente quer viver pleno direito
A gente quer viver todo respeito
A gente quer viver uma nação
A gente quer é ser um cidadão
A gente quer viver uma nação
A gente quer é ser um cidadão
A gente quer viver uma nação
A gente quer é ser um cidadão
A gente quer viver uma nação...






domingo, 27 de maio de 2012

Tratado Geral sobre a Fofoca

José Angelo Gaiarsa

Tratado geral sobre a fofoca : uma análise da desconfiança humana / José Angelo Gaiarsa. - São Paulo : Summus, 1978.








Eu sei

Papas da Lingua






Eu sei
Papas da Língua


Eu sei
Tudo pode acontecer
Eu sei
Nosso amor não vai morrer
Vou pedir aos céus
Você aqui comigo
Vou jogar no mar
Flores prá te encontrar...

Não sei...
Por que você disse adeus
Guardei!
O beijo que você me deu
Vou pedir aos céus
Você aqui comigo
Vou jogar no mar
Flores para te encontrar...

Hey, Yei...
You say good-bye
And I say hello
You say good-bye
And I say hello
Oh! Oh! Uh!
Yeah! Yeah! Yeah! Yeah!
Hey! Yeah! Yeah! Yeah!
Yeah! Yeah! Yeah! Yeah!...

Não sei
Por que você disse adeus
Não sei
Guardei
O beijo que você me deu
Vou pedir aos céus
Você aqui comigo
Vou jogar no mar
Flores prá te encontrar...

Yeah! Yeah!
You say good bye
And I say hello
You say good bye
And I say hello
Oh! Oh! Oh! Oh!
Yeah! Yeah! Yeah! Yeah!
Yeah! Yeah! Yeah! Yeah!
Yeah! Yeah! Yeah! Yeah!
Uh! Uh! Uh! Uh!...


Composição: Serginho Moah e Fernando Pezão

O domingo


Becos sem saída - O descolocado
IV
baitasar
É domingo.

Maria Memória odeia os domingos. Muitas bocas para alimentar que não dão auxílio. Panelas, pratos, colheres, garfos e facas para lavar e nenhuma ajudância. Marido e crianças atirados pelos cantos. Dá de ombros e conclui as preliminares. Mesmo porque dar de ombros é o que consegue nestes tempos de pau mole e barriga vazia. Olha o pátio, fiscaliza o chão de terra e alguma grama
—        Odeio essa terra nos pés.

Fica na procura de formigas, soterra todas com seus pés descalços, nenhum remorso. Bichos teimosos. Olha para o céu na procura de insetos. Pronta para esmagar com as mãos
—        Quem com ferro fere, não sabe quanto dói.
—        São apenas moscas, Ogum.

A mesa está posta sob a lona verde-oliva esticada. As laranjas, o pão, a farofa, a couve, os bolinhos de abará. A banana da terra será servida frita como sobremesa. Tudo em seu lugar. Causa admiração. Volta à janela, espera o movimento de lá para cá. O beco tem ficado deserto por estes dias. Na parede do rádio está pendurado o quadro do Santo Padre, ajeita um pequeno desvio que acredita ter visto. Uma inclinação para a direita.Vai até o altar do seu orixá Obá. Faz reverência de reza. A sua casa está em ordem. Pega seus balangandãs com alegria. Adora aquelas pratas pendentes na cintura.

Chegam. Estão exatos nos minutos ajustados em combinação. As necessidades das duas casas foram satisfeitas. Uma pode se preparar sem contrapor-se a outra no uso das mãos. Sem urgência. A cada vez que estendeu a toalha à mesa, cobrindo-a, imaginou como deveria ser de préstimo ter tais mãos ao alcance da vontade. Iniciar pelas mãos, continuar pela língua e acabar indecente no fogaréu brotado entre as pernas. Não consegue esquecê-las. Pensa que a falta de serventia do emprego com pagamento de dinheiro, devem deixar aquelas mãos famintas de ajudar. Roga pelo perdão divino. A Ana dos bicos arretados lhe estende a mão. Não tem estreiteza naquele aperto.
Memória percebe no peito da escrava Ana um pingente de proteção. A mulher que visita percebe o olhar da dona da casa, comenta que é seu amuleto de sorte
—        Lindo.
—        Obrigada.
A Ana que visita agradece enquanto leva as mãos ao peito, instinto de medo, suspeita de desconfiança
—        É um cisne.
—        Não... é uma cegonha.
—        Não entendi.
—        Queremos muito ter filhos.
—        Não precisei de amuleto, tenha tido sorte além da conta.
A Ana desconfiada pensa nessa gente de sorte que nem sabe de sorte
—        To pensando em trocar por um escaravelho.
—        Por quê?
—        Pendurado no pescoço faz com que o amor seja para a vida toda, mas precisa ficar na altura do coração.
—        E se não funciona como a cegonha?
Ana está desconfiada, olha para a dona do convite desta visitação e desanima das boas intenções
—        Não entendi.
—        Nada, bobagem.
E vira-se para o negralhão. O homem é mais vigoroso no perto da aproximação e, por certo, conta com a proteção dos deuses
—        Bom dia, senhor Ogum.
—        Bom dia, minha senhora.
Naquele aperto das mãos se derrama com força e abundância. Sente um estremecimento nas coxas, quase como um desfalecimento das vontades. Os joelhos se dobram levemente. Ninguém percebe. Essas mãos podem fazer da mulher ileié engaiolada uma negra desmiolada, entregue aos seus abusos. Lembra que precisa rezar
—        Sejam bem-vindos.
—        Muita gentileza de vocês nos receberem em sua casa.
—        Fiquem à vontade.
—        Alguém poderia trocar de estação, colocar alguma coisa mais alegre?
Sugere Virgílio, apontando para o rádio colocado na janela, como se estivesse observando o vai-e-vem daquele almoço. Olhando e guardando na memória, depois espalharia tudo pelas vizinhanças que estivessem na sua sintonia, outros rádios velhos e desconfortáveis como a vida que levam
—        O que vocês querem ouvir?
Corrige a Memória
—        Cartola.
Foi a sugestão da vizinha, agora mais relaxada, mas ainda com a  mão no peito
—        Por esses tempos, só toca coisa de cabeludo
—        Gente, esses cabeludos...
—        Vocês já ouviram aquela ‘Quero que vá tudo pró inferno’?
—        Vamos comer... feijoada fria não cobiça de devorar.
Convida a dona da casa, ansiosa da prestação de serviço à mesa. Lugar de seus confortos e certezas. Na cama presta serviços de utilidade ao Virgílio, mas isso de cozinhar é o prazer da mulher ileié de voar da gaiola.
Os estômagos satisfeitos relaxam, na medida em que a mesa esvazia
—        Tudo perfeito, vizinha...
—        Obrigada... seu Ogum.
Foi um dia de muita conversa reticente. Palavreado mole de muito tempo se passando. Arrastado. Vontades contrariadas. O que era dito não enchia o vazio da vontade insatisfeita. Aparências. Lembrança nostálgica do jamais feito. Desfeito antes do acostumado. Uma festa que não acabou. Um descontentamento subversivo. Uma vontade de comer insatisfeita. Nunca chega a vez da boca.
O almoço já se perdia na memória, os dias passam rápido e as noites dormidas escorregam pelo ralo do temporal, um jeito de acenar boas-vindas e despedidas.
Assim, inexoravelmente, outros dias e noites se vieram. Tensos. Monótonos. Intoleráveis. Mecânicos. Explosivos. Não havia mais garantias de nada.
O improvável se sucedeu: Virgílio se foi com a zinha do Ogum. Desapareceram Virgílio Silva e Ana Rosa Silva. Ele com os dentes de ouro e ela com seu fogo de lamparina. Tornaram-se invisíveis.
Durante muitos dias, depois do sumiço, Maria Memória ficava quase desmaiada no acordamento do dia, como se o seu espírito estivesse ausente. Quando o sol rasgava a pele que cobria à noite, ela voltava e repetia que o seu Virgílio estava encantado em uma árvore, estava com as sementes no chão. Eu queria lhe assoprar com o jeito dos ventos daquela casa, o seu homem, por certo, havia encontrado o caminho para o quilombo do rei Zumbi e esperava a estação de brotar do cio da terra a nação dos negros. Não me tinha ouvidos. Nas horas de desmaiamento, parecia que ficava sem a própria alma, não entendia o motivo da desaparição. A dor desconhecida não tinha cicatrização. Parecia que dormia, mas não dormia, sofria da desconfiança dormida.
Em uma manhã de desconfiança acordada, cheia de pesadelos de caveiras e vermes, chegou a desejar ter o corpo do marido desaparecido para desenterrar. Ninguém se espante ou vire as costas para essa mulher, que dor de desaparecimento é assim mesmo, mistura de esperança com o cansaço da espera inútil. Um desejo de desfecho na procura de uma explicação, um ponto final que nunca chega. Uma desconfiança que não se termina
—        Cruz e credo, Deus o tenha vivo.
Depois do tempo de espera, sem as notícias de explicação da fugição, a separação do vínculo conjugal foi o mais óbvio para todos. E, diante dos olhos sonolentos das crianças, o negrão espadaúdo passou a cuidar das carnes da Maria Memória. Assumiu os compromissos do Virgílio. Para a criançada, ela dissera que era o melhor a fazer, precisavam encontrar os meios para se desfazer das despesas, contas de comer e vestir. Toda família precisa de um chefe.
Coitado do espadaúdo, levanta antes do galo cantar e se sai para a central dos legumes e verduras. Não reclama. Nem vem para os almoços, fica pela obra de tijolos de onde sai para a segurança da firma. E a Memória, se conserva todas as manhãs em acordamento. Observa o seu pássaro engaiolado, pulando de galho em galho, submetido às vontades daquele esqueleto de arame. Aquela eleié está sem entender o seu pássaro engaiolado.
Virgílio deixou pra trás os filhos e os ganhos avulsos dos biscates. Não trocou explicação. Virou só lembrança de antepassado.
Enquanto espera para ter o negão Ogum ajuizado de emprego, ali, na clausura da acomodação doméstica continua enfiando as mãos. A roda da vida parece que carrega o seu destino pra cá, depois que leva pra lá. O homem volta todas as noites de costas curvadas e as mãos assoviando. É o novo chefe de família. É assim mesmo, o novo sempre vem vestido de velho.
Na vitrola, achada atirada pelo chão das ruas, último presente do Virgílio, antes da sumidura dele, escuta a voz de João Dias
─         Nas tuas mãos deixei meus sonhos...

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Leia também:
03 - O Hino Nacional

05 - Só casa se plantar dez árvores

sábado, 26 de maio de 2012

O Hino Nacional


Becos sem saída - O descolocado
III
baitasar

Na chegada do seu roteiro trabalhista, o Virgílio vê Maria Memória que não ocupa seu lugar de sempre. Está acordada. Recostada na cama. Olhos estalados feito dois ovos fritos. Rolinhos a abocar a carapinha curta, coberta por lenço colorido. Neste despedaçar da rotina ele sente vontade de perguntar
—        Quem morreu?
Mas cala de cansaço. Quando um não quer os dois não brigam ou um só apanha. É o seu jeito, não é um contrariador quando o assunto é a Memória. Senta na cama para tirar as botinas
—        Por favor, homem de Deus, tira isso lá fora.
Os sussurros da Memória são ordens de sargento. O soldado fora delatado à sentinela pelo ocre das botinas, sem outra alternativa, levanta e vai até um dos cantos da casinha e desveste o sapato de cano
—        Não esquece de tirar as meias!
Olha para os pés e o dedão aponta para fora. Coloca água na bacia sobre a mesa, lava os braços e o rosto com um sabão de barra. Depois coloca a bacia no chão, tira as meias e mergulha os pés na água. Sente um pequeno arrepio enquanto esfrega os pés com o sabão. Seca o rosto, os braços e os pés. Deixa a toalha largada sob a mesa. Joga a água da bacia pela janela. Está pronto. Volta para a cama.
Na conversa daquela madrugada, ela o convence que precisam ser mais aproximados com os vizinhos. Afinal, é dezembro. O natal está chegando. O marido lhe fala do encontro com a vizinha
—        Hoje encontrei a vizinha no bonde, parecia cansada... desci no meu ponto e ela seguiu viagem.
–          Pois eu não vi movimento de saúva pela casa.
Quase lhe reclama que também está muito cansada e solitária. Ela não se rende a falta de entusiasmo do marido que, num último suspiro, tenta resistir
—        Minha nêga, não acha um pouco atrasado?
—        Por quê?
—        Eles já moram há quatro anos, aí ao lado...
—        E daí?
—        Daí, sejam bem-vindos, estamos quatro anos atrasados, não reparem somos um pouco estranhos.
Irritada, vira-se de lado na cama e pergunta se ele não tinha que trabalhar, o Virgílio responde com um dar de ombros
—        Acabei de chegar, minha nêga.
—        Chega, chega, está decidido, no domingo, faremos uma feijoada de boas-vindas e encerramento do ano.
O assunto estava apostado. Pronto. Sem mais nenhuma algazarra ou tumulto. Apagam-se na luz escura. O silêncio do sono invade a cama resfriada. Cada um para o seu lado. O braseiro foi amornado. Não querem mais filhos. Virgílio ronca quase que no instante em que fecha os olhos. Memória se vira e revira. Desiste de cutucar o homem. Quando um não quer o outro se revira e dorme
—        Assim é melhor, fico sem nenhum pecado da carne com necessidade de se confessar
Fica ali, sem movimento, a olhar a escuridade do negrume. O fechamento dos olhos se demora e o abraço do sono não lhe chega, ele está arredio e desconfiado. Pede aos anjos um tantinho de sono, mas os moleques não devem andar por esses lados. Depois de muito fuxicar adormece e os ouvidos emudecem os olhos. Afunda no assoalho da cama.
Naquela sexta-feira, Maria acorda entusiasmada. Coloca-se em movimento com energia redobrada. Vai até a vizinha para os convites. Tudo decente e rápido
—        Bom dia.
—        Bom dia.
—        No domingo vamos fazer feijoada.
—        É?
—        É... e vocês estão convidados.
—        Não sei, preciso falar com o Ogum.
–          Vizinha, vocês serão muito bem recebidos em nossa casa.
O dia se vem e se vai sem mais temores ou sustos. A noite já entra pela casinha da Memória e as crianças estão acomodadas para o sono. Revista os cantos e recantos, enquanto escuta as suas músicas no rádio
—        O que seria de mim sem esse companheiro?
Ouve o locutor, naquela sua boa voz, anunciar uma das suas músicas preferidas, tem muitas que gosta mais que outras de cantarolar pela casa, algumas são mais queridas que outras, como os filhos, ela gosta de todos... claro. Olha o Supimpa e o Lamparina com olhos de mãe sempre atenta. Mas os olhos que guarda para Cariciosa são de amiga e cúmplice da guria. Ela fica danada de contente assistindo a menina crescer
─         Agora para as nossas ouvintes, um samba-canção de 61, da autoria de Evaldo Gouveia e Jair Amorim, na voz de João Dias, Perdão Senhorita
Não se contém e sai a cantarolar. Adora João Dias. Faz coro ao cantor
—        Perdão senhorita se o amor de repente aconteceu
Quando num súbito de susto e estremecimento ouve a rádio interromper a programação e tocar o Hino Nacional. Para junto das paredes mornas do fogão de pedra
—        Ué, o que é isto?
─         Boa noite.
—        Boa noite. — responde ao homem da voz sobranceira.
Uma voz grave e pausada, definitiva, anuncia o discurso do Excelentíssimo Ministro da Justiça
─         O Presidente da República, ouvido o Conselho de Segurança Nacional, e considerando que a revolução de 31 de março de 1964...
Maria Memória perde sua atenção daquela fala tão sisuda. Está alegre. Convencida da bondade das pessoas. Solidariedade. Fraternidade. Família. Batuque. Deus. Saravá, mas aquela voz a perseguia, torturava seus ouvidos
─         O Presidente da República, no interesse nacional, poderá decretar a intervenção nas Vilas e Municípios...
Ela só quer ser feliz, alguém cale essa voz e toque sua canção
─         O Presidente da República, em qualquer dos casos previstos na Constituição, poderá decretar o estado de sítio...
Deus, ela confia em você, faça alguma coisa
─         Fica suspensa a garantia de habeas corpus, nos casos de crimes políticos, contra a segurança nacional...
Deus, ela não sabe disso de habeas corpus, passe para o lado dos perdedores. Ela ainda não sabe, mas há males que vêm para o mal
─         Excluem-se de qualquer apreciação judicial todos os atos praticados de acordo com este Ato Institucional e seus Atos Complementares, bem como os respectivos efeitos...
Obá, não a abandone, ela conta com você
─         O presente Ato Institucional entra em vigor, nesta data. Revogadas as disposições em contrário, 13 de dezembro de 1968; 147º da Independência e 80º da República...
Deus... cale-se, você não está entendendo nada. A voz se cala e a Maria volta a ouvir o Hino Nacional. Está assustada. Continua parada junto à fornalha de barro. Não chama pelo Virgílio. Fica em silêncio. Talvez, nem descubram que eles existem.
As rádios voltam às canções. Olha para os lados. Respira aliviada. Nada mudou para Maria. Foi só um susto. Recomeça o zelo cuidadoso e desconfiado. Não sossega. Exausta se vai para o descaso do sono. O silêncio desalumiado se abre e a toma entre os braços. Deus é bom. Sente que ele cruza os braços em suas costas, a voz lhe escapa. Está encolhida. Dobrada pelos joelhos. Mais um dia de aparência lisa se vai concluir.
O sábado se mostra pequeno para as tarefas de anfitriã. Mas faz tudo dar certo. Sem mistérios. Sem choradeiras. Graças à vontade de Deus e seus orixás. Não vê o dia passar. Não presta atenção em nada. O banquete para os novos e para os antepassados está sendo aprontado.

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04 - O domingo