sábado, 17 de janeiro de 2015

Histórias de avoinha: As Casa do Comércio na Villa 12


Ensaio 37B – 2ª edição 1ª reimpressão


baitasar


O siô da Hora esbugaiô o qui já tava arregalado: os óio! Mais continuô adiantando os passo, um depois otro, os resto de bosta soltando das bota. Os dois já tava na beirada da botica, os pé e as bosta. O Juca Curadô ia dois passo na retaguarda. Ele recebia as sobra amarelada da luz qui saia da botica, alumiava de frente o siô da Hora e rasgava a escuridão da noite do céu aberto. A razão da noite não é razão própria do dia, mais não se deve ficá escondido e tê medo de andá no céu aberto. É só sabê escutá os argumento dum e dotro. A lamparina não dava permissão pra escuridão entrá, pelo menos, enquanto tivesse pavio e querosene pra municiá a queimação. Pensando bem, tem vez qui as pessoa esquece de pensá; coisa da acomodação de uns, preguiça de otros, e tem os qui aprendeu da chefia não pensá, ensinado qui assim fica mais fácil e oportuno sê feliz, pra sabê obedecê basta um qui otro grunhido pros pensamento se daná; mais pensando bem, qui maravilha o fogo, né, tirô um bandão de gente da escuridão. Otra maravilha foi a feitura do lampião qui levô fogo pra dentro das casa. Aumentô o tamanho do dia qui se enfiô escuridão pra dentro, deu mais tempo de iluminação. A botica com porta aberta brigava de foice com a bocarra escura da noite, o Juca pisava nas bosta solta do siô da Hora

É de lá, é de cá!

Deixa estar, Juca, os dois continuava se chegando, um depois do otro. O rastro das bosta, também. Um resistia explicá; o otro, perguntá. Eles ainda ajustava a vista dos óio com a alumiação do pavio acesso. O rolo da fumaça negra escapando na boca do lampião. O siô da Hora parecia tá na frente dum achado do vento, não encontrava as palavra pra dizê da supresa vista. O Juca tava com feitio de guri desamparado recém descoberto na travessura. Inté voltô – ou tentô voltá – no rumo da falação de dantes

Sinhô Afonso, os quilombos estão muitas léguas de distância, o casêro da cama da siá Casta não se pertubô nem deixô afroxá as vista investigativa, ele tinha guardado as resposta de mais provocação qui gostava de usá

Não dá pra vosmecê esquecer dos cuidados com os negros na escuridão, já pensou ficar frente com frente e o tição na virada da esquina, ergueu os ombro e fez uma careta de calafrio, eles ficam disfarçados como o camaleão muda do verde para o vermelho. Esses filhos-da-puta são feitos de carne e osso, coisa que se compara fácil com algumas chibatadas, não se engane, eles não têm piedade. O nariz do siô da Hora continuô pra frente, o calafrio ficô mais intenso e mais sinistro, pareceu ofegante, afinô as vista e espichô o nariz, queria sentí no faro qui as vista não tava enganada, o que é isto, Juca, perguntô com os óio quase parado, encarando de soslaio o curadô medicinal, ocê ficô louco.

Os olhos que sabem olhar veem o que é pra ser visto, se o sinhô sabe olhá, então tá vendo o que tá vendo, é simples assim, o sinhô precisa acreditar no que vê, as pegada como as bota parô, não ia nem voltava, os dois sentia qui não se gostava

O mundo é esse aqui: duro e sem poesia. Eu sei o que estou vendo, mas não ouso entender nem perguntar a utilidade desse armário agourento, se vosmecê me permite assim dizer, sente vontade de sentá no chão feito o guri qui não deixô de sê e a saudade reinventa... vai ficá encarando aquela parede funerária inté ela se devorá.

O boticarista exclama qui não é o fim do mundo, afinal, tem comodidade, vantagem de pronto uso e dá boniteza, a voz escapulia medrosa, o pitoresco também tem beleza, não precisa ser ridicularizado com blasfêmias a fim de que permaneça enjaulado.

Isso aqui é uma paisagem triste e sombria, uma decoração apavorante das capelas de ossos.

Talvez, mas não menos belas...

Boniteza não, Juca! Isso é um caixão de defunto!

Só vai sê de defunto quando tiver um defunto dentro.

Juca! Isso nem é original!

Eu sei, e daí? O que tem de original na morte?

Ocê cura, Juca... não enterra!

Enterrar é um jeito de curar, o siô da Hora virô as vista nele e cravô um grito de espanto, Juca!


Eu sei... eu sei, curar é curar e enterrar é enterrar, fez silêncio, tava cansado das palavra com reza e aconselhamento, conhecia o uso das planta, parte a parte, fôia, raiz, cipó, fruta, caroço, semente, usava pra aliviá ou curá os adoentado, mais não sabia se desculpá com as pessoa qui curava pra continuá enterrada viva, ele enterrava também, o caixão foi um presente.

Um presente muito estranho, ocê não concorda?

Não foi bem um presente, mas o pagamento do sepulteiro, parô as explicação, não podia dizê qui tratô da esposa do embalsamadô da Villa, nem confessá qui lhe tirô o filho, qui ela juramentô de morte, não ia tê mesmo qui fosse preciso morrê pra não tê. Podia conversá sobre algumas cura, otras não, nunca sobre os curado

Coveiro mão de vaca!

O siô da Hora espichô mais um pouco as vista sobre o ataúde pra uso futuro, o armário tava colocado em pé, atrás do balcão; as três alça de cobre de cada lado parecia em permanente alerta, se ocê morre vai fazer bonito deitado nesse caixão. Queria lhe aconselhar vender, até mesmo dar ou queimar esse arcabouço de lenha, mas vejo que ocê já tem decisão tomada.

Até faço gosto do costume: já tenho guardado o meu caixão de defunto. Até fiz uso de cama nas noites de frio. Na primeira noite fiquei desconfiado, mas depois do uso a desconfiança enfraqueceu. Não tem muito conforto, mas tem utilidade.

Utilidade? O serviço de uso do caixão é carregar o defunto até restar só poeira.

Pois, numa noite de muito frio tava congelando, um frio de rachar até o vaqueano mais encorpado na cachaça, achei bobagem não usá antes o que com certeza vou usar depois, entrei no caixão e puxei a tampa da padiola funesta. Fechei meu caixote, o siô da Hora fez uma careta de pavô e com a ponta dos dedo o siná da cruz

Cruz e credo, Deus me livre!

Bobagem, sinhô Afonso, até emprestá já emprestei, o boticarista parecia tá mais divertido qui assombrado, assim, quando tiver uso comigo não vai tá imaculado. Uma mortalha casta e asseada combina com vida morta. Um ataúde amorfo e sem histórias pra contar faz parecer que a vida não foi vivida.

Ocê é maluco, Juca!

O boticarista saiu das costa do investigadô curioso, caminhô inté o balcão e ficô na posição de atendente, pode ser ou pode não ser, mas depois da vida morta vou tá sozinho numa terra deserta, nada nem ninguém. Enfim, sozinho. Invisível. Com sorte, posso virar um anjo, ganhar asas para voar como as gaivotas, até a perfeição. Sozinho, invisível e perfeito.

A madeira é dura, um casulo avesso que não vai deixar a lagarta virar borboleta.

Pode ser que a madeira me impeça de voar, então, nesse caso, depois da vida acabada, vou continuar apagado. Não terei asas como as gaivotas. Sozinho, invisível e medíocre.

Não crês na morte.

Ao contrário, não creio na vida que levamos. Não acreditamos que a morte é medíocre, por isso, sucumbimos em uma vida medíocre, com esperanças sem novidades, repletas de sacrifícios e avisos para deixarmos tudo como é: meia-tigela, o melhor é depois da morte.

Passe adiante esse caixão dos mortos.

Não, vou ficar, foi a primeira vez qui o palavreado do boticarista ergueu a voz pra cima das vista, aconselhamento é tarefa dos amigo, e amigo ele não tinha atrás nem à frente do balcão, vou emprestar em caso de muita necessidade. Foi o caso do Melão, quando ele se foi não tinha onde cair morto. Tristeza de morte quando o morto não tem acomodação. Emprestei. Fiquei comovido, é para isso que servem as pessoas que ficam vivas. Foi a decisão certa. Os amigos do Melão queriam passar juntos uma última noite. Levaram o defunto todo arrumadinho, ele parecia feliz com aquele sorriso mortuário. Não conseguiram tirar o sorriso da máscara do falecido. O Zeca Xuxu deu uns tapas, nada muito forte, mas a simpatia do riso continuava onde tava. Parecia indecente o morto tá mais animado, caçoando das lágrimas. Desistiram. Acharam melhor rirem juntos. Passaram as mãos no ataúde e levaram o Treco Melão pro Beco do Fanha, sem alarme ou desordem. A hora da verdade. Estavam ocupados em serem felizes. Foi uma noite de farra. O Santamaria foi o primeiro que deitô com o Melão, derramava as lágrimas do riso por cima da alegria do falecido. Beberam de caírem mortos. Foi preciso esperar os vivos acordarem, só assim pra tirar os farristas de cima do morto. Foi bonito. Depois da festança, cada um dos festeiros ajudou enrolar o morto nuns trapos de casaco e calça, depois desceram o Melão no buraco forrado com as folhas do semanário noticioso da Villa, cobriram o defunto com a terra seca. O Melão voltou ao pó da terra. O meu ataúde voltou sem um arranhão, com ranço de água-benta e com os ecos do coro embriagado repetindo, nada acontecerá, nada mudará, outro morto pra engravidar a terra!

Vosmecê é demente!

Pode ser ou pode nãos ser, mas enquanto a vida não morre é bão fazer uso bom. O morto é tão pesado que não desliza, apenas cai dentro da terra. A morte não muda, continua pesada e fria, sem barcos e sem vela... sem horizontes. Depois do caso do Melão, copiei a ideia num anúncio e fui grudando nas árvores do campo-santo: Faz-se empréstimo de caixão! Não precisa comprovar sua pobreza, basta ser pobre – tá na cara – e não ter onde cair morto.

E daí?

E daí, nada. Os anúncios desapareciam no dia seguinte. Num dia, sim; no outro, não. Colocava num dia; no seguinte, sumia. Tomei decisão de vigiar os avisos. Levei o chimarrão, um facão sem fio e ponta que não tinha nenhuma vontade de ser usado, nunca se sabe o propósito da arma até ela ser empunhada, por isso, o último adereço que carreguei comigo foi uma cruz, coloquei a arma no pescoço, pendurada bem à vista de qualquer morto ou vivo.

Descobriu alguma coisa, o siô da Hora não separava ninharia e relevância da simples curiosice, vagava e farejava qualqué coisa, perguntava mais qui respondia

Descobri.

Então, fala! Ocê continua o jeito de menino, faz suspense das coisas que conta e desconta, o boticarista gostava de contá suas aventura, inté facilitava dizê um qui otro segredo; sabia quando contá ou negá contá. Sorriu, não ia mudá nada não contá ou contá, conta logo, Juca! O boticarista oiô o amigo da boca pra fora, qui já foi amigo firme e seguro, se perguntô quando um virô otro, não sabia dizê, mais sabia qui os dois tinha deixado escapá as intimidade do dia-a-dia, mistura de medo e bravura, boniteza e feiura. Eles não tinha feito esforço pra acabá o gosto de sê amigo, apenas ficô de lado o regadô verde do entusiasmo. O jardim secô. Tudo seca e morre. A terra é amorosa, lúcida, paciente e insaciável

Foi o sepulteiro...

O siô da Hora abriu e fechô a boca, esse ele não imaginô ou cogitô, ocê deve estar brincando.

Não tô brincando, não.

Por quê, ia lá o boticarista sabê respondê sobre a confusão de pensamento do covêro, podia arriscá dizê qualqué coisa, talvez foi maió a vontade de tê qui o descaso de não tê, mais arriscô uma opinião penada

Concorrência é o meu palpite.

Nem o coveiro deixa de querer se dar bem, com certeza não seria esse merda que iria ter vontade de resistir, se a água da verdade fosse servida na Villa teria um gosto dessaboroso, fez um suspiro grande antes de continuá, a gula de se dar bem não tem solução à vista, os qui suspirava e reclamava era os mesmo qui não sabia dizê onde foi qui lesô nem quando, mais sabia qui os preto com o seu sofrimento fez a riqueza dos villêro, quem tinha trapaceado os preto rastejava como as cobra

Até pode ser, o veneno de uma e otra é mais resistente e mortiço, o boticarista sabia do qui falava, entendia dos veneno, aquele qui cura-tudo precisa conhecê o qui mata-tudo

E o que vosmecê fez, o curadô não respondeu com afobação, saiu detrás do balcão, nenhum retrato nas parede nem cô de pintura, não era pouco suja ou pouco limpa, não havia nenhuma minúcia sem importância desarrumada, atravessô a botica e voltô

Nada.

O examinadô fez cara de desacreditado, esse nada faz, nada fez, não é feitio do meu amigo boticarista, Juca...

Acertamos que empréstimo do caixão só para os enforcados na Villa. Ninguém mais, além do meu próprio uso, ia ter serventia do ataúde.

Os enforcados, Juca? Eles são criminosos!

A culpa não é minha, estendeu o braço e agarrô a lamparina, ofereceu mais pavio pro fogo, aclariô mais a botica, é a lei, sinhô Afonso, ela precisa ter cumprimento.

E daí, Juca, isso não tem importância. Essa gente só precisa de um buraco no chão. O mais importante é o hábito de acharmos que cumprimos as leis; na verdade, a Villa dá corda e caixão para o enforcado, só precisamos achar bom que não somos um dos assassinos nem mais um da negrada. Merecem a forca, a corda no pescoço e o buraco com os vermes da terra, mas no seu caso acertado com o coveiro, a corda segue no pescoço do preto e o caixão da Villa não sai da loja do coveiro. O ataúde continua imaculado, pronto pra sê vendido depois de comprado com o dinheiro da Villa. O enforcado não fica sem um pacote depois do pescoço quebrado, ele usa emprestado o seu caixão no desfile da árvore dos enforcados até o buraco. Então, se bem entendi, o coveiro ganha duas vezes em cada enforcamento. E ocê ganha o quê, Juca?

O boticarista fez cara de aborrecimento, ele não ganhava nem perdia com essa tramoia do covêro. Sentiu o apetite carnicêro de Deus Justicêro no amigo faz-de-conta, esperô qui o otro tirasse aquela máscara, não ia tirá, desistiu, sinhô Afonso, essas coisas acontecem todos os dias, a inocência é pesada demais pra dois comoventes tartufos

Ô de lá, ô de cá! Siô Juca Curador!

Sou eu mesmo!

O chamado na porta da botica fez pará aquela incomodação do confessionário

Siô Juca Curador das Dores?

O boticarista oiô o siô da Hora com pedido de desculpa, com licença, sinhô Afonso...

Fique na sua vontade.

Sou eu mesmo! Ô de lá!


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