sábado, 2 de junho de 2018

Baudelaire - Pequenos Poemas em Prosa: XXII - Crepúsculo Vespertino

Baudelaire - Pequenos Poemas em Prosa


XII


CREPÚSCULO VESPERTINO  

Anoitece. Uma grande calma se faz nos pobres espíritos fatigados pelo labor do dia.

Os pensamentos tomam as cores ternas e indecisas do crepúsculo.

Do alto da montanha, através as nuvens transparentes da tarde, chega à minha sacada um uivo medonho, composto de uma porção de gritos discordantes, que o espaço transforma em lúgubre harmonia, como a da maré que sobe ou da tempestade que desaba.

Quais são os infortunados que a tarde não acalma e que, como os mochos, tomam o anoitecer por um sinal de sabá? O sinistro ulular nos vem de um negro hospício encravado na montanha. À noite, fumando e contemplando o imenso vale em repouso, eriçado de casa cujas janelas dizem: “Aqui reside a paz, aqui a alegria da família!”, eu posso, quando o vento sopra de lá de cima, embalar meu pensamento assombrado nessa imitação das harmonias do inferno.

O crepúsculo excita os loucos. Lembro-me de que tive dois amigos que o crepúsculo tornava logo doentes. Um deles desconhecia todas as relações de amizade e de polidez, e maltratava, como um selvagem, o primeiro que aparecesse. Eu o vi atirar à cabeça de um criado um frango excelente, no qual julgara ver não sei que insultante hieróglifo. A noite, precursora das volúpias profundas, estragava-lhe as coisas mais suculentas.

O outro, aflito ambicioso, tornava-se, á medida que a noite caía, mais ríspido, mais sombrio, mais tacanho. Indulgente e sociável durante o dia, à noite era impiedoso. E não era somente sobre os outros, mas também sobre ele próprio, que se exercia furiosamente essa mania crepuscular.

O primeiro morreu louco, incapaz de reconhecer a própria mulher e o filho. O segundo carrega a inquietação de um perpétuo mal-estar e, se fosse agraciado com todas as honras que as repúblicas e os príncipes conferem, ainda assim eu creio que o crepúsculo acenderia nele uma ardente ambição de distinções imaginárias. A noite, que lhe punha trevas no espírito, traz luz ao meu. E, se bem que não raro se veja a mesma causa engendrar dois efeitos contrários, eu me sinto sempre, à noite, intrigado e alarmado.

Oh noite! Oh trevas refrescantes! Sois para mim o sinal de uma festa interior, sois o parto de uma angústia! Na solidão das planícies, nos labirintos de pedra de uma capital, fulguração das estrelas, explosão das lanternas, sois o fogo de artifício da deusa liberdade! Crepúsculo, como sois doce e terno! Os róseos reflexos que ainda se veem no horizonte, com a agonia doa dia sob a opressão vitoriosa de sua noite, os fogos dos candelabros produzindo manchas de um vermelho opaco sobre as últimas glórias do ocaso, as pesadas cobertas atiradas por mão invisível das profundezas do Oriente, imitam todos os sentimentos complicados que lutam no coração do homem nas horas solenes da vida.

Dir-se-ia ainda uma dessas estranhas túnicas de dançarina, cuja gaze transparente e sombria deixa entrever os esplendores amortecidos de um fulgurante vestido, como do negro presente transparece o delicioso passado. E as estrelas vacilantes de ouro e de prata, que a semeiam, representam os fogos da fantasia, que só ficam bem acesos sob o luto profundo da Noite.



XXIII


A SOLIDÃO

Disse-me um jornalista filantropo que a solidão é prejudicial ao homem. E, em apoio de sua tese, citou-me, como todos os incrédulos, palavras dos Pais da Igreja.

Eu sei que o Demônio gosta de frequentar os lugares áridos e que o Espírito do crime e da lubricidade inflama-se maravilhosamente na solidão. Mas, é possível que essa solidão só seja perigosa para as almas indolentes e extravagantes que a povoam com suas paixões e quimeras.

É certo que um tagarela, cujo supremo prazer consiste em falar do alto de uma cátedra ou de uma tribuna, estaria bastante arriscado a ficar louco furioso na ilha de Robinson (21). Não exijo do meu jornalista as corajosas virtudes de Crusoé, mas peço-lhe que não condene os amantes da solidão e do mistério.

Há, em nossas raças palradoras, indivíduos que aceitariam com menos repugnância o suplício supremo, se lhes fosse permitido fazer do alto do cadafalso uma arenga interminável, sem recear que os tambores de Santerre (22) lhes cortasse intempestivamente a palavra.

Não os lastimo, porque percebo que suas efusões oratórias lhes proporcionam volúpias iguais àquelas que outros tiram do silêncio e do recolhimento. Mas os desprezo.

Desejo, sobretudo, que o meu maldito jornalista me deixe divertir-me à vontade.

— Então, — perguntou-me num tom fanhoso e muito apostólico, — jamais experimenta você a necessidade de partilhar suas alegrias? Sutil invejoso! Como sabe que desprezo as dele, vem insinuar-se nas minhas! Hediondo desmancha-prazeres! “A grande felicidade de não poder estar só!” — diz algures La Bruyère (23), como para envergonhar todos aqueles que procuram esquecer-se na multidão, decerto com receio de não poderem suportar a si mesmos.

Quase todas as nossas desgraças provêm de não termos sabido ficar em nosso quarto”, — diz outro sábio, Pascal (24), parece, evocando assim, na cela do recolhimento, todos os alucinados que buscam a felicidade no movimento e numa prostituição a que eu poderia chamar de fraternária, se quisesse falar a bela língua do meu século.



XXIV


PROJETOS

Dizia ele, consigo, passeando num grande parque solitário: — Como ficaria bonita, com um traje de corte, complicado e faustoso, descendo, através a atmosfera de uma bela noite, os degraus de mármore de um palácio, diante dos gramados e das fontes! Tem a naturalidade de uma princesa! Passando mais tarde numa rua, parou defronte a uma loja de gravuras e, descobrindo num cartão uma estampa representando uma paisagem tropical, tornou a dizer consigo: — Não! Não é num palácio que eu desejaria possuir minha amada. Não estaríamos em nossa casa. Além disso, as paredes cravejadas de ouro não deixariam lugar para pendurar o retrato dela. Nas solenes galerias, não há um canto para a intimidade. Lá, decididamente, é que eu deveria ficar para cultivar o sonho de minha vida.

E, sempre analisando com os olhos os detalhes da gravura, continuava mentalmente: — À beira-mar, uma bonita residência de madeira, cercada de todas essas árvores bizarras e luzentes cujos nomes esqueci... Na atmosfera, um perfume inebriante, indefinível. Dentro de casa, um aroma de rosa e musgo... Mais adiante, atrás de nossa pequena propriedade, extremidades de mastros balanceados pela maré... Ao redor, para além de nosso quarto iluminado por uma luz cor-de-rosa coada pelas cortinas, todo enfeitado de frescos cipós e de flores capitosas, com luxuosos banquinhos de rococó português, feitos de madeira pesada e escura, para ela sentar-se, calma e vaporosa, fumando um tabaco ligeiramente opiado, — para além da varanda, o gorjeio dos pássaros ébrios de luz e a algaravia das negrinhas... E, à noite, para servir de acompanhamento aos meus sonhos, o canto dolente dos instrumentos de música, das flautas melancólicas! Sim, na verdade, está lá o ornamento que procuro. Que posso fazer num palácio? E mais adiante, seguindo uma grande avenida, viu um simpático albergue, em cuja janela adornada de cortinas de chitas mosqueada estavam duas cabeças risonhas. Então, disse consigo: — É preciso que minha imaginação seja uma grande vagabunda para ir buscar tão longe o que está tão perto de mim. O prazer e a felicidade se encontram no primeiro albergue que aparece, no albergue do acaso, tão fecundo em volúpias. Um bom fogo, vasos vistosos, uma refeição passável, um vinho grosseiro e uma cama bem larga com lençóis um pouco ásperos, mas frescos... Que pode haver de melhor? Ao entrar em casa, à hora em que os conselhos da Sabedoria já não são abafados pelo burburinho da vida exterior, disse consigo: — Tive hoje, em sonho, três domicílios onde encontrei um prazer igual. Porque forçar meu corpo a mudar de lugar, se minha alma viaja tão depressa? E para que realizar projetos, se o projeto é em si mesmo um prazer suficiente?



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Charles-Pierre Baudelaire (Paris, 9 de abril de 1821 — Paris, 31 de agosto de 1867) foi um poeta boémio ou dandy ou flâneur e teórico da arte francesa. É considerado um dos precursores do simbolismo e reconhecido internacionalmente como o fundador da tradição moderna em poesia, juntamente com Walt Whitman, embora tenha se relacionado com diversas escolas artísticas. Sua obra teórica também influenciou profundamente as artes plásticas do século XIX.
Nasceu em Paris a 9 de abril de 1821. Estudou no Colégio Real de Lyon e Lycée Louis-le-Grand (de onde foi expulso por não querer mostrar um bilhete que lhe foi passado por um colega).
Em 1840 foi enviado pelo padrasto, preocupado com sua vida desregrada, à Índia, mas nunca chegou ao destino. Pára na ilha da Reunião e retorna a Paris. Atingindo a maioridade, ganha posse da herança do pai. Por dois anos vive entre drogas e álcool na companhia de Jeanne Duval. Em 1844 sua mãe entra na justiça, acusando-o de pródigo, e então sua fortuna torna-se controlada por um notário.
Em 1857 é lançado As flores do mal contendo 100 poemas. O autor do livro é acusado, no mesmo ano, pela justiça, de ultrajar a moral pública. Os exemplares são apreendidos, pagando de multa o escritor 300 francos e a editora 100 francos.
Essa censura se deveu a apenas seis poemas do livro. Baudelaire aceita a sentença e escreve seis novos poemas, "mais belos que os suprimidos", segundo ele.
Mesmo depois disso, Baudelaire tenta ingressar na Academia Francesa. Há divergência, entre os estudiosos, sobre a principal razão pela qual Baudelaire tentou isso. Uns dizem que foi para se reabilitar aos olhos da mãe (que dessa forma lhe daria mais dinheiro), e outros dizem que ele queria se reabilitar com o público em geral, que via suas obras com maus olhos em função das duras críticas que ele recebia da burguesia.
Morreu prematuramente sem sequer conhecer a fama, em 1867, em Paris, e seu corpo está sepultado no Cemitério do Montparnasse, em Paris.


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NOTAS

(21) Robinson Crusoé, título e personagem principal de um romance célebre de Daniel de Foé (1719). É a história de um homem que se vê abandonado numa ilha deserta e que, à força de coragem e perseverança, consegue vencer as terríveis dificuldades que tal situação lhe criara.

(22) Antoine-Joseph SANTERRE (1752-1809), negociante de cerveja que comandou a guarda nacional de Paris em 1793 e foi general de divisão durante as guerras de Vandeia.

(23) Jean de LA BRUYÈRE (1645-1696), moralista francês, cuja obra Os Caracteres, traduzida em português, vem incluída nesta mesma biblioteca.

(24) Blaise PASCAL (1623-1662), matemático, físico e filósofo francês, autor das Provinciais e dos Pensamentos, estes últimos já traduzidos em nosso idioma e incluídos nesta biblioteca.


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