Becos sem saída - Tuca e Farofa
III
baitasar
Quando chegam, dona Clara já espera pela aventureira, foi avisada pelos
gêmeos. A Tuca fugiu na noite dos estouros e vagou perdida, até àquela hora da
tarde — Coitada... — ela tem estrela, Manualdo teve destino. E a Cariciosa tem
idade de moça para correr atrás do bicho assustado.
A moça patroa está acompanhada do marido, o delegado Calçacurta. O
encontro foi simples, nada de muitas emoções, tudo muito contido — Obrigado,
Maria.
— Veja se isso tem razão de
agradecer.
— Mesmo assim, obrigado.
— O que aconteceu, senhora? —
as duas se olhavam como nunca antes haviam enxergado uma da outra — Os fogos de
ontem, as duas ficaram enlouquecidas.
— Esses bichos não aguentam.
— Quando abri uma das janelas
para ver os fogos, essa me pula e sai correndo pelo jardim até achar passagem.
— todos falam palavras de indignação, em voz alta davam o dito das explosões e
estrondos dos fogos recheados de brilho e sonhos, pelo não dito, toda a beleza
virara queixume — Todo ano, é uma gastadeira despropositada de dinheiro.
— As explosões a deixaram em
pânico.
— Em desespero, Maria... todo
ano é assim.
— Coitadinha... — Fiquei numa
angústia, a minha filhinha perdida por essas vilas, com esses cachorros
vira-latas soltos, por aí.
É isso mesmo dona Clara, esses vileiros são criados soltos feito bezerros.
Esses bichos são a escória dos vira-latas. Têm histórias que vêm das lonjuras,
no tempo dos tropeiros e das conquistas das terras aos castelhanos. Tinham
gosto pelas viagens. Dormiam enfiados em algum pelego de carneiro esparramado
pelo chão. Nas noites frias ficavam enrolados nas pernas dos tropeiros na volta
das fogueiras, ouvindo as histórias daqueles homens duros, aquecidos pelo
chimarrão. Ganharam o direito de ficar por ali, sem ter direito. Sabe como é
dona Clara, foram se acumulando, gente vira-latas não carece de muito espaço.
Vão se empilhando — O que importa é que ela está bem.
— Meus amigos, não adianta
chorar pelo leite derramado.
— É isso, o que está feito...
está feito.
— Obrigado, novamente. — Não
foi nada, senhor Calçacurta.
Com a Tuca no colo da dona Clara, os três se dirigem para o carro. Maria
Memória aparece quase no fim da emergência, carrega a Destino no colo dos
braços e faz das tetas a mamadeira da criança — Seu delegado!
— Sim? — Como o Supimpa tem
se saído?
— O rapaz é muito bom, tem
futuro... boa árvore, bom fruto.
— Sabe o que é, seu delegado?
— Diga... — a mãe Maria Memória tem um pequeno tempo de dúvida, o filho, por
certo, não há de gostar do seu intrometimento
— É que ele não tem aparecido
em casa, diz que é muito serviço.
— Nem tanto, vou conversar
com o rapaz... é verdade que estamos envolvidos com alguns serviços extras, mas
não é pra tanto.
— Será que tem a ver com
algum rabo de saia?
— Talvez, dona Maria... — Vamos
indo, Calçacurta. — o delegado faz um murmúrio de aprovação, enquanto segue falando.
A mulher tomada de impaciência já está no automóvel da família
— Essa semana o rapaz vai
estar muito ocupado.
— Por quê? — segue a mãe em
intromissão nos negócios de polícia
— Encaminhei ele para umas
aulas sobre o jeito da policia dos gringos.
— É mesmo? Isso é bom?
— Sim, coisa de americano que
nossa gente precisa se instruir-se.
— Mas o meu menino não sabe a
língua dessa gente... —Não precisam saber falar como os gringos, só precisam
aprender a fazer como eles. — o delegado Calçacurta já começa demonstrar
impaciência, de boas intenções o inferno está cheio e todos sabem que jacaré
não entra no céu pelo tamanho da boca, a velha está a lhe tirar mais
informações que doente de cabeceira — Na verdade, o polícia professor já
morreu. Foi desviado da sua rota pela castelhanada, em Montevidéu...
— Hã... coitado, que pena. —
É a vida, mas já temos gente que pode ensinar pelo jeito do professor. — Uns
vem, outros vão. — é bem assim, para morrer basta estar vivo. E sujeito na
procura de encrenca encontra atalho, caminho fora da estrada comum, e aí, não
tem jeito, encurta as distâncias com o eterno — Esse se foi... — Mas podia ser
diferente, o senhor não acha?
O delegado lança um breve sorriso, a Memória sente um frio de espinha lhe
acorrer pelo corpo, lembra de dito do Virgílio, dizendo-se as verdades,
perde-se as amizades — Muito bonita a sua filha.
E entram no carro. O motorista acelera, ele mantivera o motor ligado
nesse tempo todo. Memória lembra-se de comentar — Menina moça essa tua patroa...
— É mesmo, quase guria. — Bem
mais velho esse teu patrão.
— É. — E daí... mais nada?
— Não sei, mamã, parece que o
delegado vem cuidando da dona Clara desde os doze.
— Coitada da Virgem Santa,
esse faz criação pra saber a procedência — a menina chora depois que lhe foge a
teta, Maria não lhe ouve. Ninguém percebe a sua preocupação enquanto o carro
lhe foge das vistas — Ta bem sua comilona, olha aqui... toma a teta.
O dia continua seu curso mormacento. No entardecer, o polícia paisano Supimpa
chega a casa. A Maria Memória já tem dito que o rapaz deve ter outro domicílio
de uso, pois não se para mais neste daqui — É muito serviço, mãe.
— Mas que diabo de serviço é
esse, que faz ficarem tantos dias longe de casa?
— Não tenho permissão de
contar.
— Ahhh, agora me virou agente
das coisas secretas.
— Quase isso...
O bugre Manualdo se vem no socorro do cunhado — O que importa é que o
cunhado ta no serviço do bem... — o Supimpa não está fardado de polícia, mas o
jeito de olhar não é mais do guri cuidador de galinhas — ... cuidando da
proteção da gente da vila.
— Cuidando da gente de bem
que não quer confusão. — o pai Ogum chega a se mexer na cadeira para fazer
alguma pergunta, mas lá por dentro da sua cachola se põe a pensar que não vale a
pena nenhum intrometimento. As suas desconfianças não tem fundamento de
verdade. Sabe que imaginação demais põe a correr o bom senso. Tudo na medida
não há de atrapalhar. Volta para sua ressaca de dormir. Nem a televisão se
permite assistir. Na verdade, desde que levantou, sente o desconforto de ficar
com a cueca arriada pelo meio das pernas. O elástico não tem mais força de
prender na cintura. Ele puxa pra cima, ela teima e se vai pernas abaixo.
Acostumou e não se anima fazer movimento de mudança. A gente se acostuma com
tudo ou, pelo menos, faz cara de conformação. Vai pra lá e cá, com os fundilhos
incomodando longe do assento. A tanajura a descoberta mostra o cofrinho, está
sem os panos íntimos de proteção.
A conversa da mãe com o filho se vai pra cozinha, por ali, é sempre
assim, terminam o que começaram na volta da mesa, sempre na cozinha — Come essa
galinha, tem q-suco de uva na geladeira.
— To com muita fome.
— Não dão comida, por lá?
— Mãe, a gente não tem muito
tempo de comer, não. Quando muito se come um sanduíche. — a Maria Memória faz sinal
de desaparecimento pra todos na volta. Um a um vão indo para os cantos. Ela
senta ao lado do filho, sente saudades do pai do guri, sente saudades do irmão
do guri, sente saudades daquele guri que está sumindo das suas vistas
— Supimpa, me conta... arrumou
mulher... você ta namorando?
— Mãe, é apenas o meu serviço.
— Tem certeza, filho? — Mãe,
não se preocupa.
— Nunca vou deixar de me
preocupar.
— Mãe, o Lamparina, sim, é
motivo de preocupação.
— Por quê, meu filho? — o
coração da mãe se apequena
— Pedi informação ao doutor Calçacurta
e ele disse que por lá é complicado.
— Como assim? — Parece terra
de ninguém.
— Ai, meu Deus! — o rapaz
leva as mãos em jeito de arrumar o cabelo. Está com os nós dos dedos esfolados,
ainda não criaram casca e, por certo, doíam. Esse sentou praça, deu baixa da
vida de milico, mas continua sentindo-se um guerreiro, jaz como um soldado
carcereiro de si mesmo, parece estar preparado para não aceitar um não como resposta — Meu filho, machucaram as tuas mãos.
— Isso não é nada...
Deixou o coração errar, o vinho transformar-se vinagre e a doçura
implacável do pão mofou.
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Leia também:
28 - Entre fuscas e opalas
30 - Sim senhor! Meu senhor!
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