quarta-feira, 19 de fevereiro de 2014

Ensinação é ineficaz

Teatro Pedagógico 08
baitasar
A pedagogia antibiótica e meritória dos tecnocratas da ensinação é ineficaz para acabar com o analfabetismo porque acaba com o analfabeto. Sob o ponto de vista da pena de morte da libertação, ela é convincente e útil, mas não considera o analfabeto porque não enxerga que antes dos conteúdos e das linhas preenchidas está a amorosidade capaz de nos aliviar um pouco do egoísmo de saber e ter mais; não considera porque não repara que o tempo voador engole a permanência, qualquer que seja o precioso momento de estar junto. A permanência é a morte. O tempo engole a morte. Tudo vira poeira nas doses letais de renúncia ao condenado analfabeto, com 6 ou 60 anos, perdido da conscientização consigo mesmo e com o outro.
A pedagogia antibiótica não sabe o que fazer com os abraços e sorrisos da suavidade derretida que farão da memória um lugar gostoso para reaparecer
—        Paulo! Você é um obstinado com esse crédito de esperança no ser humano educador.
O Paulo está de costas para o general, olha diretamente para o Acácio. Parece dizer que o amor não é paz, nem é o silêncio, é o amor que se contradiz no outro e em si mesmo. A diversidade deveria ajudar o mundo a mudar
—        Querido Acácio. Fico pensando naqueles e naquelas desesperançadas por pura teimosia. Negam a própria existência e a construção do seu teatro histórico, têm medo de narrar e não querem registrar sua biografia. Não acreditam que podem formatar a sua própria fábula, se fogem. Não se acreditam e não permitem que os desesperançados se acreditem. Jogam suas cabeças no abismo da fatalidade e do destino, se proíbem de acreditar em si, nos outros, nas outras.
O que acontece hoje seria a reunião pedagógica que sempre sonhei e nunca tive? Estou sonhando? É só para mim essa realidade
—        E o que fazer com pessoas que se julgam maiores ou menores, conforme o tamanho que imaginam do outro à sua frente?
—        Lia, estamos jogados nas águas oceânicas da vida, alguns se deixam embalar até o naufrágio na primeira tempestade, que cedo ou tarde virá. Navegam na desesperança e na aposta imoral que os ventos não mudam, não circulam, não aumentam. Juram que os vagalhões não existem. Eles não existem, não se acreditam existindo, são frutos da imaginação. Por isso, também se impedem de sonhar.
—        Professor Paulo...
—        Apenas Paulo, meu querido Arthur. Caso seja necessário usar algum título, que seja professor, até porque tio ou tia, velho ou velha, são títulos que pressupõe outros relacionamentos que também existem. Não é o nosso caso. Mas se você sentir necessidade do título, não tem problema, muito ao contrário, sinto orgulho do título: professor, substantivo próprio de quem sente orgulho pelo que faz.
O Arthur é mais um jovem que começa sua estrada de ensinar e educar aos outros e a si mesmo, nesta escola
—        Professor se o desesperançado tem medo de encontrar a verdade nos pesadelos, ele tem medo das suas fantasias; então, suas ilusões se tornam opressoras ou oprimidas?
Vejo um sorriso maroto e disfarçado que o Paulo não se apressa em desmanchar para responder
—        Eis um coração e uma mente que me parece a Academia não destruiu. Arthur, os desesperançados teimam que a esperança não existe como um ato de mudança, como um fato do cotidiano, como uma xícara com chá de hortelã. A vida para os desesperançados está fora deles, está nas pessoas e nas coisas que podem comprar.
Acredito que o destino pode ser torcido e retorcido até a dor intensa da consciência ou ficar moralmente dominado pelos desatinos do medo. Esses pensamentos me trazem as conversas no banco de madeira, à sombra da mangueira, Não acreditamos no que fazemos porque o que fazemos não vai mudar nada, Jura, Não vai mudar nada do que sempre foi, Você não acredita que existe beleza no trabalho de educar com esperança na palavra do outro que nos educa, E você jura que existe o outro miserável que nos educa
Essa é a desesperança maliciosa e ordeira. Respondi angustiada, Você é muito triste, mesmo quando ri com suas gargalhadas; existimos nos educando juntos, nas histórias vividas ora com um, ora com outra, nada é igual o tempo todo
—        Tenho certeza que o Paulo, o mais esperançado, entre nós, e aquele ou aquela mais desesperançada nesta sala não ficaria surpresa ou atônito se lhes afirmasse que o coletivo dos professores não existe no sentido pedagógico. Pelo menos, nas escolas nas quais estive nestes trinta e tantos anos de reuniões, espasmos, espantos, crises, bolos de aniversário, almoços, piadas, reclamações, licenças, abandonos, risos e lágrimas. Raramente vi ou ouvi planejamento e sentido coletivo nas ações pedagógicas. Escutei muitos sonhos, presenciei muitas discussões e tentativas, que não passaram dos desejos de uns poucos e poucas. O que nos impede de existirmos como um coletivo de professores por certo não é a falta de espaço para discussões pedagógicas.
—        Isso não é verdade! Na minha outra escola não tem espaço para discussões pedagógicas.
—        Tá bem, Acemira. E qual é a tua contribuição para as discussões aqui? Mas o que dizer daquelas escolas que têm horários sistemáticos semanais, quinzenais ou mensais, para reuniões pedagógicas e não conseguem um sentido pedagógico coletivo? Aqui, não estou me referindo ao senso corporativista, sentido de classe, mas ao fazer e pensar educação coletivamente, incluindo, especialmente, funcionários, pais, mães, alunos e alunas. Eles têm o direito de nos dizer qual a educação que desejam, para si, para seus filhos e filhas, ou não têm?
Bem assim, oramos o discurso pedagógico do alto do púlpito catedrático para mostrar que somente os professores e as professoras entendem sobre educação escolar. E o mínimo que esperamos é que eles eduquem seus filhos e filhas para que possamos ensinar-lhes com nossos velhos métodos os conteúdos programáticos
—        Os pais não têm nada para nos dizer!
—        Será, Cabayba?
—        Quem está com o discurso da desesperança é você, Marko!
—        Cabayba, não é somente a esperança. Mas, por certo, ela é um sentido muito forte que me moveu e move, em mais de trinta anos de reuniões, na maioria, catarses de autoajuda ou autodestruição, negação do aluno que não se molda à nossa imagem e semelhança.
O melhor da aposentadoria será não participar das reuniões. Talvez tenha sentido esperar por outras, como esta, com o Paulo e o Marko juntos num poema pedagógico. Queria correr atrás de uns goles de chimarrão. Não saio. O Paulo vira-se todo, nos olha de frente
—        Querido Marko, invejo quem na sua esperança mobiliza a realidade à sua volta na busca da transformação. Não sou queixoso. Minha inveja não é invejosa, não é melancólica, á amorosa. Precisamos pensar e fazer com esperança. Não nos deixar invadir pela desesperança do mundo, do outro, e a nossa própria. O mundo a todo instante nos impõe desapontamentos, desencantos, frustrações, as desilusões do cotidiano. E apesar disto, homens e mulheres, jovens e velhos, criam com as mãos e coração o mundo da esperança, da igualdade social, do pensamento livre, da voz que não se cala, tagarela.
Eu sei, aprendi com você que não existe nada pior que a alma submetida ao silêncio pelo medo. A escola brilha de humanidade amorosa quando se mantém atenta à diversidade, às diferenças, para não criar guetos ou estufas, próxima do verdadeiro combate corpo a corpo. A escola ética e verdadeira é aquela que luta contra um mundo excludente e falso; não valoriza o ter mais, nem esconde as mentiras do consumo desnecessário e destrutivo que amaldiçoa a nossa necessidade ontológica de ser mais. Quero parte da escola que antes de pensar o que vai ensinar para suas avaliações cartesianas – aprovado/reprovada – discute o que existe, se transforma na fecundidade frágil entre o certo e o errado
—        E o destino?
—        Por certo, não é o destino, meu jovem. Qual é o seu nome?
—        Aécio.
—        Aécio, os atos e omissões de homens e mulheres que acreditam em si, em vós, e também em nós, renovam o fazer do cotidiano, pretendem incinerar a neutralidade estúpida, curta de inteligência, orelhuda, mal-intencionada.
Silêncio
—        Blá, blá, blá... somos o exército da salvação.
—      Com licença. Eu sou o Aécio, estagiário. Acho que poucos me conhecem. O professor Arthur, talvez um mais ou outros. Não sei se tenho direito de participar, afinal, sou o estagiário, mas gostaria de fazer uma ou duas observações sobre o comentário da professora: o exército da salvação...
—        Cabayba. O nome da professora é Cabayba, menino.
—   Ok, professora Cabayba. Peço desculpas, mas assim como poucos me conhecem, também não conheço a todos. Mas enfim, eu acho que é indispensável à esperança o coletivo. Não sei se as pessoas veem nos professores um exército de salvação que marcha, marcha e marcha, perde seus soldados, forma novos exércitos para marchar e marchar, também não sei, se nos vemos soldados dessa massa de seguidores tarefeiros, tampouco posso afirmar se individualmente conseguimos salvar nossa existência nesse contingente salvacionista. Nem tenho certeza da existência de um outro exército: a legião do extermínio. Mas acho que se os professores não se constituírem no coletivo, serão facilmente cooptados e aliciados pelo exército da desesperança, do desamor, do desânimo, das lamúrias, dos mal-intencionados. De modo caricatural pode-se dizer que se criam as condições para uma grande escola de gritos e silêncios.
Silêncio.
A ousadia da juventude é sempre bem-vinda. O garoto não parece assustado com aqueles olhos arregalados. Não o reconheci com os cabelos crespos presos num cocó, o bigodinho raladinho, os alunos de alguns anos atrás cresceram, esse voltou. Será que a esperança consegue afastar o cansaço? Como organizar um coletivo com visões de mundo tão diferentes
—        Aguinaldo, chega dessa conversa. Eu quero ver isso tudo na prática.
—        Na prática, Renata, só produzimos um imenso vazio. Eu perco minutos preciosos das minhas aulas falando sobre as maneiras, ou melhor, as nenhumas maneiras que têm. Falo, falo, falo, e nada. Entra por um lado e sai pelo outro.
Abro a boca para perguntar à Cabayba ou à Renata se elas já leram alguma coisa sobre educação bancária, mas me contenho, não quero contribuir para provocar o silêncio.
A Acemira não se conteve, aproveitou o meu silêncio
—        Chego a atingir os limites do aconselhamento: Quem não quer estudar, fique em casa! Não precisa vir!
Eis quando a ingenuidade deixa de ser inocente e passa a ser mal-intencionada.
Esperar que o vazio mal-intencionado venha a ser preenchido pela ingênua esperança que vem carregada pelos braços, suor e sangue dos outros é também querer ser virtuoso pela virtude do outro. Quando nos imaginamos em movimento, na verdade, estamos de braços cruzados. Uns goles de chá de maconha, por certo, nos deixariam os sentidos mais relaxados para acreditar, não apenas no que vemos, mas também naquilo que desconhecemos, que não se está enxergando. Uns goles de jazz, samba, ou bossa-nova, talvez nos devolvam sentidos adormecidos. Eu já preferi doses cavalares de rock.

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TP 09 - Já desencarrilhei e louqueei

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