Ensaio 38B – 2ª edição 1ª reimpressão
baitasar
O que queres dele, negro?
A pergunta dita do feitio qui foi mais pareceu uma ordem provocadora premeditada, o desejo desamarrado de mostrá irritação, desinteresse e cautela, sem afroxá a repelência. Naquela hora, não era mais acertado adoentá, ó desconhecido e assustador negro, afaste-se, afaste-se, essas horas são de dedicação aos amigos, e faz-de-conta que é amigo, pensô o boticarista, no seu lado do balcão, o siô da Hora continuô a falação sem sabê ou dá importância pros pensamento do dono da livraria dos remédios, essa é hora de prosa barata, sem maior utilidade que a fofoca, o boticarista quase abriu a boca, mais não, ficô no quase, achô meió ficá com as ideia guardada, tem uns e outros que mais gostam de boato e bisbilhotice, gente com jeitinho de príncipe e fada, felizes para sempre, sem possibilidades de pontos de vista ou histórias desiguais. Ficô em silêncio, não quis se metê com a falação do mesmo siô descomedido e ilibado, e se ocê não sabe, negrinho, o teu lugar não é aqui, depois do anoitecer tua roda de amigos são os acorrentados, ele parô pra respirá, colocô as duas vista no Juca, antes de continuá desembestado, é muito atrevimento desse negro estar fora das correntes, ocê negro fique atento, vou lhe falar numa só vez e na língua que ocê entende, é bom aprender, desde logo: nêgo bão, qui não precisa corretivo, é aquele qui conhece o lugá de ficá!
O preto não fez qui escutô nem qui não escutô, não deu importância nem revirô sua atenção, continuô voltado pro otro com guarda-pó esbranquiçado, o siô é quem me disseram que é? O Juca Curador das Dores?
É muito atrevimento, o nariz do siô da Hora afogueô, esse negrinho perguntando, aqui e ali, por si, Juca, falava e espiava a escuridão da rua e do preto, é assim que o chamam, respondeu sem esperá pelo boticarista. Não reconhecia o preto parado na estrada, a frente escura dele diante da porta de entrada, aliás, como sempre digo, à noite todo gato é pardo e todo negro é bandido, e esse negro vem a mando de quem?
O malvisto deu um passo na frente, talvez pra oiá meió ou se mostrá mais bem colocado, seja o qui fô, deu pra vê qui ele tava com a cabeça raspada e pintada, as ranhura qui tinha marcava pra sempre sua pele. O boticarista afroxô o zelo e a cautela, fez mais uma miração atentada. O preto parecia recebê mais cuidado qui a maió parte dos preto da Villa, venho cumprindo ordens da siá Bella Morana, falava com desembaraço e boniteza, coisa pouco comum; e sem descaramento, pediu que eu fizesse correria para alcançar a botica de vosmecê com as portas abertas.
Em que posso ser útil?
O preto qui leva e busca os recado oiô os lado, firmô hesitante as vista no siô da Hora, depois voltô sua atenção no Juca, siá Bella Morana pediu que nossa conversa fosse reservada, parô o aviso de esclarecimento. Fez silêncio. Não queria qui a freguesia na botica ficasse ofendida com aquele tanto de atrevimento, mais o pedido da siá Bella precisô sê feito e assim foi dito
Negrinho, o preto oiô enviesado pro lado, não tava assustado nem com assombro, o branco é apurado com a educação primorosa qui diz tê, mais escolhe a dedo com quem é educado ou descontrolado; de resto, é a regra humana da autoridade e controle dos manso, desvalido ou resistente, jamais falá com frouxidão, e assim foi, sem justeza ou mansidão, qui o siô da Hora continuô resmungando, o sinhô Juca Boticarista já está de fechamento marcado, é falar agora ou voltar amanhã, falô mais de birra qui preocupação com o conforto do curadô das erva e chá, o amigo urso qui tava de visita parecia não fazê causo da necessidade do atendimento da adoentada.
O preto agitô as mão e agigantô o apelo das palavra, Deus e cruz! Não! A siá passou o dia se borrando nos vestidos, nos assentos, na cama e no chão. Eu passei o dia como um soldado de prontidão no quartel, o cabungo nas mãos. No primeiro sinal de ataque do inimigo, corria na direção da escaramuça e colocava o cabungo no seu lugar de uso. Cruz e Deus, siô Juca das Dores, não se vá sem atender siá Bella!
A tarefa do boticarista é se ocupá das doença, a fim de adiá as desgraça qui vai acontecê mais antes ou depois; seja da vontade ou desgosto do adoentado, seja da vez qui os capricho de Deus é maió qui as benzedura ou rezadêra, é quando não dá mais jeito, o destino se lasca, perde a resistência e desmarca presença da vida, assume otro querê dizê, fica disfarçado em pintura. O Juca gosta da sua importância, apesá dos gemido, zumbido e a calamidade dos sofrimento qui o atormenta na caçada da morte. Gosta de serví pra alguma coisa nem qui seja de conforto pro desenganado. Ele oiô as horas do escurecimento do dia, não fez cara nenhuma, eu sei que é praxe o amigo não ter hora só sua, mas caminhar na escuridão com um guia escuro não será a melhor decisão de vosmecê, o siô da Hora parecia tê mais preocupação com o preto qui cuidado com a saúde da siá do preto, achô meió dá o aviso do perigo, Juca, meu bom amigo, negro à noite não é a melhor companhia. E me diga, fez pausa antes de perguntá na voz baixa, mais qui sabia chegá nos ouvido qui tava ali na botica, o que esse daí esfrega na casca para ficar tão tição? O disfarce perfeito.
Não merecia tê resposta, não teve, vou ver a sua sinhá...
Siá Bella Morana, o preto abriu um sorriso qui tinha todos os dente da boca, fez a declaração do esforço atendido, muito obrigado!
Não me agradeças, isso não é nada.
Mas então o que é isso?
O boticarista colocô as vista no preto e se explicô, não parecia tê pretensão de sê mais coisa qui era, não é nada, é o meu jeito... uma combinação de comprometimento e compaixão.
É muito nada, se atreveu discordá.
Deixe como tá, sua sinhá que eu não conheço precisa de ajuda. Vou ajudá-la, simples assim.
O siô da Hora subiu e desceu os ombro. O aviso tava dado, ocê se decidiu como um homem de bem livre, espero que o amigo não volte na carreta dos mortos, agora só me resta a contemplação egoísta e indiferente, pro diabo ocê e esse seu novo brinquedinho tição, fez a reverência da despedida costumêra pro boticarista, ocê logo será morto pelo tição, não pelo acaso da má sorte ou vontade de Deus, vá para o inferno! Caminhô dois ou três passo. Parô. Voltô. Já bem pertinho do Juca viu uma mosca pousada no seu ombro, tacô uma mão-cheia qui esmagô a mosca-morta, não quero carregar a culpa de mais uma morte nem me acusar de deixar o amigo sozinho com o tição, o aviso foi dado, a recomendação feita, não diga que não lhe avisei nem vire uma assombração filha-da-puta, bateu os calcanhá, cuspiu nas mão e esfregô a limpeza na sujêra da otra. Virô as bota na direção da saída. Na porta da entrada, esperô inté o preto dá dois passo atrás e foi saindo, levô as bosta qui não desapegava, até mais, Juca. E fique na sua vontade, não se preocupe com os meus cuidados.
Até mais, sinhô Afonso.
Faça bons uso dos seus conhecimentos para ajudar no alívio dessa tal sinhá Bella. Depois me diga da sua beleza, apesar dos pesares, e me diga se valeu a pena o risco.
Vai dar tudo certo.
Pelo bem ou pelo mal.
Por certo, sinhô Afonso. Agradeço os cuidados do amigo, continuamos nossa prosa em outra ocasião.
A vida e a morte hão de seguir o seu curso.
Uma e outra sempre seguem... obrigado pela visita.
Depois qui oiô demorado e passô pelo preto parado na estrada, gritô sem fazê meia-volta nem volteá as vista, não me agradeças, esse pelo menos não usa coleira, e se foi saindo noite adentro, o amigo passe bem, a escuridão há de receber vosmecê com os braço estendido.
O amigo também!
Mas ando por aí sozinho do que mal acompanhado! Amanhã me trate bem o Josino.
O amigo, também...
A visitação acabô. O boticarista ficô com as suas tarefa, ocê aí... entre, o preto deu dois passo e parô na estrada, o que foi?
Não teve resposta. Oiava o preto qui parô na sua porta, nem saia nem entrava. Admirava a claridade da sua cô, a beleza da cabeça raspada, a mão quase se mexeu pra sentí a lisura do côro desbastado, se conteve, parecia um preto azulado, não tinha muitos desse feitio na Villa, havia as ranhura qui marcava o rosto, não sabia se lhe dava feiura ou belezura, mudou de ideia?
Aquele qui veio buscá socorro sem faca na mão, sem colêra de pescoço, não era de caçoá o santo de guarda nem entrá sem sabê onde pisava, o que tem lá dentro, perguntô e apontô pro caixão.
O Juca sorriu a solta o riso qui tava guardado, desde muito, naquele final de dia, rapaz... a morte não nos salvará apesar dos chás, compressas e rezas, a solidão da morte irá nos batizar com escoriações, pedaços de nós boiando diante da portaria invisível e solitária do magnífico deserto, o morto era feliz e nunca saberá, viveu fugindo da morte, ei-la no seu caixão de madeira, o preto se riu, no meio do riso lembrô qui fazia um tempo danado qui não se ria, só tinha gosto de chorá, gostô de sentí o gosto do riso, inté se animô de perguntá
É preciso muito pão branco para essa viagem desconhecida, arredia e vazia?
Não é uma viagem, rapaz. Não haverá mais nada. Nem fome. Nem carne. Nem amor. Nem árvores. Os ventos estarão parados. Nem afogamentos. Nem sede. Água seca. Não haverá céu. Nem fogo. Nem escravo. Nem prata. Um patético e medíocre fim se ocê não levar asas. Aproveite o seu dia, ele é a sua vida.
Parô o riso. As asas não conseguia livrá das corrente o seu povo, o seu canto de dô. Só tinha tristeza escorrendo das vista, falar em voadura é mais fácil quando não se é preto, entrô na botica com as asa quebrada, nunca perdeu as asa, andô inté o caixão carregando as marca da colêra, fechô as vista e levô a mão inté a cabeça, salve os de lá, salve os de cá, confio em vós, meu Pai Oxalá, salve!
Virô as costa pro caixão e aplicô as vista no boticarista, frente na frente, a siá Bella precisa dos seus serviços e habilidades.
O socorrista não precisô pensá pra respondê, não conserto adoentado nem tiro algum perigo inspirado por ganância ou pela honra, é esse meu instinto imbecil de não querer que ninguém morra mal. A teimosia da minha vida: a boa hora com prudência, sem zanga ou loucura... e no caso da sua sinhá, o que lhe sai das entranhas tem cor e cheiro? Ocê lembra?
O otro fez cara de desprazê, como se pudesse afugentá a lembrança do dia, não tem como esquecer, parece que estou carregando tudo comigo, um monte de esterco que encheu dois baldes. Até a metade do dia saiu muita bosta escura, cheirume acatingado, podre na feição, desengraçado com as belezas da siá. Depois, foi aclarando e perdeu a força do cheiro ruim, virou água suja abaixo... água choca. O cheirume acatingado continua saindo com as lufadas de vento da rabada. A siá não está comendo. Acha que tem fome, mas despeja de volta o que come. Nem resolve dar banho.
Espere, rapaz.
O Juca estreitô o preto inté ele se acalmá. Subiu e desceu as vista, nunca tinha visto preto calçado com bota tão elegante, pensô em perguntá se tinha roubado, meió não, ocê tem nome?
Camará.
Só assim? Camará?
Camará Canjiquinha, o preto tava meio vestido de calça, camisa e bota, qui muito branco metido à besta. O cabelo cortado e raspado revelava uma trilha feita com navalha, bem na quina direita da cabeça
Então, Camará Canjiquinha, parece que sua sinhá tá com mal de bicho, mas pra ter certeza é preciso olhar de perto e ficar atento aos cheiros.
E se faz o quê? Estou lhe dizendo que a sinhá não é a mesma.
O boticarista foi inté o ataúde recostado calmamente na parede, Camará Canjiquinha, me ajude. O ataúde tava fechado, como tivesse na obrigação de escorá o defunto em pé, segure a porta do meu armário, o Camará arregalô os óio, não carece ter medo, se aproxime. O mundo tá dividido em duas partes: o mundo dos vivos e o mundo dos mortos. As crianças separam assim, as fadas num lado, as bruxas e o bicho-papão do outro, e ocê no que acredita, o Camará recolheu as vista e aproximô as mão da tampa, recolheu os pensamento antes de respondê a pergunta do boticarista
Tem coisa que acontece e só tem explicação nas rezas, meisinhas, mandigas e defumações. Não é mágica, acredito que é caridade para alívio das dores. O boticarista lhe revirô as costa, se adiantô inté o ataúde, procurava sua caderneta de anotação com as receita das erva qui ataca soltura demasiada de bosta mais água choca. Escutava e não escutava o Camará. Soltô um grito de satisfação quando pegô um maço de papel véio, tudo enrolado feito um canudo e amarrado com uma fita amarela
Camará Canjiquinha aproxime o lume da lamparina, desatô o nó e destravô as diabrura escrita. Passava o dedo fura-bolo nas escritura, a unha cortada rente da carne alisava os escrito. Gostava de exibí a limpeza limpa e escovada das unha, pronto, já avivei as lembranças!
Só isso?
Só...
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