quarta-feira, 2 de maio de 2018

Baudelaire - Pequenos Poemas em Prosa: XIX - O Brinquedo do Pobre

Baudelaire - Pequenos Poemas em Prosa



XIX

O BRINQUEDO DO POBRE  

Quero dar uma ideia de um divertimento inocente. São tão poucas as diversões que não merecem uma censura! Quando saíres de manhã, com a firme intenção de vadiar pelas grandes estradas, enche os teus bolsos de pequenos inventos, como o polichinelo movido por um barbante, os ferreiros que batem na bigorna, o cavaleiro e o cavalo com rabo de assobio. Depois, pelos botequins, junto das árvores, presenteia as crianças desconhecidas e pobres que encontrares.

Elas arregalarão os olhos. A princípio, não ousarão pegar, duvidando da própria felicidade.

Mas, em seguida, segurarão vivamente o presente e fugirão como o gato que vai comer longe o que lhe deram, por ter aprendido a desconfiar dos homens.

Numa estrada, atrás da grade de um vasto jardim, no fundo do qual se destacava a brancura de um belo castelo batido pelo sol, estava um lindo e robusto menino, vestido com essa roupa de campo tão cheia de faceirice.

O luxo, a despreocupação e o espetáculo habitual da riqueza tornam essas crianças tão bonitas que parecem feitas de outra massa que não as crianças comuns ou da pobreza.

Ao lado dele, jogado na relva, via-se um boneco esplêndido, novo como o dono, envernizado, dourado, com um vestido de púrpura, coberto de plumas e miçangas. O menino, porém, não dava atenção ao seu brinquedo predileto, e eis o que olhava: Do outro lado da grade, na estrada, por entre os espinhos e as urtigas, estava outro menino, sujo, miserável, manchado de fuligem. Era um desses moleques em quem uma vista imparcial descobriria a beleza, se, assim como a vista de um entendido adivinha uma pintura ideal sob o verniz de um carro, fosse ele lavado da pátina repugnante da miséria.

Através aquela grade simbólica separando dois mundos, a grande estrada e o castelo, o menino pobre mostrava ao menino rico o seu brinquedo, que este último examinava avidamente, como um objeto raro e desconhecido. E o brinquedo que o sujo garoto atormentava, agitava e sacudia numa caixa engradada, era um rato vivo! Os pais, decerto por economia, tinham tirado o brinquedo da própria vida! E os dois meninos riam-se um para o outro, fraternalmente, com dentes de igual brancura.



XX

AS PRENDAS E AS FADAS

Realizava-se a grande assembleia das Fadas, para proceder à distribuição das prendas entre todos os recém nascidos que há vinte e quatro horas tinham sido dados à luz.

Todas essas antigas e caprichosas Irmãs do Destino, todas essas Mães bizarras da alegria e da dor, eram muito diferentes: umas tinham o ar sombrio e aflito, outras um ar satisfeito e maligno; umas eram jovens, que sempre foram jovens; outras eram velhas, que sempre foram velhas.

Todos os pais que acreditam nas Fadas tinham vindo, cada qual trazendo um recém-nascido nos braços.

As Prendas, as Faculdades, as Venturas, as Circunstâncias invencíveis, acumulavam-se ao lado do tribunal, como prêmios no estrado, numa distribuição de prêmios. Mas, o que havia de particular era que as Prendas não eram a recompensa de um esforço, mas, ao contrário, uma graça concedida aos que ainda não tinham vivido, graça que podia determinar-lhe o destino e tornar-se tanto a fonte de sua desgraça como da sua felicidade.

As pobres fadas estavam atarefadíssimas, pois o número dos candidatos era grande, e o mundo intermediário, colocado entre o homem e Deus, está submetido como nós à terrível lei do Tempo e de sua infinita posteridade, os Dias, as Horas, os Minutos, os Segundos.

Estavam, na verdade, preocupadas como ministros em dia de audiência, ou empregados do Montepio quando uma festa nacional autoriza as retiradas gratuitas. Creio mesmo que observavam de vez em quando o ponteiro do relógio, com tanta impaciência como os juízes humanos que, sentados desde manhã, não podem deixar de pensar no jantar, na família e nos queridos chinelos. Se, na justiça sobrenatural, há um pouco de precipitação e acaso, não nos admiremos que às vezes aconteça o mesmo na justiça humana. Seríamos também nós, nesse caso, juízes injustos.

Também foram cometidas naquele dia algumas faltas que se poderiam considerar extravagantes, se a prudência, e não o capricho, fosse o característico distintivo e eterno das Fadas.

Assim, a faculdade de atrair magneticamente a fortuna foi atribuída ao herdeiro único de uma família riquíssima, o qual, não sendo dotado de nenhum sentimento de caridade, nem tão pouco de nenhuma cobiça pelos bens mais visíveis da vida, devia achar-se mais tarde prodigiosamente embaraçado com seus milhões.

Assim, o amor ao Belo e a Inspiração poética foram dados ao filho de um sombrio indigente, canteiro de profissão, que não podia, de modo algum, ajudar as faculdades, nem aliviar as necessidades de sua deplorável progenitura.

Esqueci-me de dizer que a distribuição, nesses casos solenes, não tem apelação e que nenhuma prenda pode ser recusada.

Todas as Fadas se levantaram, julgando terminada a tarefa. Não restava nenhum dom, nenhum presente que lançar a todo aquele cardume humano, quando um bom homem, um pobre pequeno comerciante, creio eu, levantou-se e, segurando pela túnica de vapores multicores a Fada que estava mais ao seu alcance, exclamou: — Eh, senhora! Não se esqueça! Há ainda o meu filho! Não vim aqui à toa! A Fada poderia embaraçar-se, pois já não restava nada. No entanto, lembrou-se a tempo de uma lei que, embora raramente aplicada, é muito conhecida no mundo sobrenatural, onde moram essas deidades impalpáveis, amigas do homem e muitas vezes constrangidas a adaptar-se às paixões humanas: Fadas, Gnomos, Salamandras, Sílfides,  Silfos, Nixos, Ondinos e Ondinas. Refiro-me à lei que concede às Fadas, em casos semelhantes, isto é, no caso de se esgotarem as prendas, a faculdade de dar ainda uma, suplementar e excepcional, mas desde que possua imaginação bastante para criá-la imediatamente.

A boa Fada respondeu, então, com uma delicadeza digna de sua linhagem: — Dou ao teu filho... dou-lhe... o dom de agradar!

— Mas agradar como? Agradar? Agradar por quê? — perguntou obstinadamente o pequeno negociante, que era sem dúvida um raciocinador vulgar, incapaz de elevar-se até à lógica do Absurdo.

— Por quê! Por quê! — replicou a Fada indignada, voltando-lhe as costas.

Depois, reunindo-se de novo ao cortejo de suas companheiras, dizia-lhes: — Que acham vocês desse pequeno francês vaidoso, que tudo quer compreender e que, tendo obtido para o filho a prenda melhor, ainda ousa interrogar e discutir o indiscutível?



XXI

AS TENTAÇÕES OU EROS, PLUTO E A GLÓRIA

Dois soberbos Satãs e uma Diaba, não menos extraordinária, subiram, a noite passada, uma escada misteriosa, por onde o Inferno dá acesso à fraqueza do homem que dorme, comunicando-se secretamente com ele. Vieram pôr-se gloriosamente diante de mim, de pé, como num estrado. Um esplendor sulfuroso emanava das três personagens, que se destacavam do fundo opaco da noite. Tinham um ar tão altivo e cheio de domínio que os tomei a princípio por verdadeiros Deuses.

A fisionomia do primeiro Satã era de um sexo ambíguo e havia, nas linhas do seu corpo, a moleza dos antigos Bacos (19). Seus belos olhos lânguidos, a cor tenebrosa e indecisa, pareciam violetas ainda carregadas dos pesados prantos da borrasca, e os lábios entreabertos caçoletas candentes exalando um aroma de perfumaria. E, toda vez que suspirava, insetos musgados iluminavam-se, voando aos ardores do seu hálito.

Ao redor de sua túnica de púrpura enrolava-se, como um cíngulo, uma fulgura serpente que, de cabeça erguida, volvia para ele os lânguidos olhos de brasa. Nesse cíngulo vivo suspendiam-se, alternando-se com frascos cheios de sinistros licores, facas brilhantes e instrumentos cirúrgicos. Tinha na mão direita outro frasco, cujo conteúdo era de um vermelho luminoso, e que trazia no rótulo estas palavras estranhas: BEBA, É O MEU SANGUE, PERFEITO CORDIAL. Com a mão esquerda, segurava um violão que lhe servia, certamente, para cantar os seus prazeres e desgostos, ou espalhar o contágio de sua loucura nas noites de sabá (20).

Nas delicadas cravelhas, penduravam-se anéis de uma corrente de ouro partida, e, quando a tristeza que tal fato lhe causara o forçava a baixar os olhos, contemplava vaidosamente as unhas dos próprios pés, brilhantes e polidas como pedras bem trabalhadas.

Olhou-me com os olhos inconsolavelmente aflitos, de onde deslizava uma insidiosa embriaguez, e me disse com voz modulada: — Se quiseres, far-te-ei senhor das almas, dono da matéria viva, mais ainda do que o escultor pode ser da argila. Conhecerás o prazer, sempre novo, de saíres de ti mesmo para te esqueceres em outrem e de atrair as outras almas até confundi-las com a tua.

E eu lhe respondi: — Muito obrigado! Nada posso fazer desse punhado de seres que, sem dúvida, não valem mais do que o meu pobre eu. Embora tenha vergonha de me lembrar, não quero esquecer. Mesmo que eu não te conhecesse, velho monstro, a tua misteriosa cutelaria, os teus frascos equívocos, as correntes que te prendem os pés, são símbolos que explicam com clareza os inconvenientes da tua amizade. Guarda os teus presentes.

O segundo Satã não tinha nem esse ar ao mesmo tempo trágico e sorridente, nem essas belas maneiras insinuantes, nem essa beleza esbelta e perfumada. Era um homem vasto, enorme rosto sem olhos, ventre imenso caindo sobre as coxas, a pele dourada e ilustrada, como numa tatuagem, com uma porção de pequenas figuras movediças representando as numerosas formas da miséria universal.

Havia ainda uns homenzinhos descarnados, suspendendo-se voluntariamente num prego. Pequenos gnomos disformes, magros, cujos olhos suplicantes reclamavam melhor a esmola do que as mãos trementes. Velhas mães carregando abortos seguros nas maminhas extenuadas. E muitos outros.

O grande Satã batia com o punho na barriga enorme, produzindo um longo e estridente tilintar metálico, que terminava num vago gemido feito de numerosas vozes humanas. E, mostrando imprudentemente os dentes podres, dava uma gargalhada imbecil, como certos homens de todos os países depois de um bom jantar.

Foi esse que me disse: — Posso dar-te o que produz tudo, o que vale tudo, o que tudo substitui! — E bateu no ventre monstruoso, cujo eco sonoro foi o comentário dessa frase grosseira.

Voltei-me de má vontade e respondi-lhe: — Não preciso, para o meu bem-estar, da miséria de ninguém. Não desejo uma riqueza atormentada, como um papel de parede, por todas as desgraças representadas em tua pele.

Quanto à Diaba, eu mentiria se não confessasse que descobri nela, à primeira vista, uma sedução estranha. Para definir esse encanto, eu só poderia compará-lo ao dessas lindas mulheres maduras, que não envelhecem e conservam a magia penetrante das ruínas. Tinha um ar ao mesmo tempo imperioso e desajeitado, e os olhos, embora endurecidos, encerravam uma força fascinadora. E o que mais me impressionou foi o mistério de sua voz, que me evocou os contraltos mais deliciosos e também a rouquidão das gargantas incessantemente lavadas pela aguardente.

— Queres conhecer o meu poder? — disse a falsa deusa com sua voz encantadora e paradoxal — Escuta.

Levou à boca uma gigantesca trombeta enfeitada de fitas, como uma flauta, nas quais e liam os títulos de todos os jornais do universo. Através essa trombeta, gritou o meu nome, que reboou o espaço com o ruído de cem mil trovões e voltou a mim repercutido pelo eco do mais longínquo planeta.

— Diabo! — exclamei, meio vencido, — é fantástico! Mas, examinando com mais atenção a sedutora virago, pareceu-me vagamente que a reconhecia, por a ter visto bebendo com uns folgazões meus conhecidos. E o som rouquenho do cobre trouxe-me aos ouvidos não sei que de recordações de uma trombeta prostituída.

Respondi-lhe, por fim, com desprezo: — Vai-te! Não fui feito para desposar a amante de certos tipos que não quero citar.

Eu teria, decerto, o direito de vangloriar-me por tão corajosa abnegação. Mas, infelizmente, despertei e toda a minha força abandonou-me.

— Na verdade, — disse comigo — era mesmo preciso que eu estivesse dormindo para mostrar tais escrúpulos. Se eles pudessem voltar quando despertei, eu não seria tão delicado! Invoquei-os em voz alta, suplicando-lhes que me perdoassem, oferecendo-lhes a minha humilhação tantas vezes quantas fossem necessárias para merecer os seus favores.

Mas, a ofensa fora muito grave, pois nunca mais voltaram.



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Charles-Pierre Baudelaire (Paris, 9 de abril de 1821 — Paris, 31 de agosto de 1867) foi um poeta boémio ou dandy ou flâneur e teórico da arte francesa. É considerado um dos precursores do simbolismo e reconhecido internacionalmente como o fundador da tradição moderna em poesia, juntamente com Walt Whitman, embora tenha se relacionado com diversas escolas artísticas. Sua obra teórica também influenciou profundamente as artes plásticas do século XIX.
Nasceu em Paris a 9 de abril de 1821. Estudou no Colégio Real de Lyon e Lycée Louis-le-Grand (de onde foi expulso por não querer mostrar um bilhete que lhe foi passado por um colega).
Em 1840 foi enviado pelo padrasto, preocupado com sua vida desregrada, à Índia, mas nunca chegou ao destino. Pára na ilha da Reunião e retorna a Paris. Atingindo a maioridade, ganha posse da herança do pai. Por dois anos vive entre drogas e álcool na companhia de Jeanne Duval. Em 1844 sua mãe entra na justiça, acusando-o de pródigo, e então sua fortuna torna-se controlada por um notário.
Em 1857 é lançado As flores do mal contendo 100 poemas. O autor do livro é acusado, no mesmo ano, pela justiça, de ultrajar a moral pública. Os exemplares são apreendidos, pagando de multa o escritor 300 francos e a editora 100 francos.
Essa censura se deveu a apenas seis poemas do livro. Baudelaire aceita a sentença e escreve seis novos poemas, "mais belos que os suprimidos", segundo ele.
Mesmo depois disso, Baudelaire tenta ingressar na Academia Francesa. Há divergência, entre os estudiosos, sobre a principal razão pela qual Baudelaire tentou isso. Uns dizem que foi para se reabilitar aos olhos da mãe (que dessa forma lhe daria mais dinheiro), e outros dizem que ele queria se reabilitar com o público em geral, que via suas obras com maus olhos em função das duras críticas que ele recebia da burguesia.
Morreu prematuramente sem sequer conhecer a fama, em 1867, em Paris, e seu corpo está sepultado no Cemitério do Montparnasse, em Paris.
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NOTAS


(19) Baco, deus romano do vinho, filho de Júpiter, por quem foi mandado para a Trácia, onde as ninfas o educaram. Baco ensinou ali a cultura da vinha e, para comunicar a sua arte aos homens, percorreu numerosas terras, entre as quais o Egito e a Índia.

(20) Do hebraico schabbat: descanso religioso que, segundo a lei de Moisés, deviam os judeus observar no sétimo dia da semana, consagrado a Deus. Era também uma assembleia noturna de bruxos e de bruxas que, segundo uma superstição popular, se reunia sob a presidência de Satanás, no sábado à meia-noite.

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