domingo, 24 de abril de 2016

5.O Estrangeiro: Ficamos assim durante longos instantes - Albert Camus

Albert Camus


Capítulo 1


5. Ficamos assim durante longos instantes 




Ficamos assim durante longos instantes. Os suspiros e soluços da
mulher iam-se fazendo mais raros. Por fim, calou-se.
Eu já não tinha sono, mas estava cansado e doíam-me os rins.
Era o silêncio de todas aquelas pessoas, que agora me era penoso.
De tempos a tempos, ouvia apenas um ruído estranho e não
conseguia compreender de que se tratava. Acabei por adivinhar que
alguns dos velhos chupavam o interior das bochechas, deixando
escapar estes barulhos esquisitos. Estavam tão absortos nos seus
pensamentos, que nem davam por isso.

Tinha mesmo a impressão de que esta morta, ali deitada,
nada significava para eles. Mas creio agora que se tratava de
uma impressão falsa.


Tomamos todos café, servido pelo porteiro. Em seguida, não sei
mais nada. A noite passou. Lembro-me de que, a certa altura, abri
os olhos e reparei que os velhos dormiam dobrados sobre si
mesmos, com exceção de um único que, de queixo encostado às
costas das mãos, e com estas agarradas à bengala, me olhava
fixamente, como se estivesse à espera de me ver acordar. Depois,
voltei a adormecer. Acordei porque os rins me doíam cada vez mais.

O dia surgia pouco a pouco através da vidraça. Logo a seguir, um
dos velhos acordou e tossiu muito.

Cuspia num grande lenço de quadrados e cada um dos escarros era
como que um arranque.

Acordou os outros e o porteiro disse-lhes que se deviam ir embora.
Levantaram-se.

Esta vigília incômoda tinha-lhes dado às caras uma cor de cinza. À
saída, e com grande espanto meu, vieram-me todos apertar a mão -
como se esta noite em que não havíamos trocado uma só palavra,
tivesse aumentado a nossa intimidade. Estava cansado. O porteiro
levou-me ao quarto dele, e pude lavar-me e pentear-me. Voltei a
tomar café com leite, que era ótimo.

Quando saí, o dia estava completamente levantado.




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A Constatação do Absurdo

Nascido e criado entre contrastes fundamentais, Albert Camus desde cedo aprendeu que a miséria engendra uma solidão que lhe é típica, uma austeridade toda sua, uma desconfiança da vida - mas a paisagem desperta uma rica sensualidade, uma eufórica sensação de onipotência, um orgulho desmedido de possuir a beleza inteiramente gratuita. Este aprendizado, feito a meio caminho entre a miséria e o sol, levou-o à consciência do que existe de mais trágico na condição humana: o absurdo, essa irremediável incompatibilidade entre as aspirações e a realidade.


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Camus, Albert, 1913-1960.
              O Estrangeiro


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Leia também:

4.O Estrangeiro: Na pequena morgue - Albert Camus


6.O Estrangeiro: Por cima das colinas - Albert Camus

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