O
café preto que despertava e a cerveja preta que adormecia fizeram do sono um
jeito de relancear os olhos, numa visitação rápida, assim ninguém reclama que
não sabe do que diz, e fugir, o jovem escritista mal conseguia deixar abertos
ou fechados — Feche os olhos e durma.
— Eu não quero... — contracenava seu
teatro, como se o dia de ontem, fosse hoje, e o dia de amanhã um arrogante
menino que não reconhece nada no passado, nenhum caminho, histórias mal
contadas, incompletas, evangelhos da imaginação
— Feche os olhos e tente ficar acordado.
O
escritista deitou na rede que o anão esticou na senzala, não havia como
desconvencer o rapaz, queria fazer permanência por ali. Viver o assombramento
dos tambores da missa cantada, do herege, do gineceu, a hesitação, excitação, o
zumbido, os gritos, as súplicas, a beleza dos pretos, o encantamento das
pretas, a sensualidade dos seus corpos, as cantorias, os lamentos.
O
balanço da rede fez seus olhos enxergarem o sono, sonhava com Adelaide, queria
Moriá. O porão estava escuro, tinha sede, pediu o café e a cerveja — Chega do
café, a cerveja vai lhe fazer mais bem. — tomou a cerveja, a boca da garrafa
estava escura, adormecida, se parecia com a solidão, apenas ruínas, o desejo de
chorar, a raiva, ódio, os desvios retorcidos, não sabia do que não ouvia, não
dizia do que sentia, vontade de chorar da saudade que esqueceu. Não sabia o que
lembrar ou esquecer, já tinha esquecido. Não ouviu explicação.
As
paredes coavam a luz do sol, a escuridão não o confortava, começava a lhe meter
o medo, começa a desapertar os nós da imaginação, a libertar a confusão dos
pesadelos. O balanço da rede dá enjoo, quer descer, deitar na terra, enfiar o
pé no chão, como uma âncora, mergulhada até o fundo do abismo escuro e gelado,
o barulho das correntes se libertando para sua prisão, depois o silêncio.
Enquanto as correntes eram mandadas ao fundo, os pés se debatiam, as mãos
inúteis nadavam apoiadas nas bolhas que se libertavam à superfície.
Sente
uma mão em sua testa, um garrote no pescoço. Por toda parte melancolia,
transborda a morte naquelas prisões, despedaçando as carnes, arreganhando os
dentes. Adormece
— Levanta!
O
caminho é longo, esticado pelo chicote. Levanta e caminha em voltas faz voltas
e voltas, Eu não quero esquecer, eu quero lembrar, apanha do chicote até cair,
levanta, dá voltas, lembra que é natal, canta e se encanta, baixa até a terra,
sonha com a pele delicada e perfumada da Adelaide, evoca as curvas precisas,
formais, exigentes, da Moriá, quer avisar os pretos, não é para ele aquela
visita ao esquecimento, não pode esquecer Adelaide, ansiosa, atrevida,
desassossegada, não quer esquecer Moriá, impaciente, agitada, frenética
— Levanta e Caminha!
Olha
nos lados e atrás, só vê os pretos, agarrados uns aos outros com torrentes,
puxa o seguinte que carrega o próximo. O chicote desce, quando sobe, carrega
sangue e carne dos pretos, que solta aos ventos, a terra não esquece aquele
gosto da morte.
A
assombração e a prudência fazem parte da vida, da sabedoria do velho, assim
como, a máscara que protege das lembranças, fingindo não ver o que vê, mas sabe
que vê, faz parte do crime e do castigo.
O
tumbeiro viaja pelo interior de Luanda, trocando algumas coisas de pano, outras
de ferro e pólvora, por coisas de cobre, marfim e escravos. Viva o tumbeiro!
Vivam os portugueses! Vivam os holandeses, dinamarqueses, franceses, ingleses!
O
caminho comprido do chicote não acaba no mar, o ar salgado escorre dos olhos,
pelo nariz. Não geme mais, o garrote aperta o ar que lhe custa para sair e
entrar. O preto é puxado e empurrado para dentro do tumbeiro, navio chão e
hospitaleiro. É amontoado no convés, junto com muitos pretos, obstruindo a
passagem em ambos os lados, outros são empurrados para baixo, porões ocos da
compaixão
— Mandinga! Mandinga! — repetem e repetem
— Mandinga!
Aqueles
que estão no convés olham a costa africana, não se mexem, não comem, sabem que o
rio salgado é a estrada que faz chegar à terra Mandinga, lugar onde os escravos
são vendidos. Amontoado ao seu lado, um anão que não parece um homem, parece
com criança, menino acorrentado por castigo
— Somos carneiros no matadouro!
No
caminho vão adubando o rio salgado com suas carnes, até esbarrarem com alguma
margem do rio — O quê?
— A carne dos pretos é muito apreciada.
Foram
colocados num desvio da estrada, o fogo os consumindo com lentidão, as guerras
tribais comprometendo o dia que vem depois
— Não, não é isso... — mas não consegue
lembrar, não quer lembrar a ação secreta da natureza humana, as camadas
subterrâneas da morte emergindo à superfície
— Mandinga!
— O quê?
— A terra onde o preto é vendido e comido.
— por todo o navio tumbeiro a melancolia da morte transborda, não há olhar que
não busque liberdade, sem uma sombra, um sorriso, uma esperança de vida
— Muitos vão ser vendidos em pedaços...
— Mandinga!
— Os brancos gostam das carnes dos pretos!
— ali, no tumbeiro, o chicote do traficante negro ou o chicote do traficante
branco tem pouca valia, os negros estão tristes, muitos já decidiram que não
fazem a travessia até Mandinga, se atiram do navio, ficam por lá, afogados e
comidos por tubarões. Vê negros com varíola, as feridas da morte. Outros
rastejam por um pequeno gole de água. Exaustos do esquecimento que não chega.
Precisam seguir em frente, viver a vida que cabe no convés e no porão do
tumbeiro. Olha ao redor, pele e osso, curvados pela falta de espaço, esquálidos,
tristes, usam a máscara da morte
— Bem-vindos!
São
todos bem-vindos, primeiro, no posto de recondicionamento, em Pernambuco,
outros chegam ao recondicionamento na Bahia ou no Rio de Janeiro. Desciam os
negros para o recondicionamento e embarcavam na troca: tabaco, cachaça,
pau-brasil e o melado, para o precioso açúcar
O
que se pode esquecer...
— O pagamento do rei já foi feito, é só
procurar a marca no peito. — sem esses piratas ingleses o circuito de carregar
e descarregar não seria tão proveitoso, Filhos-da-puta!
Em
cada posto um carregamento pronto. Um ferro em brasa no peito, com a forma de
uma cruz, para mostrar que os 20% do rei, fosse o rei que fosse, estava pago, e
também, que o preto escravo é batizado. Foi, por muito tempo, a certidão de
batismo.
O
que se pode lembrar...
— O que foi? — o anão fez sinal de atenção
— Olha aquele preto...
— Qual? — o escritista estica o pescoço, o
garrote aperta, vasculha o convés
— Aquele ali... embranqueceu o cabelo. —
foi o primeiro preto que embranqueceu o cabelo, pelo menos, que se tem notícia
— Envelheceu da tristeza.
Sèzar
precisa fechar os olhos de ver, abre os olhos de imaginar, tenta enxergar a
longa jornada africana pra escravidão: os tumbeiros, as correntes, o chicote, a
saudade, a solidão, a melancolia, o desespero. Amontoados, obstruindo as
passagens no convés do navio, agachados, curvados, trezentos e sessenta e dois
negros, doentes, a miséria dolorosa estampada. Pústulas de varíola rastejando
para tomar um pouco de água, sem forças para voltar, morrendo ao redor da tina.
Uns em estado de completo estupor, outros olhando penosamente ao redor, indivíduos
desprezados até a pele e osso. Tudo em nome de um Senhor, tudo pra propagar a
fé católica entre os escravos negros. Primeiro prender, cativar, dominar,
maltratar e explorar, depois, a libertação com farinha de mandioca, batatas e bananas
— Sèzar, o que você quer esquecer? O que
você quer lembrar? — o escritista olha para os lados, o anão está ali, segura a
sua mão
— Finalmente, você acordou...
— Dormi muito?
— Se eu responder quarenta dias... você
acredita? Ninguém acreditaria que ele
fez a travessia do rio salgado e sobreviveu, não tem as marcas do chicote, os
cabelos embranquecidos, mas ele estava lá, junto, se negando esquecer. Não é
ódio, nem vingamento, não procura desforra. Não quer continuar escondido atrás
do tronco da árvore, prefere contar a história da criação do mundo de outro
jeito, dizer de Olorum que criou os orixás. Oxalá, o filho mais velho, Exu, o
filho mais novo. Os irmãos do meio Odudua, Ifá, Ajalá... Ossaim, Oxumarê.
Iemanjá
— Fumaça...
— O que foi, meu amigo?
— Eles estão todos aqui. — o anão o ajuda
levantar, sair daquela rede
— Vamos subir... e cuidado com os olhos. —
quando chegam na cozinha encontram a Maiami — Estou preparando uma canja.
— Nossa... tinha esquecido como você é
linda. — enquanto cozinhava para Sèzar, preparava seu banho
— E aí, o menino não aguentou a cerveja da
Maiami com o café preto?
Ele
senta na borda da banheira, esfrega os olhos, está no convés do casarão, sente
sua cabeça como um grande e imenso tambor. Abre e fecha os olhos, lentamente, o
costume com a luz do dia não lhe acalma, mas trás a vontade de comer, a gula
com as carnes da Maiami, Que bom, não enlouqueci.
Tiram
suas roupas e o colocam nas águas, delicadamente, sem correntes, sem gritos,
tem vontade de dizer que ama aqueles dois. Fica calado, em silêncio, e reza,
não quer assustar ninguém.
Quando
abre os olhos, o anão e a prostituta continuam ali, em pé, parados, olhando para
ele, mudos — O que foi? — as águas da banheira se debatiam com as bordas, iam e
vinham, ondas que sobem e descem dos mares e oceanos. Uma estrada de água
salgada profanada pelas coisas ruins dos homens
— O seu peito... — repetem juntos, duas
vezes.
O
escritista abaixa os olhos e vê a marca da cruz queimada no próprio peito. Foi
marcado como a carne para ser comida.