quarta-feira, 2 de dezembro de 2015

Teatro Pedagógico: quem responde ao samuel?

Parábolas de uma Professora



quem responde ao samuel?


baitasar e paulo e marko





preciso parar com os devaneios, minhas reminiscências não interessam, são fatos de muitos anos, nem lembro seus nomes. tempos em que tive dúvidas se lembrava do meu próprio nome. agora, já sei que não tenho nome. sou a professora. esse passado não nos alcança mais, será

a anunciação se baseia num jogo de adivinhação onde as previsões estariam baseadas na nossa experiência profissional, olho clínico, no famoso sexto sentido, ou na candura e inocência de nossas intenções. um palpite que conta com a nossa concorrência pessoal para sua fase autoral final: àqueles alunos que prevemos um resultado feliz serão bem sucedidos e àqueles que profetizamos o fracasso, serão mal sucedidos, a menos que se permitam subjugar às boas intenções e escolhas da escola

não é sempre assim, mas também é assim

Lia, já ouvi professor entrar e sair da turma declarando em alta e boa voz que não via luz no fim do túnel, ali... só possíveis e prováveis delinquentes.

Qual o resultado da preconização?

quer saber a esquecida da sua bolsa, recém comprada junto ao mercadinho persa. não resiste a própria curiosidade, concentrada como a areia que absorve a água. apesar de nunca lembrar, sequer cogitar entender o trabalho do ensinante

Apenas oito alunos chegaram ao final do ano letivo. Os outros vinte e seis ou vinte e quatro, não lembro bem... se evadiram.

responde o professor orientador samuel

Se evadiram... continua resmungando

Não percebemos que nossos prenúncios se realizam, especialmente, porque nós conduzimos o processo desde o começo para este resultado. Nós produzimos e realizamos a profecia. Analisando apenas os resultados de aprovação e reprovação no final do ano letivo podemos, e iremos!, concluir que estávamos certas em nossa anunciação por conjeturas. Eis o mistério da reprovação: como acertamos, continua o infalível olho clínico profetizando e propondo a sua realização, ano após ano.

a lia parecia uma lutadora que entrara no ringue para levar a luta até o último instante, a discussão não deveria acabar no primeiro ‘round’, as discussões precisavam esgotar as possibilidades, as mentiras e as verdades individuais

Por favor, Aguinaldo, o tempo está passando e o máximo que conseguimos até agora foi sentar no banco dos réus todo o magistério e toda a pedagogia!

a acemira seguia no seu nervosismo e insatisfação de estar presente em uma reunião tão pouco produtiva para o seu trabalho artesanal de capturar as aves foragidas. e da qual, não tirava nenhum proveito prático para a sua ação pedagógica diária. queria coisas práticas para o seu dia-a-adia. a família ausente, por exemplo. às vezes, nem tão raramente, fico pensando da distância dos livros e suas leituras que podem nos ajudar a criar ambientes mais confortáveis e amorosos de ensinar e aprender. não dá pra imaginar que após nos dizerem, Sois professores e sois professoras, agora estais aptos e estais aptas ao exercício do magistério, que não tenhamos mais nada a ler, mais a crescer, mais a perguntar, mais a responder. Estamos mesmos tão completos e completas, assim, me pergunto

O que nos fez perder o caminho foi não termos cuidado do nosso jardim.

O que seriam das crianças, que desde o primeiro dia de aula, lá longe, na pré-escola, encontrassem professores e professoras que, antes de iniciarem suas aulas por chamadas, avisos, gritos, lamúrias, ataques e defesas, declarassem seu amor à vida lendo trechos literários, poesias, e assim fosse, por todos os ciclos ou séries da escola fundamental? Faço do meu fazer pedagógico diário uma possibilidade de luta, para que os sonhos de Eugênio, pai de Anamaria, sejam a realidade de todas as nossas crianças?

era a voz do marko que se fazia ouvir acima dos demais, sem alteração, mas determinada em continuar a debater as questões que sobrevoavam as cabeças de todos que ali se encontravam, numa postura cínica ou prudente ou sem cautela alguma, expondo-se e correndo riscos

Professor Marko, eu acredito que os nossos preconceitos agem antes mesmo do nosso contato com esses alunos pobres das classes populares. Não acreditamos que possam aprender tanto, e tão bem, como os outros filhos e filhas dos outros pais, crianças de um meio social mais elevado.

Precisamos evitar higienizar nossa prática transferindo para os psicólogos, neurologistas, sociólogos e biólogos as dificuldades pedagógicas que não ousamos enfrentar, Não se alfabetizou ainda, é fome, Se nega a decorar a tabuada, aposto que esta menina é espancada em casa, Estou desconfiada do olhar paradão deste menino, espero que não esteja envolvido com drogas, Tão bonitinha e engraçadinha dançando, só tem seis aninhos, é uma pena que com seus 10 ou 12 anos acaba a inocência e tudo vira assanhamento e outras coisinhas mais, Tanta demonstração de maturidade sexual merece uma conversa com os pais

é muito calado na aula, não pergunta nunca, o boné enterrado até os olhos, não lembro da voz, este guri deve ter algum problema sério, aposto em algum desvio sexual, vou encaminhá-lo à orientadora educacional

meu deus, gurias, esta criança não pára um instante, é demais, alguém precisa encaminhá-la para fazer um elétro!

que pena, passou tão fraquinho, muito melhor seria ter repetido a primeira série e passar mais fortinho, não é mãezinha?

eles não sabem e não querem aprender, alguns não enxergam, outras não escutam direito, milhares têm os dois defeitos.

classificamos e rotulamos com muita eficiência, muitas vezes, diria que na sua grande maioria, em uma velocidade comparada a luz que ainda nem nos chegou, cegamos antes de enxergar, só de ouvir falar, das queixas de outrem, dos pesadelos e escuridão de outros corações. deixamo-nos invadir pela impossibilidade que está fora de nós, às vezes, em ambos. entramos na sala de aula com o olhar cego e assustado, pelagem eriçada, à procura de alguém que não queremos nem nomear, os chamamos de ‘fulaninho’ ou ‘fulaninha’, vilões do aprender repetitivo e enfadonho dos pequenos desenhos para pintar, um após outro, dos pontinhos para ligar em seqüência, das bolinhas de papel confeccionadas entre o polegar e o dedo indicador, da educação física da bola ou que brinca de cortar as unhas, examina os cabelos, fala de higiene e banho e não sai disso. o professor de educação física, que não é nenhum atleta, precisa se recuperar, descansa enquanto examina olhos, cabelos e unhas. o treinamento tem prosseguimento na geografia dos mapas para fazer em casa, nas aulas de língua estrangeira sem música ou conversação, apenas construções gramaticais e textos, textos e textos, passa pela história mecânica e decorada, até ficarmos bem domesticados, obedientes. preenchemos o modelo oco dos bonecos de pau com o diploma em uma das mãos e a outra atrás ou a frente, tanto faz

as diferenças são boas de serem enfrentadas nos códigos dos compêndios e discursos afastados da prática, longe da sala de aula, mas, no dia após dia, ficamos debilitados e acomodadas, queremos ter certeza que iremos sobreviver até mesmo às nossas reclamações

venho escutando este discurso desde muito tempo, eu mesmo já o gritei. fico em dúvida sobre o que, realmente, devemos ou queremos ter certeza, Talvez, se queira ter certeza se a avaliação aplicada foi um instrumento de valia ou de serventia. Não sei, mas quem sabe, a vida nos traga o constrangimento de não saber ler ou dizer poesia, Tenho que começar minha aula pela chamada dos alunos?

professor, teu aluno, dentro da evolução das espécies não se apresentou melhor que os demais, é mais fraco, mais tímido, mais tonto, mais torto. professora, tua aluna passa fome e com isso não consegue aprender, o pai alcoólatra e desempregado em nada ajuda, provavelmente, a mãe que suporta tudo é seu único som de amor. como ensinar esta menina? será que alguns exames da cabeça nos dirão onde está o problema? quem sabe, uma boa conversa, durante uma hora, três vezes na semana

assim, com está, fica cada vez mais difícil

alguém precisa fazer alguma coisa

quem sabe o tal conselho tutelar ajuda a pensar alguma alternativa, né

será que eles sabem alguma poesia, algum texto

quem, os alunos

o conselho tutelar

sei lá

será que eles sabem do tempo que há de vir

quem, o conselho tutelar

não, os alunos e as alunas

sabem. e nós, saberemos algum dia? duvido

onde estarão os nossos amigos

o que pensarão as nossas alunas

alguém conseguirá ser o que quiser

serão elas todas as mães que precisarão tornar-se

tenho minhas dúvidas, engravidam aos quatorze, muitas se prostituem aos dez ou onze. seguirão sozinhas por aí, sem sonhos, desamparadas. um lugar de coisas nunca feiras. terão donos ou donas, até as prostitutas os têm

as casadas também. e os casados serão quem

Professor, eu ando cansado, escuto do meu aluno, Por que nossos professores não começam suas aulas com poesia, me pergunta o estudante que reza em meu túmulo

não sei o que pensar desta fala imensa do marko, um desabafo, não sei. lembro que dia destes morreu o Samuel, aquele nosso aluno travesso que nos deixava loucas com suas traquinagens. aquele que a escola nossa de cada dia não soube alimentar com esperança, que o expulsou sem escudo para a peleia da vida. Samuel, o incidente da vida para você e outras tantas e tantas crianças anônimas, está encerrado. o barco dos sonhos naufragou nas águas turbulentas da vida cotidiana. talvez, meus colegas me digam, Qual a nossa culpa, É o destino. é essa escola, são esses professores e professoras que responsabilizam a má índole dos alunos e alunas por todos os seus males, inclusive por suas mortes. a negação dos direitos fundamentais e as condições sub-humanas, sob as quais as pessoas vivem, não é apenas um texto a ser pedagogizado, mas é a realidade que milhões de pessoas experimentam nos seus próprios corpos, diariamente. Se a escola não compreender estas questões como também suas, está em perigo de perder a sua alma. a morte do Samuel é uma verdade profunda que atinge e fere, mas, quantas vezes, o Samuel tem morrido nessa escola, nessa vida, Quem responde ao Samuel


o professor abá caminhava para as informáticas quando nos encontrou conversando e caminhando pelo pátio. percebeu entre nós um que outro fujão das aulas. não perdeu tempo, brincando, chamava atenção de polícia, Vocês são uns medonhos, eh, faltando as minhas aulas, E adianta ir, desafia um deles, Não tem computador pra mim e quando tem não sei o que fazer, E quando tem não funciona. esse é outro que olhava sem olhar, não consente em receber mentira, tenta se mostrar inteiro na sua indignação, Sim, mas o que está acontecendo, pergunta o cego, assustou do acordamento pobríssimo, não esperava ser acusado de negligente, relapso e arrogante, parecia magoado. coitadinho, Todas às vezes que vou à aula tenho que dividir o computador com outro que não sabe nada, também, aí, eu fico olhando e esperando o seu auxílio que não chega. sentia a frustração e o desânimo, tinha o desencanto na voz e no olhar, não encarava, mas sabia que os demais estavam a olhá-los, desconfiados, questionando com seus corpos cansados e uma tristeza sem fim, Espero todos vocês na próxima aula, todos, não vai faltar computador para ninguém. discursou breve e lacônico, nem ele acreditava nas palavras, cheiravam a promessas fracas, e afinal, nada além da sua obrigação, Professor, tá parecendo político mentindo em campanha, grita alguém entre a multidão dos alunos sem nome. confesso que senti o mesmo, mais parecia um velho e fantasma general de pijama, num esforço de imagem e som, nos oferecendo brinquedinho eletrônico, alguns sem pilha, outros sem o teclado, uma grande festa onde esqueceram de oferecer os palitos, Professor, o senhor afirma que não vai faltar computador, isso só vai acontecer se a escola comprou mais computadores, ou se o senhor já tá sabendo que muitos não virão na próxima aula, porque o número de alunos é maior que os computadores. eis um cálculo fácil de fazer, simples, até por mim, que, às vezes, entendo ou não me entendem as complicações matemáticas de somar e diminuir

as replicações afetadas ou ingênuas ou enredadas ou simplórias, não importam menos ou mais que a maneira como se diz respondendo, a esses das terras de cima dos alagadiços, gente graúda, cheia das instruções de letras, Aqui na vila os políticos só aparecem na hora do voto, reclama aquela das havaianas, Tinha que haver eleição todo dia pra alguma coisa boa acontecer de verdade, fala sem ânimo o nosso amigo da bola, Por isso que eu prefiro vê os meus programas na tv, se mentem não é tanto, acho, retorna aquela das havaianas. caíram na risada amarelada pelo desespero do esquecimento, mereceu, mas não percebeu, não compreendeu. não reclamamos dele, mas das mentiras que nos dizem todos os dias. nos querem acreditando no paraíso após a morte, aqui, ainda não, e para manter a imagem nos fazemos miragem, re-feitos no ar, misturados com barro e cheios de água, nos tornamos bonecas, brinquedos da vida, armas da morte. torturam nosso corpo, massacram nossa mente, dilaceram nossa carne de acne e jazemos aqui, mortos e mortas, funeral gigante! continuamos na estrada andante e sofremos em nossos filhos que perdemos, no marido e na esposa que esperamos, nos amigos que choramos, na violência do algoz e na hipocrisia do “não sei”. a dor cansada do constrangimento encobre no homem e na mulher a besta violadora da vida. vivo a indiferença do esquecer o que fazer com o que sou, ficar apenas com a mentira do que penso que sou, Pra quê vai servir... Eu já sei lê, meus colegas não entendem porque ela é tão parecidinha com as gostosonas da televisão, Será os chinelos, mas são havaianas, não são falsos



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