sábado, 28 de julho de 2012

Os nós dos dedos esfolados

Becos sem saída - Tuca e Farofa


III
baitasar
Quando chegam, dona Clara já espera pela aventureira, foi avisada pelos gêmeos. A Tuca fugiu na noite dos estouros e vagou perdida, até àquela hora da tarde — Coitada... — ela tem estrela, Manualdo teve destino. E a Cariciosa tem idade de moça para correr atrás do bicho assustado.
A moça patroa está acompanhada do marido, o delegado Calçacurta. O encontro foi simples, nada de muitas emoções, tudo muito contido — Obrigado, Maria.
—        Veja se isso tem razão de agradecer.
—        Mesmo assim, obrigado.
—        O que aconteceu, senhora? — as duas se olhavam como nunca antes haviam enxergado uma da outra — Os fogos de ontem, as duas ficaram enlouquecidas.
—        Esses bichos não aguentam.
—        Quando abri uma das janelas para ver os fogos, essa me pula e sai correndo pelo jardim até achar passagem. — todos falam palavras de indignação, em voz alta davam o dito das explosões e estrondos dos fogos recheados de brilho e sonhos, pelo não dito, toda a beleza virara queixume — Todo ano, é uma gastadeira despropositada de dinheiro.
—        As explosões a deixaram em pânico.
—        Em desespero, Maria... todo ano é assim.
—        Coitadinha... — Fiquei numa angústia, a minha filhinha perdida por essas vilas, com esses cachorros vira-latas soltos, por aí.
É isso mesmo dona Clara, esses vileiros são criados soltos feito bezerros. Esses bichos são a escória dos vira-latas. Têm histórias que vêm das lonjuras, no tempo dos tropeiros e das conquistas das terras aos castelhanos. Tinham gosto pelas viagens. Dormiam enfiados em algum pelego de carneiro esparramado pelo chão. Nas noites frias ficavam enrolados nas pernas dos tropeiros na volta das fogueiras, ouvindo as histórias daqueles homens duros, aquecidos pelo chimarrão. Ganharam o direito de ficar por ali, sem ter direito. Sabe como é dona Clara, foram se acumulando, gente vira-latas não carece de muito espaço. Vão se empilhando — O que importa é que ela está bem.
—        Meus amigos, não adianta chorar pelo leite derramado.
—        É isso, o que está feito... está feito.
—        Obrigado, novamente. — Não foi nada, senhor Calçacurta.
Com a Tuca no colo da dona Clara, os três se dirigem para o carro. Maria Memória aparece quase no fim da emergência, carrega a Destino no colo dos braços e faz das tetas a mamadeira da criança — Seu delegado!
—        Sim? — Como o Supimpa tem se saído?
—        O rapaz é muito bom, tem futuro... boa árvore, bom fruto.
—        Sabe o que é, seu delegado? — Diga... — a mãe Maria Memória tem um pequeno tempo de dúvida, o filho, por certo, não há de gostar do seu intrometimento
—        É que ele não tem aparecido em casa, diz que é muito serviço.
—        Nem tanto, vou conversar com o rapaz... é verdade que estamos envolvidos com alguns serviços extras, mas não é pra tanto.
—        Será que tem a ver com algum rabo de saia?
—        Talvez, dona Maria... — Vamos indo, Calçacurta. — o delegado faz um murmúrio de aprovação, enquanto segue falando. A mulher tomada de impaciência já está no automóvel da família
—        Essa semana o rapaz vai estar muito ocupado.
—        Por quê? — segue a mãe em intromissão nos negócios de polícia
—        Encaminhei ele para umas aulas sobre o jeito da policia dos gringos.
—        É mesmo? Isso é bom?
—        Sim, coisa de americano que nossa gente precisa se instruir-se.
—        Mas o meu menino não sabe a língua dessa gente... —Não precisam saber falar como os gringos, só precisam aprender a fazer como eles. — o delegado Calçacurta já começa demonstrar impaciência, de boas intenções o inferno está cheio e todos sabem que jacaré não entra no céu pelo tamanho da boca, a velha está a lhe tirar mais informações que doente de cabeceira — Na verdade, o polícia professor já morreu. Foi desviado da sua rota pela castelhanada, em Montevidéu...
—        Hã... coitado, que pena. — É a vida, mas já temos gente que pode ensinar pelo jeito do professor. — Uns vem, outros vão. — é bem assim, para morrer basta estar vivo. E sujeito na procura de encrenca encontra atalho, caminho fora da estrada comum, e aí, não tem jeito, encurta as distâncias com o eterno — Esse se foi... — Mas podia ser diferente, o senhor não acha?
O delegado lança um breve sorriso, a Memória sente um frio de espinha lhe acorrer pelo corpo, lembra de dito do Virgílio, dizendo-se as verdades, perde-se as amizades — Muito bonita a sua filha.
E entram no carro. O motorista acelera, ele mantivera o motor ligado nesse tempo todo. Memória lembra-se de comentar — Menina moça essa tua patroa...
—        É mesmo, quase guria. — Bem mais velho esse teu patrão.
—        É. — E daí... mais nada?
—        Não sei, mamã, parece que o delegado vem cuidando da dona Clara desde os doze.
—        Coitada da Virgem Santa, esse faz criação pra saber a procedência — a menina chora depois que lhe foge a teta, Maria não lhe ouve. Ninguém percebe a sua preocupação enquanto o carro lhe foge das vistas — Ta bem sua comilona, olha aqui... toma a teta.
O dia continua seu curso mormacento. No entardecer, o polícia paisano Supimpa chega a casa. A Maria Memória já tem dito que o rapaz deve ter outro domicílio de uso, pois não se para mais neste daqui — É muito serviço, mãe.
—        Mas que diabo de serviço é esse, que faz ficarem tantos dias longe de casa?
—        Não tenho permissão de contar.
—        Ahhh, agora me virou agente das coisas secretas.
—        Quase isso...
O bugre Manualdo se vem no socorro do cunhado — O que importa é que o cunhado ta no serviço do bem... — o Supimpa não está fardado de polícia, mas o jeito de olhar não é mais do guri cuidador de galinhas — ... cuidando da proteção da gente da vila.
—        Cuidando da gente de bem que não quer confusão. — o pai Ogum chega a se mexer na cadeira para fazer alguma pergunta, mas lá por dentro da sua cachola se põe a pensar que não vale a pena nenhum intrometimento. As suas desconfianças não tem fundamento de verdade. Sabe que imaginação demais põe a correr o bom senso. Tudo na medida não há de atrapalhar. Volta para sua ressaca de dormir. Nem a televisão se permite assistir. Na verdade, desde que levantou, sente o desconforto de ficar com a cueca arriada pelo meio das pernas. O elástico não tem mais força de prender na cintura. Ele puxa pra cima, ela teima e se vai pernas abaixo. Acostumou e não se anima fazer movimento de mudança. A gente se acostuma com tudo ou, pelo menos, faz cara de conformação. Vai pra lá e cá, com os fundilhos incomodando longe do assento. A tanajura a descoberta mostra o cofrinho, está sem os panos íntimos de proteção.
A conversa da mãe com o filho se vai pra cozinha, por ali, é sempre assim, terminam o que começaram na volta da mesa, sempre na cozinha — Come essa galinha, tem q-suco de uva na geladeira.
—        To com muita fome.
—        Não dão comida, por lá?
—        Mãe, a gente não tem muito tempo de comer, não. Quando muito se come um sanduíche. — a Maria Memória faz sinal de desaparecimento pra todos na volta. Um a um vão indo para os cantos. Ela senta ao lado do filho, sente saudades do pai do guri, sente saudades do irmão do guri, sente saudades daquele guri que está sumindo das suas vistas
—        Supimpa, me conta... arrumou mulher... você ta namorando?
—        Mãe, é apenas o meu serviço.
—        Tem certeza, filho? — Mãe, não se preocupa.
—        Nunca vou deixar de me preocupar.
—        Mãe, o Lamparina, sim, é motivo de preocupação.
—        Por quê, meu filho? — o coração da mãe se apequena
—        Pedi informação ao doutor Calçacurta e ele disse que por lá é complicado.
—        Como assim? — Parece terra de ninguém.
—        Ai, meu Deus! — o rapaz leva as mãos em jeito de arrumar o cabelo. Está com os nós dos dedos esfolados, ainda não criaram casca e, por certo, doíam. Esse sentou praça, deu baixa da vida de milico, mas continua sentindo-se um guerreiro, jaz como um soldado carcereiro de si mesmo, parece estar preparado para não aceitar um não como resposta — Meu filho, machucaram as tuas mãos.
—        Isso não é nada...
Deixou o coração errar, o vinho transformar-se vinagre e a doçura implacável do pão mofou.

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sexta-feira, 27 de julho de 2012

Heleno

A mais solitária das estrelas




Como definiu seu biógrafo Marcos Eduardo Neves:


Ele era temperamental como Edmundo, bonito como Raí, mulherengo como Renato Gaúcho, artilheiro como Romário, boêmio como Ronaldinho Gaúcho, inteligente como Tostão, de boa família como Kaká, elegante como Falcão e problemático como Adriano.

O tempo que ainda falta...

MAFALDA

Quino



quinta-feira, 26 de julho de 2012

Entre fuscas e opalas

Becos sem saída - Tuca e Farofa


II
baitasar
—        Minha filha, você pega açúcar mascavo e aperta na xícara, depois numa panela com bastante água, coloca as batatas e deixa no fogo até cozinharem e ficarem macias. Escorre, deixa esfriar, retira a casca e corta tudo em quadradinhos. Numa outra panela grande, aquece a manteiga, junta as maçãs e cozinha em fogo baixo, mexendo sempre, por 3 minutos ou até ficarem macias. Daí, você aumenta o fogo, adiciona o suco de limão, o açúcar mascavo, a canela e o vinho, e deixa ferver. Dá pra abaixar o fogo e cozinhar por mais 3 minutos. Pronto, é só colocar as batatas e misturar delicadamente por 2 minutos, tendo o cuidado para não quebrá-las e servir morno. — enquanto a Memória ensinava a tal receita, Cariciosa debruçou sobre o parapeito da janela, olhava para o céu, recordava as explosões e os gritos da alegria das pessoas, as surpresas do contentamento
—        Às vezes a gente se sente como gente. — a mãe olhou à tristeza da filha — Por quê?
—        A gente fica importante quando pode ver essas coisas bonitas.
—        Não foi pra ti que fizeram essa festa de cinema...
—        E daí? Ogum, a praça ainda é de todos. — o pai emprestado escuta a filha postiça, toma outro gole da cerveja gelada, o corpo foi amolecido pela bebida - parece despertencido dele - e antes de retrucar pensa que às vezes é melhor ficar quieto, em terra de cego quem não tem um olho é porque perdeu o outro — É?
—        E não é?
—        Menina, a miséria da favela só vê carnaval, futebol e foguetório...
—        Ogum... chega dessa conversa de lugar nenhum à nada.
—        Existe um mundo melhor, minha filha, mas é caríssimo. — Chega! Vamos comer estas batatas. Já esfriaram, mas estão deliciosas. — a Memória se coloca no meio da discussão, não é noite de banzé bobo, coisa de nada até lugar nenhum. É madrugada de deixar as palavras de tristeza voar para a lonjura do sem fim, esses queixumes que só voltem amanhã, mas ninguém precisa que voltem. Dá um ponto final as lamentações
—        Minha filha, em noite de Natal esse homem fica muito triste e chato, muito chato!
—        Não é tristeza, mulher... — É o quê, então? — o seu negão fica em silêncio, parecia que tinha a resposta na ponta da língua, parecia que tinha a mágoa na mira dos olhos, parecia que o sonho não acabava enquanto ainda tinha batata-doce com maçã e não amanhecia
—        A gente faz uma terra e ninguém abre os braços. — Negão, deixa de queixume que a boca do pobre só se enche com a terra da sepultura, isso é assim.
Ogum clareia os olhos para sua mulher — Isso é assim?
—        Não deveria, mas é. E ninguém vai mudar.
Manualdo coloca o copo sobre a mesa, parece que vem com discurso de improvisação duvidosa, mas só consegue pedir — Tem mais cerveja?
—        Agora chega! Vocês passaram a noite bebendo.
—        Quero beber até cair.
—        Isso é que não, bêbado vestido é sempre borracho... — pronto, o bugre despertou o instinto da Cariciosa, ela não sabe de onde vem sua aversão de bebida alcoolista — ... antes cautela que arrependimento, cachaça não dá juízo.
—        Minha preta, não sou nenhum idiota que não sabe o tempo de parar, de mais a mais, é só uma cervejinha.
—        Às vezes, Manualdo, é melhor ficar quieto e deixar que pensem que você é um idiota do que não deixar nenhuma dúvida.
—        Parece que a sua filha decorou um monte de merda!
—        Ouviu? É a cervejinha falando... — já passa da uma hora da manhã, as crianças continuam escorregadas nas camas. Sonham abraçadas aos presentes. Memória e Cariciosa limpam os pratos e copos sem serventia. Lavam para não deixar vestígios de comida para baratas. Ogum e Manualdo limpam a última garrafa de cerveja. Banham a garganta para não deixar vestígios de sóbrio. Estão bebãos. Já passam das três horas da madrugada quando as luzes são apagadas nas duas casas — Boa noite!
—        Boas noites... — a festa do Natal acabou.
A Cariciosa põe olho de curiosa no Manualdo jogado de barriga na cama, babando pela boca aberta e ventilando pela cueca. Dorme a sono solto. A jovem mãe revira os olhos para cima e agradece a graça divina. O marido não é bêbado por falta de esforço, controle das vontades — Obrigada, minha Senhora, Mãe de todos, por tirar da cabeça do Manualdo a vontade de beber.
Na manhã seguinte, a ressaca está hospedada em cada um dos bebões, apenas a necessidade de sobreviver os faz levantar, caminhar e agarrar os restos da festa. Não falam. Não abrem os olhos. Respiram e abocanham as sobras. Dormir e dormir. As mulheres rodopiam na volta das crianças e os homens rodopiam as cabeças.
Quando Manualdo decide que apenas sobreviver não basta, levanta da cama. O suor lhe escorre pelas costas, desce pelo vinco e escapa nas coxas abaixo. O calor já passa da metade do dia e logo inicia a cair até o leve resfriamento da noite. O borrachudo do Natal hesita entre coisa alguma e nada. Enfim, resolve que deveria manobrar a bicicleta e guardá-la pendurada. Foi o que fez. Escolheu a hora de sol mais intenso, alguma coisa do tipo duas horas da tarde. Tudo a pino. Seu jeito de penitência.
Abre o portão, olha para os lados, nenhuma alma viva ou morta, murmura entre os dentes e com a língua amortecida de tão amarga — Até gente morta deve estar estirada em alguma sombra de cruz. — sai pedalando. Ou tentando: caiu duas vezes e se decidiu por entrar com a bicicleta. Só queria algumas pedaladas para desenferrujar as pernas e o cérebro. Fazer a cerveja escorrer pelo corpo. Depois do desfeito, os olhos vão do portão para os lados, espia a solidão daquele mormaço, se prepara para fechar a porteira quando um cachorro para na sua frente, um cachorro desorientado, um cachorro babão. Outro bebão da noite acabada. Uma maneira perdida de viajar. Manualdo faz o aceno mecânico de incomodado — Sai daqui! Caminha adiante cão marrado, acha outro asilo.
Para no meio do gesto, reconhece o bicho e o par de fitinhas presas em suas orelhas, repreende a si mesmo — Manualdo, seu bugre emburrado, não sabe reconhecer uma dama? — aquele é um bicho conhecido de outros tempos: Tuca, a cadela que a Cariciosa leva para passear. A bichana está com quadras e quadras de distância. Moram em vilas diferentes. E ali está a cachorra — Tuca! — passando naquele exato instante, num calor infernal. Chama o animal pelo nome
—        Tuca! Tuca!
A cadela olha na sua direção e continua caminhando perdida. Sem destino. Desorientada. O bugre vai a seu encalço. Deixando tudo aberto. Não sabia bem porque, mas não podia perder a Tuca de vista. Serviço extra de cortesia. Cuidando para não assustá-la e sem nenhum jeito de competir com aquela correria de medo e perdição.
Nesse tempo de falar e chamar e perseguir a desatinada, ele recebe socorro. Cariciosa vem na correria e se põe na perseguição da extraviada. A mulher está fazendo hora-extra, pois cuida da bichana nos passeios e agora lhe corre atrás em missão de recuperação. O bugre grita em aviso — Cuidado, não assusta a cachorra!
A mulher segue em frente, o marido lhe grita avisos — Pensa que a cadela logo para, quem corre tanto logo cansa. — não essa Tuca, ela está fora do lugar e desajuizada, é assim mesmo, gente ou bicho em jeito de desamparo fica surdo e vê malquerença por toda parte. Olha e não enxerga, escuta e não ouve, caminha e para, e não sai do lugar, tem fome e não é da comida. Gente ou bicho é tudo igual quando estão apartados da boa vida
—        Tuca! Tuca!
O bugre lembra que, logo adiante, atravessa uma avenida de muito movimento e, por certo, aquele bicho criado em casa, não vai saber se esquivar e desviar das viaturas. Elas, Cariciosa e a cachorra, iam bem adiantadas, ele as seguia como podia. Atrasado. Com os pulmões repletos do ar quente daquele dia ensolarado. Desejoso de estar de bicicleta ou na empilhadeira. As pernas pesando mais que podia levantar e carregar. A cabeça lateja, repleta das bebidas de ontem. Os olhos não conseguem alcançar além dos pequenos arbustos. Tudo impede sua visão. A claridade, os olhos encolhidos da bebedeira, a correria das duas, os arbustos, a distância já corrida, o coração que lhe vinha à boca e retornava ao peito, a dormência das mãos e o inchaço das pernas. Queria estar na direção da sua empilhadeira. Vê quando sua Maria entra na avenida e um carro enorme, desses gigantescos, todo preto, usa da buzina e dá uma freada brusca. O coração está aos pulos e começa o seu descontrole. Esgotado. Apressa mais seus passos.
Naquela esquina, existe terreno baldio com matos de capim e árvores, não consegue ver além dos arbustos da grama ruim. Acha que corre. Não sei. Nem ele. Quando consegue espichar seus olhos lá estão as duas. Paradas no meio da avenida, entre fuscas e opalas. Os carros acuados. Um jipe, desses que não vê mecânico faz tempo, podre de velhice e ferrugens, não consegue controlar sua velocidade e bate no preto. Está armada a confusão.
Manualdo se aproxima, vê que a esposa mantém a jovem e assustada Tuca deitada enquanto a acaricia, depois a pega no colo. Cariciosa não deixa escapar da segurança do seu abraço a cachorra. Estão protegidas. O animal não reage mais, se deixa carregar. A boca aberta, a língua caída da boca, os olhos arregalados. O coração galopa pelo seu peito peludo. Pêlos brancos com manchas amareladas. Estão salvas. Manualdo, também. O coração quase lhe fugira em desatino, mas já lhe obedecia. Está acalmado.
Os três se afastam das discussões sobre culpas e desculpas que continuam na avenida dos automóveis. Os carros batem e as pessoas brigam. Desatino antes e depois.
Hoje, Padre, entra nessa casa comigo que vou te mostrar as dores antigas.

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quarta-feira, 25 de julho de 2012

Mad Max

Num futuro próximo




Sinopse: Num futuro próximo, o combustível que alimenta os motores dos carros é também motivo para crimes perpretados por violentas gangues. Max é um jovem policial e junto com seus companheiros patrulha as estradas a fim de impedir a ação daqueles que insistem em perturbar a paz. A morte de um membro pelas mãos de Max dá início a uma série de crimes cruéis cometidos contra sua família e o melhor amigo. Assim, Max só tem uma escolha: vingança?

terça-feira, 24 de julho de 2012

Receita antiga

Becos sem saída - Tuca e Farofa


I
baitasar
Cariciosa chega ao sítio de trabalho e suas crianças - nascidas de mesmo parto - ficam ocultas do pensamento, distraídas na fantasia de agradar a patroa. Derramar-se cedo da noite na cama e erguer-se antes do tempo de amanhecer é o cotidiano de serviçal que as suas crianças carregam desde o berço — Bom dia, dona Clara.
—        Bom dia, Maria.  — a vida não é justa, nem injusta, é apenas vida. As duas mulheres regulam em pouca diferença de idade. Por certo, têm mais em comum como irmãs do que teriam como mãe e filha, mas para Maria a outra é dona Clara. Nem precisa aprender o jeito e responder a patroa, é tudo bem natural e dócil. Clara não corrige aquele tratamento de dona da Maria, afinal, durante as horas combinadas, ela contratou os serviços da Maria por pagamento. A vida não tem dono, mas Clara é a dona. Maria é criada para servir.
Os golfinhos não são sempre dóceis, mas não se espera da Maria qualquer rebuliço. Manda quem pode e obedece quem precisa. É bem isso, Clara tem o dinheiro que a faz dona da Maria para varrer e lavar, a riqueza que Maria alega é a sua pobreza que ela vende em silêncio, resignada com a vida da dona Clara mais arranjada.
As lembranças dos gêmeos se tornam adormecidas, ficam diluídas, entregues ao sono. Ali, passa o tempo, largada nas vontades da patroa. Ela submerge as suas cobiças pela troca do salário. Acredita que trabalhando com empenho e disposição de ânimo alcança o reconhecimento da dona. E assim, adormentada dos filhos, fora de si, vai até o quarto dos bebês. Olha a sua volta e pega as coleiras. Depois de vestir a capa, uma em cada uma, sai passeando pelas ruas. Maria leva as duas presas em suas gargalheiras.
Tuca e Farofa.
Felizes pelo passeio matinal. Abanam seus rabinhos de contentamento. Cagam e mixam nos canteiros da rua enricada. Pulam e latem em suas pernas. A cachorreira doméstica procura evitar surpresas indesejadas, garantindo condições mínimas de segurança para ela, as cadelas e os passeantes. Poupa as bichanas de ambientes conturbados e barulhentos. Seu instinto de mãe lhe cochicha que os bichos precisam tranqüilidade e a sensação de que tudo está bem e sob controle. Comportamento de medo, susto e espanto deixariam as três inseguras. Poderiam ficar agressivas. Ela sabe que não pode perder o controle da situação, das três é quem pensa melhor. A Farofa deita na calçada com as patas para cima, toda mole, como a suplicar carinho nas saliências do ventre. Cariciosa faz que viu, mas não viu e dá um pequeno puxão na guia. Lá se vão as três no seu passeio matinal. Cariciosa com seu rabo de cavalo. Tuca e Farofa com suas fitinhas de beleza nas orelhas. Duas cadelas e uma serviçal cachorreira.
Na volta da babá e seus bebês, por hábito, chegam os reclames da vizinhança. Cá e lá más línguas há, são aquelas línguas que se arrastam estrada afora — Nossos canteiros e calçadas não são banheiros!
Dona Clara põe as três sentadas na sala e fala das reclamações dos vizinhos, cheia de cuidados, mas com energia dita as novas regras para os passeios matinais — Eles têm razão, crianças... vocês não podem sair por ai sujando a grama e as calçadas. — O que eu faço?
—        Leve-as até a praça dos pedalinhos.
—        Mas daqui até os pedalinhos...
—        Crianças prestem bem atenção, não sujem mais na vizinhança. — e assim foi feito. Nas manhãs seguintes, dona Clara recomendava e advertia as bichinhas — Vocês se comportem e esperem chegar na praça, entenderam?
—        Au-au, au-au, au-au! — Viu Maria? As minhas queridas parecem gente...
—        É mesmo, dona Clara.
Um pequeno e firme puxão nas guias determinava quem mandava. As bichinhas foram se espremendo e cheirando até os pedalinhos — É isso, cada dia ensina algo ao dia seguinte.
Assim, os dias e noites passam. O cotidiano chega para todos, até para os cachorreiros.
O Natal se aproxima. As festas do final de ano deixam Cariciosa com esperanças renovadas. Talvez, no ano que vem, uma vida nova. Talvez... talvez. Quer reencontrar seu irmão Supimpa. O guri largou da farda de soldado e foi pelo mundo na busca de riqueza. Um ano de poucas notícias. Quase nenhuma. Apenas, aquela carta pra mãe, dando o noticiário da partida, lá pras minas de ouro. Quem sabe, ela e o Manualdo consigam terminar o levantamento de tijolo da casa. Pensam em fazer dois pisos. Os quartos e banheiro em cima, a cozinha e sala de visitas na altura do chão. Por ora, basta acabar embaixo. Cada casa é um mundo que procura emprego de mais ganho. Talvez... talvez — Esse ano novo vai ter que render.
—        Falando sozinha, minha preta?
—        Planos para o ano novo. — o marido revira na cama e aprofunda o sono. Ela trata de fazer o mesmo. O tempo de acordar vem a galope. Vira para o marido e o abraça. Dormem agarrados, um dentro do abraço do outro.
O dia de Natal chega e as crianças da Cariciosa usam suas roupinhas novas de segundo dono. Ganham muitos presentes de pouco uso da Clara. A Maria Cariciosa pegou no jeito de não dizer dona Clara, quando está conversando consigo mesma, a patroa tem um pouquinho mais que a própria idade dela. Um pouco mais que moçoinha, mas já vai se desfazendo das coisas de costume da sua filhinha. Maria Clara. Morta num pulo sobre uma vara de bambu. Foi para a terra dos anjos. Subiu para o céu. Soldados do Senhor. Finou-se. Seu nome não é declamado no casarão, apenas celebrado em reza quando dona Clara chama pela menininha Maria Clara. O marido da dona Clara, delegado Calçacurta, está sempre nas voltas de cuidar de algum baderneiro. Foge da casa. A patroa não reclama, mas toda mulher reconhece outra que vive infeliz, com pouco amor. Mas isso é lá com a patrona e o delegado. Ela precisa dar conta do seu canto. Hoje, pediu para sair um pouco antes do horário e foi a comprar uma pequena lembrança para todos.
Lá, pelo início da noite, estão reunidos na casa da mãe. A curiosidade é maior que a obrigação de esperar o Papai Noel, com suas barbas brancas. Afinal, ele nunca aparece por aqueles lados. Abrem os presentes. Nenhuma novidade. São nove horas. Depois dos abraços sentam para comer a galinha com farofa.
Supimpa e Lamparina, cada um na sua razão, fazem ausência.
Naquele Natal, depois do banquete, a família está quase toda na praça do chafariz. Foram assistir aos fogos. Hoje, vão estourar fogos de artifício. Tudo um ensaio para o ano novo. A noite está radiante. Desde aquela loucura dos ferimentos na terra e a cura com a plantação das árvores, a praça dos pedalinhos voltou com sua calmaria familiar. O terreno curado fixa as raízes naquelas terras de histórias escondidas. Memórias esquecidas.
Quando chega à meia-noite, os fogos aéreos começam a fazer claridade dos céus. Estrelas cadentes que vêm e vão. Não param, não ficam. A cruz de madeira está linda embaixo daquela cachoeira de fogo colorido — Olha aqueles ali... — Lindos! — exclama Memória
—        Mamã, olha ali, daquele lado... — Meu Deus, como é lindo! — todos estão fixados naquelas explosões e estrondos. A escuridão da noite se rasga em riscos barulhentos. Quando pensam que acabou... mais estouros. Muitos fogos recheados de brilho e sonhos
—        Meu Deus, isso é lindo! — O colorido...
—        Cada estouro é feito diferente!
—        Isso é coisa do demônio! — Larga de besteira, mamã.
Retornam as suas casas. Memória carrega nos braços a sua Maria Destino que dorme a sono solto. Maria Cariciosa e Manualdo, cada um no seu jeito, transportam um dos gêmeos. As crianças adormeceram. Os acordados estão com a sensação de quero mais — Pena que acabou. — Podiam ter mais uns estouros e luzes.
Acomodam as crianças em seus colchões de espuma, mas continuam com as conversas e as comidas, e as bebidas. A cervejaria vai solta de mão em mão, de copo em copo, regando o saboreamento daqueles quitutes oferecidos na mesa: arroz com banana, lentilha, batata-doce com maçã — Essa batata-doce tá uma delícia! — Receita antiga.
—        Mamã... conta como faz.
E conta sobre as cartas... o tormento do povo... do homem perseguido.

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segunda-feira, 23 de julho de 2012

Você já surtou no SUPERMERCADO?

“Supermercado”





Seus realizadores Eduardo Srur e Fernando Huck.

Finalista do “Vimeo Awards 2012”



luisnassif

Coragens e embaraços

Becos sem saída - Pedaços da carne

II
baitasar
Espero que nenhum anjo ou demônio ouça o Manualdo, vá que o levem a sério. As bobagens precisam ser tratadas com a importância que não têm: nenhuma. Ele só deve ter uma preocupação: acostar-se em casa. Avançar entre o ruído e o silêncio serenamente. Tenho vontade de lhe gritar para não levar a vida tão a sério, afinal ninguém sairá vivo dela. Ou, errar é humano, mas colocar a culpa em alguém, então, nem se fala. Acho que não sou um bom conselheiro e o Manualdo não está com jeito de esperar aconselhamento — Vá se foder! — Filho-da-puta!
Vê no adversário o sorriso da vitória. Um pequeno acesso de satisfação no inimigo. Retribui o aceno com o mesmo gesto obsceno de antes. As mãos suadas. O inimigo desconhecido se perde das vistas. A outra bicicleta se perde no anoitecer, lá para frente. Pedala com fúria — Idiota!
Manualdo deixa a própria raiva escapar. Ele reduz seu ritmo de movimentos com as pernas e busca o equilíbrio da respiração. Precisa de ar. Ordena ao coração que se acalme. O suor lhe escorre pelas costas. A testa molhada inunda seus olhos. Tudo fica embaciado a sua frente. As pernas pesam toneladas. Os braços amortecidos não dão mais conta da direita e da esquerda. Os dedos se torcem agarrados na empunhadura do guidão. Mantém o olhar fixo na linha que termina o céu de um quadro de luzes e buzinas. Dores lhe vêm abaixo das costelas. Logo à frente, se apresenta a crista arredondada de uma colina. Passa pelo corpo extenuado uma vontade suprema de desistir. Morrer ali. Pedalando como um herói anônimo do povo pobre, enterrado como um indigente de sonhos desconhecidos. Idiota, não bastasse morrer nesta estrada sem nome e ser injuriado por estar atrapalhando o tráfego, iria deixar os carinhos da Cariciosa para os atrevimentos de um sujeito qualquer — Maluco, continua a pedalar, depois que se morre só resta estragar em mau cheiro!
Manualdo segue falando e pedalando na ladeira de baixo para cima, ele gastou as energias mais do que devia naquela corrida de insanidade. Tem delírios de quem pedala exausto, imagina seu enterro de herói, a viúva e as crianças todas de preto, inconformadas, talvez seu nome virasse nome de algum beco da vila... não, eu também acho que não — Herói de pobre é bandido, é o único que ajuda e se importa.
Faltam poucos metros para chegar à parte mais elevada, já está quase desistindo e apeando do selim — Um dia vamos prestar contas desta vida. — somente mais alguns metros, uma das pernas encolhe, a outra estica, no esforço de empurrar aquela alavanca com o pé, um depois do outro
—        Gosto de pensar que vou morrer de velhinho, amarrado pelos braços da Cariciosa. — sobe do selim e pedala em pé. Procura forças para seguir empurrando a bicicleta com os pedais, um desce e o outro sobe
—        Empurra, empurra... — ordena para as pernas, para o corpo, para a alma — Já chego, minha preta.
Atinge ao topo. Lá de cima vê as luzes da vila. A sua vida está lá embaixo. Desde que aquela estrada de asfalto cortou-os no meio, a vila Boa Esperança, se vê as voltas com as mortes por atropelamento. As gentes dali estão ficando estendidas com cobertura de jornais. Mais uma sina. Destino de gente que anda a pé. Morrer nos atropelos dos carros. Agora, precisa controlar as vontades malucas da sua máquina de se despencar penacho abaixo. Homem e mecanismo com ânsias de chegar. Perde os freios — Senhor, o que me resta acontecer? — a velocidade aumenta — Calma Manualdo, pensa!
Leva a botina na roda da frente. Sente a roda que gira gira gira sob o aperto da botina. O seu corpo estremece. Os braços firmam suas mãos na direção, os dedos retorcidos são como pinças de aço, despenca ladeira abaixo. Vem na memória o cruzamento das ruas que lhe espera logo à frente. Lembra-se de rezar. Desiste. Enfia a botina com toda sua força. Máquina e homem param. Uma imensa carreta lhe cruza o caminho, assovia e revira a aragem na sua passagem
—        Seu bobo, quase que não me chega! — é a sua mulher de amor que lhe chega pela abanação das palavras, saídas de sussurros assustadiços com a demora da sua chegada. Bugre burro, se essa história fosse história de livro, talvez o escrevinhador colocasse na vontade de salvar ou não salvar, mas na vida não tem jeito, precisas carregar tuas coragens e embaraços.
Hoje, chega depois do Ogum. Os dois saem juntos na madrugada da manhã, mas nem sempre retornam no mesmo tempo. O horário de chegada ao patrão é controlado pelo relógio do ponto. Os dois sempre registram sua presença nos empilhamentos um seguido do outro. O horário de chegada em casa é controlado pelo aquecimento das virilhas e a fome do estômago. Nos últimos tempos, Ogum tem ficado para um dedo de prosa e outro de cerveja com os amigos. Manualdo também tem convite de comparecimento, mas agradece e vai para casa, talvez, outra noite. Por ora, as razões para ir são maiores que as razões para ficar — Eu chego sim, minha preta, o nosso casamento é destino.
Desce pra examinar os freios. Nenhum reparo é possível sem o ferramental. Por agora, lá embaixo, o caminho é liso e sem desigualdades. Desce o final da ladeira caminhando ao lado da bicicleta. Lá embaixo, volta a subir no selim. Decide seguir com moderação nos gastos das suas forças. Lentamente move os pedais da máquina. Mais um pouco e os caminhos de asfalto se irão em frente. E ele terá que entrar nas aberturas de terra. Chão batido e esburacado, logo abaixo da estrada asfaltada. Entradas e saídas da vila. Falta pouco para o desvio de rota. Afastamento do mundo civilizado e começo do submundo dos escolhidos para a miséria.
Engraçada a vida dessa gente que lê, escreve e faz lei de plantar árvores para casar e descasar, mas não pensa em nenhuma lei para acabar com a miséria. Acho que já estão tão acostumados com a pobreza, todos os dias separam moedas para jogar nos chapéus estendidos, ficam anestesiados. Penitência caridosa.
Eu mesmo já passei por muitas mãos e muito tempo de contemplação acomodado nas prateleiras, recostado em espera. Todo miserável está em estado de hibernação, esperando que alguém lhe estenda as mãos para ler dos seus sonhos e decepções. Entender a razão da sua existência. Um jeito de compreender a compreensão. Um prato de comida quente. Estão fodidos — Sem queixumes, Manualdo... sem queixumes. — repete para si mesmo.
É isso mesmo rapaz, calma, que Deus está do teu lado. Caminha com o credo na boca. Aprendeu, desde sempre, que caminho começado é caminho meio andado e que precisa trabalhar. O seu chefe, Cícero, fica lhe repetindo — Rapaz... trabalho não enriquece, mas recheia a mesa.
É isso que lhe basta, saber da sua gente alimentada.
Alguns metros à frente, ele vê uma aglomeração. Diminui a tempo de assistir o inimigo caído ao chão. O antagonista mal-criado da bicicleta, o sujeitinho com pressa. Passa pelo lado e quando os olhos se cruzam repete as obscenidades. Ergue o punho fechado da mão esquerda e deixa o dedo indicador e o mínimo esticados. Como a imitar um par de chifres. O outro lhe devolve um olhar de ódio — Cara feia é fome...
—        Filho-da-puta!
—        O castigo faz o doido ter juízo.
Manualdo saboreia o momento, segue pedalando enquanto não tira os olhos do ciclista tombado. A bicicleta se vai numa direção e os olhos se ficam fixo no caído. Sabe que sorri, quer sorrir. Uma vingança desnecessária e inútil. Não tem tempo de ver o poste que está no seu caminho. Bate com todas as vontades. Rola pelo asfalto. Ouve as buzinas e os freios. Vê os faróis. E lá do outro lado lhe chega o sorriso do inimigo — Estamos quites, fodido de merda! - agora, parecendo bastante reconfortado.
Quando Manualdo chega à casa dos seus amores, carregado pela carroceira Marijoana, a camisa colorada toda rasgada, os braços mordidos pelo asfalto, mancando em um dos pés, todos já se preparavam para as buscas — Gente, trouxe na garupa coisa que é de vocês.
—        Manualdo! — grita a esposa do acidentado. Todos correm assustados para fora das cercas da casa, querem ver o guarani
—        Estou bem, minha preta. — O que aconteceu, Mari?
—        Não sei, Maria, encontrei esse no chão, todo escalavrado.
—        Estou bem, estou bem...
Maria Cariciosa chora nas maiores vontades. As crianças assustadas também se põem a derramar choro atrasado — Ei! Pega aqui a tua bicicleta.
—        Deixa que eu pego. — a carroceira passa para o Ogum uma bicicleta toda retorcida
—        Amorzinho, o que foi isto? — A bicicleta ficou assustada.
Ele narra a sua aventura, enquanto calcula seus prejuízos. Continua justificando as escoriações pelos braços, nas mãos e na cara avermelhada. Fala aos quilos, muito empolgado daquelas causas tão pequenas que quase trouxeram grandes consequências — O filho-da-puta vinha grudado em mim...
—        As crianças, Manualdo... — ... quando ele passou gritei: passa corno!
—        Amorzinho, que coisa mais boboca, como tu sabe que ele é guampudo?
—        Não sei se é, mas era a minha vontade de gritar.
E para não tombar, para firmar-se sobre a terra precisava continuar lutando.

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25 - Avoando 

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Para quê?

MAFALDA

Quino




domingo, 22 de julho de 2012

Avoando

Becos sem saída - Pedaços da carne

I
baitasar
O Manualdo se parece com um pássaro tranquilo que vive avoando, flutuando quieto por cima dos dias, pairando indiferente com seu jeito acanhado em tudo que é cidade e janela. Cabelos muito lisos, muito escorridos, acompanhados de um farto bigode. Missioneiro. É sempre o mesmo homem quando acorda todo apaixonado e preocupado com os suspiros da mulher — Minha preta, o que foi?
—        Ta tudo bem, meu bugre.
—        Minha preta, em pé de pobre é que o sapato aperta.
—        É bem isso... é bem isso...
—        Eu não quero lutar pelos mesmos vícios do homem branco. — aproxima da Cariciosa até se grudarem como uma pequena concha. Olha a argola no dedo, distintivo natural dos amantes que não sai sem deixar sua marca do pacto feito por palavras de amor. Sente a maciez das suas pernas nas mãos. Achega com os lábios um lamento suspiroso e quente na nuca da amada. O pequeno tremor da sua voz faz chegar um arrepio na dona do seu coração. Outro beijo no ombro a faz gemer, arrastando lentamente as intenções das palavras para as virilhas carnosas e macias — Tua falação dormida das coisas me assusta.
—        Por que, meu bugre? — Eu não consigo entender...
—        Querido, tenho sonhos estranhos. — enquanto cochicham, a sua mão esquerda, única em liberdade de uso, a outra se enfiou por baixo do corpo da esposa - segura com firmeza a carnuda redonda e nua - desliza dos bicos até os pêlos, passa pelo umbigo, ora para cima ora para baixo, pêra por cima ou pêra por baixo, até a polpa ficar doce — Sonhos bons?
—        Muito lindos... derreto toda.
—        Conta estes sonhos... — agora, os dedos param nos velos e continuam a dar voltas, enrolando e desenrolando, não precisam seguir para lugar algum, ficam ali, flutuando naquele mar encrespado de fios penitentes. Os pedaços da carne do corpo vão ganhando vontade própria, uma perna enrolada por cima e a outra esticada por baixo — Esquece, tudo ideia do pensamento caído no sono.
—        Dormir e depois criar os miúdos. — Mais nada... — muito no gosto enfia os dedos e se ergue. É hora de preparar para os empilhamentos na Cariciosa. Nestas horas da manhã, lembra alguns ensinamentos do Ogum — Guri, o trabalho é meio de vida e não de morte.
—        Amorzinho...
—        O que é minha preta? — Adoro ficar assim, feito tua mulher...
—        Minha preta... — é isso, o encantamento chega pelas mãos, pelo gosto e o cheiro das umidades derramadas, mas ele se deixa devorar de verdade quando ela brilha de vontade no escuro embaciado, o encantamento entra pelos olhos — Não te segura, vem todo... — bem no tempo de levantar. É bem isso que sente, por não sair da cama e deixar um pouco do muito de si, por ali, nas carnes prontas da sua preta.
Sai com perfume e gosto da Cariciosa, ela lhe encanta o resto do dia. Lembra como gosta de segurá-la entre as mãos, enquanto sente entrando com sua assombração naquelas carnes tão novas. O vai-e-vem dos seus quadris. As cadeiras carnudas dela sempre provocando suas vontades de botar as mãos em alvoroço. Montar de garupa. Depois, ele entre suas pernas abertas e prontas para ele. Molhada de escorrer por sua boca. Gosta de se deixar crescer nela. É um avivamento de enamorar das carnes, como pegar nas mãos antes de abraçar, olhar os seus olhares antes de beijar e se deixar encantar.
Passou todo o dia de hoje na empilhadeira, saboreando sua mulher — Adoro olhar em teus olhos, assim... bem dentro de tu.
—        Entrego tudo em mim, quando me vem tão tarado.
—        Isso, isso, sou um homem estatelado. — não basta olhar aquela mulher, precisa abraçar com as mãos. Sentir com as mãos-cheias da cobiça derretida. Escorrida. Experimentar o gosto do atrativo com a boca. Descobrir a cada vez, quanto da vontade de comer e beber consegue experimentar. Prolongar. Demorar. Provar do aroma. Esvaziar e encher. Regalo sem fim. Ele se promete para o paraíso — Hoje, essa guria me recompensa, nada vai ser na pressa.
O dia dos empilhamentos, para esse Manualdo apaixonado e rendido pelas vontades das carnes, não parece existir. Manobra os amontoamentos como a fazer amores com sua Cariciosa, sem afobação. Assobiando canção. Descobrindo a cada ajuntamento um jeito diferente de amontoar-se. Passa o dia com um vaporoso sorriso nos lábios, nada lhe tira da memória.
Até que a claridade do sol anuncia o fim daquele trabalho. Marca a saída no cartão-ponto e chega sem sustos ao estacionamento. Centenas saem na procura de suas casas. Apenas quer estar em seu teto. Lá onde encontra sua Cariciosa. Lá onde sabe que encontra os gêmeos. Lá onde é feliz. Lá onde tem a mulher que quer e os filhos que ama. Poucos conseguem o que ele tem.
Naquele ano de muitas correrias, começou a erguer suas paredes de tijolos à vista. Todas as economias foram para os tijolos e as telhas. O reboco viria em outros tempos. A cada dinheirinho que fazia sobrar: comprava areia e cimento. Nos sábados e domingos levantava paredes de maneira tímida. Mas lá estavam elas, erguidas e cobertas. Nesse tempo de construção do futuro, houve apenas uma extravagância. Não pode perder a oportunidade. Quando lhe foi oferecida uma bicicleta para comprar. Preço muito bom, quase de graça. Com ela o tempo de ir e vir do trabalho diminuiu. As distâncias encurtaram e a disposição aumentou.
Tudo roda em sua cabeça enquanto está pedalando. Devagar. Saboreando cada pensamento de amor com a sua dona. Não há pressa. Não precisa abreviar o caminho. Ela está lá, no ninho pequenino de aventura e ternura. Enquanto houver vida. E ele já chega. A cada movimento dos pedais avisa que se aproxima, sussurra ao vento — Estou chegando, minha preta.
O começo da noite vem trazendo o escurecimento e a via láctea com o brilho das estrelas se derrama sobre sua cabeça. Olha para o céu do horizonte a sua frente e se promete uma noite deliciosa de amor — Minha preta, quero abaixar as estrelas e agarrar as tuas carnes desacauteladas.
Enquanto vai pedalando não põe muita atenção no trânsito. Ruas de submissão e tortura, caminhos que o levam até sua Maria ao final dos dias. Ama extremosamente as crianças, Maria Futuro e Abelaira, mas a visão do corpo desvestido da sua preta lhe faz seguir sem pensar no caminho a ser feito: a pouca vergonha se desmancha nos primeiros carinhos, as promessas e os encontros. Leva Cariciosa na cabeça. Os braços ficam torcendo para direita ou esquerda. Apenas a rotina do cotidiano daquela bicicleta. Ela vai sozinha pelos caminhos reconhecidos. O seu espírito já está lá, com a sua Maria. A memória lhe chegou antes. Tem que fazer esse corpo chegar. Ele carrega na boca os sussurros do amor que jura para sempre. Sabe que flutua — Sai da frente, seu idiota!
—        O quê? — Deixa passar quem tem pressa, seu imbecil! — o susto do início se acomoda e aparece em seu lugar à indignação. Qual o tempo que lhe espera com tanta pressa? A bicicleta fominha por asfalto lhe roubou aquele seu tempo de sonhos. Um paraíso destruído por blasfêmias. Fecha a passagem do mal-educado — Ta com pressa?
—        To com pressa, seu tartaruga. — Sai mais cedo.
—        Até parece que não tem patrão... — ergue uma das mãos e faz um gesto desbocado, aprendido com o sogro Ogum. Dedo do meio firme e reto. O inimigo inesperado provoca uma manobra arriscada e se coloca ao lado do Manualdo. Ficam por instantes pedalando lado a lado. Mãos encrespadas no guidom. A barra de metal que comanda manualmente a roda da frente vai sendo espremida. Pernas pedalando no limite dos músculos. Ombro a ombro. Cabeça com cabeça. Coração apressado. Os desgovernos da intolerância no seu limite. A fumaça dos carros, o som das buzinas, os palavrões, a velocidade desatinada. Os olhos cheios da fúria insana e sem sentido. A boca já baba, não engole. E quando grita, cospe. Tudo contrário à razão — Parem! — é a ordem da Maria
—        Esse filho-da-puta é que começou!
—        Amorzinho, pra não acabar é melhor não começar. — o Manualdo se deixa vencer: para morrer basta estar vivo e descontrolado no trânsito das ruas. Mas tem tempo de gritar
—        Seu corno! Filho-da-puta... desgraçado... tomara que se desmanche na esquina!

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Leia também: 
24 - Cada um tem o jeito de matar as pulgas 

26 - Coragens e embaraços

sábado, 21 de julho de 2012

Cada um tem o jeito de matar as pulgas

Becos sem saída - Fraldas e despedidas


baitasar
A jovem esposa do Manualdo planeja seu retorno à vida. Passados os dias da quarentena com as carnes do marido, necessidade das suas lembranças de dar à luz, Maria Cariciosa vem sentindo nas fomes o fogo de comer carne. Por enquanto, pequenas labaredas. Línguas de paixão passageiras. Fogueiras rápidas provocam pequena agitação e formigamentos na sola dos pés. O andar pra lá e cá provocam as coxas que se entesam. Os bicos já se apontam endurecidos longe da boca dos famintos, quase foram destruídos, agora ameaçam reclamar as saudades dos carinhos com o bugre atrevido.
Descobre que tem vivido de lembranças, vontades e desejo. Já sofre com a ausência do deleite, quer viver mais para si. Está terminando a viagem de parir, ela está de retorno. O pescoço depressa fica em arrepios. Mas tem receio do cio das carnes. Ora está fraca de ânimo ora está retesada nas vontades de se abrir. Vive o medo de virar sementeira de pequenos brotos famintos. E o aborrecimento cresce junto com a cobiça pelo seu homem
—        O comer e o coçar, o ponto está em começar... — o desamamentar é um trauma para todos. Manualdo não entende muito das faltas de vontades da mulher. E não se sente nas intimidades com Ogum para lhe pedir tais conselhos de matrimônio. Pensa que o relógio das horas está no seu favorecimento. A sua menina há de voltar às vontades de comer além da medida.
Memória faz o desmame caminhando pela casa. Os seus sonhos ficaram do tamanho da sua cozinha, lugar onde acende o fogo, e dos seus quefazeres caseiros. Ninguém faz parir seis filhos e fica impune. Mas na Cariciosa o sonho com um trabalho, um ofício, uma ocupação, lhe põe forças nos ombros e nas pernas. Esses afazeres de doméstica lhe secam a sede de afetos e paixões. Ela tem precisão de outros trabalhos, outros jeitos de viver. Não quer ficar fazendo filho. Esses dois vieram pela falta de jeito e sorte. A mãe é que não se põe a jeito, parece fábrica de criança que tem por feição ser mãe. São seis pedaços dela que andam por aí. Três do pai desaparecido e três do Ogum.
A menina não tem por feitio ser apenas mulher de homem e mãe dos filhos. Não é só um pedaço do outro. Tem na desconfiança que da sina escapa, mas vai existir confusão. No beco não conseguem olho em outros jeitos de arrastar a vida. Mulher toma cuidado de filho e faz força pra conservar marido. Melancólica fortuna da mulher pobre: ter homem de sustento e cuidados. A mãe está sempre repetindo — Mas vá lá, ruim com ele, pior sem ele... — quase nenhuma se atreve levar vida de solteira, disponível para uso de qualquer homem. A fama de puta provoca o desemprego de esposa, é preciso escolher ser uma das duas.
Os filhos das duas mulheres, mãe e filha, vêm superando os passos do desmame. Memória está sem pressa. Tem por costume demorar a mamaria. Cariciosa tem afobação de sobra. Cada uma supera, com a sua disposição de espírito, essa apartação do costume de mamar na teta. Uma no mais absoluto silêncio. Enquanto, a outra, menina de vontades, na mais independente gritaria. Reclamando. Têm coisas em que não há jeito. É preciso enfrentar. Até que chega o dia em que a leitaria secou, assim, de repente. Um grande susto para o bolso do Manualdo — Como assim, amorzinho, não tem mais leite?
—        É isso... a fonte secou.
—        A Avó diz que deu leite no peito até quando tu fez dois anos.
—        Secou, o meu leite secou.
—        Nem mais algumas gotinhas? — Nada!
—        Mas os peitos estão com uma encorpadura tão taluda... — o Manualdo recebe um olhar desviado de danação. Sente sua alma condenada às penas do inferno. Está sob novas ordens. Não deixar esgotar o estoque de leite em pó. Maria Cariciosa se põe a elogiar o tal leite comprado no mercadinho — Esse leite que vem em pó é melhor que o da teta.
—        Quem disse isso? — O Zeca da bodega.
—        Minha preta, isso é mentira. Nada pode ser melhor que o leite da tua teta. — e claro, cada um acode onde mais lhe dói, o Manualdo sabe que junto com o leite da vaca de lata, vem a urgência de comprar chupeta, fraldas e mamadeiras — É preciso dá no jeito de comprar quatro, Manualdo.
—        Mas, minha preta, por que quatro?
—        Tu não perde por esperar a utilidade.
—        Com ou sem utilidade, é uma mamadeira...
—        E se os dois querem mamar? — Uma espera pelo outro ou um aguarda pela outra.
Depois se vê na tentação de substituir as fraldas de pano pelo penico. Não é que o motorista profissional de empilhadeira não aprecie a mudança. Depois dos primeiros dias, haviam combinado que as crianças usariam as fraldas de pano. As descartáveis estão fora da estimação de gastos da jovem família. Essas coisas de rejeitar e descartar são jeitos de gente rica, por ali se reaproveita de tudo. A sua pequena família tem que usar os panos limpos pela água e desamassados pelo ferro de passar roupa — É agora ou as crianças ficam sem as fraldas.
—        Os filhos são a riqueza do pobre. — enquanto Manualdo se deixa cair da cama, antes de um dia cheio de empilhamentos, Maria Cariciosa observa o marido com seu jeito de dorminhoca — Formosura pouco dura.
—        O que foi, minha preta?  — Barriguinha é essa?
—        A empilhadeira, minha preta. E os restos do carregamento da gravidez dos gêmeos. — o amontoador de cargas vai a passos lentos, transformar panos amarrotados em dobras macias depois de passadas a ferro. Sua missão por agora é alisar as fraldas das crianças com o ferro da Avó.
Na casa da frente, a sogra usa ferro de passar aquecido com brasa. Por conta disso, enquanto prepara os panos de aparar coco e xixi, inicia fogo de lenha na fornalha da sogra. O Manualdo pensa que se benze, mas a impaciência arrebenta suas ventas, o pai novo coloca mais graveto que devia para o início do fogo. A fumaça derrama para fora da fornalha por todos os cantos — Meu Deus, quanta fumaça!
—        Tudo bem, gente, errei na dose da lenha.
Ogum e Memória se aproximam tossindo, raspam os olhos com as mãos para enxergar melhor na fumaça. Ainda acham que estão dormindo dentro do sonho um do outro — É desse jeito que a morte leva os bons e deixa os ruins.
—        A morte sempre tem uma desculpa, Avó.
—        E a pressa que é inimiga da perfeição se oferece de pretexto.
Parecem dois fantasmas surgidos em meio ao nevoeiro. Os guris assustados acordam chorando. A única ainda no sono é a menor, a embriagada de leite de teta. Todos esfregam os olhos na tentativa de abrir porta e janelas. Tudo é picumã. A fumarada cheira a fuligem. Ventilam a casa em abanos e assopros. Portas e janelas são abertas. O ar chegando aos poucos. Úmido e gelado. Pequenos tremores de frios lembram as vantagens de voltarem para a cama.
Depois que todos se acomodam no sono, Manualdo mira a pilha de panos. Expõe seu mais profundo suspiro e se mistura nas fraldas. Aplaina, uma a uma, sem pressa, a roupa de garantia das suas crianças. Tão pequenas. Tão lindas. Tanto parecidas com ele e sua Maria — Antes filhos de pobre que escravos de rico. — o monte se avoluma enquanto ele assobia, nasceu para ser pai.
O próximo passo foi substituir as fraldas pelo penico. O convencimento das crianças foi mais complicado. Trocar o certo pelo duvidoso sempre deixa as pessoas, não importa tamanho nem o tempo de vida, sob o descontrole das crises da sobrevivência. Era preciso convencer - aquelas pessoas em miniatura - que as mudanças vêm para melhorar nossas vidas. Pelo menos, no grosso das vezes. O guri fica minutos sentado no penico, sem se desfazer de nada. Nenhum descarrego. Maria Cariciosa deixa na volta do menino os seus brinquedos de paus e panos. Heróis e bandidos. Nada acontece. Na vez da menina, tudo é feito no mais absoluto controle, cada qual conforme seu natural — Marido, fomos feitas sem desafetação, descarregamos sem demoras as coisas do nosso corpo.
—        Minha preta, deixa de bobagem, é apenas cocô no cabungo. — já é tempo de desmamar mãe e filhos.
Maria Cariciosa arruma trabalho de faxina nos arredores do beco da Servidão. Assim, não tem gastos de ir e vir. E nem tentou coisa de melhor serventia ou pagamento. Acostumou com a idéia que não teria melhor colocação, tem os pés no chão, não tem estudos prontos de formatura e diploma. Estava parada nos estudos muito antes de parir. Apenas, sumiu da escola. Ninguém percebeu sua desaparição. Ficou assim, ela por cá e eles por lá. Não tem vontade de voltar pelos meios daquela criançada. Gente maluca. Vivem aos gritos. Sem proveito. Por enquanto, ela não faz uso de berro nem pancada em seus filhos. Reza para não ter necessidade de uso os gritos de mãe, mas da sina ninguém sai alforriado pela própria vontade. Precisa confiança e treino de uso — Minha filha, é de pequeno que se torce o pepino.
—        Mamã, não tem precisão essa coisa de criar filho como se um fosse pepino e a outra uma inocente virgem.
—        Solta às rédeas e não tens mais o que segurar quando começam a crescer. — fixa os olhos da memória nos gêmeos. Será neles que irá confiar, mais que na Memória. Cada uma sabe o que tem e o remédio que lhe faz bem.
E, de todas as mudanças, a mais difícil, para Maria Cariciosa, é sair para o trabalho e deixar as crianças na creche. Uma decisão difícil. Não se sabia com esse medo. Amedronta deixar as crias do parto nas mãos de outras quaisquer. O Manualdo bem que tenta impedir. Argumentos de marido não lhe faltam, mas as palavras de convencimento não lhe vêm à boca. Não existe argumento de autoridade entre eles. No fundo esse dinheirinho da Cariciosa é muito bem-vindo. Melhor ainda, é ter recebido o apoio daquele santo homem. Cariciosa e Manualdo defendem com veemência o tal Cristurano — É um homem preocupado com a sua gente...
—        Sempre perguntando do que precisamos. — achou jeito para que as crianças tivessem as suas vagas na creche da vila. Uma casinha ajeitadinha que junta os curumim da aldeia. As voluntárias da Creche Vó Esperança não são professoras, mas o Cristurano garante que dão conta de cuidar das crianças. Mexeu uns pauzinhos, lá na assistência dos pobres — Esse Cristurano é muito bom.
—        Por que, minha filha?
—        Conseguiu as vagas na creche, mamã.
—        Isso de depender de ajutório não dá certo.
—        A senhora conhece outro jeito dos gêmeos ficarem alimentados, protegidos, limpinhos, enquanto saio para trabalhar?
—        É obrigação de mãe ficar em casa, cuidando das crianças. — o justo e reto não deveria ser um benefício de ajuda dos políticos, mas direito da mulher que precisa trabalhar fora. A Memória sabe que precisam de ajuda, mas não consegue pedir penico, mostrar-se fraca ou vencida — Acorda mamã, a gente precisa desse dinheirinho...
—        E daí? — A senhora pode buscar as crianças... depois do almoço.
—        Não é o dia todo?
—        É muita criança, não tem vaga pra dia inteiro.
—        Ah, o milagroso ajudatório vem pela metade.
—        Tem mais criança que lugar pra cuidar de criança pequena. — e assim, outro desmame se faz. Os gêmeos não têm mais a presença durável da mãe. O pai já se foi para os empilhamentos desde os primeiros choros. Chegou o tempo do desmame da mãe e filhos. É o dia de a Cariciosa levar suas crianças e deixar na creche. Todas as manhãs. Bem cedinho. As claridades do dia ainda estão espreguiçando das vontades da cama. O carrinho para os gêmeos vai todo fechado por cobertor. Foi presente da solidariedade. Os colegas do ganha-pão do esposo sentiram obrigação de ajudar. Discutiram às escondidas. O que acontece com um interessa a todos.
Juntaram dinheiro para o Manualdo comprar o carrinho de bebês. O dinheiro caiu nas mãos da Cariciosa que foi às compras. E fez o milagre de sobrar um tanto para as economias da casa. Comprou carrinho de uma vaga. Não é pequeno, mas é bom para caber um. Não tem importância, ajeitando daqui e dali, lá se vão os dois, embutidos. Amarrotados de panos e com falta de lugar. O berço com rodas mais se parece um tanque de combate na luta da sobrevivência. Lá vão os três, os embutidos com a mãe, tanto faz com frio ou calor. Chuva ou sol. Precisarão aguentar. Precisam aturar.
Está ruim pra disfarçar. A menina esconde as lágrimas. Não há tempo para arrependimentos, cada um tem o jeito de matar as pulgas — Depois da comidinha do almoço, a vovó vem buscar vocês. — mais dois beijos e mais dois abraços, olha para as horas do relógio na parede da portaria de entrada, está ficando justo o tempo de chegar no serviço de arrumadeira
—        Deus proteja vocês e a mim não desampare. — todos fingem um pouquinho. Deixa os gêmeos na portaria. A tia da creche leva as crianças, enquanto a Cariciosa caminha e olha para trás, anda e acena, adianta os passos e manda beijos, marcha e chora, vai devagar e murmura do amor do papai e da mamãe. Queria poder mudar sua fatalidade, mas sabe que não pode. Até que vira e vai a passos virados para frente, firmes. Coração de mãe é terra em que ninguém vai, sai pensando que talvez seja uma mulher de sorte — Quem sabe, quem sabe...
Segue para as faxinas. Ë cedo, mas não se importa mais, sabe que a limpeza para a freguesia começa bem cedo. Bem antes das patroas acordarem. Quando chega ela é acomodada, contada e asseada. A Maria Cariciosa que limpa o pó precisa estar lavada. Desmancha as marcas de dedos, retira o esmalte esfarelado das unhas e a poeira que trás no corpo. Por esse tempo, já deslembrou das crianças. Vai destruindo a imundícia, empurrando com a sua vassoura o pó do chão. Toda manhã precisa demonstrar que foi feita para limpar. Varrer e lavar. Exigências das maneiras de uso da força dos seus braços. Como lhe disse a governanta, outra espécie de capitão-do-mato, esse usa vestido — A cabeça do pensamento pode estar longe, mas a vontade não pode descomparecer do cabo da vassoura.
—        Tenho ganas de fazer tudo direitinho.
—        Na casa do patrão... os que não trabalham não comem. — a Cariciosa precisa fazer a varredura com autoridade de quem sabe onde a sujeira se esconde. Ir atrás e destruir.
Deixa em casa o seu coração com o pão implacável da doçura.

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