Já viu? a nossa humanidade... somos capazes de tudo
contos e poesia no butekudu baitasar. a humanidade solidária e amorosa construída com todos incluídos num outro mundo possível, por la vida... siempre! li nas redes sociais: "se tua religião te faz odiar pessoas por qualquer razão, procura frequentar um buteku e paga os mesmos 10% ao garçom!"
quinta-feira, 28 de fevereiro de 2013
segunda-feira, 25 de fevereiro de 2013
Emmanuele Riva
Hiroshima mon amour
"Eu sempre chorei pela sorte de Hiroshima."
"O que havia ali para que você chorasse?"
"Eu vi."
Você não viu nada. Nada."
"Eu não inventei nada."
"O que havia ali para que você chorasse?"
"Eu vi."
Você não viu nada. Nada."
"Eu não inventei nada."
E você? Não viu?
Agora, pode ver.
Agora, pode ver.
domingo, 24 de fevereiro de 2013
Neinho, mal-criado... fez a avó esperá
Ensaio 27
baitasar
A
vida que foi, entre dias de sol ou chuva, frios, quentes, solitários, tristes
com sorrisos, alegres com lágrimas, conversas ou silêncios, pertence à vida que
foi. A vida que é, enquanto nos escapa entre os dedos, nem bem nasceu já se
foi. E fica a mágoa do que poderia ter sido, mas não foi
— Fumaça!
— A avó estava chamando você...
— Eu tinha ouvido de escutá, escritista.
Não
queria abandonar os pensamentos na geografia, sair da comodidade da senzala, ir
ao boteco do Beto Suco, no caminho cruzar pelo Zemor, sentado na sombra da
única sombra que não foi abatida por machado e facão, ele gostava de declamar a
palavra escrita de Deus, de cabeça, o Zemor tinha uma memória do diabo,
lembrava tudinho. Diziam que os padres não deixaram o memorialista entrar nos
estudos de padre, ele nem sabia ler. Acho que o Zemor era um milagre da
leitura, mas tinha mania de perseguir as pessoas com os seus discursos,
caminhava por um pedaço de caminho ao lado do ouvinte, Todos têm algum pecado, Qual
é o seu pecado, ninguém gosta do dedo duro importuno. Eu sabia que aquele
atrevimento no porão precisava ser mantido em sigilo. Namoro de imaginação pode
virar piada de desprezo, Como é que esse rabanete preto tem coragem de fazer
isso, Fazer o quê, Imaginar que comeu a professora da geografia. Não tive medo, mas não queria conversa de maldade pro meu lado. Não fui buscar
o fumo de corda pra avó, o egoísmo é coisa de guri no banquete dos pensamentos,
não queria estragar tudo com maus presságios
— Você não sente? — a pergunta do
escritista fez a história do Fumaça pairar suspensa no ar do casarão, o anão
emudeceu, não sabia se o seu pai era o anão e como a mãe sumiu com a nêga
Laetitia, que não saia do poço. O Capitão continuava perdido. A avó se calou e não
pedia pelo Fumaça, os pretos pararam de embranquecer as mola da carapinha, o
primeiro navio negreiro nunca saiu de lá, foi tudo mentira
— O que tem pra sentir?
— Cada um de nós já tem um cortejo fúnebre
esperando, as velas já foram feitas e as flores colhidas... quer? — estendeu o
braço.
O
anão esticou de lá — Quero.
— Meu amigo, o passado pertence à morte.
— Bobagem, isso é conversa de branco,
tenho a lembrança de muitas histórias.
A
avó contava de outro tempo, um tempo de histórias, tempo em que o primeiro
preto – que se tem notícia – embranqueceu o cabelo. Muito antes de o branco
escravizar a África, o cabelo dos pretos era preto, depois, quase em seu fim de
deixar o coração desistir, a pele alisava e o cabelo ficava cinza, não tinha
essa cor de branco na carapinha. Era o tempo em que os velhos envelheciam da
alegria e o cabelo virava cinza. Não tinham que batizar a criança que nascia,
reconheciam os filhos com a choração da alegria, a linhagem do avô e da avó que
renascia da cinza, nenhum registro escrito, apenas dançavam e cantavam a
mistura dos antigos que chegava com o novo.
Na
história da avó, o primeiro preto que embranqueceu o cabelo foi embarcado do
outro lado da imensidão das águas salgadas com o cabelo preto. Depois da
travessia, desceu do negreiro com o cabelo branco, e se disse, Foi quando o
preto envelheceu da tristeza. Continuamos um povo de cantoria e alegria, mas
espalhados no campo aberto, ermo, vastidão do deserto, lhanos, planície,
savana, estepe, charneca, campanha, prado, banhados, morros, favelas, a nossa
tristeza só aparece na cor branca do cabelo que devia ser cinza, nas rugas da
pele que devia ser lisa, até o dia inaugural da liberdade foi de esquecimento.
Um dia desses que ficam atrás, o tio Manoel me explicou que a memória não é indiferente, escolhe
o que quer lembrar pra seguir em frente. A África de hoje não é a África da avó
da avó, a nêga Laetitia era filha de alguém, chegou aqui, filha de ninguém, num
tempo de entrada e saída dos escravos pra enchimento dos bolsos. Tudo que temos
tiramos de alguém, por isso a memória não pode ser desinteressada
— Meu amigo, Fumaça, se permite um conselho,
gostaria de lembrar um jargão jornalístico, ‘Desgraça velha, e sempre a mesma,
não perturba ninguém’, são as memórias da morte.
— A morte só existe porque temos
lembranças da vida.
O
casarão ficou em silêncio, nada saia ou chegava, nem os navios negreiros
chegavam e saiam de lá, antes de embarcar, os pretos arrodiando na Árvore do
Esquecimento, até que os brancos descobriram a árvore e roubaram o
esquecimento. Não lembrar dói, então, é preciso escolher o que lembrar. O
Fumaça estica o braço curto até o escritista. O bixo da seda troca de mão, vai
e volta de lá, sumindo com o esquecimento
— Fumaça!
— A avó continuava chamando.
— Eu já disse que tenho ouvido de escutar.
— Então, homem... dá continuação na
história.
O
Fumaça apertou o bixo entre o polegar e o indicador, antes de continuar puxou
fundo o ar
— Fui até os bolsos da bermuda do Tigão —
o Tigão foi o meu irmão de mais idade, que ainda não tinha se perdido pro
pulícia. Peguei um punhado de fumo picado e dei pra avó. Ela enrolou na palha
do milho. Tava nervosa de tanto me gritar o nome e não ter resposta
— Neinho, mal-criado... fez a avó esperá.
Daquele
fumo fez dois cigarros de palha. Antes da avó incendiar o palheiro, eu sumi.
Queria mais uma tentativa com a geografia, agora que a avó tinha acomodado o
nervosismo na diversão do fumo.
Voltei
na senzala, precisava terminar os estudos. Antes, tinha que acalmar os
músculos. Deitei na rede. Não tem recurso melhor pra ficar disposto e perder os
escrúpulos, ficar ao avesso. Fechei os olhos. Tinha que fazer a imaginação sair
da cabeça e deitar na rede, ao lado da mão esquerda, a direita precisava ficar
livre. Depois, era preciso deixar tudo por conta da imaginação da professora. Quem
dorme perde o conhecimento do tempo e das coisas, afastado das próprias
feridas, fica encantado pelo sono e descobre a si mesmo, mais nada, o que pensa
que tem foi tirado dos outros.
Ela
já estava ali, deitada... me acariciava. Adormeci com a mão padecente do
esforço. Ouvia a voz da geografia como se estivesse sentado na fórmica verde,
Delícia os meus labirintos sendo pisoteados pelos teus pezinhos, precisava
lembrar de perguntar ao professor de português sobre o que é isto de
labirintos, ela continuava, Sou uma refém do teu carinho, doces lembranças e
uma ardente saudade, molhada, quentinha. Descobria que era mais fácil ser um
bom amante na meditação do pensamento
— Mano!
Tava
me despedindo da imaginação, que lindeza de geografia, Que tal voltar amanhã,
Lamento muito, espero que a causa seja boa, Adoro fechar os olhos aqui na
senzala e sorrir, sei quem provoca esse meu riso
— Mano! Porra, acorda!
Acho
que me chamou três vezes, foram as vezes que lembrei de contar
— O quê?
Você
é tão preguiçosa quanto esse porão abafado, tudo bem, ta indo... mas volta, Já
to indo com saudade do teu sabor e calor, neinho.
O
Tigão não tem o despreparo da avó, com um esticão me joga no chão
— O que foi?
— Mano, quem mexeu nos bolso da minha
bermuda?
Agora,
já estava definitivamente acordado do sonho. A nêga Laetitia continuava lá, o
Capitão foi vendido pra outros donos, além-mar, mas antes, foi amarrado no
tronco, o corretivo servia pra lembrar aos pretos quem mandava, capitão do mato
era jagunço a mando do branco, não tinha direito de branco. Não tinha nome
escrito no papel provando que era gente. No caso do Capitão, não foi muito o
açoite, pra não estragar a mercadoria. Tudo registrado pelo magistrado, pra não
deixar dúvidas, quem quiser se inteirar é só procurar os papéis, que a justiça
do casarão sempre fez o serviço de registrar o decidido e aplicado pelo
senhoril. Ela sempre esteve no serviço de mostrar quem manda, os tempos passam
e as histórias mostram quem sempre esteve no serviço de alguém. Depois ficamos
atônitos, envergonhados, esquecidos, mas nada adianta, a vida já se foi. Mamãe
morreu mendigando qualquer bocadinho de nada, desdentada, feia, maluca da
saudade de alguma coisa que nem sabia onde estava, a senzala tinha virado
favela e o carnaval mais um negócio de branco, bastava mostrar bundas de pretas
que o morro virava o paraíso do esquecimento, Preciso dar no jeito de não
repetir o ano na escola... por causa das pernas da geografia
— Eu...
— ...
— Dei pra avó um resto de fumo.
— É erva, mano!
Levantei
do jeito mais rápido procurando a minha vítima, fiz da avó uma usuária acidental
— E, agora?
— Cala essa boca, vamos procurar a avó!
Só
tinha um jeito de entrar e sair da senzala, as pernas cumpridas do Tigão
chegaram na saída. Subi no seu encalço.
_________________________
Leia também:
Ensaio 26 - Fumaça! Eita, neinho... onde tu anda, desaparecido?
Ensaio 28 - A mão daquele desvergonhado embaixo do vestido
Ensaio 28 - A mão daquele desvergonhado embaixo do vestido
sábado, 23 de fevereiro de 2013
Hoje é Sábado 23....
Tem Reunião Dançante
O Roma já estava na mesa (agitado como sempre)
E pra mexer com a meninada...
Hues Corporation - Rock the Boat
... os magros se sentiam crescendo todos os Sábados...
Elton John - Goodbye Yellow Brick Road
elas não pagavam (até à 1/2 noite - nem precisavam de RG falso), hein... vamos dançar...
Lobo - Don't expect me to be your friend
O Roma já estava na mesa (agitado como sempre)
E pra mexer com a meninada...
Hues Corporation - Rock the Boat
Era preciso fazer os magros dançarem e sorrirem, então...
Doobie Brothers - Listen To The Music
... alguns eram felizes, outros eram tristes, mas... e daí?
Silver Convention - Fly Robin Fly
Silver Convention - Fly Robin Fly
Quem não chegava com uma gata, levava uma bolacha preta e a coca-cola (sobrevivemos a coca-cola...)
As luzes rebaixavam, os olhos se espremiam catando de um lado para o outro... iniciava a Melacueca...
Three Degrees - When Will I See You Again
As luzes rebaixavam, os olhos se espremiam catando de um lado para o outro... iniciava a Melacueca...
Three Degrees - When Will I See You Again
... os magros se sentiam crescendo todos os Sábados...
Elton John - Goodbye Yellow Brick Road
elas não pagavam (até à 1/2 noite - nem precisavam de RG falso), hein... vamos dançar...
Lobo - Don't expect me to be your friend
elas iam até o 'toalete' renovar o make up e voltavam...
o loucão já revirava duas vezes o chão
Universal Robot Band - Dance and Shake Your Tambourine
o loucão já revirava duas vezes o chão
Universal Robot Band - Dance and Shake Your Tambourine
Sábado que vem tem mais... se Deus quiser...
e vocês...
Boa viagem!
Voyage - Souvenirs
e vocês...
Boa viagem!
Voyage - Souvenirs
Pesquisa: Romacir
Texto: baitasar
Texto: baitasar
terça-feira, 19 de fevereiro de 2013
Fumaça! Eita, neinho... onde tu anda, desaparecido?
Ensaio 26
baitasar
As
tragédias têm a força de nos imobilizar dentro do sofrimento os outros. Quanto
mais somos parecidos com os outros, um tanto a mais nos identificamos, e
pronto, aplicamos a teoria da conversibilidade: poderia ter sido comigo. Isso nos
impede de sair da tragédia e olhar pra fora, além do espectador imantado pelo
mimetismo. Alguém grita: ‘Mandrake!’, e ficamos parados à frente da televisão,
ao lado do rádio, debruçados no jornal, magnetizados, consumidores do calvário.
Mas, antes o outro do que eu, conseguimos orar. Ficamos solidários como
se a solidariedade nos protegesse dessas decisões casuísticas que parecem nos
colocar numa cilada
— Todos têm tragédias para lembrar.
É isso,
rapaz, quanto mais associados ao sofredor da cilada, maior é a vida comunal da
morte que renasce das nossas cinzas. A dor não se dilui entre tantos
padecentes, apenas aumenta a fila dos curiosos, que não são parecidos com
aqueles que caíram na cilada, apenas precisam estar atualizados com as
conversas e opinar de tanto escutar, o único conforto que resta ao fascínio da
bisbilhotice.
Algumas mortes,
muitas mortes, enxergamos como sofrimento do nosso espírito gregário, essas são
quase insuportáveis, levamos tempo pra reagir sem indagações, tantas palavras
pra ouvir, muitos sorrisos, diversas lágrimas, amores, ciúmes, abraços, tudo
isso jogado num abismo de frustrações por um tartufo; outras mortes, tantas
mortes, olhamos como um espetáculo triste, mas distante, uma abstinência divina
casual, iria acontecer a morte inevitável, mais dia ou menos dia. São fáceis de
esquecer os mais distantes, os renegados, as camadas da dor não estão dispostas
em substratos homogêneos, não existe horizontalidade no cacho
— Fumaça! Eita, neinho... onde tu anda,
desaparecido!
Fui o
primeiro e o único da nossa árvore, até agora, que chegou aos estudos de
jornalista, a sabedoria dos livros entrou na senzala com o rabanete preto.
Parece pouco, mas é muito pra quem carrega na memória a nêga Laetitia, ainda
escondida no poço, esperando o seu Capitão. Entrou na academia o menos
provável: eu, o anão preto.
Nem houve
festejo de alegria, alguns pretos desconfiavam de algum erro na notícia, outros
apostavam que no final do dia, a pulícia batia e levava encarcerado o pequeno
perfuntório, como já tinha carregado o Tigão, meu irmão de mais idade, adotado
pela avó, que se perdeu com a pulícia. Celebridade na família não era costume,
a não ser do jeito do Tigão.
Os tiuzin faziam o que sabiam, foi ensinado e deixavam os tiuzin fazer.
Os tiuzin faziam o que sabiam, foi ensinado e deixavam os tiuzin fazer.
O tio
Manoel tava nos afazeres de alfaite dos soldados do exército. Homem dos mais
bons, mas gostava das brancas mais que das pretas, não tinha dinheiro que
chegava. Ficou sabendo da notícia diferente, só depois do quartel e da noitada
com as branca, não posso dizer que ele sabia o que escutava. Acho que o Tigão
foi a casuística do tio Manoel, que provocou a solidariedade da avó.
O tio Jorge
já tinha ido pro bar 44. O tio era garçom dos bons, saia no meio da tarde e a
volta só no amanhecido do outro dia. Quando a noite tava calma, sentava no
lugar da jogatina, perdia os ganhos da noite e das outras que tavam por chegar.
Tinha o apelido de Detefon. Demorei pra descobrir do tio Manoel explicação pro
nome fantasia, ‘O tio tonteia, mas não mata...’ Quando chegava era motivo de
muitas pancadas nas molas, a avó ficava sem a calma dos velhos, repetia que era
de nascença essa mania de jogatina, vinha do pai do tio, meu avô, mas que lhe
tirava a mania de qualquer jeito.
O tio João
tinha carroça de ferro-velho e vidro quebrado, que ele mesmo puxava, ‘Assim, não
desaproveito a comida do animal.’ Nunca ganhou muito, não sabia de negócio, nem
de encurtar a viagem. Os disputantes da carreira não queriam o carregamento do
ferro-velho, nem de osso ou vidro quebrado, preferiam acertar um carregamento
por vez, quando tinham o carregamento no carrocim e o dinheiro combinado nas
mãos, tocavam de puxar com passo de lebre, desviavam uma, duas, três ruas e, na
primeira terra favorável, despejavam tudo. Limpavam daqui, sujavam de lá. O tio
tinha saído na manhã com os arreios, só voltava no fim do dia, já escurecendo.
Não tinha como saber da minha notícia de sucesso.
O mais novo
dos tios, do lado dos homens, era o tio Batata, corria atrás do caminhão do
lixo, era fininho de tanto suar. Sempre que falava lembrava uma batata quente
na boca. A avó repetia que ele parecia um jogador de futebol, fardado com
tênis, meias até os joelhos, calção e colete amarelo. Seleção canarinho. O
tiuzin jogava bem. Sempre chegava tarde, depois da correria nas ruas, ficava
metido na associação, conhecida como DASLU, Associação dos Servidores da
Limpeza Urbana. Vez que outra o futebol. Fazia muitas amizades e conhecimentos
no futebol. Virou estrela do time. A avó repetia que isso era perda de tempo,
os brancos fazem o que querem até o dia que não querem mais. O tio rebatia que
era preciso lutar. Ninguém na família dava atenção pro tio Batata. Eu achava
errado tanto desinteresse, mas a dor havia de ensinar o melhor jeito de gemer,
ou não, conheci gente que morreu sem um gemido, acho até que foi porque não
sabia que morria. Esse também chegou na madrugada, depois de outra reunião no
sindicato.
Esses tiuzin
sabiam o que faziam, foi ensinado e deixavam os tiuzin fazer.
A mãe sumiu
depois que se desfez de me dar o peito. E também, tinha o caso do meu pai que
nem ela sabia afirmar o nome ou apontar o aproveitador. Desconfiava de dois,
mas podiam ser mais. As ideias da mãe não obedeciam nenhuma lógica consagrada
do formal, típico, senso comum, até na hora de sair a furo da barriga da avó,
fez jeito de indecisão. Foi arrancada com a força das mãos. Terminou caída no
chão. Não se recuperou do susto daquele seu nascimento. Era a mais parecida com
a Laetitia das histórias. Eu tenho pra mim que a mãe se dissipou quando ficou
certo que eu não ia ficar maior. Nunca mais voltou. A avó nunca lhe esqueceu.
No começo do sumiço chorava escondida, depois chorava nos cantos, até que o
humor foi trocando da esperança pra tristeza. Não sei se a mãe ficou sabendo da
minha alegria.
A tia
Vanda, mais nova das filhas, tinha um nome mais cumprido, Vandaluzia, que ela
abreviou, sempre gostou de beber, fumar e dançar. Não teve filho, sempre tirou,
não quis dar pra avó criar. Carregava o apelido de Tanajura. Um doce de pessoa,
mas ninguém lhe podia contrariar. Trabalhava feita escrava na faxina, de
segunda à sexta, o sábado era pra ela. Acordava no almoço. À tarde, passava
retocando as pinturas, arrancando os pelos daqui e de lá. O banho, o
desodorante, a roupa, o cabelo, e pronto, deixava dito que voltava no domingo,
caso nada desse certo, do seu jeito. No dia do meu sucesso, chegou contrariada
com a patroa, professora de um dos primos. Entrou de cara feia, foi direto pra
cama. Escutei ela de reclamação com a outra tia, ‘Aguentei calada o palavrório
da cobra, não queria atrasar o guri.’
A tia Ana,
mais velha das tias, nunca quis tirar, nem deixar pra avó criar, teve todos:
oito filhos. Quando bebia um pouco além do costume, reclamava que era o
espírito aprisionado da nêga Laetitia. Fez o que a outra não pode. Cada filho
um pai. Foi a única que me deu um sorriso de elogio enquanto aleitava o mais
recente. Sempre soube que podia esperar dela o colo, aquele espaço de manobras
que sustentava oito ajudou a proteger nove. O Tigão puxou o espírito do pai,
mas podia ter sido o décimo, era só deixar de orgulho e deitar a cabeça. Aconselhava,
ele retrucava que não baixava cabeça pra ninguém. Acabou por morder o pó dos
pés do pulícia. A tia Ana foi quem mais sofreu com a situação do Tigão, não se
conformava em perder nenhum filho, fosse de quem fosse.
No dia do
meu sucesso, foi do Tigão que mais lembrei. Não conseguiu sair da cilada, foi
mais uma abstinência divina causal, mais dia ou menos dia, uma morte
inevitável, que só teve sentido pro pulícia. A avó fez luto de silêncio, não se
falava mais do Tigão. Todos temos tragédias pra lembrar. Algumas comovem o
contemplador da televisão, mais do que outras, depende da conversibilidade. No
caso do Tigão, foi a teoria da fatalidade: mais dia ou menos dia. Ou melhor, a
imaginária presunção: menos um! E claro, ouvimos a teoria da solidariedade: tá
com pena? convida pra jantar!
Eu lembrava
as brincadeiras na volta do casarão, os esconderijos da senzala, ele sempre foi
o pulícia que me protegeu da desarmonia na escola: ‘Rabanete preto! Bolinho de
chuva queimado!’, eu chorava de raiva e não queria ir pra escola, ele repetia
pros meus ouvidos que isso era desinteligência, precisava continuar por ele,
por mim, por todos os pretos, e isso de criança desprezar outras crianças, seja
pelo que fosse, se aprende em casa, ‘Mas tudo tem um jeito...’, fui o primeiro
rabanete preto com guarda-costas. Virei intocável. Tinham respeito por mim, e
medo do Tigão, ‘Nunca se contente em ser apenas o que os outros lhe dizem pra
ser.’ Foi o jeito que deu.
Eu mesmo,
por aqueles dias, não acreditava que ia dar alguma coisa certa, que alguma
coisa de valor pudesse me acontecer. Fui o primeiro do casarão, onde a Laetitia
continuava escondida, que terminou os estudos da leitura, caligrafia e as
contas dos números. Os primos, na idade certa, largaram o colo da tia Ana e
entraram naquela escola de brancos, se encheram de vontade com meu exemplo. Eu
fiquei apinhado de responsabilidade. Não queria não dar confiança
— Neinho, vá comprá o fumo dessa avó!
A avó
procurava nas frestas e cantos, pisava nervosa nas tábuas do assoalho, a poeira
dos cupins me assentava por cima, as formigas iam e vinham em trilhas, atravessavam
as fendas do barro nas pedras. A mulher velha conservava a tradição do fumo de
corda, gostava de mascar fumo e fumaçar. Desbastava o fumo em pedaços finos,
enrolava na folha amarelada do milho, depois era só queimar
— Fumaça! Eita neinho escorregadio!
_______________________
Leia também:
Ensaio 25 - Fumaça! Eita, neinho de ouvido abafado!
Ensaio 27 - Neinho, mal-criado... fez a avó esperá
_______________________
Leia também:
Ensaio 25 - Fumaça! Eita, neinho de ouvido abafado!
Ensaio 27 - Neinho, mal-criado... fez a avó esperá
segunda-feira, 18 de fevereiro de 2013
sexta-feira, 1 de fevereiro de 2013
Fumaça! Eita, neinho de ouvido abafado!
Ensaio 25
baitasar
Outra
manhã nublada, as copas das árvores bailançando, cedendo e resistindo, dobrando
e voltando, agarradas com seus dedos enfiados até onde a terra permite ou até
onde o entusiasmo dos músculos, do sangue, do instinto continue a corrida por
suas umidades, alimentos que a terra comida transforma em verdura, ramos de
flores coloridas, botões perfumados, seiva escorrida até as margens da
terreira. A sede e a fome saciadas tornam forte a força para resistir aos
ventos que vão e voltam.
Os
ventos moldaram uma terra de guerras e guerreiros, homens aventureiros como o vento;
mulheres-raízes, inconquistáveis pelo vento, só o tempo para dominar esses
homens e essas mulheres. O tempo com suas histórias, como as memórias das águas
que estão e não ficam, seguem o curso das margens, carregando lembranças do riachuelo
para o caudal dos rios, até a desembocadura do estuário. A gente daqui, é um
pouco assim, escutam e contam causos que ouviram contar, os ouvidos escutam, o
causo se reinventa e a história não é mais a mesma, parece que é, mas são só as
aparências do que é parecido.
As
histórias são assim, aparência do que foi o ocorrido. Fica como verdade a
história melhor contada, mais parecida com a cara de quem ouve. É o ouvido que
se importa e escolhe o que lhe convém ter visto. Os olhos enxergam pelas
orelhas, não basta ver, tem que saber contar. A poesia precisa ser cantada na
alma, como os sussurros das mãos unidas ao peito cantam ao deus cego, mas todo
ouvido.
É
preciso prestar atenção com os olhos ao que é ouvido. Uma terra com raízes e
ventos tem tempo para as histórias do vento bailançando conforme os ventos.
Sèzar
tinha tempo para as histórias do rabanete preto. Assim, como assim, o emprego
de jornalista já devia ter escapado da sua mesa; Adelaide não dava maiores
importâncias para mais essa evasão, acostumada com suas assunções e desaparições.
Ninguém mais haveria de se importar com seu desaparecimento.
O
jovem escritista é respeitoso com o seu anfitrião, mas a diamba trás efeitos no
seu gosto, acalma os olhos de ouvir e muda a aparência de contar, ele não quer,
mas interfere nas histórias do anão — E a moça puta?
— Foi embora, finalizou o contrato e não
quis renovar.
— Ao menos se explicou?
— Vamos dizer que a moça já teve outros
momentos difíceis, talvez, bem mais complicados, disse que foi a surpresa de
estar enganada.
— Não deveria... é uma especialidade
trabalhista em que brotam muitos imprevistos. É como a paixão incontrolável do
futebol... quer? — ele tem o bixo da seda preso entre o polegar e o indicador,
estende o braço na direção do anão. A diamba troca de mãos
— Estava surpresa consigo mesma, com a sua
esperança... alguma chance de encontrar o olho-d’água dentro dela mesma, alguma
fonte de encantamento...
— Foi a afetação sem a diamba. — o
escritista aparenta mais frieza do que sente
— Você acha mesmo?
— Claro, o que mais haveria de ser?
— Não sei... — o anão puxou o fumo duas
vezes, apertou o nariz com o indicador e polegar da mão esquerda, parecia sair
fumacinha pelos ouvidos, depois devolveu ao escritista
— Ela é só mais uma puta!
— Não sei... — agora o anão olhava para o
escritista deitado em sua cama, lhe parecia a Laetitia
— Sèzar, nem sempre o óbvio se mostra
óbvio aos olhos, às vezes, ele precisa das orelhas do assistente, então...
apalpa, roça, lambe.
— O quê?
— Os olhos precisam saber escutar.
— E daí?
O
bixo da seda continua voando de lá para cá, sumindo entre os dedos
— Quando você olha uma casa, como você
sabe que temos pessoas morando ali? A casa não está abandonada...
— Hum, sei lá, a grama cortada, as
cortinas das janelas, um carro na garagem... — o escritista não entendia aquela
pergunta tola, sem propósito, nem a mão do anão em seu ombro
— A antena... nada existe sem a antena da
televisão.
— Bobagem.
— O óbvio parece uma bobagem, mas é por
onde nos pegam.
O
escritista puxa a fumaça que lhe entra iluminando, estende a mão na direção do
anão — Gosta?
— Já tive outros gostos na boca.
— Agora, tens o gosto da diamba na boca, o
gosto do proibido.
— Então, somo dois criminosos.
— Pior, dois pecadores.
O
anão achou graça da sua cartilha do bê-á-bá, o certo e o errado. Estendeu o
braço, novamente, e tocou mansamente no ombro do escritista, indo e voltando,
uma manobra de cada vez. Aproximou os olhos do cara pálida — Agora, tens o
gosto da minha mão.
— Já tive outros gostos.
— O proibido é o condimento do tesão... —
os dedos desenham as curvas, subindo e descendo — ... um dia, muito tempo pra
trás, tava deitado de costas na senzala, ali era meu refúgio pra sonhar.
Todo
aquele bafo com choro e sangue das histórias que a avó contava não amedrontava
a minha vontade de ficar em comunhão com a minha mão e a professora da
geografia. Era tudo treino pra quando fosse de verdade, ilusão da castidade,
naquele porão das memórias do bafo forte com o cheiro da morte.
No
final, o nosso treinador tava sempre repetindo: “ quem não treina não joga”.
Era a regra. E eu lá... treinando, deitando, ensinando a mão direita, toda
molhada, espremendo, escorregando, esperando o dia do jogo.
Anos
mais tarde, fui descobrir que treino é treino, jogo é jogo. No treino você se
combina na jogada preferida, no jogo, tem o o outro time com vontade própria,
treinado com outras jogadas, outros jeitos e gostos. O segredo é você não se
permitir ser um tolo, que só acredita em suas tolices, não tem como ensinar
tolos que se orgulham das próprias bestagens. Esses carregam o bater de queixos
no coração, e quando o frio tá no ânimo... o coração congela rápido. O treino
passa a ser mais importante que o jogo
— Fumaça! Vem cá, moleque!
A
voz nervosa da avó estremecia meu corpo. Ela tinha parado num tempo de
insatisfação. O tempo das memórias não é um canto de amadurecimento, trás a
quietude e o embelezamento do anoitecer, é a preparação para a durabilidade sem
um novo dia de sol. Por isso, escritista, nunca é demasiado construir memórias
doces, lutar boas lutas, ter amigos, jogar o jogo da vida, deixar de ficar
apenas treinando, engordando as lembranças com a inabalável indiferença ao
sofrimento dos pequenos, o tempo da impermanência – metódico, breve, volátil – precisa
distinção de importância, um jogo da vida com a morte
— Fumaça! Onde esse neinho tá tapado?
Ela
vivia com a ideia da morte. Gritava da infinidade da morte. Lá, pela tantas,
depois de muito tentar não escutar, parei com a mão direita, a imaginação
perdeu o feitio das pernas da professora. E treinar só por treinar, sem os
divertimentos da imaginação, não me apetecia. Não conseguia derramar os santos
óleos do meu corpo em adoração às pernas da geografia. Parei o treino dos cinco
contra um, antes que o excesso me fizesse brotar cabelos na mão, nada de tão
importante é mais importante que o tempo e a oportunidade
— Fumaça! Eita, neinho de ouvido abafado!
____________________________
Leia também:
Assinar:
Postagens (Atom)