domingo, 20 de dezembro de 2015

Teatro Pedagógico: o crachá

Parábolas de uma Professora



o crachá

baitasar e paulo e marko



olho acemira. a vejo no seu limite desumano de suportar nossas discussões sobre sonhos e utopias. não os quer porque não os acredita e não os vê. não quer mudanças, se compreende perfeita, seu mundo é perfeito, a extremidade marginal da sociedade é apenas uma questão de contorno. vizinhança e proximidade que procura evitar mantendo-se a distância. já faz muito suportando seus cheiros e gritos desumanos, não se espere dela alguma consciência social

Vamos encurtar tanta conversa e nenhuma ação, proponho votarmos a sugestão da Cabayba sobre o uso do crachá para os alunos que irão ao banheiro.

eis acemira buscando acelerar aquilo que não há de andar mais rápido, pois precisa da nossa reflexão e discussão, necessitamos debater, questionar, argumentar para dizer o sim ou o não. chega de democracia, ela repete nas esquinas da escola. as palavras traçam seus rumos depois de pronunciadas conforme a dimensão da vontade moral e crítica do ouvido do outro, daí aquele que ouve ter a obrigação de fazer ouvir aquilo que pensou ouvir e permitir ao outro como ouvinte discutir o seu palavreado e re-mostrar a todos o sentido do seu uso oral do nosso idioma, no que primeiro foi dito

Concordo, Aguinaldo! Temos uma proposta bem clara: o uso de crachá pelos alunos para irem até o banheiro.

nos momentos de retrocesso os vermes que se enojam se juntam. é inevitável. observem. o botto se mostrava cada vez mais desejando com ardor o fim da reunião, seus olhos denunciavam medo. o pavor que levava consigo da possibilidade que a qualquer momento lhe dessem uma fêmea para acasalar, sinal da sua morte eminente. sabia que era dia de reunião, mas também sabia por experiência e desespero que tudo pode mudar neste mundo, inclusive dar aula em um dia de reunião e sem alunos na escola. o mais seguro para ele e tantas outros era longe: em casa, se possível desligando o telefone. isto mesmo, sem telefone não poderia ser convocado, Faça-se esta votação, bobagem tanta discussão para decidir se aluno vai ou não usar crachá, queria gritar, mas se continha, não queria correr os riscos da notoriedade e chamar a atenção sobre ele mesmo, opta por se manter anônimo entre as operárias estéreis, em reverência a única rainha fértil possível no formigueiro, mas é tarde, as formigas planejam ao longe, sob seus pés, emergirão cortando tudo, as poderosas da terra agindo como pragas, higienizando as lideranças, criando colônias, dividindo as tarefas entre as castas

Vamos votar?

propõe layla. provocativa. parecia ler o desespero nos olhos do professor botto, entendia a sua dor de sorrir quando não se está com alegria, a felicidade não bate a sua porta, mas pode bater com a sua porta

Graças a Deus!

Votar o quê?

Não acredito.

o botto está no local onde se separam dois territórios: o do desespero e o da boa saúde dos pesadelos. levanta e sai mas volta e diz, em pé, as pernas abertas, a porta aberta, em voz bem alta e clara, Sou a favor do crachá para os alunos. todos silenciam e o olham sem entender, parece vivendo sua plena fase de pastoreio, cuja dieta inclui alimentos açucarados no néctar, na seiva de muitas plantas e em excreções das cochonilhas, pulgões e outros insetos homópteros. o toque e a carícia de suas antenas me deixa nervosa. é mais uma vítima das formigas sendo arrastada para o formigueiro por milhares de gigantes carnívoras. não sente o chão. é carregado, flutua por sobre seus pequenos corpos, está imobilizado e se deixa levar para o formigueiro, resignado com o seu destino, levantar todas as manhãs e seguir a sucessão de fatos e coisas que podem ou não ocorrer, mas que com certeza irão acontecer, constituem a sua vida de homem e professor, sendo considerados como resultantes de causas independentes de sua vontade, sorte, fado ou fortuna

Afinal, é banheiro ou pátio?

questiona lia

Não vejo nenhuma diferença! Vamos gurias e guris, votemos e façamos valer a nossa vontade. Eu voto pelo crachá!

Em quem? No professor ou no aluno?

Tá virando gozação.

Aguinaldo, você é o diretor... dá uma organizada ou sairemos daqui sem nada de concreto.

Ok, pessoal! Vamos ver se podemos ter uma idéia do que o grupo está pensando sobre esta história de crachá.

Antes, quero saber se a minha sugestão de um crachá para os professores do cafezinho e cigarro vai ser discutida.

Não vejo nenhum professor interrompendo e bagunçando no pátio para ser motivo de tal asneira!

Aguinaldo, vamos apurar um assunto por vez. Quem deseja o crachá de banheiro para os alunos?

Ei! Não vamos atropelar, sim? Este assunto não estava em pauta e, pelo ocorrido hoje, sugiro que na próxima reunião tratemos do crachá para os alunos, sim ou não, depois de discuti-lo na próxima semana.

Não acredito, Aguinaldo! O Samuel quer passar uma semana discutindo se vai haver crachá ou não? Por favor, pergunte a opinião de todos e vamos encerrar esta discussão absurda, aqui e agora! Pelo amor de Deus!

Todos concordam com a professora Acemira?

Por mim não existe esta discussão e nem crachá! Gostaria muito de saber da reação dos colegas se a escola católica, jesuítica, protestante ou ateísta de seus filhos apresentasse esta novidade: filhinhos do papai e da mamãe, a partir de hoje, andarão de crachá pendurado no pescoço para ir ao banheiro fazer xixi ou cocô, sim, porque não ouvi ninguém discriminar o xixi do cocô, tanto faz o objeto o que importa é a merda da intenção e a urgência da mijação, até porque pode acontecer de não dar tempo de colocar o colar discricionário.

Iriam ficar calados e aceitar. Quanto mais organizada a escola melhor. Teríamos pais sugerindo o crachá do cocô... e outro para o xixi.

A Lia é contra, alguém mais? A Abigail, Camila... temos doze votos no total contra o uso do crachá. Alguém está anotando os votos?

Eu estou!

Obrigado, Camila.

Aguinaldo!

Sim, Lia.

Eu, o professor Paulo e o professor Marko nos negamos votar uma proposta fascista, discriminatória, reacionária, como esta, que se transformada em realidade é mais um ato intimidante e opressor dos chefões do tráfico das letras, expressões numéricas e mapas.

Nada de novo! Quando a esquerda revolucionária perde no voto se levanta em armas, assim, nós, os reacionários, avançamos em cima do seu sectarismo que os isola e os faz perder contato com a realidade.

acemira usava de todo sarcasmo e veneno que lhe é tão peculiar. fazia-se parecer mais atraente do que realmente seria. as pessoas a olham, mas não a enxergam na verdade do egoísmo, da mentira, do seu interesse pessoal acima do coletivo humano. oculta a verdade dos fatos e os julga apenas a luz de seus interesses, é capaz de negar tudo que momentos antes preconizava como importante se os seus interesses pessoais assim julgarem ser necessário. parece simples e fácil amassar as pessoas, inverter os lados do mesmo laço, nunca oferecerá seus sentimentos, emoções e consciência

Em tempo algum perdemos contato com a realidade! O que as classes dominantes fazem é ficar imaginando, em todos os instantes da sua existência, maneiras de desestabilizar qualquer pensamento de esquerda que queira avançar além do permitido possível. Nunca permitirão qualquer avanço das esquerdas, seja a esquerda que for.

Meu Deus! Novamente, a tese da conspiração! Direita, esquerda, direita, esquerda, alto centro, pare, para, porra! Por favor, Aguinaldo!

Já sabemos que a Acemira é a favor, mais algum voto? A Cabayba, Ofélia, Botto, Layla... temos um total de quinze votos. Confere Camila?

interfere um aguinaldo já preocupado com o rumo da discussão, diferente do professor progressista atuante, que na linha de frente das discussões nos indicava o caminho do pensamento coletivo. o poder e suas responsabilidades amasia ou corrompem nossas utopias, dizemos que precisamos da governabilidade, as promessas serão atendidas no durante, naquilo que for possível, primeiro iremos canibalizar as outras intenções

Sim.

Alguém se abstêm?

Desirée, Fernanda Maura... seis votos.

Bom, de acordo com a votação: os alunos terão que usar crachá para irem ao banheiro. Mandaremos o serviço de reprografia elaborar os crachás para serem distribuídos aos professores e colocados nos alunos sempre que se deslocarem ao banheiro.

Quantas vezes dará pra usar o crachá?

Mais uma lei neste País da fome e dos sem ouvido que não será cumprida.

Não estou entendendo, Lia. Esta é uma decisão do grupo e todos deverão cumpri-la! Os seus três votos poderiam ter mudado o resultado, não votaram! Agora, querem melar tudo? Não consigo entendê-los.

busco o professor do corredor, necessito de poesia e vida... a lei não foi idéia minha! ele já não está. fugiu. e o resultado? somente um grande e profundo cansaço. mais uma vez me calo! mais uma vez se cala! leiamos depressa, sorrindo, os segredos de quem sabe amar...

Não tem quem me faça cumprir algo tão idiota e isquêmico. Ainda tenho o bom senso de avaliar o ridículo, o imoral e me impedir de infligi-lo ao nosso aluno e a mim mesma, não vou exigir e permitir algo tão humilhante para as minhas alunas, torno público aqui, meus alunos não usarão canga, não serão tratadas como junta de bois!

estar à toa na vida, sentada em um banco de praça esperando-a passar, decididamente não faz parte do cotidiano da lia, fugir dos confrontos não é conforto para sua alma pedagógica



as aulas têm acontecido de maneira monótona e iguais, acho que essa é a tal da rotina, precisamos, por agora, ter a firmeza sem variar de intento para avançar nas leituras que a Escola nos oferece, matar nossa sede com água e pão que também é comida e, no todo dia, transformar tudo em poesia, lambendo as feridas, Pra quê vai servir se eu sei lê, mas não gosto. e não entendem porque ela não é parecidinha com as gostosonas da televisão, os chinelos não são das havaianas, mas não são falsos, Será que não é o chinelo, me torturam, São os olhos, digo em desafio, O quê não conseguem ver, se afligem, Meu Deus, preciso de óculos, grito impune com a força dos pulmões, Será que ninguém vê que também preciso de óculos e não ver o que ninguém vê, me pergunto e pergunto a vocês, Onde estão os óculos, torno a ninguém, não respondem, Alguém tem para emprestar, estou em súplicas. escuto as batidas do meu coração, está agitado, louco, grito, Preciso de óculos, mandam no silêncio, Cala a boca e senta. ninguém quer enxergar, começo a resignar meus olhos e entulhar a estrada da voz, Não entendo, não escuto e não consigo enxergar, recomeço as súplicas, E ninguém tem pra emprestar uns óculos, minha dúvida e minha humildade se confundem, Meu Deus, não existem óculos mais, sou desespero, Vou ficar sem enxergar e não vou reconhecer o homem da minha vida na sua aparição, silêncio, Quem será o meu amor, me imagino entre homens que sonho os sabores, Adoro maracujá, grito já acordada, Castanha do Pará, sinto minha boca molhada e experimento mais, sinto o teu perfume sem o conhecer, ouço tua voz despedaçando meu corpo, estou pronta para reconhecê-lo. não sei onde estou, acordei e percebo que preciso dos óculos pra poder enxergar o que todos conseguem ver sem fazer nenhum esforço. com os olhos de vidro vou encontrá-lo

rendo-me ao perfume do pessegueiro em flor, vou seguindo seu rastro, tenho certeza de encontrá-lo pelo caminho, Professor, consegui meus óculos... Foi fácil. Estava em retorno ao mundo dos cegos que vêem, ouvindo suas palavras e sentido seu suor, estávamos reunidos no pátio a conversar e brincar uns com os outros, dizendo piadas, sonhando acordada, fazendo chiste, as notícias pareciam boas, Fiz como o senhor mandou, diz aquele que era cego e agora vê, deu-se à luz, ficou grávido pela luz que seduz, O que foi, esse que pergunta é o outro cego, Voltei ao posto de saúde, e lá, pedi o tal do vale óculos. Já mandei fazer e agora é só buscar, valeu. um aperto de mão sem promessas de votos ou cabrestos, submetendo com seus freios à vontade e o olhar, o desejo livre de sonhar e fazer a vida como se quer, Gente, às vezes eu fico assim, pensando e querendo dizer que é difícil e fácil, complicado e simples ficar junto ou sozinho, sair ou ficar em casa, ajudar ou passar, aprender a ler o bê-á-bá ou mobilizar e organizar a si e aos outros na libertação diária desta ignorância de não saber e não fazer ou decorar e não saber demais, fugindo do saber de menos. eis o discurso incompreensível do nosso professor nos atingindo em cheio, eu e meus colegas olhávamos tentando entender aquele seu falar meio alucinado, pra fora de si e além de todos nós. não temos tempo a perder precisamos aprender, e eu preciso encontrar meu homem da vida inteira, Pra quê vai servir, eu não sei lê os homens, me pergunto, enquanto os mesmos colegas não entendem porque ela não é parecidinha com as gostosonas da televisão, os chinelos são das havaianas, mas tenho certeza que são falsos, eu também sou adultera, Gente, as coisas não aparecem do nada. o começo de outro discurso platônico do nosso cego ingênuo, Aparecem, nos pergunta, mantemos o silêncio da certeza que não sabemos o que ele quer escutar, Vamos pensar juntos, nos convida. não estamos muito certos que esta conversa é necessária, Foi fácil conseguir os óculos, pergunta, Foi, diz alguém, Não foi, contradiz outro alguém. está ficando animado, Afinal, foi ou não foi, pergunta o cego que não é fingido, ele não fingia, mas fez aquela cara de quem não entendeu, o olhar querendo dizer outra coisa, na verdade, entendia e nos perdoava a ignorância, a incompreensão do sentimento da insatisfação

esta habilidade de persuadirem o nosso convencimento da realidade, me irrita, não me conhecem e nem aos meus colegas, imaginam a nossa realidade, sentem pena e cheios de compaixão vêm nos ensinar a ler e escrever. não enxergam o que vêem, Depois que o senhor disse o que eu tinha que fazer, e onde ir, pedir os óculos ficou fácil, Vamos continuar pensando. silêncio. acho que devia nos convidar a continuar falando, mas como ele é o professor vou me manter calada, vou guardar minhas observações para uma outra ocasião, mais clara na precisão da minha ajuda, Era impossível até ser dito por alguém que era possível, isso dito assim dá pra entender, Precisamos sempre de alguém para cuidar do nosso jardim, Professor, não tenho jardim. esta é a voz do futebol, uma voz que se confunde com o grito de gol, momento mágico, Desculpe, eu não entendi. nosso professor vive se desculpando, Eu não tenho jardim, é a resposta econômica que recebe, Mas porque não tens jardim, eis um cego que não cansa de pagar vale, satisfazendo o preço do mico, Não tenho nem casa, apenas um quartinho nos fundos, aliás, são muitos quartinhos, Será que ele entendeu agora, essa cochichando é a menina do rabo de cavalo, Eu tenho casa e jardim e um abacateiro imenso, bem no meio do pátio, está sempre carregadinho, Dizem que abacate engorda. o papo rola solto sobre casas e jardins, O que engorda é dinheiro no bolso, afirma convicto nosso colega dos óculos, Se tivesse dinheiro no bolso comprava o quartinho dos fundos e a casa da frente, desmanchava os fundos, plantava uma baliza de goleiro, um abacateiro pra engordar e muita grama, E os óculos, pergunta o professor abá, nos interrompendo, parecia ir a outra direção no mesmo sentido, Voltando, pessoal, foi dito que o antes impossível agora é possível, mas difícil, não sabíamos como resolver, precisávamos da solução, alguém necessitava enxergar. este professor precisa nos escutar mais para aprender a falar mais simples, ir direto ao assunto, Sim, aí eu fui marcar o exame e ir ao médico, mas aí eu não sabia onde pedir meus óculos e aí o senhor me disse, volta no posto e solicita os óculos e aí aconteceu assim. ficou fácil, ouvimos nosso colega dos óculos que enxerga e entendemos, mas deveria ser fácil desde o início. nosso professor parecia estar indignado com alguma urgência, talvez, com as palavras ditas ou as rasgadas ao não serem repetidas porque não foram declamadas, não sei, mas nada havia de novo, Pra quê vai servir, eu ainda não sei lê as entrelinhas, continuamos sem entender porque ela não é parecidinha com as gostosonas da televisão, os chinelos são havaianas, será que ela é falsa, eis a pergunta que faltava, duvidamos de nós, da nossa capacidade de resistir e lutar, Como podemos lutar, perguntam, Somos a matéria-prima e sobrevivência de outras pessoas, mas já não conseguimos enxergar além da fome, a gente faz tanta força que acaba deformada, derretida dentro da forma da empregada doméstica em casa letrada, alterados na forma de carpinteiro pela concordância verbal, reprovados como vigilante noturno pela matemática, Quem é a gente, Restos de comida


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