quinta-feira, 28 de fevereiro de 2013

segunda-feira, 25 de fevereiro de 2013

Emmanuele Riva

Hiroshima mon amour







"Eu sempre chorei pela sorte de Hiroshima."
"O que havia ali para que você chorasse?"
"Eu vi."
Você não viu nada. Nada."
"Eu não inventei nada."


E você? Não viu?
Agora, pode ver.


domingo, 24 de fevereiro de 2013

Neinho, mal-criado... fez a avó esperá


Ensaio 27
baitasar
A vida que foi, entre dias de sol ou chuva, frios, quentes, solitários, tristes com sorrisos, alegres com lágrimas, conversas ou silêncios, pertence à vida que foi. A vida que é, enquanto nos escapa entre os dedos, nem bem nasceu já se foi. E fica a mágoa do que poderia ter sido, mas não foi
—        Fumaça!
—        A avó estava chamando você...
—        Eu tinha ouvido de escutá, escritista.
Não queria abandonar os pensamentos na geografia, sair da comodidade da senzala, ir ao boteco do Beto Suco, no caminho cruzar pelo Zemor, sentado na sombra da única sombra que não foi abatida por machado e facão, ele gostava de declamar a palavra escrita de Deus, de cabeça, o Zemor tinha uma memória do diabo, lembrava tudinho. Diziam que os padres não deixaram o memorialista entrar nos estudos de padre, ele nem sabia ler. Acho que o Zemor era um milagre da leitura, mas tinha mania de perseguir as pessoas com os seus discursos, caminhava por um pedaço de caminho ao lado do ouvinte, Todos têm algum pecado, Qual é o seu pecado, ninguém gosta do dedo duro importuno. Eu sabia que aquele atrevimento no porão precisava ser mantido em sigilo. Namoro de imaginação pode virar piada de desprezo, Como é que esse rabanete preto tem coragem de fazer isso, Fazer o quê, Imaginar que comeu a professora da geografia. Não tive medo, mas não queria conversa de maldade pro meu lado. Não fui buscar o fumo de corda pra avó, o egoísmo é coisa de guri no banquete dos pensamentos, não queria estragar tudo com maus presságios
—        Você não sente? — a pergunta do escritista fez a história do Fumaça pairar suspensa no ar do casarão, o anão emudeceu, não sabia se o seu pai era o anão e como a mãe sumiu com a nêga Laetitia, que não saia do poço. O Capitão continuava perdido. A avó se calou e não pedia pelo Fumaça, os pretos pararam de embranquecer as mola da carapinha, o primeiro navio negreiro nunca saiu de lá, foi tudo mentira
—        O que tem pra sentir?
—        Cada um de nós já tem um cortejo fúnebre esperando, as velas já foram feitas e as flores colhidas... quer? — estendeu o braço.
O anão esticou de lá — Quero.
—        Meu amigo, o passado pertence à morte.
—        Bobagem, isso é conversa de branco, tenho a lembrança de muitas histórias.
A avó contava de outro tempo, um tempo de histórias, tempo em que o primeiro preto – que se tem notícia – embranqueceu o cabelo. Muito antes de o branco escravizar a África, o cabelo dos pretos era preto, depois, quase em seu fim de deixar o coração desistir, a pele alisava e o cabelo ficava cinza, não tinha essa cor de branco na carapinha. Era o tempo em que os velhos envelheciam da alegria e o cabelo virava cinza. Não tinham que batizar a criança que nascia, reconheciam os filhos com a choração da alegria, a linhagem do avô e da avó que renascia da cinza, nenhum registro escrito, apenas dançavam e cantavam a mistura dos antigos que chegava com o novo.
Na história da avó, o primeiro preto que embranqueceu o cabelo foi embarcado do outro lado da imensidão das águas salgadas com o cabelo preto. Depois da travessia, desceu do negreiro com o cabelo branco, e se disse, Foi quando o preto envelheceu da tristeza. Continuamos um povo de cantoria e alegria, mas espalhados no campo aberto, ermo, vastidão do deserto, lhanos, planície, savana, estepe, charneca, campanha, prado, banhados, morros, favelas, a nossa tristeza só aparece na cor branca do cabelo que devia ser cinza, nas rugas da pele que devia ser lisa, até o dia inaugural da liberdade foi de esquecimento. Um dia desses que ficam atrás, o tio Manoel me explicou que a memória não é indiferente, escolhe o que quer lembrar pra seguir em frente. A África de hoje não é a África da avó da avó, a nêga Laetitia era filha de alguém, chegou aqui, filha de ninguém, num tempo de entrada e saída dos escravos pra enchimento dos bolsos. Tudo que temos tiramos de alguém, por isso a memória não pode ser desinteressada
—        Meu amigo, Fumaça, se permite um conselho, gostaria de lembrar um jargão jornalístico, ‘Desgraça velha, e sempre a mesma, não perturba ninguém’, são as memórias da morte.
—        A morte só existe porque temos lembranças da vida.
O casarão ficou em silêncio, nada saia ou chegava, nem os navios negreiros chegavam e saiam de lá, antes de embarcar, os pretos arrodiando na Árvore do Esquecimento, até que os brancos descobriram a árvore e roubaram o esquecimento. Não lembrar dói, então, é preciso escolher o que lembrar. O Fumaça estica o braço curto até o escritista. O bixo da seda troca de mão, vai e volta de lá, sumindo com o esquecimento
—        Fumaça!
—        A avó continuava chamando.
—        Eu já disse que tenho ouvido de escutar.
—        Então, homem... dá continuação na história.
O Fumaça apertou o bixo entre o polegar e o indicador, antes de continuar puxou fundo o ar
—        Fui até os bolsos da bermuda do Tigão — o Tigão foi o meu irmão de mais idade, que ainda não tinha se perdido pro pulícia. Peguei um punhado de fumo picado e dei pra avó. Ela enrolou na palha do milho. Tava nervosa de tanto me gritar o nome e não ter resposta
—        Neinho, mal-criado... fez a avó esperá.
Daquele fumo fez dois cigarros de palha. Antes da avó incendiar o palheiro, eu sumi. Queria mais uma tentativa com a geografia, agora que a avó tinha acomodado o nervosismo na diversão do fumo.
Voltei na senzala, precisava terminar os estudos. Antes, tinha que acalmar os músculos. Deitei na rede. Não tem recurso melhor pra ficar disposto e perder os escrúpulos, ficar ao avesso. Fechei os olhos. Tinha que fazer a imaginação sair da cabeça e deitar na rede, ao lado da mão esquerda, a direita precisava ficar livre. Depois, era preciso deixar tudo por conta da imaginação da professora. Quem dorme perde o conhecimento do tempo e das coisas, afastado das próprias feridas, fica encantado pelo sono e descobre a si mesmo, mais nada, o que pensa que tem foi tirado dos outros.
Ela já estava ali, deitada... me acariciava. Adormeci com a mão padecente do esforço. Ouvia a voz da geografia como se estivesse sentado na fórmica verde, Delícia os meus labirintos sendo pisoteados pelos teus pezinhos, precisava lembrar de perguntar ao professor de português sobre o que é isto de labirintos, ela continuava, Sou uma refém do teu carinho, doces lembranças e uma ardente saudade, molhada, quentinha. Descobria que era mais fácil ser um bom amante na meditação do pensamento
—        Mano!
Tava me despedindo da imaginação, que lindeza de geografia, Que tal voltar amanhã, Lamento muito, espero que a causa seja boa, Adoro fechar os olhos aqui na senzala e sorrir, sei quem provoca esse meu riso
—        Mano! Porra, acorda!
Acho que me chamou três vezes, foram as vezes que lembrei de contar
—        O quê?
Você é tão preguiçosa quanto esse porão abafado, tudo bem, ta indo... mas volta, Já to indo com saudade do teu sabor e calor, neinho.
O Tigão não tem o despreparo da avó, com um esticão me joga no chão
—        O que foi?
—        Mano, quem mexeu nos bolso da minha bermuda?
Agora, já estava definitivamente acordado do sonho. A nêga Laetitia continuava lá, o Capitão foi vendido pra outros donos, além-mar, mas antes, foi amarrado no tronco, o corretivo servia pra lembrar aos pretos quem mandava, capitão do mato era jagunço a mando do branco, não tinha direito de branco. Não tinha nome escrito no papel provando que era gente. No caso do Capitão, não foi muito o açoite, pra não estragar a mercadoria. Tudo registrado pelo magistrado, pra não deixar dúvidas, quem quiser se inteirar é só procurar os papéis, que a justiça do casarão sempre fez o serviço de registrar o decidido e aplicado pelo senhoril. Ela sempre esteve no serviço de mostrar quem manda, os tempos passam e as histórias mostram quem sempre esteve no serviço de alguém. Depois ficamos atônitos, envergonhados, esquecidos, mas nada adianta, a vida já se foi. Mamãe morreu mendigando qualquer bocadinho de nada, desdentada, feia, maluca da saudade de alguma coisa que nem sabia onde estava, a senzala tinha virado favela e o carnaval mais um negócio de branco, bastava mostrar bundas de pretas que o morro virava o paraíso do esquecimento, Preciso dar no jeito de não repetir o ano na escola... por causa das pernas da geografia
—        Eu...
—        ...
—        Dei pra avó um resto de fumo.
—        É erva, mano!
Levantei do jeito mais rápido procurando a minha vítima, fiz da avó uma usuária acidental
—        E, agora?
—        Cala essa boca, vamos procurar a avó!
Só tinha um jeito de entrar e sair da senzala, as pernas cumpridas do Tigão chegaram na saída. Subi no seu encalço.

_________________________
Leia também: 

sábado, 23 de fevereiro de 2013

Hoje é Sábado 23....

Tem Reunião Dançante


O Roma já estava na mesa (agitado como sempre)

E pra mexer com a meninada...


Hues Corporation - Rock the Boat



Era preciso fazer os magros dançarem e sorrirem, então...


Doobie Brothers - Listen To The Music



... alguns eram felizes, outros eram tristes, mas... e daí?


Silver Convention - Fly Robin Fly



Quem não chegava com uma gata, levava uma bolacha preta e a coca-cola            (sobrevivemos a coca-cola...)

As luzes rebaixavam, os olhos se espremiam catando de um lado para o outro... iniciava a Melacueca...


Three Degrees - When Will I See You Again



... os magros se sentiam crescendo todos os Sábados...


Elton John - Goodbye Yellow Brick Road



elas não pagavam (até à 1/2 noite - nem precisavam de RG falso), hein... vamos dançar...


Lobo - Don't expect me to be your friend


elas iam até o 'toalete' renovar o make up e voltavam...
o loucão já revirava duas vezes o chão


Universal Robot Band - Dance and Shake Your Tambourine


Sábado que vem tem mais... se Deus quiser...
e vocês...

Boa viagem!

Voyage - Souvenirs




Pesquisa: Romacir
Texto: baitasar

terça-feira, 19 de fevereiro de 2013

Fumaça! Eita, neinho... onde tu anda, desaparecido?


Ensaio 26
baitasar
As tragédias têm a força de nos imobilizar dentro do sofrimento os outros. Quanto mais somos parecidos com os outros, um tanto a mais nos identificamos, e pronto, aplicamos a teoria da conversibilidade: poderia ter sido comigo. Isso nos impede de sair da tragédia e olhar pra fora, além do espectador imantado pelo mimetismo. Alguém grita: ‘Mandrake!’, e ficamos parados à frente da televisão, ao lado do rádio, debruçados no jornal, magnetizados, consumidores do calvário. Mas, antes o outro do que eu, conseguimos orar. Ficamos solidários como se a solidariedade nos protegesse dessas decisões casuísticas que parecem nos colocar numa cilada

—        Todos têm tragédias para lembrar.

É isso, rapaz, quanto mais associados ao sofredor da cilada, maior é a vida comunal da morte que renasce das nossas cinzas. A dor não se dilui entre tantos padecentes, apenas aumenta a fila dos curiosos, que não são parecidos com aqueles que caíram na cilada, apenas precisam estar atualizados com as conversas e opinar de tanto escutar, o único conforto que resta ao fascínio da bisbilhotice.

Algumas mortes, muitas mortes, enxergamos como sofrimento do nosso espírito gregário, essas são quase insuportáveis, levamos tempo pra reagir sem indagações, tantas palavras pra ouvir, muitos sorrisos, diversas lágrimas, amores, ciúmes, abraços, tudo isso jogado num abismo de frustrações por um tartufo; outras mortes, tantas mortes, olhamos como um espetáculo triste, mas distante, uma abstinência divina casual, iria acontecer a morte inevitável, mais dia ou menos dia. São fáceis de esquecer os mais distantes, os renegados, as camadas da dor não estão dispostas em substratos homogêneos, não existe horizontalidade no cacho

—        Fumaça! Eita, neinho... onde tu anda, desaparecido!

Fui o primeiro e o único da nossa árvore, até agora, que chegou aos estudos de jornalista, a sabedoria dos livros entrou na senzala com o rabanete preto. Parece pouco, mas é muito pra quem carrega na memória a nêga Laetitia, ainda escondida no poço, esperando o seu Capitão. Entrou na academia o menos provável: eu, o anão preto.

Nem houve festejo de alegria, alguns pretos desconfiavam de algum erro na notícia, outros apostavam que no final do dia, a pulícia batia e levava encarcerado o pequeno perfuntório, como já tinha carregado o Tigão, meu irmão de mais idade, adotado pela avó, que se perdeu com a pulícia. Celebridade na família não era costume, a não ser do jeito do Tigão.

Os tiuzin faziam o que sabiam, foi ensinado e deixavam os tiuzin fazer.

O tio Manoel tava nos afazeres de alfaite dos soldados do exército. Homem dos mais bons, mas gostava das brancas mais que das pretas, não tinha dinheiro que chegava. Ficou sabendo da notícia diferente, só depois do quartel e da noitada com as branca, não posso dizer que ele sabia o que escutava. Acho que o Tigão foi a casuística do tio Manoel, que provocou a solidariedade da avó.

O tio Jorge já tinha ido pro bar 44. O tio era garçom dos bons, saia no meio da tarde e a volta só no amanhecido do outro dia. Quando a noite tava calma, sentava no lugar da jogatina, perdia os ganhos da noite e das outras que tavam por chegar. Tinha o apelido de Detefon. Demorei pra descobrir do tio Manoel explicação pro nome fantasia, ‘O tio tonteia, mas não mata...’ Quando chegava era motivo de muitas pancadas nas molas, a avó ficava sem a calma dos velhos, repetia que era de nascença essa mania de jogatina, vinha do pai do tio, meu avô, mas que lhe tirava a mania de qualquer jeito.

O tio João tinha carroça de ferro-velho e vidro quebrado, que ele mesmo puxava, ‘Assim, não desaproveito a comida do animal.’ Nunca ganhou muito, não sabia de negócio, nem de encurtar a viagem. Os disputantes da carreira não queriam o carregamento do ferro-velho, nem de osso ou vidro quebrado, preferiam acertar um carregamento por vez, quando tinham o carregamento no carrocim e o dinheiro combinado nas mãos, tocavam de puxar com passo de lebre, desviavam uma, duas, três ruas e, na primeira terra favorável, despejavam tudo. Limpavam daqui, sujavam de lá. O tio tinha saído na manhã com os arreios, só voltava no fim do dia, já escurecendo. Não tinha como saber da minha notícia de sucesso.

O mais novo dos tios, do lado dos homens, era o tio Batata, corria atrás do caminhão do lixo, era fininho de tanto suar. Sempre que falava lembrava uma batata quente na boca. A avó repetia que ele parecia um jogador de futebol, fardado com tênis, meias até os joelhos, calção e colete amarelo. Seleção canarinho. O tiuzin jogava bem. Sempre chegava tarde, depois da correria nas ruas, ficava metido na associação, conhecida como DASLU, Associação dos Servidores da Limpeza Urbana. Vez que outra o futebol. Fazia muitas amizades e conhecimentos no futebol. Virou estrela do time. A avó repetia que isso era perda de tempo, os brancos fazem o que querem até o dia que não querem mais. O tio rebatia que era preciso lutar. Ninguém na família dava atenção pro tio Batata. Eu achava errado tanto desinteresse, mas a dor havia de ensinar o melhor jeito de gemer, ou não, conheci gente que morreu sem um gemido, acho até que foi porque não sabia que morria. Esse também chegou na madrugada, depois de outra reunião no sindicato.

Esses tiuzin sabiam o que faziam, foi ensinado e deixavam os tiuzin fazer.

A mãe sumiu depois que se desfez de me dar o peito. E também, tinha o caso do meu pai que nem ela sabia afirmar o nome ou apontar o aproveitador. Desconfiava de dois, mas podiam ser mais. As ideias da mãe não obedeciam nenhuma lógica consagrada do formal, típico, senso comum, até na hora de sair a furo da barriga da avó, fez jeito de indecisão. Foi arrancada com a força das mãos. Terminou caída no chão. Não se recuperou do susto daquele seu nascimento. Era a mais parecida com a Laetitia das histórias. Eu tenho pra mim que a mãe se dissipou quando ficou certo que eu não ia ficar maior. Nunca mais voltou. A avó nunca lhe esqueceu. No começo do sumiço chorava escondida, depois chorava nos cantos, até que o humor foi trocando da esperança pra tristeza. Não sei se a mãe ficou sabendo da minha alegria.

A tia Vanda, mais nova das filhas, tinha um nome mais cumprido, Vandaluzia, que ela abreviou, sempre gostou de beber, fumar e dançar. Não teve filho, sempre tirou, não quis dar pra avó criar. Carregava o apelido de Tanajura. Um doce de pessoa, mas ninguém lhe podia contrariar. Trabalhava feita escrava na faxina, de segunda à sexta, o sábado era pra ela. Acordava no almoço. À tarde, passava retocando as pinturas, arrancando os pelos daqui e de lá. O banho, o desodorante, a roupa, o cabelo, e pronto, deixava dito que voltava no domingo, caso nada desse certo, do seu jeito. No dia do meu sucesso, chegou contrariada com a patroa, professora de um dos primos. Entrou de cara feia, foi direto pra cama. Escutei ela de reclamação com a outra tia, ‘Aguentei calada o palavrório da cobra, não queria atrasar o guri.’

A tia Ana, mais velha das tias, nunca quis tirar, nem deixar pra avó criar, teve todos: oito filhos. Quando bebia um pouco além do costume, reclamava que era o espírito aprisionado da nêga Laetitia. Fez o que a outra não pode. Cada filho um pai. Foi a única que me deu um sorriso de elogio enquanto aleitava o mais recente. Sempre soube que podia esperar dela o colo, aquele espaço de manobras que sustentava oito ajudou a proteger nove. O Tigão puxou o espírito do pai, mas podia ter sido o décimo, era só deixar de orgulho e deitar a cabeça. Aconselhava, ele retrucava que não baixava cabeça pra ninguém. Acabou por morder o pó dos pés do pulícia. A tia Ana foi quem mais sofreu com a situação do Tigão, não se conformava em perder nenhum filho, fosse de quem fosse.

No dia do meu sucesso, foi do Tigão que mais lembrei. Não conseguiu sair da cilada, foi mais uma abstinência divina causal, mais dia ou menos dia, uma morte inevitável, que só teve sentido pro pulícia. A avó fez luto de silêncio, não se falava mais do Tigão. Todos temos tragédias pra lembrar. Algumas comovem o contemplador da televisão, mais do que outras, depende da conversibilidade. No caso do Tigão, foi a teoria da fatalidade: mais dia ou menos dia. Ou melhor, a imaginária presunção: menos um! E claro, ouvimos a teoria da solidariedade: tá com pena? convida pra jantar!

Eu lembrava as brincadeiras na volta do casarão, os esconderijos da senzala, ele sempre foi o pulícia que me protegeu da desarmonia na escola: ‘Rabanete preto! Bolinho de chuva queimado!’, eu chorava de raiva e não queria ir pra escola, ele repetia pros meus ouvidos que isso era desinteligência, precisava continuar por ele, por mim, por todos os pretos, e isso de criança desprezar outras crianças, seja pelo que fosse, se aprende em casa, ‘Mas tudo tem um jeito...’, fui o primeiro rabanete preto com guarda-costas. Virei intocável. Tinham respeito por mim, e medo do Tigão, ‘Nunca se contente em ser apenas o que os outros lhe dizem pra ser.’ Foi o jeito que deu.

Eu mesmo, por aqueles dias, não acreditava que ia dar alguma coisa certa, que alguma coisa de valor pudesse me acontecer. Fui o primeiro do casarão, onde a Laetitia continuava escondida, que terminou os estudos da leitura, caligrafia e as contas dos números. Os primos, na idade certa, largaram o colo da tia Ana e entraram naquela escola de brancos, se encheram de vontade com meu exemplo. Eu fiquei apinhado de responsabilidade. Não queria não dar confiança

—        Neinho, vá comprá o fumo dessa avó!

A avó procurava nas frestas e cantos, pisava nervosa nas tábuas do assoalho, a poeira dos cupins me assentava por cima, as formigas iam e vinham em trilhas, atravessavam as fendas do barro nas pedras. A mulher velha conservava a tradição do fumo de corda, gostava de mascar fumo e fumaçar. Desbastava o fumo em pedaços finos, enrolava na folha amarelada do milho, depois era só queimar

—        Fumaça! Eita neinho escorregadio!

_______________________

Leia também: 
Ensaio 25 - Fumaça! Eita, neinho de ouvido abafado!
Ensaio 27 - Neinho, mal-criado... fez a avó esperá


sexta-feira, 1 de fevereiro de 2013

Fumaça! Eita, neinho de ouvido abafado!


Ensaio 25
baitasar
Outra manhã nublada, as copas das árvores bailançando, cedendo e resistindo, dobrando e voltando, agarradas com seus dedos enfiados até onde a terra permite ou até onde o entusiasmo dos músculos, do sangue, do instinto continue a corrida por suas umidades, alimentos que a terra comida transforma em verdura, ramos de flores coloridas, botões perfumados, seiva escorrida até as margens da terreira. A sede e a fome saciadas tornam forte a força para resistir aos ventos que vão e voltam.
Os ventos moldaram uma terra de guerras e guerreiros, homens aventureiros como o vento; mulheres-raízes, inconquistáveis pelo vento, só o tempo para dominar esses homens e essas mulheres. O tempo com suas histórias, como as memórias das águas que estão e não ficam, seguem o curso das margens, carregando lembranças do riachuelo para o caudal dos rios, até a desembocadura do estuário. A gente daqui, é um pouco assim, escutam e contam causos que ouviram contar, os ouvidos escutam, o causo se reinventa e a história não é mais a mesma, parece que é, mas são só as aparências do que é parecido.
As histórias são assim, aparência do que foi o ocorrido. Fica como verdade a história melhor contada, mais parecida com a cara de quem ouve. É o ouvido que se importa e escolhe o que lhe convém ter visto. Os olhos enxergam pelas orelhas, não basta ver, tem que saber contar. A poesia precisa ser cantada na alma, como os sussurros das mãos unidas ao peito cantam ao deus cego, mas todo ouvido.
É preciso prestar atenção com os olhos ao que é ouvido. Uma terra com raízes e ventos tem tempo para as histórias do vento bailançando conforme os ventos.
Sèzar tinha tempo para as histórias do rabanete preto. Assim, como assim, o emprego de jornalista já devia ter escapado da sua mesa; Adelaide não dava maiores importâncias para mais essa evasão, acostumada com suas assunções e desaparições. Ninguém mais haveria de se importar com seu desaparecimento.
O jovem escritista é respeitoso com o seu anfitrião, mas a diamba trás efeitos no seu gosto, acalma os olhos de ouvir e muda a aparência de contar, ele não quer, mas interfere nas histórias do anão — E a moça puta?
—        Foi embora, finalizou o contrato e não quis renovar.
—        Ao menos se explicou?
—        Vamos dizer que a moça já teve outros momentos difíceis, talvez, bem mais complicados, disse que foi a surpresa de estar enganada.
—        Não deveria... é uma especialidade trabalhista em que brotam muitos imprevistos. É como a paixão incontrolável do futebol... quer? — ele tem o bixo da seda preso entre o polegar e o indicador, estende o braço na direção do anão. A diamba troca de mãos
—        Estava surpresa consigo mesma, com a sua esperança... alguma chance de encontrar o olho-d’água dentro dela mesma, alguma fonte de encantamento...
—        Foi a afetação sem a diamba. — o escritista aparenta mais frieza do que sente
—        Você acha mesmo?
—        Claro, o que mais haveria de ser?
—        Não sei... — o anão puxou o fumo duas vezes, apertou o nariz com o indicador e polegar da mão esquerda, parecia sair fumacinha pelos ouvidos, depois devolveu ao escritista
—        Ela é só mais uma puta!
—        Não sei... — agora o anão olhava para o escritista deitado em sua cama, lhe parecia a Laetitia
—        Sèzar, nem sempre o óbvio se mostra óbvio aos olhos, às vezes, ele precisa das orelhas do assistente, então... apalpa, roça, lambe.
—        O quê?
—        Os olhos precisam saber escutar.
—        E daí?
O bixo da seda continua voando de lá para cá, sumindo entre os dedos
—        Quando você olha uma casa, como você sabe que temos pessoas morando ali? A casa não está abandonada...
—        Hum, sei lá, a grama cortada, as cortinas das janelas, um carro na garagem... — o escritista não entendia aquela pergunta tola, sem propósito, nem a mão do anão em seu ombro
—        A antena... nada existe sem a antena da televisão.
—        Bobagem.
—        O óbvio parece uma bobagem, mas é por onde nos pegam.
O escritista puxa a fumaça que lhe entra iluminando, estende a mão na direção do anão — Gosta?
—        Já tive outros gostos na boca.
—        Agora, tens o gosto da diamba na boca, o gosto do proibido.
—        Então, somo dois criminosos.
—        Pior, dois pecadores.
O anão achou graça da sua cartilha do bê-á-bá, o certo e o errado. Estendeu o braço, novamente, e tocou mansamente no ombro do escritista, indo e voltando, uma manobra de cada vez. Aproximou os olhos do cara pálida — Agora, tens o gosto da minha mão.
—        Já tive outros gostos.
—        O proibido é o condimento do tesão... — os dedos desenham as curvas, subindo e descendo — ... um dia, muito tempo pra trás, tava deitado de costas na senzala, ali era meu refúgio pra sonhar.
Todo aquele bafo com choro e sangue das histórias que a avó contava não amedrontava a minha vontade de ficar em comunhão com a minha mão e a professora da geografia. Era tudo treino pra quando fosse de verdade, ilusão da castidade, naquele porão das memórias do bafo forte com o cheiro da morte.
No final, o nosso treinador tava sempre repetindo: “ quem não treina não joga”. Era a regra. E eu lá... treinando, deitando, ensinando a mão direita, toda molhada, espremendo, escorregando, esperando o dia do jogo.
Anos mais tarde, fui descobrir que treino é treino, jogo é jogo. No treino você se combina na jogada preferida, no jogo, tem o o outro time com vontade própria, treinado com outras jogadas, outros jeitos e gostos. O segredo é você não se permitir ser um tolo, que só acredita em suas tolices, não tem como ensinar tolos que se orgulham das próprias bestagens. Esses carregam o bater de queixos no coração, e quando o frio tá no ânimo... o coração congela rápido. O treino passa a ser mais importante que o jogo
—        Fumaça! Vem cá, moleque!
A voz nervosa da avó estremecia meu corpo. Ela tinha parado num tempo de insatisfação. O tempo das memórias não é um canto de amadurecimento, trás a quietude e o embelezamento do anoitecer, é a preparação para a durabilidade sem um novo dia de sol. Por isso, escritista, nunca é demasiado construir memórias doces, lutar boas lutas, ter amigos, jogar o jogo da vida, deixar de ficar apenas treinando, engordando as lembranças com a inabalável indiferença ao sofrimento dos pequenos, o tempo da impermanência – metódico, breve, volátil – precisa distinção de importância, um jogo da vida com a morte
—        Fumaça! Onde esse neinho tá tapado?
Ela vivia com a ideia da morte. Gritava da infinidade da morte. Lá, pela tantas, depois de muito tentar não escutar, parei com a mão direita, a imaginação perdeu o feitio das pernas da professora. E treinar só por treinar, sem os divertimentos da imaginação, não me apetecia. Não conseguia derramar os santos óleos do meu corpo em adoração às pernas da geografia. Parei o treino dos cinco contra um, antes que o excesso me fizesse brotar cabelos na mão, nada de tão importante é mais importante que o tempo e a oportunidade
—        Fumaça! Eita, neinho de ouvido abafado!

____________________________

Leia também: