domingo, 24 de abril de 2016

Alberto Caeiro (Portugal)

da Poesia  (03)




O Universo não é uma ideia minha


O Universo não é uma ideia minha. 
A minha ideia do Universo é que é uma ideia minha. 
A noite não anoitece pelos meus olhos, 
A minha ideia da noite é que anoitece por meus olhos. 
Fora de eu pensar e de haver quaisquer pensamentos 
A noite anoitece concretamente 
E o fulgor das estrelas existe como se tivesse peso.






Florbela Espanca (Portugal)



A uma rapariga


A Nice 

Abre os olhos e encara a vida! A sina 
Tem que cumprir-se! Alarga os horizontes! 
Por sobre lamaçais alteia pontes 
Com tuas mãos preciosas de menina.
 
Nessa estrada de vida que fascina 
Caminha sempre em frente, além dos montes! 
Morde os frutos a rir! Bebe nas fontes! 
Beija aqueles que a sorte te destina!
 
Trata por tu a mais longínqua estrela, 
Escava com as mãos a própria cova 
E depois, a sorrir, deita-te nela!
 
Que as mãos da terra façam, com amor, 
Da graça do teu corpo, esguia e nova, 
Surgir à luz a haste de uma flor!...


Florbela Espanca, Charneca em Flor (1930)






Alice Gomes (Portugal)



Na idade dos porquês


Professor diz-me   porquê? 
Por que voa o papagaio 
que solto no ar 
que vejo voar 
tão alto no vento 
que o meu pensamento 
não pode alcançar?
 

Professor diz-me   porquê? 
Por que roda o meu pião? 
Ele não tem nenhuma roda 
E roda   gira   rodopia 
e cai morto no chão... 


Tenho nove anos   professor 
e há tanto mistério à minha roda 
que eu queria desvendar! 
Por que é que o céu é azul? 
Por que é que marulha o mar? 
Porquê? 
Tanto porquê que eu queria saber! 
E tu que não me queres responder!
 

Tu falas falas   professor 
daquilo que te interessa 
e que a mim não interessa. 
Tu obrigas-me a ouvir 
quando eu quero falar. 
Obrigas-me a dizer 
quando eu quero escutar. 
Se eu vou a descobrir 
Fazes-me decorar.


É a luta   professor 
a luta em vez de amor. 


Eu sou uma criança. 
Tu és mais alto 
mais forte 
mais poderoso. 
E a minha lança 
quebra-se de encontro à tua muralha.

 
Mas 
enquanto a tua voz zangada ralha 
tu sabes   professor 
eu fecho-me por dentro 
faço uma cara resignada 
e finjo 
finjo que não penso em nada.

 
Mas penso. 
Penso em como era engraçada 
aquela rã 
que esta manhã ouvi coaxar. 
Que graça que tinha 
aquela andorinha 
que ontem à tarde vi passar!... 


E quando tu depois vens definir 
o que são conjunções 
e preposições... 
quando me fazes repetir 
que os corações 
têm duas aurículas e dois ventrículos 
e tantas 
tanta mais definições... 
o meu coração 
o meu coração que não sei como é feito 
nem quero saber 
cresce 
cresce dentro do peito 
a querer saltar cá para fora 
professor 
a ver se tu assim compreenderias 
e me farias 
mais belos os dias.


Alice Gomes (1946)

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