Comunistas Desgraçados
baitasar
A jovem Maria Cariciosa entra pela pequena casa em rajadas rápidas. Como balas-metralhadora. Num assopro passa do pórtico de entrada à cozinha do fogo a lenha. Cortinas de pano esvoaçam e se abrem, janelas se batem naquele entardecer mormacento. As paredes sem reboco gemem de desconcerto, estão desguarnecidas na sua feiúra, ressentidas pela luz da menina e sua beleza anatomista. Ela não é destas paredes, mas vai morrer aqui. O ar venta, todo desconjuntado na sua passagem. O assoalho de madeira estremece e geme. As galinhas engordando no porão da casa se agitam em cocorocós. A mãe, Maria Memória, recolhe os olhos dos afazeres domésticos. Quefazeres dignos de toda mulher que preze o seu lar. Ainda não está gordinha, mas já vive época de útero cheio. É o sexto vivo. Uns poucos dias atrás, percebeu o embaraço da barriga. As regras teimaram em não sangrar. Mas é noticiário de poucos dias, vai deixar passar mais um tempo da semeadura do Ogum. Logo, se vão movimentar todos na expectativa da colheita do plantado. Mais uma boca, mais um filho do Ogum.
Olha para aquela que educa com carinho renúncia devotamento e chega em redemoinhos. Pensa como está linda, cor de negra, cabelos cortados curtinhos, como guri, olhos amendoados, duros de enfrentar. Jura que ela está fora de lugar. É uma boa menina, não aprendeu as maldades que a vida tem, Mamã, mamã, O quê, minha filha, Acabei de ouvir na praça, Fala logo, guria, Criaram uma nova lei, Isso lá, é novidade, mocinha, Mamã, agora só pode casar quem planta dez árvores, O quê, Isso mesmo que a senhora escutou, Por quê, Ajuda a diminuir o calor fazendo mais sombra, Isso é coisa desses comunistas, Mas que droga mamã, isso lá interessa, Interessa sim, Mamã, quero saber do meu casório com o Manualdo, Calma, mocinha, nos últimos recursos, o paizinho sai plantando árvores pela rua.
A menina ainda solteira de direito, quase casada pelos fatos, lança olhar para a sala da televisão em preto e branco, vê o paizão da mãe, agarrado nos gêmeos, Você planta, Ogum, Já tenho tudo em planejamento. Esse é o tal que vai resolver com as plantações de árvores quando tudo o mais tiver falhado. Um pai biônico. Boné de couro enfiado na cabeça, ferroviário, na cor preta, barba branca falhada, por fazer. Não se lembra de ver o pai Ogum sem o boné. Nem percebe algum aforçuramento de empolgação. Começa a duvidar que esse casamento arrede das intenções. Aqui, na vila ou no beco, tudo é apenas vontade. Ainda estamos sem esgoto e a energia da luz continua chegando num único poste. Dali, a força sai num emaranhado de fios desencontrados. O beco do pau dos fios da luz. Fincado bem na entrada. A cada novo morador mais fios nascem naquele emaranhado, as chances de uma desgraça são maiores. Bombeiro ou ambulância não entra no beco, só derrubando o pau cravado no chão. A água não chegou a todas as casas, não existem milagres. Pensa no barraco que precisa ser construído. Nada dessas coisas de madeira e lona. Tudo bem feitinho pra não ter rato barata sapo. Tem nojo de sapo, mas da barata foge como uma condenada. Pavor. Entra em pânico. Provoca um estremecimento pelo corpo, tenta um jeito de afastar o pesadelo.
Chega de tormento.
Sonha com convidados festa bolo convites músicas. Imaginar é bom. Pensa na roupa do Manualdo, não é doida de deixar na mão dele tudo isso. Quem sabe um dia, outro casamento. Sem tanta pressa. Por ora, prefere entregar àquelas mãos outras coisinhas, Vamos dar um jeito, filha, Mamã, eu estou apaixonada, Deus seja louvado, vai dar tudo certo, Deus te ouça, mamã.
Memória leva as mãos à cintura e endireita o jeito de respirar. Ainda pode com o tamanho da barriga. Pequena de não aparecer, pensa desanimada, Essa tem muito que arredondar.
A sineta do portão estala. Maria Cariciosa sai correndo, É o Manualdo, grita de contentamento, Minha filha, faz ele entrar. Juro que nunca vi gente mais tranqüila que esse Manualdo. Muito parado. Profundo no seu jeito matutoso de desfazer o que se fica pensando dele. Cabelos muito lisos, muito escorridos, acompanhados de um farto bigode. Índio puro. A guria chega aos atropelos. Quer pular em seus braços e o enlaçar com as pernas. Mas pára de súbito, Amorzinho, a gente só vai poder casar se plantar umas vinte árvores, Minha filha, não são dez, Mamã, quem planta dez faz mais um esforcinho e já deixa mais algumas pelo chão se enraizando. O moço não parece preocupado, nem espantado com a novidade, Minha preta, esse vai ser um jeito lindo de casar, Isso aí, Manualdo. O dono do boné ferroviário se mexe e sai do velório da televisão. Maria Memória lança o seu olhar de leoa em defesa da ninhada, Marido, não vai atrasar para o trabalho.
Ogum está levantado, já não se sente mais nas vontades de adormecer na frente do televisor. E o assunto está ficando por demais curioso. Tem algumas idéias e sugestões de aconselhamento. Pelo tempo, desse entrevero, Manualdo fica olhando para a Maria Cariciosa com as mãos cheias de amor. Desvergonha do corpo que se ama.
A menina faz contas e planos de arrumar todas as árvores que fossem necessárias. Não pode pensar em adiar o desenlace. Tudo se debate inquieto pelo seu corpo anguloso. Segredos. As dúvidas da menina e as certezas do Manualdo.
Passam o restante daquele dia a discutir as chances de casar sem as plantações, Onde vamos arrumar tantas mudas, ninguém responde.
A data se vinha e nada das árvores. Nesse rumo, o fiscal da prefeitura não tinha nada o que fiscalizar e anotar. Nada de casório.
Por outros dias, Ogum, chamou o esposo futuroso para uns poucos esclarecimentos de família. Esperou a reunião de todos. Toda a família sentada, enquanto ele se mantinha em pé, com um dos gêmeos no colo, sob o pórtico da sala de visitações e a cozinha. Pediu silêncio. Parecia mais espaçoso do que era. Não é maior que a porta, mas que se parecia maior, isso era. Sentia lhe chegando pela retaguarda o calor da lenha queimada no fogão. A chaleira d’água chiava, louca por uso de chimarrão. O dono da casa iniciou discurso sobre as dificuldades de achar chão de terra para enfiar as novas árvores, Tudo está virado em asfalto e cimento, Marido, por que não plantamos por aqui, na vila, Não dá mais, amorzinho, aqui, ta tudo virando cortiço, uns por cima dos outros.
Olhou solene para o teto esburacado e depois para as próprias alpargatas de corda, Tenho sugestão, Desembucha logo, paizinho, Vamos esquecer o tal casamento, O quê, O Manualdo se vem com as malas de bagagem e se fica por cá, na informalidade, Na imoralidade, Amorzinho, nós não somos casados, Mas os meus netos serão filhos de um pai casado e uma mãe casada, Querida, isso não quer dizer que não vai haver casório, Quer dizer o quê, ninguém responde, todos olham para Cariciosa, em pé, no meio da sala de visitação, Mamã, O quê menina, Estou grávida.
Os olhos se vão da Maria Cariciosa para Manualdo e dele para ela. Ninguém se atrevia a quebrar o mistério daquele silêncio. Pensar o quê, dizer o quê, Mais uma boca, foi o resmungo do Ogum. O cabeleira lisa pedira emprestado o que não devia. O cogitabundo antes de produzir lucros já entrava na família com débitos. Safado de danado. A mãe, agora em preparativos de avó, se põe a recolher a colher presa no arpão, Como já disse, esses se casam com qualquer arbusto fincado no chão.
No dia seguinte, já está de conversas com o padre. Toma o desvio dos atalhos nas boas maneiras, esclarecendo, Padre, a nova lei, Qual lei, Pra casar tem que plantar árvores, É... um absurdo, Ah, então o padre concorda que não é preciso plantar nenhuma árvore, Não é bem isso, dona Memória, O que é, então, Sabe como é, a gente não conhece os novos procedimentos, por enquanto, seguimos a lei, Padre, não temos as árvores e a barriga da guria está crescendo, Minha filha, lhe diz o padre, enquanto junta as próprias mãos ao peito, delicadamente. Tão suavemente era o padre, que Maria Memória jura que se parecia com um padre santo, o próximo de virar papa, o que posso fazer, as leis são para serem cumpridas, Mas eles não querem mais viver em pecado e desejam muito casar no padre, O que já foi feito não pode ser desfeito, Isso a gente já sabe, mas queremos os proclamas e a data marcada, Depois das plantações, Padre, uma família tem que ter um marido, a menina precisa casar, Se for a vontade de Deus. Maria Memória olha o padre com a boca cheia de palavrões, que engole, ainda não está louca de brigar com alguém que se parece com santo. Tudo no seu tempo. Ela vira santa ou ele desfigura em homem. Tudo no seu tempo. Aguarda pelo andamento dos dias. Não existe algo mais importante para Memória que a sua filha.
Olha para o homem a sua frente e é isso, vê apenas um homem. Com medo. Pensa que ainda está confuso com as mudanças. Não sabe que rumos seguir. Quais as ordens superiores. Engraçado, até instantes, ela juraria que só haveria um caminho, o caminho da palavra de Deus. Sacode a cabeça para afastar esses pensamentos do demônio, A gente se fala qualquer dia destes, padre, Deus lhe abençoe, minha filha, boa sorte, O senhor está nas necessidades mais que eu. Pegou a Maria Cariciosa pela mão e se foram a percorrer os templos de religião que lembrava existirem na vila. Todos estavam irmanados com a defesa do clima da terra. Estavam em guerra. O calor e o corta-corta das árvores precisava ser combatido. E a menina estufando. Duas crescendo de volume.
As reuniões na família continuavam. Dezembro ia pelo meio. Haviam de encontrar uma saída de dignidade. A barriga da guria já se avoluma, não tem mais jeito de disfarçar. Seu neto não ia nascer sem pai nas vistas de Deus.
Ogum lembra que conheceu um capitão de navio, numa dessas suas andanças, Vou procurar pelo Capitão-boca-mole. E, sem mais delonga, se foi na procura do Capitão-boca-mole. O procurado é achado ancorado na taberna, junto ao cais do porto, desembarcado, Ogum, não posso fazer casamento em terra firme, Precisa do quê, Um barco, Onde vou arranjar barco, Na água sou comandante, mas em terra sou galego, Deixa pra mim. Ogum se vai para casa com o galego da boca-mole e coloca todos na carroça. Toca o Ícaro e grita, Vamos fazer o casório da princesa e do príncipe comilão. Abracadabra. O pangaré é transformado num puro sangue da realeza, mas os puxa aos trancos e barrancos. Conforme vai desfilando a carroça toma contornos de um coche suntuoso que os leva para o lago da praça, com chafariz e os barcos pedalinhos, O que é isto, A água e o barco que precisamos para as formalidades festivas.
Todos descem do coche, Os guris se ficam, aqui, em terra, Mãe, a gente quer entrar junto, Ficam, aqui, cuidando dos gêmeos. A decisão está tomada. Família não é democracia. Concordam em ficar de sentinela.
Assim, uns ficam na margem e outros vão lago adentro pedalando. Os guris ameaçam chorar, Calem a boca, não façam barulho. Olha para os lados, esperando o desembarque dos milicos, cassetete nas mãos e muita vontade de seguir as ordens do alto, Prendam essa negrada. O mais adulto procura com o olhar as praias do chafariz, nenhum sinal dos jipes e tanques inimigos, Calem a boca, grita para os irmãos. Ficam em silêncio, um ao lado do outro. O segundo mais adulto enfia as mãos no bolso da calça curta.
No meio do tanque irregular de jardim, o Capitão-boca-mole, legítimo representante da dinastia bóia-fria das águas, se ergue e pede a todos que fiquem em pé. Todos se levantam com dificuldades de equilíbrio bêbado. Maria Cariciosa, com as mãos serenando a barriga, reclama de náuseas, Vou vomitar, Respira fundo, amorzinho. O único que parece não se incomodar com aquele balanço das águas é o boca-mole, Estamos aqui reunidos para casar esses dois jovens amantes, Corta o discurso, boca-mole, As alianças, Quem carrega, Não sei, Eu não peguei, Nem eu. Iniciam a procura pelas alianças. Tentam bolsos bolsas sacolas, dentro dos sapatos. E, como em uma brincadeira de dominó, o Capitão-boca-mole se desequilibra, derruba o mais próximo. Cai agarrado ao vestido da noiva que empurra o noivo que puxa a sogra que se agarra ao pescoço de Ogum que se atraca no vazio do buraco. Afundam até os joelhos, Comunistas desgraçados.