domingo, 29 de maio de 2011

Os olhos cegam sem alma


Galinha caipira

baitasar

Os olhos cegam sem alma. O beco é chão alagadiço e fedorento, terra socada por botinas chinelos pés descalços. Para escoltarem seus sonhos, precisam ciscar catar comer grão por grão. É beco às escuras. Lugar de gente desconfortada e bichos de criação. Frágeis pontes de lugar nenhum para coisa alguma. Águas podres. Ali, na casa 18, acesso Um, beco da Servidão, na vila Boa Esperança, foi erguida a casa da Maria Memória e do Ogum.

Depois da primeira visita à família, Manualdo, o jovem pretendente a parente, sentiu cobiça pelas galinhas, criadas feito gente da mesma procedência, no porão da casa. Olhava aquelas aves que jamais voavam e as imaginava na panela, em pedaços, a carne desfiada, misturada no arroz. Risoto. Delícia. Ovos da galinha, cozidos descasados picados, soltos aos punhados sobre os próprios farrapos. Nunca disse da sua vontade. É um homem paciente. Quem espera é porque tem esperança ou está imobilizado pelo óbvio, por enquanto, não pode ser diferente... por enquanto. Longe é o limite de cada um.

Agora, na sua nova situação de parente, casado com a filha da Memória, já pensa em influir no destino das caipiras. Passam o dia cacarejando, Cocococó, e escarafunchando no subterrâneo do porão, Desperdício, O que foi, meu amor, Nada, minha pretinha, não desperdiça a atenção da barriga, Tô um bagulho, né, Tu é linda, minha pretinha.

Na casa da Memória, as tarefas de cuidar das bichas de pena são dos gêmeos. Rotina de prazer dos meninos. Mas é o mais novo que se instala no chão, embaixo do assoalho da casa, catando pulgões entre as penosas e com o olho no macho do terreiro, galo atrevido e esporão encrespado. O mais antigo dos gêmeos gosta de ficar nos embaraços da rua estreita curta sem saída, chutando a bola de panos estropiados, seu passatempo de preferência com a gurizada do beco. Cada piá se impõe um nome de guerra, ele se diz Pelé, mas tem o Gérson Rivelino Tostão Jairzinho, jogam e narram suas jogadas, seus golos. Não precisam de árbitros, os juízes do futebol, eles são imparciais, falta é falta, gol é gol. Pronto, Vamos jogar!

Assim, o mais novo se afeiçoa a cada dia um pouco mais com as penosas,  longe dos guris, na companhia das aves que não voam, mas saltam. Parece mais fácil falar e escutar galinhas. Não jogam futebol. Não sabem chutar a bola. E depois, ninguém quer no time um guri e seu pé torto. Sem rumo certo de chute. Tanto chuta lá para frente, como lá para trás. O pé entortou dentro da barriga da mãe. Ele demorou uns tempos a mais que o mais antigo para encontrar o caminho da saída. Dizem que na espera, um dos pés ficou retorcido para trás. Quando anda deixa pista para frente e à ré.

Desse jeito, foi natural a afeição do guri com a Garrincha, uma caipira com pernas torcidas em arco. A galinha caipira retorcida é o motivo dos maiores cuidados do menino sucupira. Trocam segredos proteção intimidade.

Como não existe bem que nunca acabe, na semana seguinte às núpcias da irmã com o Manualdo, chegaram os pregos para a casa do jovem casal. As galinhas foram trocadas por pregos. Os irmãos se renderam às necessidades da Maria Cariciosa. Consentiram nas trocas, as galinhas por pregos. Pregos novos segurando tábuas podres. A irmã dos gêmeos já estava em tempo de desova e precisava de casa. Quem casa quer casa.

Mas com uma exceção, Qual, meus filhos, A Garrincha não vai, Tudo bem, Legal. E assim, o machão do terreiro, o galo do harém, viu a sua corte minguar. Sobrou a defeituosa. As surpresas da vida, num dia, fartura de penas para se servir; no outro, a tristeza da carestia. Um dia de muito, outro de nada. Jamais perdoaria os meninos. Foi traído. Levaram suas meninas e lhe deixaram a torta desajeitada defeituosa. Uma atrapalhada retorcida. A vida perdeu a graça. Parou de cantar. Emudeceu. Acordava quando o sol ia alto, vagueando sem destino, desocupado das coisas da vontade.

Sorte de uns, azar de outros.

Galinhas de menos e a carijó caipira parou de viver só, ciscando e comendo restos à moda antiga. Foi incumbida de novas tarefas. Nem foi difícil convencer o inconformado para pular em cima da torta. A opinião da Cariciosa acertou em cheio, Esse tempo é de luto... passa, não tem galo ou homem que viva sem subir em cima de coisa viva, torta ou não, é questão de pouco tempo, Minha filha, que palavrório é esse, Televisão, minha sogra... televisão.

Manualdo perdeu o arroz com galinha, mas ganhou os pregos para segurar os tapumes do barraco. As surpresas da vida...

sexta-feira, 27 de maio de 2011

Minha santa, me perdoa

A espada amolengada 

baitasar

Ogum parece um pavão com seu tamanho de avestruz. Se Maria Memória pudesse perguntar, ela nunca perguntará, quais os encantos do marido, eu responderia sem piscar, as suas mãos. São grandes e fortes, como tentáculos ambiciosos. Os dedos deixam a impressão de desembaraçados curiosos atrevidos, um pouco assanhados demais, mas enfim, a perfeição se deita no divã do analista, desde o início do século passado, e se ergue sem lágrimas nos olhos. Irredutivelmente, a mesma.
O marido da Memória não é perfeito, é um homem trabalhador, um negro decente, mas perdeu o entusiasmo com a loucura, as desordens alegres. Está esfalfado pelos fracassos recentes. Perde o gosto mais um pouco a cada pouco. Nem começa, nem termina. O desuso das mãos está provocando o descostume no homem e a inquietude na mulher.
Outra noite, o negão precisou segurar as rédeas no focinho, estava no ponto de pedir palavras de socorro ao Manualdo, mas desistiu de apelar ao mais novo, O guri já vive os seus estorvos. Todos, temos momentos de aborrecimentos, mas isso não impede de prestar serviço socorrista aos mais chegados de intimidade, Não, vai me desculpar, mas não sinto conforto em confessar com outro, qualquer que seja, sobre esse amolecimento da carne. Então, negão, vai te danar, Calma, é coisa que não se revela. Tenho vontade de garantir que o tal descontrole não dura muito, A esperança é a última a ser morta. Eu sei, meu amigo, você está certo, essa tua brandura é o jeito provisório do menino se exibindo, querendo aparecer mais que o devido. Tudo se resolve ou se ajeita com o endurecimento do homem.
O nervoso do Ogum não passa. Aconselhamento não lhe adianta quando fica agitado no horário de dormir. Demora mais que o hábito para deitar. Espera pelo sono da Memória. Chega aos pés da cama flutuando como os pés da bailarina. Deitada de lado, a esposa dorme com os olhos arregalados. Fingem. Os dois disfarçam. Queria poder consolar, falar de mim, dizer que isto há de passar, Tudo sempre há de passar. Calma, negão, aproveita que tu não vai dar o couro e dorme. O que não pode passar é a hora de acordar e seguir para os serviços empilhados nos ombros.
Até que o casal dorme, cansados da vigília à toa.
Quando acorda, Ogum já está na cozinha. A claridade do dia não apareceu e os barulhos da vida seguem dormindo. Levanta sem os chinelos, caminha descalça até a cozinha, Bom dia, querido, Bom dia, minha preta. Serve-se do café quentinho e senta à mesa com o marido. O Manualdo entra sossegado pelo sono, Bom dia, Bom dia, meu filho, Bom dia, guri. Os três têm os olhos cansados de pouco sono. A mãe pergunta pela filha, A Cariciosa dorme bem, Minha sogra, essa tem um sono que pesa um bocado, depois de acomodada não acorda. Retomam o café em silêncio. O mais novo não usa combinação de leite. Fatia um pedaço do pão e não usa nenhuma mistura, Não sinto gosto de nada antes do amanhecer. Come apenas para se por em pé e caminhar à frente de combate. Os três estão ausentes.
Os dois homens pegam a marmita para o almoço. Feijão preto, guisado com batatas, macarrão e rodelas de tomate. No almoço, quando Ogum está na pressa, não se dá ao trabalho de aquecer a bóia-fria. Manualdo, ao contrário, jamais abandona o ritual de aquecer a sua comida transportada, Comer no meio do dia é festa, não faço com desdém.
Os dois saem. Têm destino certo e horário de chegada.
Maria Memória ficou. Caminha de lado a lado, parece bicho enjaulado. Hoje, quase se animou nas reclamações das carnes do esposo. Sente saudade do homem misturado em desordens na cama. Desistiu. Acha que tem melhor resultado com a simpatia para recuperar paixão. Corre até o quarto e procura um pedaço de papel em branco. Escreve com um toco de lápis, Maria Memória e Ogum. Precisa de 7 pedaços de maria-mole. Claro, não tem em casa. Substitui por pedaços de gelatina. Embrulha a gelatina no papel com os nomes. Mais tarde, deixará tudo num jardim bem bonito, como oferenda para São Cosme São Damião. Depois, para o negão voltar para seus braços e virilhas, fará oração aos santos.
A mulher ileié põe as mãos nas cadeiras, faz cara de desconforto, acaricia a barriga arredondando e volta para sua cama. Deita de lado, fica de costas, vai para o outro sentido, não tem jeito, não tem maneira. Examina as mãos, estão intrigadas. Num jeito de repartir a dor da ausência, passa a direita pelo corpo. Vai e vem deslizando. Acha as coxas. A esquerda se atreve com pequenos beliscões nos bicos inchados, derramando. Uma a esfrega, a outra se enfia. Força as coxas. Não querem se abrir. Alenta os pelos. Curva as pernas quando está enfiada e trás a esquerda aos lábios. Está ali, deitada, Minha santa, me perdoa.
Os dois já vão longe. Assobiam ou gemem. Não sabem. Suspiram. Prometem. Não têm jeito de matar a vontade malcontente.

terça-feira, 24 de maio de 2011

Cara de fome não é a mesma cara que tem a barriga cheia

As unhas do pé

baitasar

Com a filha casada, Maria Memória planeja a própria barriga que segue avolumando com a semente do Ogum. E traceja uma pequena casinha para os jovens mancebos. Os recém casadoiros necessitam dois compartimentos de acomodação, nada, além disso.

A jovem parelha tem carência de quarto, para as necessidades de vergonha e pecado já conhecidas, o acasalamento. E o cômodo das obrigações com as comilanças. No início, a cozinha é acessória, com o tempo da convivência se transforma em lugar de encantamentos. A rendição se faz pelo estômago.

O apego das conversas pode permanecer na casa da frente, a sua casa, Crianças, venham e fiquem na vontade do tempo.

As misérias do aparelho sanitário continuam supridas pela casa de banho do casarão. Lugar dos maiores investimentos em acomodação. A baia do banho é mantida por cortina plástica, tem reflexos azulados na cor verde água. Na barra de baixo, a cortina está escura da umidade dos banhos.

A família tem o maior orgulho em emprestar suas acomodações aos visitantes. Nenhuma visitação escapa de fazer algum descarrego pelo quarto sanitário. Lugar do amor-próprio e júbilo. Uso de todos. Cartão de visitas.

A mulher encantada sabe que em tempos de morte e nascimento as coisas saem da comodidade, são regidas pelas naturalidades do destino, enquanto a vida se ajeita sem maiores correrias, Minha filha, você vai saber o que fazer, é instinto, filho que chora de fome precisa ser curado. Maria Memória sabe que a comida precisa chegar isso é o que importa. Cara de fome não é a mesma cara que tem a barriga cheia.

A mulher ileié dorme e acorda, está preocupada com a barriga da sua filha Cariciosa, as duas avolumam. Passa a mão sobre a sua barriga redondona, Não tenho motivo de susto. Os nascimentos não lhe vinham como novidade, depois de tantas crianças brotadas do seu bojo prenhe. Olha-se e adivinha que sua hora está chegando, Minha preta, O que foi, Ogum, responde olhando para o abrigo do telhado. A mão continua sobre a barriga arredondada, pensa que não tem motivo de susto, Minha preta, vira as vistas para o marido. Os olhos do negão estavam assanhados, Tô com o peito amarrotado como bolinha de papel, Posso ajudar no alívio, Tenho medo de fazer estrago. Sempre a mesma bobagem, esse não se aprende nem se ensina, Medo do quê, meu nêgo, Você sabe, cutucar o guri com vara comprida, Bobagem, meu nêgo, tem que cuidar a afobação.

O corpão da Memória estremece com aquele amoquecar adoidado. A bagunça é a lembrança que tem guardada das primeiras intimidades com Ogum, homem e mulher abandonados, ajuntados por conveniência de um e necessidade da outra. Levou tempo até acertarem quando ela se abria e ele enfiava a alma dura e firme.

O facho da labareda lhe trás desconforto calorento pernas acima. Deixa escapar um leve sorriso nos lábios carnudos. Lembra dos ombros largos fortes, as mãos de empilhadeira. Desconfia que o negão se animou além dos hábitos em tempo de barriga cheia. Ele já mostra saliência e o entusiasmo vai se avivando. O tempo da quentura e derramamento está de volta.

Maria Memória lembra a necessidade de cortar as unhas daqueles pés imensos. Tudo é imenso e desmedido nesse homem. Parecem pés de caranguejo. Ele vai se erguendo, enquanto respira profundamente, move-se mais devagar que o próprio costume. Está em pé, com as mãos na cintura. O dormitório iluminado com a chama da vela de cera. Memória aproxima a voz ao marido ferroviário, Ô marido, vai dormir com o boné, ele ergue os olhos e vê a aba do boné, Esqueci de tirar, minha preta, E o banho, Já tomei. Ela atira o olhar com força através da penumbra incompleta do quarto, Vai lavar só as mãos, Ta frio, minha preta, Vai vai vai logo, não esquece de cortar as unhas dos pés, Tu acha que tem precisão, o silêncio da mulher faz derramar sua preguiça como o leite fervido. Engole a moleza em seco. Enfia os pés nos chinelos e sai do quarto.

A energia da eletricidade está desligada. O beco está nas escuras. O poste dos fios elétricos foi quebrado ao meio. Acidente automobilístico. Motorista aturdido pela cachaça. O banho será frio, Quem precisa de aquecimento, sobe no mochinho segurando um toco de vela acesa, até que alcança nos armários a prateleira mais acima. Acha a maldita pinga. Tira a cortiça e toma um gole seco e curto. Sente a queimação no estômago se espalhando. Está pronto.

Vai para o banho. Tira as cuecas, fica vestido com os chinelos. Abre o registro na parede. Nenhuma gota. O cano está seco, Faltou água, exclama silencioso. Enrola a toalha na cintura, pega um balde e vai até o cocho do Ícaro. Mergulha o balde na água de beber do cavalo e volta para a lavação higiênica. Enfia uma caneca n’água e molha o corpanzil com nervosismo e fúria. Ensaboado, Espumando. Novo enxágue. Treme com o frio. Num acesso de fúria pega o balde e vira sobre a cabeça. Não respira ou geme, apenas estremece.

Depois de seco e polido ele sai do quarto de banho. Recolhe o balde e a caneca. Agarra a garrafa e retira a rolha com os dentes. Toma outro gole. Abre uma das gavetas e retira um pequena folha de hortelã para mascar. Volta para o quarto do casal. Caminha com outro toco de vela na mão, Cortou as unhas, pergunta a mulher deitada. Num assopro deixa o compartimento dormitório às escuras, Cortei. Aposta que na certa nem vai reparar.

Deita ao lado da mulher ileié. Ela está deitada à sua frente, de lado, examina suas partes, Hum hum, O que foi, minha preta, Cheiro gostoso. As mãos da Memória aquecem o negão aos poucos. No passo da lentidão, Ogum requenta o seu corpo de pau de carga com um fogo diferente, uma lenha que não se consome, avoluma. O toco não é mais de madeira, parece com ferrão de abelha. Acesso pelo ventre.

Reavisado pelas mãos da preta.

A mulher ileié espalha o cheiro do amor com a boca. O negão adora seu perfume de mulher desejosa. A cada gemido do homem, a mulher pede silêncio e tapa a voz com uma das mãos.

Maria Memória refresca as lembranças e coloca os olhos no centro da carne que quer extrair com a boca. Está envolta em saliva, Ai, O que foi, minha preta, Negão, tu não cortou as unhas do pé, Amanhã, minha preta, Tu mentiu, negão, Minha preta, dou um jeito nas unhas depois, Perdi a vontade, Maria Memória, não fica de birra.

segunda-feira, 23 de maio de 2011

O tempo precisava comer suas lembranças

Tempo de espera

baitasar

Maria Memória não sabia o que era pior, os olhares com piedade, os murmúrios pelas costas, as piadas duvidosas ou o gosto amargo da mulher largada. O desaparecimento do Virgílio com a bisca da vizinha, mulher do Ogum, era o assunto do seu sofrimento.

Mas, enfim, depois do tempo de espera sem notícias dos fugitivos, veio a certeza que se eles saíram às ocultas, não tinham intenção de retorno. Memória, nas primeiras semanas, alimentou o sonho, às vezes parecido com um pesadelo: acordava, em meio ao sono, com a voz do Virgílio anunciando seu arrependimento e pedindo perdão, Não tem perdão, comigo só faz uma vez, Mulher, sou todo arrependido, Tu merece uns tapas, Eu te amo, Nem pensar, some. Acordava tremendo de frio, suando gelado. Arrependida por não ter perdoado, pelo menos no sonho, E agora, quem vai trazer a comida, não sabia responder.

O luto da esposa abandonada precisava acabar. O primeiro salário do desertor, naquele mês já se fora, restavam os outros dois pagamentos e depois não sabia o que faria. Afinal, se o Virgílio estivesse morto poderia lutar pelos seus direitos de viúva. Mas mulher abandonada, sem saber o paradeiro do desgraçado, não tinha muito que rezingar. Estava à mercê do pretensioso destino e do bom humor do policiamento investigador.

A separação do vínculo matrimonial foi o mais óbvio para todos.

Maria Memória se tornou oficialmente, ali, no beco da Boa Esperança, uma mulher abandonada e com três filhos. Uma grande bucha de canhão. As chances não pareciam boas, Esse filho-da-puta ainda vai pagar, ele e aquela piranha redonda não perdem por esperar. Ela não conseguia entender que aquele homem cansado, com as carnes amolecidas, tinha fugido em ritmo de aventura. Não lhe comia, mas achou por bem fugir e comer a vizinha, Filho-da-puta!

De qualquer maneira o Virgílio não tinha muito préstimo de assanhamento. O homem vivia esfalfado. Para o bem da verdade, ele mais saia do que vinha para casa, O desgraçado podia ter feito despedida de esclarecimento. Tornou evidente que a carne de incompetência era da Memória. Não lhe deu chance de defesa.

Coisas práticas. Ele tinha três empregos três caminhos três chefes, compensava o sofrimento de ausência com os três salários. A cada dez dias chegava com um pagamento. A ferrovia pagava até o dia dez; a construção civil sempre fez seus pagamentos até o dia vinte; a vigilância noturna entrava com a sua parte, até o final do mês. Quando começava o acabamento do primeiro, entrava o pagamento do segundo; e depois, o terceiro.

Ela não tinha do que se queixar. Ele foi um bom provedor. Talvez, tenham se precipitado com a decisão de não tentar mais filho. As carnes foram esfriando, provocando falta de vontade como uma doença invisível, dessas que se fica sabendo tarde demais.

E, diante dos olhos sonolentos das crianças, o negão espadaúdo passou a cuidar das carnes de Maria Memória, as mãos grandes e fortes mais valiam nas virilhas abandonadas da mulher ileié. Precisava recuperar um tempo perdido de lamentações. Assim, as mãos de um acudiam a brasa amornada, enquanto os aromas da outra perfumavam o negão. As emoções voltavam diferentes.

Virgílio deixou para trás os filhos e os ganhos dos biscates. Não trocou explicação. Fez desaparição para sair da lembrança, mas a mulher engaiolada em acomodação doméstica continuava esperando. Queria saber a causa da desaparição. O tempo precisava comer suas lembranças.

O novo pai assumiu os compromissos do Virgílio. Foi mais fácil que o imaginado. Nos biscates não sabiam diferenciar um do outro, não eram parecidos, mas bastava obedecer. Negão é negão em qualquer lugar.

Para a criançada, ela disse que era o melhor a ser feito, precisavam encontrar os meios para se desfazerem das despesas, contas de comer vestir curar as feridas, Meus filhos, toda família precisa de um chefe.

De tal modo, o negão levou a sério o novo dever que levanta antes do galo cantar. Não reclama. Nem volta para os almoços. No terceiro turno não sai antes da conferência do bicheiro, o dinheiro ficar acomodado em segurança e os sobressaltos do alarme ficarem acionados. Depois do serviço de vigilância sai para casa, já vai tarde à noite.

O negão Ogum estava ajuizado de emprego e sabia onde enfiar as mãos.

A vida volta para os trilhos da locomotiva e na vitrola, achada atirada pelos chãos das ruas, último presente do Virgílio antes da própria sumidura, Maria Memória escuta a voz de João Dias, Nas tuas mãos deixei meus sonhos...

domingo, 22 de maio de 2011

João Dias

MAMÃE

ANGELA MARIA & JOÃO DIAS

 

A mulher ileié imagina o calor das mãos


Feijoada
baitasar

É domingo. Maria Memória odeia os domingos. Muitas bocas famintas não ajudam em nada. Panelas pratos colheres garfos facas copos, restos da comida rejeitada. Marido atirado pelos cantos. Crianças correndo gritando esfomeadas. Dá os ombros em sinal desimportante e deixa escapar um muxoxo de resignação. Acredita que esse será um domingo possível, diferente. Conclui os preliminares e assovia o ponto da casa de religião.

Olha o pátio. Fiscaliza o mármore de barro e poeira, Odeio esse chão de terra nos pés, a mulher ileié resmunga e procura por formigas. Amassa aquelas criaturas morrinhas sem remorsos. Bichos teimosos que andam por trilhas. Seus pés desvestidos de qualquer calçado ou piedade esmagam como se fossem as uvas do vinho. Olha para cima, ao redor da mesa, pronta para impedir a outra invasão, das moscas.
As duas mãos como raquetes preparadas para o voleio decisivo.

Uma mulher arranjada e prevenida para a guerra.

Tem um segundo de distração com os seus preparados, A mesa está linda, repete para si mesma, enquanto leva as mãos à cintura. Tudo está em seu lugar, pão farofa bolinhos de abará laranjas, e o principal, o feijão preto com os misturados. Causa admiração em si mesma.

Entra em casa, volta à portinhola de vigília. Aguarda ansiosa, espia e respira baixinho, espera o movimento dos convidados. Silêncio. O beco fica deserto no almoço das domingueiras. Olha ao redor, o quadro do Santo Padre continua pendurado, logo acima do rádio, ajeita um pequeno desvio que acredita ter visto. Uma inclinação à direita. Vai até o altar do seu orixá. Obá. Faz reverência de reza. A sua casa está em ordem.

Os convidados chegam.

Exatos nos minutos ajustados. Uma combinação perfeita e as necessidades de curiosidade se juntando. As urgências se apresentando. A cada vez que estendeu a toalha sobre a mesa, ela ideava como deveriam ser de mais valia as mãos do vizinho no alcance do bel-prazer.

A mulher ileié imagina o calor das mãos, a umidade da língua. Um fogaréu brota entre as pernas. Não consegue aquietar a contração das coxas. Roga por perdão divino, Sei que, pelo certo, vou para o inferno, mas o meu orixá haverá de interceder. Ela conta com a proteção do seu orixá, Bom dia, seu Ogum, Bom dia, vizinha. Nesse aperto das mãos se derrama com força e abundância. c das virilhas. Lembra que precisa rezar com mais fervor.

Foi um dia de muitas conversas e elogios, Nunca comi feijoada tão gostosa, Não precisa elogiar, vizinha, Mas devo, estava tudo maravilhoso. Palavreado mole de muito tempo se arrastando. O que era dito não enchia o vazio e a vontade insatisfeita da engaiolada. Aparências. Lembrança ansiosa do não feito. Um pecado impedido pelo medo da cruz. E a desmotivação do negão das mãos grandes e fortes. O fogo do inferno continuava queimando suas carnes. Desmanchando suas vontades.

Pouco se lembra da vizinha, mas percebeu a alegria do Virgílio. Aquele que foi empecilho de motivação mostrou mais contentamento durante o almoço da feijoada.

Outros dias e noites vieram. Tensos. Monótonos. Intoleráveis. Mecânicos. Explosivos. Não havia mais garantias. Até que o Virgílio sumiu com a saúva do Ogum. Desapareceram. Virgílio Silva e Ana Rosa Silva.

Ele com os dentes de ouro, ela com a perna mais curta.

sexta-feira, 20 de maio de 2011

A mão do vizinho se enfiando na outra mulher


Mãos fortes e grandes

baitasar 

Passam as manhãs e a mulher ileié continua engaiolada. Sozinha. Espiando. Misturada na vergonha e na bisbilhotice. Atravessam as manhãs, uma após a outra, por muitos dias, incontáveis semanas, e ela, por ali, em sua pequena escotilha.

A mão do vizinho se enfiando na outra mulher. Mordeu o lábio e inchou o beiço. Ela ainda não sabia, mas tinha outra em sua vida. A vizinha. Sempre diferente. Muita criatividade. Nenhuma inocência. Segura firme a anca. Garupa de violão. Depois sobe por dentro. Pequenas palmadinhas. Beliscões miúdos, descuidados. Murmúrios confusos. Enfia os dedos por baixo da renda. Vestida de dormir. Cabelos desalinhados, lábios elegantes, quentes. Desabotoa o sutiã e espreme os bicos. Escuta murmúrios. Ele os lambe, os lamentos confusos se põem na ponta dos pés. Danado de assanhado. Manhãs diferentes, mas as mãos são sempre as mesmas. Sujas. Pecadoras. Indecentes. Desavergonhadas. Fortes. Grandes.

Maria Memória decide que espera o Virgílio acordada e conversa sobre esses dois que moram tão perto, De hoje, não passa.

O dia pereceu com um jeito monótono, cansativo, durou mais que os outros. Mas, enfim, o Virgílio chegou do seu roteiro trabalhista. Ela acordada. Recostada na cama. Os olhos estrelados estão firmes nas mãos do marido. Parecem murchas e desmotivadas.

O marido senta na cama para tirar as botinas, Por favor, homem de Deus, tira isso lá fora. Ele sente vontade de perguntar, Quem morreu, ela, muito provavelmente, responderia, Ninguém, por que tu acha que alguém morreu, e ele poderia ironizar aquela cena como um verdadeiro mestre, Você só me espera acordada quando alguém morre. Mas cala de cansaço, não é um sujeito contrariador. Ele quase aposta consigo mesmo, A esposa metediça deixou a mulher com insônia. Chega a colocar a mão no bolso, mas espera pelo desabafo.

Na conversa daquela madrugada ela quer convencê-lo que precisam ser mais solidários com os vizinhos. Afinal, é dezembro. O natal está chegando. O menino Jesus já vai nascer de novo. Quase reclama que ela mesma está muito solitária. Acha melhor não, Ele que se dê por conta, as minhas carnes têm vontades que precisam de solução, fica calada. Espera o marido voltar sem as botinas e continua a ameaça calada, Do contrário o desagrado acabrunha as cobiças e a desavença é demorada.

O homem se rende ao silêncio e a própria falta de entusiasmo, num último suspiro tenta resistir, Maria, tu não acha um pouco atrasado, Por que, Eles já moram, aí ao lado, fazem quatro anos, E daí, Daí, sejam bem-vindos, estamos quatro anos atrasados, mas não reparem porque somos um pouco estranhos.

Irritada, pergunta ao marido se ele não tinha que trabalhar. O Virgílio responde com um dar de ombros, Acabei de chegar, Chega chega chega, está decidido, no domingo, faremos uma feijoada das boas-vindas.

O assunto estava apostado. Pronto, não havia mais motivo de algazarra ou tumulto. Apagam-se na luz escura. O silêncio do sono invade a cama resfriada. Cada um para o seu lado. O braseiro está amornado.

Não querem mais filhos.

quarta-feira, 18 de maio de 2011

os absolve com o sinal da cruz

Tempos feios, homens feios

baitasar

É um marido maravilhoso. Lutador. Bem empregado. Três empregos. Inventou três lindos filhos. Uma menina, dois meninos. Três crianças diferentes. Iniciaram a vida nas mãos da comadre Socorro. Parteira socorrista dos arredores da nossa vila. Outros dois ficaram extintos. Falecimento na aparição.

Maria Cariciosa, a mais velha, a primeira que ficou depois dos extintos, nasceu no meio da manhã, em dia de muito vento. Tudo muito rápido.

Oquê, o do meio, veio em uma tarde de muito sol. Muito eficiente. Radiante.

Oquerê, o mais novo, chegou aos empurrões. Já tarde da noite.

Pai e mãe não queriam esse, mas o que fazer, cavalo dado não se olha os dentes. Então, decidiram parar com o jeito de fazer filho. É um homem maravilhoso, muito compreensivo. Não é muito forte, nem os ombros são largos, mas é um bom homem.

Virgílio Silva tem três empregos.

Um em cada turno do dia. Três chefes. Três caminhos. Nenhum com a carteira assinada. Tudo bico. Biscates. Um jogo de truques para sobreviver. Um trabalho para cada turno do dia.

Nas manhãs trabalha na ferrovia, colocando e consertando dormentes. A família Silva vive do Virgílio substituir aqueles que adoecem. Nada oficial. Não tem boletim nem contrato, apenas um bilhete que chega com o nome do adoentado. Ele já foi muitos nomes na ferrovia, nem sabem o seu verdadeiro nome. Ele se tornou comum em inteirar o terno de trabalhadores. Quando os ferroviários acamam, ele recebe ocupação de serviço. Já foi chamado de fura greve. Mesmo em tempo sem greve. Coitados. Sorte a dele. Sai nas três horas da manhã. Noite do amanhecer.

Nas tardes é carregador de tijolos. Nem vem almoçar. Vive faminto. Elegante. Não carrega jóias de relógios ou correntes, apenas aqueles dois dentes de ouro, bem na frente, em cima. Um troféu. Nos dias do anoitecer é vigia. Até meia-noite. Um homem competente, nada lhes falta. Vive daqui prá lá e de lá prá cá, caminhando. Quando o lugar de direção é mais longe, vai de bonde amarelo. Sempre senta no último banco. Passageiro. Último a ser lembrado. Vem sempre depois de todos. Trabalhar e viajar de bonde não enriquece ninguém.

Segundo, diz Maria, as três crianças vieram pelo apego exagerado às vontades das carnes.

Maria Memória adora os três.

Outra manhã e já não tem o esposo, sai antes do amanhecer, assim que a madrugada começa envelhecer. A cama esfria. Nenhum beijo. Amado. Muito compenetrado. Já foi mais carinhoso. Sente falta. Continua rezando por ele e o vizinho. O negão dos ombros largos.

Os tempos estão feios e os homens também.

Sorri para o pássaro engaiolado. Pulando de galho em galho. Não voa. A mulher ileié engaiolada faz pequenos muxoxos para ouvir seu canto. Não canta. Vira-lhe as costas. Melhor assim, silêncio. É um breve paraíso. Ninguém para cuidar. Satisfazer. Sozinha.

Caminha na ponta dos pés até a portinhola da porta. Espia o negão dos ombros largos. Os dois sempre do mesmo jeito. Monótono. Um beijo alongado. Coitada, nem é tão bonita. Sobra bunda. Ôpa. Hoje, ela ganhou uma mão preta entre as pernas. Maria faz um muxoxo e diz alguma coisa como, Indecente. Estão sorrindo. Atrevidos. Planejando alguma coisa.

Maria Memória os absolve com o sinal da cruz.

Quanto atrevimento.

segunda-feira, 16 de maio de 2011

un poema Alfredo Cuervo Barrero

Queda Prohibido
- Alfredo Cuervo Barrero
Voz: María Isabel Bozzini

chora, mas não engole

Bolo de Carne

baitasar

Dói em Maria ver o negão retornar do final diário sem nada, mais um dia estéril. Os ombros o denunciam. Recurvados. Desencantados. Dias de maus resultados.

Passa por ela sem ver ou querer ver.

Ela tem três filhos. Todos do Virgílio e da Memória. Devoradores. Comedores ávidos da geladeira esfomeada. Vazia. Estômagos de avestruz.

O frio vem conforme o cobertor, pena que a fome não é conformada com a medida do bolso vazio.

Para o bem da verdade, e a mentira não prevaleça, o neguinho do meio não tem por jeito comer carne. Falta de costume com o gosto. Ela precisa dar empurrões de mãe, por vezes, súplicas gritos insultos.

É quando Maria Memória perde o jeito de conversar com os olhos. Os caminhos que levam sangue à cabeça se dilatam, quase rasgam. A luta é desigual, sempre foi desequilibrada.

Ele fica mastigando embolando empurrando de um lado e outro na boca, qualquer pedaço de carne. Mastiga. Tritura. Aperta. Morde. Chora, mas não engole.

Outro pedaço e as histórias se repetem.

Mãe e filho querendo vencer resistir. A insistência estratégica. A resistência que empurra. E a bola de carne aumentando. Dançando. Não chega à garganta. Não desce pelo gargalo. Não tem gosto de carne.

Falta de costume.

O nervosismo tomando conta. A ansiedade crescendo. Tortura. Medo. O chinelo na mão.

Até que a exaustão se apodera de todos. O menino chora até as lágrimas e a mãe cresce nas ameaças, Come come come.

Ele vomita.

Nunca come.

Ela sempre limpa.

Mãe é mãe, Esquece, minha nêga, menos uma boca.

Enquanto a voz do Virgílio sobe nas paredes, ela lembra o coitado do Ogum, vizinho sem préstimo de emprego. A curvatura dos ombros fortes e largos. O silêncio. Escuta o pensamento lhe escapando da boca, Uns com tanto e outros sem nada.

agora só pode casar quem planta dez árvores

Comunistas Desgraçados


baitasar


A jovem Maria Cariciosa entra pela pequena casa em rajadas rápidas. Como balas-metralhadora. Num assopro passa do pórtico de entrada à cozinha do fogo a lenha. Cortinas de pano esvoaçam e se abrem, janelas se batem naquele entardecer mormacento. As paredes sem reboco gemem de desconcerto, estão desguarnecidas na sua feiúra, ressentidas pela luz da menina e sua beleza anatomista. Ela não é destas paredes, mas vai morrer aqui. O ar venta, todo desconjuntado na sua passagem. O assoalho de madeira estremece e geme. As galinhas engordando no porão da casa se agitam em cocorocós. A mãe, Maria Memória, recolhe os olhos dos afazeres domésticos. Quefazeres dignos de toda mulher que preze o seu lar. Ainda não está gordinha, mas já vive época de útero cheio. É o sexto vivo. Uns poucos dias atrás, percebeu o embaraço da barriga. As regras teimaram em não sangrar. Mas é noticiário de poucos dias, vai deixar passar mais um tempo da semeadura do Ogum. Logo, se vão movimentar todos na expectativa da colheita do plantado. Mais uma boca, mais um filho do Ogum.


Olha para aquela que educa com carinho renúncia devotamento e chega em redemoinhos. Pensa como está linda, cor de negra, cabelos cortados curtinhos, como guri, olhos amendoados, duros de enfrentar. Jura que ela está fora de lugar. É uma boa menina, não aprendeu as maldades que a vida tem, Mamã, mamã, O quê, minha filha, Acabei de ouvir na praça, Fala logo, guria, Criaram uma nova lei, Isso lá, é novidade, mocinha, Mamã, agora só pode casar quem planta dez árvores, O quê, Isso mesmo que a senhora escutou, Por quê, Ajuda a diminuir o calor fazendo mais sombra, Isso é coisa desses comunistas, Mas que droga mamã, isso lá interessa, Interessa sim, Mamã, quero saber do meu casório com o Manualdo, Calma, mocinha, nos últimos recursos, o paizinho sai plantando árvores pela rua.


A menina ainda solteira de direito, quase casada pelos fatos, lança olhar para a sala da televisão em preto e branco, vê o paizão da mãe, agarrado nos gêmeos, Você planta, Ogum, Já tenho tudo em planejamento. Esse é o tal que vai resolver com as plantações de árvores quando tudo o mais tiver falhado. Um pai biônico. Boné de couro enfiado na cabeça, ferroviário, na cor preta, barba branca falhada, por fazer. Não se lembra de ver o pai Ogum sem o boné. Nem percebe algum aforçuramento de empolgação. Começa a duvidar que esse casamento arrede das intenções. Aqui, na vila ou no beco, tudo é apenas vontade. Ainda estamos sem esgoto e a energia da luz continua chegando num único poste. Dali, a força sai num emaranhado de fios desencontrados. O beco do pau dos fios da luz. Fincado bem na entrada. A cada novo morador mais fios nascem naquele emaranhado, as chances de uma desgraça são maiores. Bombeiro ou ambulância não entra no beco, só derrubando o pau cravado no chão. A água não chegou a todas as casas, não existem milagres. Pensa no barraco que precisa ser construído. Nada dessas coisas de madeira e lona. Tudo bem feitinho pra não ter rato barata sapo. Tem nojo de sapo, mas da barata foge como uma condenada. Pavor. Entra em pânico. Provoca um estremecimento pelo corpo, tenta um jeito de afastar o pesadelo.


Chega de tormento.


Sonha com convidados festa bolo convites músicas. Imaginar é bom. Pensa na roupa do Manualdo, não é doida de deixar na mão dele tudo isso. Quem sabe um dia, outro casamento. Sem tanta pressa. Por ora, prefere entregar àquelas mãos outras coisinhas, Vamos dar um jeito, filha, Mamã, eu estou apaixonada, Deus seja louvado, vai dar tudo certo, Deus te ouça, mamã.


Memória leva as mãos à cintura e endireita o jeito de respirar. Ainda pode com o tamanho da barriga. Pequena de não aparecer, pensa desanimada, Essa tem muito que arredondar.


A sineta do portão estala. Maria Cariciosa sai correndo, É o Manualdo, grita de contentamento, Minha filha, faz ele entrar. Juro que nunca vi gente mais tranqüila que esse Manualdo. Muito parado. Profundo no seu jeito matutoso de desfazer o que se fica pensando dele. Cabelos muito lisos, muito escorridos, acompanhados de um farto bigode. Índio puro. A guria chega aos atropelos. Quer pular em seus braços e o enlaçar com as pernas. Mas pára de súbito, Amorzinho, a gente só vai poder casar se plantar umas vinte árvores, Minha filha, não são dez, Mamã, quem planta dez faz mais um esforcinho e já deixa mais algumas pelo chão se enraizando. O moço não parece preocupado, nem espantado com a novidade, Minha preta, esse vai ser um jeito lindo de casar, Isso aí, Manualdo. O dono do boné ferroviário se mexe e sai do velório da televisão. Maria Memória lança o seu olhar de leoa em defesa da ninhada, Marido, não vai atrasar para o trabalho.


Ogum está levantado, já não se sente mais nas vontades de adormecer na frente do televisor. E o assunto está ficando por demais curioso. Tem algumas idéias e sugestões de aconselhamento. Pelo tempo, desse entrevero, Manualdo fica olhando para a Maria Cariciosa com as mãos cheias de amor. Desvergonha do corpo que se ama.


A menina faz contas e planos de arrumar todas as árvores que fossem necessárias. Não pode pensar em adiar o desenlace. Tudo se debate inquieto pelo seu corpo anguloso. Segredos. As dúvidas da menina e as certezas do Manualdo.


Passam o restante daquele dia a discutir as chances de casar sem as plantações, Onde vamos arrumar tantas mudas, ninguém responde.


A data se vinha e nada das árvores. Nesse rumo, o fiscal da prefeitura não tinha nada o que fiscalizar e anotar. Nada de casório.


Por outros dias, Ogum, chamou o esposo futuroso para uns poucos esclarecimentos de família. Esperou a reunião de todos. Toda a família sentada, enquanto ele se mantinha em pé, com um dos gêmeos no colo, sob o pórtico da sala de visitações e a cozinha. Pediu silêncio. Parecia mais espaçoso do que era. Não é maior que a porta, mas que se parecia maior, isso era. Sentia lhe chegando pela retaguarda o calor da lenha queimada no fogão. A chaleira d’água chiava, louca por uso de chimarrão. O dono da casa iniciou discurso sobre as dificuldades de achar chão de terra para enfiar as novas árvores, Tudo está virado em asfalto e cimento, Marido, por que não plantamos por aqui, na vila, Não dá mais, amorzinho, aqui, ta tudo virando cortiço, uns por cima dos outros.


Olhou solene para o teto esburacado e depois para as próprias alpargatas de corda, Tenho sugestão, Desembucha logo, paizinho, Vamos esquecer o tal casamento, O quê, O Manualdo se vem com as malas de bagagem e se fica por cá, na informalidade, Na imoralidade, Amorzinho, nós não somos casados, Mas os meus netos serão filhos de um pai casado e uma mãe casada, Querida, isso não quer dizer que não vai haver casório, Quer dizer o quê, ninguém responde, todos olham para Cariciosa, em pé, no meio da sala de visitação, Mamã, O quê menina, Estou grávida.


Os olhos se vão da Maria Cariciosa para Manualdo e dele para ela. Ninguém se atrevia a quebrar o mistério daquele silêncio. Pensar o quê, dizer o quê, Mais uma boca, foi o resmungo do Ogum. O cabeleira lisa pedira emprestado o que não devia. O cogitabundo antes de produzir lucros já entrava na família com débitos. Safado de danado. A mãe, agora em preparativos de avó, se põe a recolher a colher presa no arpão, Como já disse, esses se casam com qualquer arbusto fincado no chão.


No dia seguinte, já está de conversas com o padre. Toma o desvio dos atalhos nas boas maneiras, esclarecendo, Padre, a nova lei, Qual lei, Pra casar tem que plantar árvores, É... um absurdo, Ah, então o padre concorda que não é preciso plantar nenhuma árvore, Não é bem isso, dona Memória, O que é, então, Sabe como é, a gente não conhece os novos procedimentos, por enquanto, seguimos a lei, Padre, não temos as árvores e a barriga da guria está crescendo, Minha filha, lhe diz o padre, enquanto junta as próprias mãos ao peito, delicadamente. Tão suavemente era o padre, que Maria Memória jura que se parecia com um padre santo, o próximo de virar papa, o que posso fazer, as leis são para serem cumpridas, Mas eles não querem mais viver em pecado e desejam muito casar no padre, O que já foi feito não pode ser desfeito, Isso a gente já sabe, mas queremos os proclamas e a data marcada, Depois das plantações, Padre, uma família tem que ter um marido, a menina precisa casar, Se for a vontade de Deus. Maria Memória olha o padre com a boca cheia de palavrões, que engole, ainda não está louca de brigar com alguém que se parece com santo. Tudo no seu tempo. Ela vira santa ou ele desfigura em homem. Tudo no seu tempo. Aguarda pelo andamento dos dias. Não existe algo mais importante para Memória que a sua filha.


Olha para o homem a sua frente e é isso, vê apenas um homem. Com medo. Pensa que ainda está confuso com as mudanças. Não sabe que rumos seguir. Quais as ordens superiores. Engraçado, até instantes, ela juraria que só haveria um caminho, o caminho da palavra de Deus. Sacode a cabeça para afastar esses pensamentos do demônio, A gente se fala qualquer dia destes, padre, Deus lhe abençoe, minha filha, boa sorte, O senhor está nas necessidades mais que eu. Pegou a Maria Cariciosa pela mão e se foram a percorrer os templos de religião que lembrava existirem na vila. Todos estavam irmanados com a defesa do clima da terra. Estavam em guerra. O calor e o corta-corta das árvores precisava ser combatido. E a menina estufando. Duas crescendo de volume.


As reuniões na família continuavam. Dezembro ia pelo meio. Haviam de encontrar uma saída de dignidade. A barriga da guria já se avoluma, não tem mais jeito de disfarçar. Seu neto não ia nascer sem pai nas vistas de Deus.


Ogum lembra que conheceu um capitão de navio, numa dessas suas andanças, Vou procurar pelo Capitão-boca-mole. E, sem mais delonga, se foi na procura do Capitão-boca-mole. O procurado é achado ancorado na taberna, junto ao cais do porto, desembarcado, Ogum, não posso fazer casamento em terra firme, Precisa do quê, Um barco, Onde vou arranjar barco, Na água sou comandante, mas em terra sou galego, Deixa pra mim. Ogum se vai para casa com o galego da boca-mole e coloca todos na carroça. Toca o Ícaro e grita, Vamos fazer o casório da princesa e do príncipe comilão. Abracadabra. O pangaré é transformado num puro sangue da realeza, mas os puxa aos trancos e barrancos. Conforme vai desfilando a carroça toma contornos de um coche suntuoso que os leva para o lago da praça, com chafariz e os barcos pedalinhos, O que é isto, A água e o barco que precisamos para as formalidades festivas.


Todos descem do coche, Os guris se ficam, aqui, em terra, Mãe, a gente quer entrar junto, Ficam, aqui, cuidando dos gêmeos. A decisão está tomada. Família não é democracia. Concordam em ficar de sentinela.


Assim, uns ficam na margem e outros vão lago adentro pedalando. Os guris ameaçam chorar, Calem a boca, não façam barulho. Olha para os lados, esperando o desembarque dos milicos, cassetete nas mãos e muita vontade de seguir as ordens do alto, Prendam essa negrada. O mais adulto procura com o olhar as praias do chafariz, nenhum sinal dos jipes e tanques inimigos, Calem a boca, grita para os irmãos. Ficam em silêncio, um ao lado do outro. O segundo mais adulto enfia as mãos no bolso da calça curta.


No meio do tanque irregular de jardim, o Capitão-boca-mole, legítimo representante da dinastia bóia-fria das águas, se ergue e pede a todos que fiquem em pé. Todos se levantam com dificuldades de equilíbrio bêbado. Maria Cariciosa, com as mãos serenando a barriga, reclama de náuseas, Vou vomitar, Respira fundo, amorzinho. O único que parece não se incomodar com aquele balanço das águas é o boca-mole, Estamos aqui reunidos para casar esses dois jovens amantes, Corta o discurso, boca-mole, As alianças, Quem carrega, Não sei, Eu não peguei, Nem eu. Iniciam a procura pelas alianças. Tentam bolsos bolsas sacolas, dentro dos sapatos. E, como em uma brincadeira de dominó, o Capitão-boca-mole se desequilibra, derruba o mais próximo. Cai agarrado ao vestido da noiva que empurra o noivo que puxa a sogra que se agarra ao pescoço de Ogum que se atraca no vazio do buraco. Afundam até os joelhos, Comunistas desgraçados.

domingo, 15 de maio de 2011

Y éstos sean los últimos versos que yo le escribo

Pablo Neruda
Poema XX
 Legendado na voz de Alex Ubago 

plantio medicinal

Fumo de Corda

baitasar

A tarde abafada, um mormaço de caatinga na cidade do pôr-do-sol mais lindo do mundo. É como gosta de repetir o menino Oraniã, sobre o entardecer em Canela Preta. O guri ganhou o nome de Oraniã porque sua mãe nunca soube quem era seu pai. Tanto podia ser um como o outro vivente que lhe embrulhou uma misteriosa substância nas virilhas.

O menino está deitado de costas, no porão de três palmos de altura, vestido apenas com um calção azul, pronto para mais uma pelada com os guris da rua. Gosta do azul, mas não faz desfeita ao vermelho. Não conhece outros pores-do-sol, mas nada pode ser mais esmerado e bem cuidado, pelas mãos D’ele, pelo menos, foi a garantia da professora.

Ele adora geografia porque as pernas da professora e ele viajam sem sair do mesmo lugar. Uma luta de cinco contra um. Nunca viu o tal pôr-do-sol porque tem lhe faltado a coincidência de estar no lugar certo, na hora certa, Canela Preta é muito grande. Mas a professora garantiu ao menino que é uma questão de tempo. Oraniã concorda, enquanto as pernas da professora fazem seu corpo estremecer na fantasia dos dedos, apertando soltando, os gemidos brotando, até que as águas sobem, Canela Preta fica encharcada.

Dia desses, ele saiu para ver o tal acontecimento, o acaso não ajudou e... choveu.

Hoje, com todo esse bafo da caatinga, não chove, mas ele está ali, deitado, a mão direita aguada, esperando o futebol. Na verdade, é tudo só um treino. Ilusão da castidade. E quem não treina, não joga. É a regra.

O acaso continua não ajudando, Fumaça, vem aqui!

A voz nervosa da avó também estremece o corpo de Oraniã. Ela trás a idéia de morte à sua cabeça. Vive insatisfeita com a investigação da cena de algum crime. Alimenta-se de buscar um crime e o delituoso é ele, Oraniã, o Fumaça.

Ela chega da sua horta de verduras, cultivada com a proteção das suas árvores frutíferas. Entra por uma das frestas da casa silenciosa e vazia. A velha tem uma filha. A moça trabalha fora, tem a incumbência de pôr em ordem e limpar os apartamentos do motel Leite Derramado.

A filha da velha tem dois filhos. O mais adulto está nas horas de estudo. É o orgulho das duas. É o primeiro da família que chegou aos estudos de jornalista. A sabedoria dos livros entrou na família.

Mas, agora, ela procura pelo menos adulto, Fumaça!

Esse preocupa, desaparece por horas e na ressurreição vem com cara de culpado arrependido. Não fala, nem se explica, Fumaça!

Chama, Fumaça!

Espera, Fumaça!

Escuta o silêncio. O rapaz não aparece, Fumaça!

A velha se repete nervosa, ela é de outro tempo, em que ouvir e obedecer aos mais velhos e sábios era a obrigação dos jovens ignorantes. A sabedoria chegava com o tempo da idade, Fumaça!

A velha procura nas frestas e cantos, mas não encontra nada. Pisa nervosa nas tábuas podres e pregos enferrujados, enquanto formigas entram e saem das suas fendas, Fumaça, vai comprá o fumo d’avó!

A mulher-avó conserva o hábito do fumo de corda, gosta de mascar fumo e fumaçar. Corta o fumo em pedaços finos e enrola tudo em folhas de milho. Depois é só queimar, Velha, já desbastei da corda, é só enrolar, tem quantidade pra dois.

Fumaça oferece à velha um punhado de fumo picado que encontrou nos bolsos da calça do irmão. Não tem intenção de sair naquele mormaço de caatinga. Ainda se fosse pra jogar bola, ele até ia. Ela apanha o fumo e enrola na folha de milho. Acende. Olha para os lados e o Fumaça sumiu.

O acaso não ajuda o guri. O futebol foi cancelado por desistência dos boleiros da rua. Ao que parece, foram ordens do Beto Suco. Ordem dada, ordem cumprida. Oraniã olha para os lados e a avó sumiu. Resolve que dormir era o que melhor tinha para fazer.

Acorda aos sobressaltos. Quem dorme, quando acorda, perde o conhecimento do tempo e das coisas. O irmão mais adulto pergunta e faz gestos que ele não entende, Mano, tu mexeu nas minhas coisas?

Depois de algumas tentativas, ele responde ao mais adulto, Só dei pra velha um resto de fumo da sua calça, Mano, é erva, Xii, esqueci... melou a porcaria.

Levanta do jeito mais rápido. Os dois saem na procura da vítima usuária acidental.

Ela mora na casa dos fundos. Entram. Chamam. Não está em casa, Os meninos procuram por quem...

Levam um assombro com o achado, Velha, onde tu tava, Aqui, deitada na sombra, fumando meu cigarrinho.

Os dois miram o baseado nos dedos da velha. A vermelhidão denuncia o uso, Meninos, gostei da qualidade do fumo.

Entrelaçam os olhares. Olham bem à Velha. Concordam que a antiga está rejuntada nas aparências, nunca esteve tão de bem com a existência.

Decidem começar um plantio medicinal.

sábado, 14 de maio de 2011

quanto aguenta, ainda

Varapau
baitasar

Mais uma noite sem dormir, sentindo-se imunda, caçada e agredida no seu chão. As partes da casa são tão misturadas que obrigam Dora receber as visitas no pátio da lama. O mesmo living também é o quarto cozinha, galinheiro chiqueiro, estribaria jaula, caverna cemitério, Quanto aguento, ainda, tem medo de perguntar. Olha para o lado, o corpo nu está ali, estendido, todo mole e molhado. Ela está encolhida num canto, chorando baixinho para não acordar a besta. Suas lágrimas nunca são vistas. Dora não tem lágrimas, apenas chora, conformada pelo seu destino. Hoje, ela queria ser dona de um varapau, para manter esse animal canibalesco fincado no chão. Fazê-lo sentir a dor de ser marcada como uma vaca.


Dora não sonha, nem sabe mais mudar e transformar a si mesma, não sabe por onde. Sente a dor coagulada nas próprias carnes. Não sei como ajudá-la.


Até hoje o sol nunca amanheceu e se derramou sobre Dora, além da sina de esmagá-la, fazendo-a desmanchar-se suave na presença da luz, enquanto por consolo eu cresço. Vivo naquele espaço opaco e sem luz que se interpõe a própria luz, sou designada como a ausência de luz, a figura imaterial de Dora. Não existo. Nem Dora.


No calor, a vida de Dora se enche de mosquito e mau cheiro. Como sou seu espaço opaco e sem luz não sofro a aferrada dos insetos. Não me acham, se escondem sem mim, mas não paro de imitar seus movimentos de luta contra os ataques ao seu corpo. Até cansar de debater-me e anestesiada ficar imóvel. Não está mais ali. Não estou mais aqui. As marcas do tempo de desistência exibem-se em milhares de pintinhas vermelhas pelo seu corpo, denunciam o ataque que suga o sangue. Cadela sarnenta.


Por absoluta teimosia Dora sobrevive até o próximo anoitecer. Na verdade, não sei onde busca seu reforço de raça, aliás, ninguém se ocupa de Dora. Não existe Dora. Ela mais se parece com um cão sem dono, parado em um canto qualquer. Amarrada pelo pescoço com barbante. Aguardando. Esperando... meio podre rançosa olhar triste. Não há vida.


Nas chuvas, Dora tem as águas com sua umidade molhado-a pelo relento da noite e do chão. Com o fedorento e malcheiroso mundo do pátio comum ao esgoto da cidade. Ela tem o seu barraco na distância de um passo das cloacas, o esgoto comum das pessoas de todo bem possíveis. No frio tem menos mosquitos e mais tosse, falta o ar, sobra febre dores pelo corpo. Não consigo ficar na vigília do seu sono.


O seu beijo não faz o mundo parar. Sofre com dentes de podridão. Seus peitos estão escondidos, perderam a frescura viço, cor beleza. Não são mais queridos. Não mais são caçados. Murchos caídos, Dora os mantém guardados pendurados, como chuteiras perdeDoras, em desuso.


No trânsito das ruas, as gentes de bem soam seus carros. Xingam a vagabunda sua carroça. Gritam acenam, Não deveria ter nascido, sua desgraçada, já deveria ter morrido. Não se importa e deixa pra lá, tem seu neguinho e a mulatinha, se nega dar. Precisa criá-los na guerra da fome desespero, no chão invadido e sem dono, sem esgoto água, luz mamadeira. Segue usando as tetas murchas.


Dora me olhava diretamente nos olhos, acariciando a barriga, enquanto sua imagem me refletia opaca, uma mancha extremamente cansada à parede podre do barraco. Silêncio. As crianças dormiam no quarto estendido, um minúsculo puxado do camarote do abuso, Não consigo mais, estou sem paz e tempo para esperar.


Em seu sonho, o corpo nu do violador se submete a imobilidade permanente. Até parece que é só isso que deseja da vida, exterminá-lo inteiramente. Soprar a chama da vela. Derramar o resto que ainda não bebeu e riscar o fósforo, rindo e chorando, tudo acabando, Chega de ser humilhada.


Ontem, Dora fez anunciar na vila, incentivada por estes dias de eleições, Estou negociando meu poste e minha cerca de madeiras. Aceita colocar a placa de algum político, afinal, quer sobrevida, Que coloquem o nome que quiserem por ai e por aqui, não tenho lados além do meu.


Coitado do nosso poste, todo amarrado e açoitado por arame de espinhos, expondo, lá no alto, as placas políticas. No meio do dia, o varapau imundo chegou bêbado, Não sou puta, Pior, tens apenas tetas murchas dentes podres, puxando o carrinho feito mula velha, Preciso comer, as crianças têm que comer e tu bebe a nossa comida, Puta, onde está o dinheiro, Filho da puta, leva esse pau mole daqui, Velha idiota, acha que é fácil ter um pau duro no meio desse lixo, Tudo na vida tem seu preço, Quero ver ter tesão agarrando esses peitos secos, a barriga inchada de vermes vento seca, toda seca, podre, toda podre.


Molhada, suada, chorada, mais uma noite se passando. Olha a escuridão em volta. Sinto o cheiro da nossa tortura. Jura que um dia isso vai acabar. Ninguém realmente se importa. Seu plano é arrumar um trabalho melhor que ficar recolhendo o lixo da gente boa, nos parques praças ruas, desta ilha.


É duro sentir a mão calejada áspera, espiar a pele da bunda mais enrugada no sol chuva, vento a vento, que se faz todos os dias. Trabalhar duramente, com afinco, e chegando em casa não ter muito além da farinha de fubá, um ovo, nenhum óleo, um pedaço de pão velho. Tudo sufoca e me abafa, morro junto aos pouquinhos por asfixia, as suas e as minhas tetas também definham. É preciso resistir contra a crueldade da vida comendo sem me deixar nenhuma ilusão. Tem que existir um lugar em que não se viva de tristezas restos podres, longe do lixo que respira e me arrasta.


Tenho vontade de silenciar o som que o faz dormir e acordar satisfeito, penso em mim e no crime cometido. O violador está aqui, nu, sem nenhum sentido de culpa, Meu Deus, nem um caquinho de espelho pra me dar uma olhadinha, não tenho nenhum colo pra sentar e me ficar recolhida, escorada. Escuto Dora, ela grita em seu sono que sou dela, sua sombra, sua cria. Sabe que vai acordar com um buraco imenso na alma e no ânimo, apunhalada no meio das pernas, Dora podre, Dora fodida de enfiada, Dora de alma esfarrapada, Dora puta, Dora murcha, Dora não é gente.


Dora leva um susto quando se vê sentada, toda encolhida a um canto, dormindo, O quê ta acontecendo, como estou aqui se estou ali dormindo, ela tem a sensação do corpo que está ali sentado e desse outro se movendo para a porta. Sente-se passando de uma pele para a outra. Agora é mãe.


Lembra os filhos, De quem eu sou o pai, Não é o pai de nenhum, Eu sabia sua puta!


Na escola, explica à professora que são filhos de um bêbado, o maldito quando bebe a procura pra se aliviar, na força violência, Não tenho um companheiro, durmo com o inimigo, Mas por que vivem juntos, A gente não vive, apenas que a gente se mata por causas que não sabemos.


Somente eu e Dora sabemos como essa menina foi feita e dos conselhos que sugeri depois do crime forçado, Porque não aceitou nenhum dos meus aconselhamentos, não sei. Poderia fazer fácil enquanto o seu e o meu volume aumentavam, não quis e apesar de tudo a esperança de Dora não se desfaz, acarinha uma barriga não consentida crescendo, Tua vida não muda porque tu vive chorando a fome que te deixa medonha, Tua vida não muda porque vive bebendo com todas essas putas, por aí, Tu merece as minhas costas, sem um único olhar para trás, Vai, sempre me arranjei sozinha, Pronto, não se pode ter uma conversa amigável sem gritos, Se tu quer bater um papo vai pro boteco da esquina do beco, lá tem discussão de bebum, tu não vale mais que um gole de cachaça, Oh, Dora, meu bem, você leu meu pensamento, Tira essa mão de mim, tu cheira cigarro cachaça puta, Quero te dar carinho, Eu sei o que tu quer, O que eu quero, velha analfabeta, vai ler a na palma da mão, Tu quer entrar em mim, foder, derramar tua podridão, te aliviar, Foder é bom ou não é, Eu preciso que tu vá arrumar trabalho, cansei de trabalhar por mim e por um homem bêbado mulherengo, que só me quer cheio de cachaça, fica longe, Dora, minha querida, vem sentar no colo do papai, Fica longe, meu pai já morreu e faz muito tempo, Vem cá, Me larga, Deixa eu te dar um beijinho, Vou te matar, Depois, Tira tua mão, Não posso, Sai de cima de mim, Não empurra sua vadia, vou te foder de qualquer jeito, escolhe se na porrada ou no carinho, Tá rasgando minha roupa, A culpa é tua, Vou arrancar este teu pau imundo, Tenta... tenta que eu como teu coração com as minhas mãos ainda dentro da tua boceta, Por favor, não faz, É só mais um pouquinho, abre as pernas, isso mesmo, que boa menina.


Mais uma noite sem dormir, sentindo-se imunda, caçada e agredida em nosso chão, na sua sala de visitas, que também será meu quarto, sua cozinha, nossa prisão, Quanto aguento, ainda, ninguém responde. Está sozinha. Olha para o lado, o corpo nu como um punhal, está ali, estendido todo mole, Parece morto, Pode estar, pode não estar, tanto faz, nada muda.

lembranças do pai

Inhacundá



As memórias do Vô Mitô são histórias de amorosidade com a humanidade, as lembranças de um homem encantado pela vida 


baitasar


As lembranças daquele arroio não me deixam. Os meninos pelados correndo, jogados nas suas águas. As marés das chuvas crescendo e aquelas águas no contorno da minha cidade, São Francisco de Assis, é outro lembramento que aviva minhas carnes.
Os cabelos brancos não me afastam destas memórias, pelo contrário, a cada novo fio pálido de leite, meu memorial se reconstrói. As minhas carnes ficam com doze anos, o fôlego me volta de uma só vez, os olhos se arregalam, esbugalhos de contentamento.
O arroio se chegando, ele tem curvas de sinuosas intenções.
Tenho mais que a nostalgia poderia me trazer, tenho a memória do vivido com aqueles guris.
Voltei.
Precisava voltar.
Achei quase tudo no lugar. Minha casinha humilde com seu telhado de telhas em canoa. A porta. Janelas. As mexeriqueiras sumiram e as terras se dividiram para abrigarem muitas casas. Mas a praça e os bugios ainda andam por lá, viraram atrações. Os matos se acabam e resta a praça com os seus macaqueadores. Os turistas vêm para alimentá-los e se fotografarem juntos. Fico de longe.
Não tenho precisão das fotos, tenho a vida e conservo as lembranças. Escuto os gritos de convocação
—        Milton, vamos jogar bola na beirada!
—        Vó Nena, posso?
—        Vai, mas cuida a hora do sol mais fraco...
—        Tem pão quando eu voltar?
—        Bem quentinho. — e lá se iam os guris de São Chico na direção do arroio Inhacundá. A pelada se jogava com bola de costuras por fora nem parecia que doía chutar. O guri que eu era crescia entre os amigos, enquanto meus irmãos se foram pra capital mudar de vida. Deixaram a absoluta calmaria pela agitação das charretes e fords bigodes. Burburinho civilizatório.
Talvez essas lembranças não tenham sido bem assim, mas e daí, é como lembro e gosto de pensar que foi. E se lembro assim, é assim mesmo que foi. Depois do futebol batia aquela vontade danada de pular no Inhacundá, mas o que fazer dos calções depois de molhados? Todos se olhavam e lá iam eles pernas abaixo. Corríamos pelados até a barranca e pulávamos um após o outro, feitos pedras de dominó. Minhas lembranças ficaram naqueles vôos até as suas águas límpidas de cor marrom. Cheiravam a mato. Cheirávamos vida. Sinto ainda estar flutuando da barranca, as pernas encolhidas, os gritos de alegria, os olhos arregalados, a satisfação dos braços estendidos junto com minhas mãos e dedos. Voltei a ser aquele guri que já havia esquecido, deixado de lado, meio a contragosto.
Nadávamos até a ilha no meio do arroio e tornávamos a saltar nas águas
—        Silêncio...
—        Psiu!
—        O que foi?
—        Ouçam...
—        Não to escutando.
—        As gurias estão rio acima.
—      Vamos espiar. — e íamos espiar o banho das gurias, com seus maiôs de manga e pernas compridas. Quando nos viam saiam nas correrias. Todos fugiam. Voltávamos a buscar calções e pernas.
Lembro dos dias de chuva dentro do rancho. Não sei se o rumo dos sonhos viaja no tempo, chega na terra dos lugares distantes para mudar as lembranças, apenas atravesso a rua. Eis a agonia de percorrer o tempo e lugares antes que o estalar dos dedos se faça ouvir. Caminho com as mãos nos bolsos e passos deliberadamente lentos. Tenho a pele avermelhada pelo sol radiante e mergulhada em sua luz devastadora. A vasta cabeleira negra cedeu lugar ao cabelo encanecido pelo tempo, cortado baixinho. Digo que estou ainda inteiramente ingênuo e sou por inteiro aquele menino.
Paro e tomo fôlego, ouço minhas preces ocultas. As vozes dos guris.
Ninguém percebe minha alegria do espanto, o eco me retorna. Sou aquelas memórias que só existem em mim. Fui feito em muitos anos. Lutei em muitos moinhos e sonhos, devaneios de guri feito homem sozinho. Esses pedaços da memória que me pertencem me fazem de carne e osso.
Tenho oitenta, e sei... sempre terei doze. Aquele guri do Inhacundá chegou até aqui e pretende ir mais longe
—        Nada é tão simples do que viver, meus filhos. — sou um narrador intrometido nos próprios sonhos de lembrar. Sinto saudades da escola que não fui, fugia para jogar bola e tomar banho de rio. Sinto a ausência das letras que deixei pelos caminhos sem decifrá-las. Fiz um mundo diferente para mim. Tenho meus grandes heróis, brilhantes e universais. Quero reunir todos e todas que enquanto dormem... sonham e são felizes.
Sinto o sonho do sono invadir os lugares mais retirados do meu corpo. Minha consciência vai me abandonando, quase adormeço do mesmo modo que sempre digo que devem descansar, confiantes, sem medo do escuro, pois, no final, sempre vencemos a escuridão. Continuo a conduzir as histórias do real, gostosas lembranças de guri. Eu sou o que existe de fato: o andamento dos compassos recolhidos dentro da memória. Intacto. Descobri o tempo de dizer o que decifrei do tempo que também sou. Isso, eu sou o guri que nunca deixei de ser. No mundo dos sonhos estou apenas usando minha memória, lembrando do que desejo sonhar de novo, coisas que podem ser acontecidas. Sigo fazendo o meu discurso, o meu abraço em vocês, meus filhos, desses que acontecem de vez em quando, pelo mundo desta ilha de muitos sabores.
—        Hiiiippppp — estou flutuando da barranca, as pernas encolhidas, os gritos de contentamento, os olhos arregalados de satisfação e os braços estendidos junto com suas mãos, meus filhos. Meus cabelos nevados se arrepiam, envelheceram. Minhas memórias pulam ansiosas, gritam alegres.
A magia é um mundo aberto sem porteiras.

Volto a servir o mate em cuia pequena... esse meu pai e suas histórias que vão continuar.
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Galeria de 2008
65 anos depois o menino pelado voltou ao Inhacundá!

As curvas sinuosas do arroio Inhacundá em São Francisco de Assis














Os meninos pelados do Inhacundá

A praça dos bugios

Os meninos pelados do Inhacundá na praça dos bugios

A casinha da infância

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Adeus, meu amigo

A barranca do Inhacundá



e assim eu fiz 
contei histórias para o meu pai adormecer 
ofereci sonhos para brincar neles 
e ele adormeceu em meus braços


Mauro Marques




Meu pai foi um dos meninos pelados do Inhacundá

Meu pai foi um colorado

(Elci, a gente vai casar, mas tenho que avisar duas coisas: sou getulista e colorado, isso nunca vai mudar)

Meu pai foi getulista, transformado em brizolista apaixonado durante a Legalidade


(A tua mãe tinha uma mala de roupas sempre pronta no apartamento, lá no IAPI, se começasse a confusão fugia contigo e o teu irmão... lá pra tua vó)


Ele se ia à Prefeitura


Porto Alegre era uma cidade armada dos dentes aos telhados

Não posso mais sentar ao lado deste homem, sinto falta do guri com 8, 9 , 10 anos


Foi assim que me senti nestes dias, perdendo um amigo único, jamais tive um amigo igual. E a criança que sempre fui quando estava ao seu lado, muitas vezes irritado por me sentir tão menino, está com lágrimas nos olhos


As lembranças do arroio e daqueles meninos pelados que não vi correndo se jogando nas águas não me deixam


Os seus cabelos brancos não se afastam e meus dedos tornam a se enfiar entre seus fios lisos e pálidos de leite

Mesmo quando de mim restarem menos que a poeira dos vestígios da minha vida, aquele menino do arroio Inhacundá ainda será o meu pai

Não tenho as fotos, mas conservo a lembrança do revirado com as sobras na geladeira, todas as manhãs de sábado, tempos desarrumados desde 1964

Nestes dias de reencontros doloridos com minhas memórias, tomei o rumo dos sonhos e viajei no tempo, voltei para lugares distantes. 
Nem foi preciso atravessar a rua, bastou fechar os olhos. Os churrascos de domingo temperados na salmoura  aplicada com os pequenos galhos de guanxuma

Sou aquelas memórias do meu pai que existem em mim... o único pai que eu quis ter

O guri que tomava banho pelado no arroio Inhacundá adoeceu e desacreditado de qualquer esperança pelos médicos... partiu
(Vó Nena, posso ir?)

E lá se foi o menino jogar bola na barranca do Inhacundá, eu fiquei ali segurando sua mão.





Ao fim de tudo


Quando eu morrer, filhinho,

Seja eu a criança, o mais pequeno.
Pega-me tu ao colo
E leva-me para dentro da tua casa.
Despe o meu ser cansado e humano
E deita-me na tua cama.
E conta-me histórias, caso eu acorde,
Para eu tornar a adormecer.
E dá-me sonhos teus para eu brincar
Até que nasça qualquer dia
Que tu sabes qual é.



Alberto Caeiro




e assim eu fiz. contei histórias para o meu pai adormecer. ofereci sonhos para brincar neles. e ele adormeceu em meus braços 




O que esses netos e netas não fazem com esses Velhos...