sábado, 30 de abril de 2016

Dom Casmurro: Os Vermes

Machado de Assis

Dom Casmurro




CAPÍTULO XVII
OS VERMES




 "Ele fere e cura!". Quando, mais tarde, vim a saber que a lança de Aquiles também curou uma ferida que fez, tive tais ou quais veleidades de escrever uma dissertação a este propósito. Cheguei a pegar em livros velhos, livros mortos, livros enterrados, a abri-los, a compará-los, catando o texto e o sentido, para achar a origem comum do oráculo pagão e do pensamento israelita. Catei os próprios vermes dos livros, para que me dissessem o que havia nos textos roídos por eles.

 — Meu senhor, respondeu-me um longo verme gordo, nós não sabemos absolutamente nada dos textos que roemos, nem escolhemos o que roemos, nem amamos ou detestamos o que roemos; nós roemos.

 Não lhe arranquei mais nada. Os outros todos, como se houvessem passado palavra, repetiam a mesma cantilena. Talvez esse discreto silêncio sobre os textos roídos fosse ainda um modo de roer o roído.






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Texto de referência:

Obras Completas de Machado de Assis, vol. I,
Nova Aguilar, Rio de Janeiro, 1994.

Publicado originalmente pela Editora Garnier, Rio de Janeiro, 1899.

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Leia também:

Dom Casmurro: Capítulo XVI - O Administrador Interino

sexta-feira, 29 de abril de 2016

Memórias Póstumas de Brás Cubas: Um Salto

Machado de Assis


Memórias Póstumas de Brás Cubas








CAPÍTULO XIII / UM SALTO







Unamos agora os pés e demos um salto por cima da escola, a enfadonha escola, onde aprendi a ler, escrever, contar, dar cacholetas, apanhá-las, e ir fazer diabruras, ora nos morros, ora nas praias, onde quer que fosse propício a ociosos. 

Tinha amarguras esse tempo; tinha os ralhos, os castigos, as lições árduas e longas, e pouco mais, muito pouco e muito leve. Só era pesada, a palmatória, e ainda assim... Ó palmatória, terror dos meus dias pueris, tu que foste o compelle intrare com que um velho mestre, ossudo e calvo, me incutiu no cérebro o alfabeto, a prosódia, a sintaxe, e o mais que ele sabia, benta palmatória, tão praguejada dos modernos, quem me dera ter ficado sob o teu jugo, com a minha alma imberbe, as minhas ignorâncias, e o meu espadim, aquele espadim de 1814, tão superior à espada de Napoleão! Que querias tu, afinal, meu velho mestre de primeiras letras? Lição de cor e compostura na aula; nada mais, nada menos do que quer a vida, que é das últimas letras; com a diferença que tu, se me metias medo, nunca me meteste zanga. Vejo-te ainda agora entrar na sala, com as tuas chinelas de couro branco, capote, lenço na mão, calva à mostra, barba rapada; vejo-te sentar, bufar, grunhir, absorver uma pitada inicial, e chamar-nos depois à lição. E fizeste isto durante vinte e três anos, calado, obscuro, pontual, metido numa casinha da Rua do Piolho, sem enfadar o mundo com a tua mediocridade, até que um dia deste o grande mergulho nas trevas, e ninguém te chorou, salvo um preto velho, — ninguém, nem eu, que te devo os rudimentos da escrita. 

Chamava-se Ludgero o mestre; quero escrever-lhe o nome todo nesta página: Ludgero Barata,  —  um nome funesto, que servia aos meninos de eterno mote a chufas. Um de nós, o Quincas Borba, esse então era cruel com o pobre homem. Duas, três vezes por semana, havia de lhe deixar na algibeira das calças,  —  umas largas calças de enfiar —, ou na gaveta da mesa, ou ao pé do tinteiro, uma barata morta. Se ele a encontrava ainda nas horas da aula, dava um pulo, circulava os olhos chamejantes, dizia-nos os últimos nomes: éramos sevandijas, capadócios, malcriados, moleques.  —  Uns tremiam, outros rosnavam; o Quincas Borba, porém, deixava-se estar quieto, com os olhos espetados no ar. 

Uma flor, o Quincas Borba. Nunca em minha infância, nunca em toda a minha vida, achei um menino mais gracioso, inventivo e travesso. Era a flor, e não já da escola, senão de toda a cidade. A mãe, viúva, com alguma coisa de seu, adorava o filho e trazia-o amimado, asseado, enfeitado, com um vistoso pajem atrás, um pajem que nos deixava gazear a escola, ir caçar ninhos de pássaros, ou perseguir lagartixas nos morros do Livramento e da Conceição, ou simplesmente arruar, à toa, como dois peraltas sem emprego. E de imperador! Era um gosto ver o Quincas Borba fazer de imperador nas festas do Espírito Santo. De resto, nos nossos jogos pueris, ele escolhia sempre um papel de rei, ministro, general, uma supremacia, qualquer que fosse. Tinha garbo o traquinas, e gravidade, certa magnificência nas atitudes, nos meneios. Quem diria que... Suspendamos a pena; não adiantemos os sucessos. Vamos de um salto a 1822, data da nossa independência política, e do meu primeiro cativeiro pessoal.




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Texto-fonte: 
Obra Completa, Machado de Assis, 
Rio de Janeiro: Editora Nova Aguilar, 1994. 


Publicado originalmente em folhetins, a partir de março de 1880, na Revista Brasileira.


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Leia também:

Memórias Póstumas de Brás Cubas: Capítulo XII / Um Episódio de 1814


Memórias Póstumas de Brás Cubas: Capítulo XIV / O Primeiro Beijo

Conto de Outono

25 Anos Depois



Autoria Desconhecida... contribuição da professora Maria Eulália via WhatsApp para o baitasar



por causa da sua estupidez e burrice, a professora estava sempre gritando com Torresmo

Você me deixa louca, Torresmo! Você não tem jeito!

um dia, a mãe do Torresmo foi até a escola para verificar como seu filho estava indo. a professora disse honestamente para a mãe que seu filho era um desastre, tinha notas muito baixas e que ela nunca viu um menino assim que não gosta de estudar em toda sua vida profissional ensinando crianças

a mãe ficou chocada com aquela sincera conversa e tirou seu filho da escola. saíram do interior para a capital são paulo

25 anos depois, esta mesma professora foi diagnosticada com uma grave enfermidade no coração quase incurável. todos os médicos da sua região indicaram uma cirurgia. ela necessitava uma urgente cirurgia no coração, mas que este tipo de operação somente um médico em são paulo era capaz de fazer. deixada sem otimismo, a professora decidiu tentar esta última esperança

ela foi para são paulo e num hospital de lá realizou com sucesso a tal operação

quando ela abriu os olhos, voltando da cirurgia, ela viu um belo e jovem médico à sua frente, sorrindo para ela. ela queria agradecer a ele, mas não pode falar. sua face ficou azul, ela levantou sua mão, tentou gritar sem conseguir e rapidamente ela morreu. o médico ficou chocado, tentando entender o que aconteceu de errado

então, ele olhou para o lado e viu que o maldito faxineiro Torresmo, que trabalhava no hospital, desligou os equipamentos de suporte da tomada do quarto, para ligar seu aspirador de pó e limpar o corredor







estava pensando que o Torresmo tinha virado médico, né? não ensina não, pra ver

quarta-feira, 27 de abril de 2016

6. Do Livro do Desassossego - Bernardo Soares

Fernando Pessoa



6. Do Livro do Desassossego - Bernardo Soares 




63. 


"Cada um tem a sua vaidade, e a vaidade de cada um é o seu esquecimento de que há outros com alma igual. A minha vaidade são algumas páginas, uns trechos, certas dúvidas... Releio?Menti! Não ouso reler. Não posso reler. De que me serve reler? O que está ali é outro. Já não compreendo nada..." 

* * * 


65. 

"Ah, mas como eu desejaria lançar ao menos numa alma alguma coisa de veneno, de desassossego e de inquietação. Isso consolar-me-ia um pouco da nulidade de acção em que vivo. Perverter seria o fim da minha vida. Mas vibra alguma alma com as minhas palavras? Ouve-as alguém que não só eu? 

* * * 


66. 

"Dói-me qualquer sentimento que desconheço; falta-me qualquer argumento não sei sobre o quê; não tenho vontade nos nervos. Estou triste abaixo da consciência. E escrevo estas linhas, realmente mal-notadas, não para dizer isto, nem para dizer qualquer coisa, mas para dar um trabalho à minha desatenção. Vou enchendo lentamente, a traços moles de lápis rombo - que não tenho sentimentalidade para aparar - , o papel branco de embrulho de sanduíches, que me forneceram no café, porque eu não precisava de melhor e qualquer servia, desde que fosse branco. E dou-me por satisfeito." 

* * * 


68. 

"A consciência da inconsciência da vida é o mais antigo imposto à inteligência." 

* * * 


71. 

"Aquilo que, creio, produz em mim o sentimento profundo, em que vivo, de incongruência com os outros, é que a maioria pensa com a sensibilidade, e eu sinto com o pensamento. Para o homem vulgar, sentir é viver e pensar é saber viver. Para mim, pensar é viver e sentir não é mais que o alimento de pensar." 

* * * 


75. 

"Correr riscos reais, além de me apavorar, não é por medo que eu sinta excessivamente - perturba-me a perfeita atenção às minhas sensações, o que me incomoda e despersonaliza. Nunca vou para onde há risco. Tenho medo a tédio dos perigos." 

* * * 


79. 

"Leve, como uma coisa que começasse, a maresia da brisa pairou sobre o Tejo e espalhou-se sujamente pelos princípios da Baixa. Nauseava frescamente, num torpor frio de mar morto. Senti a vida no estômago, e o olfacto tornou-se-me uma coisa por detrás dos olhos. Altas, pousavam em nada nuvens ralas, rolos, num cinzento a desmoronar-se para branco falso. A atmosfera era de uma ameaça de céu cobarde, como a de uma trovoada inaudível, feita de ar somente. Havia estagnação no próprio voo das gaivotas; pareciam coisas mais leves que o ar, deixadas nele por alguém. Nada abafava. A tarde caía num desassossego nosso; o ar refrescava intermitentemente. Pobres das esperanças que tenho tido, saídas da vida que tenho tido de ter! São como esta hora e este ar, névoas sem névoa, alinhavos rotos de tormenta falsa. Tenho vontade de gritar, para acabar com a paisagem e a meditação. Mas há maresia no meu propósito, e a baixa-mar em mim deixou descoberto o negrume lodoso que está ali fora e não vejo senão pelo cheiro. Tanta inconsequência em querer bastar-me! Tanta consciência sarcástica das sensações supostas! Tanto enredo da alma com as sensações, dos pensamentos com o ar e o rio, para dizer que me dói a vida no olfacto e na consciência, para não saber dizer, como na frase simples e ampla do livro de Job, "Minha alma está cansada de minha vida!"




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Do Livro do Desassossego - Bernardo Soares
Bernardo Soares (heterônimo de Fernando Pessoa)
Fonte: http://www.cfh.ufsc.br/~magno/


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Leia também:



5. Do Livro do Desassossego - Bernardo Soares: 46. "Releio passivamente, recebendo o que sinto como uma inspiração e um livramento


7. Do Livro do Desassossego - Bernardo Soares : Tudo me cansa, mesmo o que não me cansa.

terça-feira, 26 de abril de 2016

Rayuela - Julio Cortázar: Capítulo 18

Capítulo 18


    No ganaba nada con preguntarse qué hacía allí a esa hora y con esa gente, los queridos amigos tan desconocidos ayer y mañana, la gente que no era más que una nimia incidencia en el lugar y en el momento. Babs, Ronald, Ossip, Jelly Roll, Akhenatón: ¿qué diferencia? Las mismas sombras para las mismas velas verdes. La sbornia en su momento más alto. Vodka dudoso, horriblemente fuerte.

    Si hubiera sido posible pensar una extrapolación de todo eso, entender el Club, entender Cold Wagon Blues, entender el amor de la Maga, entender cada piolincito saliendo de las cosas y llegando hasta sus dedos, cada títere o cada titiritero, como una epifanía; entenderlos, no como símbolos de otra realidad quizá inalcanzable, pero sí como potenciadores (qué lenguaje, qué impudor), como exactamente líneas de fuga para una carrera a la que hubiera tenido que lanzarse en ese momento mismo, despegándose de la piel esquimal que era maravillosamente tibia y casi perfumada y tan esquimal que daba miedo, salir al rellano, bajar, bajar solo, salir a la calle, salir solo, empezar a caminar, caminar solo, hasta la esquina, la esquina sola, el café de Max, Max solo, el farol de la rue de Bellechasse donde... donde solo. Y quizá a partir de ese momento.

    Pero todo en un plano me-ta-fí-sico. Porque Horacio, las palabras... Es decir que las palabras, para Horacio... (Cuestión ya masticada en muchos momentos de insomnio.) Llevarse de la mano a la Maga, llevársela bajo la lluvia como si fuera el humo del cigarrillo, algo que es parte de uno, bajo la lluvia. Volver a hacer el amor con ella pero un poco por ella, no ya para aprender un desapego demasiado fácil, una renuncia que a lo mejor está encubriendo la inutilidad del esfuerzo, el fantoche que enseña algoritmos en una vaga universidad para perros sabios o hijas de coroneles. Si todo eso, la tapioca de la madrugada empezando a pegarse a la claraboya, la cara tan triste de la Maga mirando a Gregorovius mirando a la Maga mirando a Gregorovius, Struttin' with some barbecue, Babs que lloraba de nuevo para ella, escondida de Ronald que no lloraba pero tenía la cara cubierta de humo pegado, de vodka convertido en una aureola absolutamente hagiográfica, Perico fantasma hispánico subido a un taburete de desdén y adocenada estilística, si todo eso fuera extrapolable, si todo eso no fuera, en el fondo no fuera sino que estuviera ahí para que alguien (cualquiera pero ahora él, porque era el que estaba pensando, era en todo caso el que podía saber con certeza que estaba pensando, ¡eh Cartesius viejo jodido!), para que alguien, de todo eso que estaba ahí, ahincando y mordiendo y sobre todo arrancando no se sabía qué pero arrancando hasta el hueso, de todo eso se saltara a una cigarra de paz, a un grillito de contentamiento, se entrara por una puerta cualquiera a un jardín cualquiera, a un jardín alegórico para los demás, como los mandalas son alegóricos para los demás, y en ese jardín se pudiera cortar una flor y que esa flor fuera la Maga, o Babs, o Wong, pero explicados y explicándolo, restituidos, fuera de sus figuras del Club, devueltos, salidos, asomados, a lo mejor todo eso no era más que una nostalgia del paraíso terrenal, un ideal de pureza, solamente que la pureza venía a ser un producto inevitable de la simplificación, vuela un alfil, vuelan las torres, salta el caballo, caen los peones, y en medio del tablero, inmensos como leones de antracita los reyes quedan flanqueados por lo más limpio y final y puro del ejército, al amanecer se romperán las lanzas fatales, se sabrá la suerte, habrá paz. Pureza como la del coito entre caimanes, no la pureza de oh maría madre mía con los pies sucios; pureza de techo de pizarra con palomas que naturalmente cagan en la cabeza de las señoras frenéticas de cólera y de manojos de rabanitos, pureza de... Horacio, Horacio, por favor.
    Pureza.

    (Basta. Andate. Andá al hotel, date un baño, leé Nuestra Señora de París o Las Lobas de Machecoul, sacate la borrachera. Extrapolación, nada menos.)
    Pureza. Horrible palabra. Puré, y después za. Date un poco cuenta. El jugo que le hubiera sacado Brisset. ¿Por qué estás llorando? ¿Quién llora, che?

    Entender el puré como una epifanía. Damn the language. Entender. No inteligir: entender. Una sospecha de paraíso recobrable: No puede ser que estemos aquí para no poder ser. ¿Brisset? El hombre desciende de las ranas... Blind as a bat, drunk as a butterfly, foutu, royalement foutu devant les portes, que peut'être... (Un pedazo de hielo en la nuca, irse a dormir. Problema: ¿Johnny Dodds o Albert Nicholas?. Dodds, casi seguro. Nota: preguntarle a Ronald.) Un mal verso, aleteando desde la claraboya: "Antes de caer en la nada con el último diástole..." Qué mamúa padre. The doors of perception, by Aldley Huxdous. Get yourself a tiny bit of mescalina, brother, the rest is bliss and diarrhoea. Pero seamos serios (sí, era Johnny Dodds, uno llega a la comprobación por vía indirecta. El baterista no puede ser sino Zutty Singleton, ergo el clarinete es Johnny Dodds, jazzología, ciencia deductiva, facilísima después de las cuatro de la mañana. Desaconsejable para señores y clérigos). Seamos serios, Horacio, antes de enderezarnos muy de a poco y apuntar hacia la calle, preguntémonos con el alma en la punta de la mano (¿la punta de la mano?) En la palma de la lengua, che, o algo así. Toponomía, anatología descriptológica, dos tomos i-lus-tra-dos), preguntémonos si la empresa hay que acometerla desde arriba o desde abajo (pero qué bien, estoy pensando clarito, el vodka las clava como mariposas en el cartón, A es A, a rose is a rose is a rose, April is the cruellest month, cada cosa en su lugar y un lugar para cada rosa es una rosa es una rosa...).
    Uf. Beware of the Jabberwocky my son.

    Horacio resbaló un poco más y vio muy claramente todo lo que quería ver. No sabía si la empresa había que acometerla desde arriba o desde abajo, con la concentración de todas sus fuerzas o más bien como ahora, desparramado y líquido, abierto a la claraboya, a las velas verdes, a la cara de corderito triste de la Maga, a Ma Rainey que cantaba Jelly Beans Blues. Más bien así, más bien desparramado y receptivo, esponjoso como todo era esponjoso apenas se lo miraba mucho y con los verdaderos ójos. No estaba tan borracho como para no sentir que había hecho pedazos su casa, que dentro de él nada estaba en su sitio pero que al mismo tiempo -era cierto, era maravillosamente cierto-, en el suelo o el techo, debajo de la cama o flotando en una palangana había estrellas y pedazos de eternidad, poemas como soles y enormes caras de mujeres y de gatos donde ardía la furia de sus especies, en la mezcla de basura y placas de jade de su lengua donde las palabras se trenzaban noche y día en furiosas batallas de hormigas contra escolopendras, la blasfemia coexistía con la pura mención de las esencias, la clara imagen con el peor lunfardo. El desorden triunfaba y corría por los cuartos con el pelo colgando en mechones astrosos, los ojos de vidrio, las manos llenas de barajas que no casaban, mensajes donde faltaban las firmas y los encabezamientos, y sobre las mesas se enfriaban platos de sopa, el suelo estaba lleno de pantalones tirados, de manzanas podridas, de vendas manchadas. Y todo eso de golpe crecía y era una música atroz, era más que el silencio afelpado de las casas en orden de sus parientes intachables, en mitad de la confusión donde el pasado era incapaz de encontrar un botón de camisa y el presente se afeitaba con pedazos de vidrio a falta de una navaja enterrada en alguna maceta, en mitad de un tiempo que se abría como una veleta a cualquier viento, un hombre respiraba hasta no poder más, se sentía vivir hasta el delirio en el acto mismo de contemplar la confusión que lo rodeaba y preguntarse si algo de eso tenía sentido. Todo desorden se justificaba si tendía a salir de sí mismo, por la locura se podía acaso llegar a una razón que no fuera esa razón cuya falencia es la locura. "Ir del desorden al orden", pensó Oliveira. "Sí, ¿pero qué orden puede ser ése que no parezca el más nefando, el más terrible, el más insanable de los desórdenes? El orden de los dioses se llama ciclón o leucemia, el orden del poeta se llama antimateria, espacio duro, flores de labios temblorosos, realmente qué sbornia tengo, madre mía, hay que irse a la cama en seguida." Y la Maga estaba llorando, Guy había desaparecido, Etienne se iba detrás de Perico, y Gregorovius, Wong y Ronald miraban un disco que giraba lentamente, treinta y tres revoluciones y media por minuto, ni una más ni una menos, y en esas revoluciones Oscar's Blues, claro que por el mismo Oscar al piano, un tal Oscar Peterson, un tal pianista con algo de tigre y felpa, un tal pianista triste y gordo, un tipo al piano y la lluvia sobre la claraboya, en fin, literatura.


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domingo, 24 de abril de 2016

Alberto Caeiro (Portugal)

da Poesia  (03)




O Universo não é uma ideia minha


O Universo não é uma ideia minha. 
A minha ideia do Universo é que é uma ideia minha. 
A noite não anoitece pelos meus olhos, 
A minha ideia da noite é que anoitece por meus olhos. 
Fora de eu pensar e de haver quaisquer pensamentos 
A noite anoitece concretamente 
E o fulgor das estrelas existe como se tivesse peso.






Florbela Espanca (Portugal)



A uma rapariga


A Nice 

Abre os olhos e encara a vida! A sina 
Tem que cumprir-se! Alarga os horizontes! 
Por sobre lamaçais alteia pontes 
Com tuas mãos preciosas de menina.
 
Nessa estrada de vida que fascina 
Caminha sempre em frente, além dos montes! 
Morde os frutos a rir! Bebe nas fontes! 
Beija aqueles que a sorte te destina!
 
Trata por tu a mais longínqua estrela, 
Escava com as mãos a própria cova 
E depois, a sorrir, deita-te nela!
 
Que as mãos da terra façam, com amor, 
Da graça do teu corpo, esguia e nova, 
Surgir à luz a haste de uma flor!...


Florbela Espanca, Charneca em Flor (1930)






Alice Gomes (Portugal)



Na idade dos porquês


Professor diz-me   porquê? 
Por que voa o papagaio 
que solto no ar 
que vejo voar 
tão alto no vento 
que o meu pensamento 
não pode alcançar?
 

Professor diz-me   porquê? 
Por que roda o meu pião? 
Ele não tem nenhuma roda 
E roda   gira   rodopia 
e cai morto no chão... 


Tenho nove anos   professor 
e há tanto mistério à minha roda 
que eu queria desvendar! 
Por que é que o céu é azul? 
Por que é que marulha o mar? 
Porquê? 
Tanto porquê que eu queria saber! 
E tu que não me queres responder!
 

Tu falas falas   professor 
daquilo que te interessa 
e que a mim não interessa. 
Tu obrigas-me a ouvir 
quando eu quero falar. 
Obrigas-me a dizer 
quando eu quero escutar. 
Se eu vou a descobrir 
Fazes-me decorar.


É a luta   professor 
a luta em vez de amor. 


Eu sou uma criança. 
Tu és mais alto 
mais forte 
mais poderoso. 
E a minha lança 
quebra-se de encontro à tua muralha.

 
Mas 
enquanto a tua voz zangada ralha 
tu sabes   professor 
eu fecho-me por dentro 
faço uma cara resignada 
e finjo 
finjo que não penso em nada.

 
Mas penso. 
Penso em como era engraçada 
aquela rã 
que esta manhã ouvi coaxar. 
Que graça que tinha 
aquela andorinha 
que ontem à tarde vi passar!... 


E quando tu depois vens definir 
o que são conjunções 
e preposições... 
quando me fazes repetir 
que os corações 
têm duas aurículas e dois ventrículos 
e tantas 
tanta mais definições... 
o meu coração 
o meu coração que não sei como é feito 
nem quero saber 
cresce 
cresce dentro do peito 
a querer saltar cá para fora 
professor 
a ver se tu assim compreenderias 
e me farias 
mais belos os dias.


Alice Gomes (1946)

Pablo Neruda (Chile)


Los Poetas del Amor (41)



Agua Sexual


Rodando a goterones solos,
a gotas como dientes,
a espesos goterones de mermelada y sangre,
rodando a goterones,
cae el agua,
como una espada en gotas,
como un desgarrador río de vidrio,
cae mordiendo,
golpeando el eje de la simetría, pegando en las costuras del
alma,
rompiendo cosas abandonadas, empapando lo oscuro.

Solamente es un soplo, más húmedo que el llanto,
un líquido, un sudor, un aceite sin nombre,
un movimiento agudo,
haciéndose, espesándose,
cae el agua,
a goterones lentos,
hacia su mar, hacia su seco océano,
hacia su ola sin agua.

Veo el verano extenso, y un estertor saliendo de un granero,
bodegas, cigarras,
poblaciones, estímulos,
habitaciones, niñas
durmiendo con las manos en el corazón,
soñando con bandidos, con incendios,
veo barcos,
veo árboles de médula
erizados como gatos rabiosos,
veo sangre, puñales y medias de mujer,
y pelos de hombre,
veo camas, veo corredores donde grita una virgen,
veo frazadas y órganos y hoteles.

Veo los sueños sigilosos,
admito los postreros días,
y también los orígenes, y también los recuerdos,
como un párpado atrozmente levantado a la fuerza
estoy mirando.

Y entonces hay este sonido:
un ruido rojo de huesos,
un pegarse de carne,
y piernas amarillas como espigas juntándose.
Yo escucho entre el disparo de los besos,
escucho, sacudido entre respiraciones y sollozos.

Estoy mirando, oyendo,
con la mitad del alma en el mar y la mitad del alma
en la tierra,
y con las dos mitades del alma miro al mundo.

y aunque cierre los ojos y me cubra el corazón enteramente,
veo caer un agua sorda,
a goterones sordos.
Es como un huracán de gelatina,
como una catarata de espermas y medusas.
Veo correr un arco iris turbio.
Veo pasar sus aguas a través de los huesos.







Sor Juana Inés de la Cruz  (México)


De Amor, Puesto Antes En Sujeto Indigno


Cuando mi error y tu vileza veo,
contemplo, Silvio, de mi amor errado,
cuán grave es la malicia del pecado,
cuán violenta la fuerza de un deseo.

A mi misma memoria apenas creo
que pudiese caber en mi cuidado
la última línea de lo despreciado,
el término final de un mal empleo.

Yo bien quisiera, cuando llego a verte,
viendo mi infame amor poder negarlo;
mas luego la razón justa me advierte

que sólo me remedia en publicarlo;
porque del gran delito de quererte
sólo es bastante pena confesarlo.






Julia de Burgos (Puerto Rico)



Te Seguiré Callada


Te seguiré por siempre, callada y fugitiva,
por entre oscuras calles molidas de nostalgia,
o sobre las estrellas sonreídas de ritmos
donde mecen su historia tus más hondas miradas.

Mis pasos desatados de rumbos y fronteras
no encuentran las orillas que a tu vida se enlazan.
Busca lo ilimitado mi amor, y mis canciones
de espalda a los estático, irrumpen en tu alma.

Apacible de anhelos, cuando el mundo te lleve,
me doblaré el instinto y amaré tus pisadas;
y serán hojas simples las que iré deshilando
entre quietos recuerdos, con tu forma lejana.

Atenta a lo infinito que en mi vida ya asoma,
con la emoción en alto y la ambición sellada,
te seguiré por siempre, callada y fugitiva,
por entre oscuras calles, o sobre estrellas blancas.




5.O Estrangeiro: Ficamos assim durante longos instantes - Albert Camus

Albert Camus


Capítulo 1


5. Ficamos assim durante longos instantes 




Ficamos assim durante longos instantes. Os suspiros e soluços da
mulher iam-se fazendo mais raros. Por fim, calou-se.
Eu já não tinha sono, mas estava cansado e doíam-me os rins.
Era o silêncio de todas aquelas pessoas, que agora me era penoso.
De tempos a tempos, ouvia apenas um ruído estranho e não
conseguia compreender de que se tratava. Acabei por adivinhar que
alguns dos velhos chupavam o interior das bochechas, deixando
escapar estes barulhos esquisitos. Estavam tão absortos nos seus
pensamentos, que nem davam por isso.

Tinha mesmo a impressão de que esta morta, ali deitada,
nada significava para eles. Mas creio agora que se tratava de
uma impressão falsa.


Tomamos todos café, servido pelo porteiro. Em seguida, não sei
mais nada. A noite passou. Lembro-me de que, a certa altura, abri
os olhos e reparei que os velhos dormiam dobrados sobre si
mesmos, com exceção de um único que, de queixo encostado às
costas das mãos, e com estas agarradas à bengala, me olhava
fixamente, como se estivesse à espera de me ver acordar. Depois,
voltei a adormecer. Acordei porque os rins me doíam cada vez mais.

O dia surgia pouco a pouco através da vidraça. Logo a seguir, um
dos velhos acordou e tossiu muito.

Cuspia num grande lenço de quadrados e cada um dos escarros era
como que um arranque.

Acordou os outros e o porteiro disse-lhes que se deviam ir embora.
Levantaram-se.

Esta vigília incômoda tinha-lhes dado às caras uma cor de cinza. À
saída, e com grande espanto meu, vieram-me todos apertar a mão -
como se esta noite em que não havíamos trocado uma só palavra,
tivesse aumentado a nossa intimidade. Estava cansado. O porteiro
levou-me ao quarto dele, e pude lavar-me e pentear-me. Voltei a
tomar café com leite, que era ótimo.

Quando saí, o dia estava completamente levantado.




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A Constatação do Absurdo

Nascido e criado entre contrastes fundamentais, Albert Camus desde cedo aprendeu que a miséria engendra uma solidão que lhe é típica, uma austeridade toda sua, uma desconfiança da vida - mas a paisagem desperta uma rica sensualidade, uma eufórica sensação de onipotência, um orgulho desmedido de possuir a beleza inteiramente gratuita. Este aprendizado, feito a meio caminho entre a miséria e o sol, levou-o à consciência do que existe de mais trágico na condição humana: o absurdo, essa irremediável incompatibilidade entre as aspirações e a realidade.


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Camus, Albert, 1913-1960.
              O Estrangeiro


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Leia também:

4.O Estrangeiro: Na pequena morgue - Albert Camus


6.O Estrangeiro: Por cima das colinas - Albert Camus

sexta-feira, 22 de abril de 2016

Histórias de avoinha: Ocê num sabe cantá?

Ensaio 79B – 2ª edição 1ª reimpressão

Ocê num sabe cantá?


baitasar


os pretu escravizado num usava só os canto pra juntá os lamento e as desgracêra da vida, os movimento do corpo tumbém ajudava contá as história, medí a saudade. mais era as contação dos mais véio prus muriquinho qui num deixava esquecê os espritu da áfrica mãe, descarregado de lá pra cá com força e ruindade. um tempo em qui os dente num froxava de contá as história do mato, lugá de lá, donde os pretu e as preta foi arrancada pra sê arrematada em lote. um tempo em qui escutá os mais véio ajudava vivê

o boca de sapo tava com menó gosto pra engolí as mosca. num tava se rindo nem tava de lá pra cá ou de cá pra lá. num sabia os canto do divertimento nem do trabáio. num sabia cantá. sabia pulá e comê mosca, o caçadô das mosca do pinico. foi ensinado sê assim. decorô as lição do bão sapo caçadô das mosca. uma figura desimportante na vida do siô branco. sapo eles comprava aos lote, depois era só ensiná sê boca de sapo

o boca de sapo num parava de chorá e resmungá dum jeito munto triste, Eu não sou daqui, eu não sou daqui.

a preta liberata se balançava como se tivesse nos braço um muriquinho qui precisava acalmá os espritu qui se carrega na vida toda. os espritu de antes. num é uma conversa sossegada

E o muriquinhu veio fazê cá?

Sei lá, otro pulo, otra mosca, eu não gosto de me exibir. Gosto menos de ser sapo do que um beterraba preta. Mas se pudesse escolher, otro salto e a língua pegajosa laçô otra mosca descuidada, queria continuar como fumaça...

engoliu a mosca viva com as asa batendo

liberata teve pena de dá dó, o muriquinho parecia o bagaço da laranja. quis mudá a conversa. achô meió num entristecê mais qui a vida entristece quando deixa uma coisa de menos no coração. queria vida cantada, sapateada e requebrada, levada com papo furado. sabia qui num era tempo bão de conversá esquecida da vida ruim, mais mesmo no tempo ruim precisa dizê coisa sem tê purqui num dizê, fazê surpresa, querê ficá esperançada, tê alguém esperando ocê chegá. precisava resistí. num era tempo bão de ficá, era tempo bão de voltá

E pur qui esse nome Fumaça?

o fumaça sorriu tristeza. num sabia sorrí alegria. era o qui aprendeu. num sabia qui com tempo ruim ou bão é preciso esperançá com qualqué feitura feita, um tempo com alegria triste, uma cô cinzenta sem lampejo. o tempo da vida ficá guardada com medo, vigiada e castigada parecia num tê fim

Eu não esperei ganhar uma marca. Uma cicatriz com nome. Achava que seria inevitável um apelido grosseiro desenhar minha vida. Então, preferi ficar em paz com o meu próprio bem, me dei um outro nome, Beterraba Preta. Mas não pegou. Às vezes, a gente diz muita coisa que não quer dizer, depois precisa de mais tempo para se arrepender.

a preta liberata num tava entendendo o cabimento de minguá a própria importância, uma sombra sonolenta qui pisava a terra seca sem lua branca, sem margarida branca, sem rosa perfumada, sem água fresca, as raiz abandonada, as ferida aberta e as mosca rondando, indo e vindo do pinico

Pur qui diminuí o próprio valô e merecimento?

o boca de sapo murchô o peito

Não sei, mas não deu certo. Acho que não fui muito criativo e suficientemente maldoso. Um apelido para ter graça não pode ser invenção da criatura. O desalento que a titulatura intolerante e jocosa quer provocar é de fora para dentro, não pode brotar da criatura.

soltô uma risada estragada pelo esquecimento de tê otra vida sem mosca

Isso pode sê qui tá certo ou pode sê pruqui os muriquinhu num gosta de beterraba. Eles num gosta nem de ouví falá da beterraba.

o boca de sapo escutava e comia devagar as mosca piquinina e burra. elas saia com ele pru perto e sua língua comprida e pegajosa num parava. uma qui otra se safava ou achava qui se safava, ele esperava quando elas boiava no bafo sem vento do quarto

É pode ser... ou pode ser porque fumaça é melhor para se inventar histórias.

num era bão de ficá, era tempo de se arrancá do chão e partí, mais aonde, cigarra? aonde a vida cresce como a relva verde guardada embaixo da luz azul? aonde cigarra, os pretu num precisa tá com a cabeça abaixada? um lugá ditoso aonde as pessoa caminha com os braço balançando

E o Fumaça tem nome?

os hôme inventô um feitio de vida qui as coisa sem nome num tem vida, gente sem nome num existe. mais num pode sê qualqué nome, tem qui sê os nome branco qui é as coisa qui tem mais valô. num pode sê nome dos espritu mais véio qui num tá mais cá, num pode sê nome qui mostra a estrada de volta pra lá, a terra de mato dos antepassado. os pretu pra continuá escravizado precisa perdê tudo, inté as lembrança nos nome

Tenho mais nomes que tamanho.

as vista num empina nem o coração acelera, ele já credita qui num tem nada pra oferecê além da língua pegajosa. o qui os branco intolerante e egoísta num entende, e acho qui nunca vai querê entendê, é qui enquanto existí um pretu sem liberdade de tê o nome do gosto, os cabelo da beleza do gosto, eles vai continuá vivendo o pesadelo como se fosse morrê no pinico, assassinado pelas mosca, qui a boca de sapo desistiu de comê

E...

Primeiro, fui João. E depois, Pedreiro. Minha mãinha sumiu com um pedreiro depois dos primeiros dias do meu aparecimento. Ela não pensava muito bem. Nasceu caída das mãos da parteira num buraco sem fundo até Mãe África. Avoinha precisou puxar mãinha com as mãos agarradas no cordão umbilical. Ela nunca se recuperou do susto. Então, quando me viu sair da sua enseada o susto voltou. Nunca tive o abraço da mãinha. Precisei mamar nos seios murchos da avoinha para acalmar a vontade de ter uma têta na boca. Não funcionou. Têta seca não mata a fome. Mas tanta força eu fiz e tanta reza da avoinha que as duas taças da tiainha Vanda transbordaram. Nunca mais faltou uma gotinha que fosse.

Mais pur qui o seu nome segundo, depois do primêro João, é Pedrêro?

o muriquinho balançô os ombro, o corpo parecia uma figa

Entre João de ninguém e João do pedreiro, prefiro ser o João Pedreiro. Na correção da verdade, nem o primeiro dito João parece que foi o primeiro nome. Essa confusão de nome só faz deixar a vida com mais confusão.

Aham, seu pai era pedrêro. Caso fosse ferrêro, João Ferrêro.

É... não posso duvidar do poder do nome.

Caso fosse padêro, João Padêro?

É possível...

Caso fosse...

Chega, Liberata. Eu sou Fumaça desde menino. Agora, sou o dono do nome Fumaça. Aprendi me respeitar assim.

a preta liberata levantô as vista da cama toda esticada, sem dobra ou ruga

Então, o muriquinhu gostô do nome dado?

o neinho num viu a própria cara feita, mais dava pra adivinhá pela máscara triste da preta

Acostumei com o gosto amargo, mas se triste me sinto é como beterraba que fico, uma raiz sem a liberdade da fumaça.

Num tem sapo qui chora, mais tem santo guerrêro qui luta a boa luta. O boca de sapo parece com quebranto qui desanima tê vida, sem gosto da cantoria.

o neinho num via a cavalaria dos santo guerrêro na sua volta

O meu choro é da tristeza, Liberata. Esse não é o meu lugar nem o meu tempo. Não sei o que estou fazendo aqui. Não pedi esse encantamento. Isso aqui não é vida. Não dá para ter assanhamento.

empurrô o pinico com a ponta do pé, o chêro ficô escondido com as mosca embaixo da cama. em cima nenhuma dobra. os dois parô. as vista dum notro

O neinhu chora sozinho quando chora só pelo neinhu. Eu choro a tristeza de munto mais. Eu choro pelos pretu qui acostumô com a escravidão, eu choro pelos pretu qui vigia os pretu, pelos pretu qui morre escravo, pelos pretu qui num credita qui se pode arrebentá as corrente, num credita qui pode sê dotro jeito. Num choro só purumim, choro pelos pretu tudo qui num tem vida branda. E chorá assim dói muntu mais qui chorá sozinho, mais faz a luta tê mais força. Neinhu, tudo num tem só um lado, mais ocê precisa sabê qui tá do lado qui escravizá é tá do lado da intolerância e do ódio.

liberata tinha começado simpatizá com o muriquinho, parecia tê perdido o medo do neinho, Ocê queria sê grande e imagina sê grande, mais num é. O muriquinhu tem o tamanho do qui vê, se o muriquinhu vê as coisa maió qui é, elas fica maió e o muriquinhu fica menó. O tamanho das perna do muriquinhu num vai mudá, mais o jeito de vê pode mudá.

Tenho boas lembranças do tempo em que as crianças eram pequenas e plantávamos rabanetes no quintal do casarão. O meu problema era ficar pendurado no banheiro.

foi o primêro riso silencioso qui os dois experimentô junto, mais a tristura continuava nas andança do pensamento; depois, as vista tremeu. pode tê sido uma piscadela da aliança feita no chão da senzala ou mais uma veiz o choro sendo engolido

Vamu, muriquinhu. A bagunça daqui já tá resolvida.

o neinho parô no meio do dormitório com as mão na cintura

E por que devo obedecer a senhora? Não é nada minha, só temos a mesma cor preta, o mesmo cabelo ruim e...

Para, neinhu! Cabelo ruim?

oiô pru muriquinho, lá tava ele com as perna de sapo, a língua esticada e balançando pegajosa pra agarrá as mosca do pinico do siôinho pedro amado. cada mosca qui grudava no linguarudo desaparecia na boca do muriquinho. num parecia gostá, mais num conseguia desviá de sê um comedô das mosca. soltava a língua peguenta e apanhava uma bocada. num conseguia mais se evitá. foi ensinado sê sapo e sê sapo ensinado é comê as mosca qui avoá do pinico. sem puruguntá ou cara feia. sem fazê corpo mole. sem chorá. sem reclamá. sem riso. sem alegria. sem cantoria. sem nariz ranhento. só isso: comê as mosca

as mais leve era só tira-gosto. as mais gorducha as mais fácil de pegá. o muriquinho num entendia pur qui só ele virava sapo, tinha munta mosca. ninguém precisava passá fome. ele já tava devorando muntas duma só veiz

a preta liberata oiava pru neinho e cantava



muriquinhu muriquinhu

cadê ocê

Auê auê

Ai aia ai ai
ô canjonjo oia vitá, auê!
Corongira vita turô... ia

cadum carrega um sapo qui pode ou num pode aparecê. é só deixá o deserto da intolerância comê os grilo, os gafanhoto acabá com as cigarra, a vida perdê a harmonia dos espritu da aurora qui o sapo salta

Muriquinhu, num esquece qui a primavera num tem dono, o vento tem a direção qui qué e num tem existe cabelo ruim. O qui fica ruim é num tê beleza no oiá de quem óia. As trança, as conta, os turbante é o retrato qui carrega as memória de lá pra cá. Os cabelo é livre. Eles enraiza no lugá mais sagrado do corpo: a cabeça.

liberata parô pra respirá, fungô os chêro do mato e depois puruguntô, O sapo pretu só come mosca? Num sabe fazê coisa mais?

E o que um sapo faz além de pular e comer mosca?

as mosca procurava fugí pelos fio da luz qui entrava no quarto com munta curva e cruzamento, mais escapá da língua grudenta num era coisa de acontecê com um vôo à toa. saí do pinico inté as maçã, as galinha ou os cozido da siáinha e voltá pru pinico tinha munto perigo. o sapo é as mosca qui come

E cantá... ocê sabe?



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Histórias de avoinha: fumaça enfeitiçado
Ensaio 78B – 2ª edição 1ª reimpressão


Histórias de avoinha: quanto mais oiava pru alto num via sentido nehum
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quinta-feira, 21 de abril de 2016

Nunca fui como todos

Florbela Espanca



Nunca fui como todos


Nunca tive muitos amigos
Nunca fui favorita
Nunca fui o que meus pais queriam
Nunca tive alguém que amasse
Mas tive somente a mim
A minha absoluta verdade
Meu verdadeiro pensamento
O meu conforto nas horas de sofrimento
não vivo sozinha porque gosto
e sim porque aprendi a ser só...







ALMA PERDIDA - NOITE DE SAUDADE - CINZENTO- ANOITECER
são os poemas de Florbela Espanca neste vídeo.

Miguel Falabella faz uma linda declamação dos poemas de Florbela Espanca. Uma mulher que viveu, cantou e morreu por amor.



Alma Perdida

Toda esta noite o rouxinol chorou,
Gemeu, rezou, gritou perdidamente!
Alma de rouxinol, alma da gente,
Tu és, talvez, alguém que se finou!

Tu és, talvez, um sonho que passou,
Que se fundiu na Dor, suavemente...
Talvez sejas a alma, a alma doente
De alguém que quis amar e nunca amou!

Toda a noite choraste... e eu chorei
Talvez porque, ao ouvir-te, adivinhei
Que ninguém é mais triste do que nós!

Contaste tanta coisa à noite calma,
Que eu pensei que tu eras a minh'alma
Que chorasse perdida em tua voz!...



Noite de Saudade

"A noite vem pousando devagar
Sobre a Terra, que inunda de amargura...
E nem sequer a bênção do luar
A quis tornar divinamente pura...

Ninguém vem atrás dela a acompanhar
A sua dor que é cheia de tortura...
E eu ouço a Noite imensa soluçar!
E eu ouço soluçar a Noite escura!

Por que és assim tão escura, assim tão triste?!
É que, talvez, Ó Noite, em ti existe
Uma saudade igual à que eu contenho!

Saudade que eu sei donde me vem...
Talvez de ti, ó Noite!... Ou de ninguém!...
Que eu nunca sei quem sou, nem o que tenho!!"



Cinzento

Poeiras de crepúsculos cinzentos,
Lindas rendas velhinhas, em pedaços,
Prendem-se aos meus cabelos, aos meus braços
Como brancos fantasmas, sonolentos...

Monges soturnos deslizando lentos,
Devagarinho, em misteriosos passos...
Perde-se a luz em lânguidos cansaços...
Ergue-se a minha cruz dos desalentos!

Poeiras de crepúsculos tristonhos,
Lembram-me o fumo leve dos meus sonhos,
A névoa das saudades que deixaste!

Hora em que o teu olhar me deslumbrou...
Hora em que a tua boca me beijou...
Hora em que fumo e névoa te tornaste...




Anoitecer

A luz desmaia num fulgor de aurora,
Diz-nos adeus religiosamente...
E eu que não creio em nada, sou mais crente
Do que em menina, um dia, o fui... outrora...

Não sei o que em mim ri, o que em mim chora,
Tenho bênçãos de amor pra toda a gente!
E a minha alma, sombria e penitente,
Soluça no infinito desta hora...

Horas tristes que vão ao meu rosário...
Ó minha cruz de tão pesado lenho!
Ó meu áspero intérmino Calvário!

E a esta hora tudo em mim revive:
Saudades de saudades que não tenho...
Sonhos que são os sonhos dos que eu tive...




quarta-feira, 20 de abril de 2016

8. Pedro Páramo: En el hidrante las gotas caen una tras otra - Juan Rulfo

Juan Rulfo




8. Pedro Páramo: En el hidrante las gotas caen una tras otra





«En el hidrante las gotas caen una tras otra. Uno oye, salida de la piedra, el agua clara caer sobre el cántaro. Uno oye. Oye rumores; pies que raspan el suelo, que caminan, que van y vienen. Las gotas siguen cayendo sin cesar. El cántaro se desborda haciendo rodar el agua sobre un suelo mojado. 

«¡Despierta!», le dicen. 

Reconoce el sonido de la voz. Trata de adivinar quién es; pero el cuerpo se afloja y cae adormecido, aplastado por el peso del sueño. Unas manos estiran las cobijas prendiéndose de ellas, y debajo de su calor el cuerpo se esconde buscando la paz. 

«Despiértate!», vuelven a decir. 

La voz sacude los hombros. Hace enderezar el cuerpo. Entreabre los ojos. Se oyen las gotas de agua que caen del hidrante sobre el cántaro raso. Se oyen pasos que se arrastran... Y el llanto. 

Entonces oyó el llanto. Eso lo despertó: un llanto suave, delgado, que quizá por delgado pudo traspasar la maraña del sueño, llegando hasta el lugar donde anidan los sobresaltos. 

Se levantó despacio y vio la cara de una mujer recostada contra el marco de la puerta, oscurecida todavía por la noche, sollozando. 

-¿Por qué lloras, mamá? -preguntó; pues en cuanto puso los pies en el suelo reconoció el rostro de su madre. 

-Tu padre ha muerto -le dijo. 

Y luego, como si se le hubieran soltado los resortes de su pena, se dio vuelta sobre sí misma una y otra vez, una y otra vez, hasta que unas manos llegaron hasta sus hombros y lograron detener el rebullir de su cuerpo. 

Por la puerta se veía el amanecer en el cielo. No había estrellas. Sólo un cielo plomizo, gris, aún no aclarado por la luminosidad del sol. Una luz parda, como si no fuera a comenzar el día, sino como si apenas estuviera llegando el principio de la noche. 

Afuera en el patio, los pasos, como de gente que ronda. Ruidos callados. Y aquí, aquella mujer, de pie en el umbral; su cuerpo impidiendo la llegada del día; dejando asomar, a través de sus brazos, retazos de cielo, y debajo de sus pies regueros de luz; una luz asperjada como si el suelo debajo de ella estuviera anegado en lágrimas. Y después el sollozo. Otra vez el llanto suave pero agudo, y la pena haciendo retorcer su cuerpo. 

-Han matado a tu padre. 

-¿Y a ti quién te mató, madre? 



«Hay aire y sol, hay nubes. Allá arriba un cielo azul y detrás de él tal vez haya canciones; tal vez mejores voces... Hay esperanza, en suma. Hay esperanza para nosotros, contra nuestro pesar. 

»Pero no para ti, Miguel Páramo, que has muerto sin perdón y no alcanzarás ninguna gracia.» 

El padre Rentería dio vuelta al cuerpo y entregó la misa al pasado. Se dio prisa por terminar pronto y salió sin dar la bendición final a aquella gente que llenaba la iglesia. 

-¡Padre, queremos que nos lo bendiga! 

-¡No! -dijo moviendo negativamente la cabeza-. No lo haré. Fue un mal hombre y no entrará al Reino de los Cielos. Dios me tomará a mal que interceda por él. 

Lo decía, mientras trataba de retener sus manos para que no enseñaran su temblor. Pero fue. 

Aquel cadáver pesaba mucho en el ánimo de todos. Estaba sobre una tarima, en medio de la iglesia, rodeado de cirios nuevos, de flores, de un padre que estaba detrás de él, solo, esperando que terminara la velación. 

El padre Rentería pasó junto a Pedro Páramo procurando no rozarle los hombros. Levantó el hisopo con ademanes suaves y roció el agua bendita de arriba abajo, mientras salía de su boca un murmullo, que podía ser de oraciones. Después se arrodilló y todo el mundo se arrodilló con él: 

-Ten piedad de tu siervo, Señor. 

-Que descanse en paz, amén -contestaron las voces. 

Y cuando empezaba a llenarse nuevamente de cólera, vio que todos abandonaban la iglesia llevándose el cadáver de Miguel Páramo. 

Pedro Páramo se acercó, arrodillándose a su lado: 

-Yo sé que usted lo odiaba, padre. Y con razón. El asesinato de su hermano, que según rumores fue cometido por mi hijo; el caso de su sobrina Ana, violada por él según el juicio de usted; las ofensas y falta de respeto que le tuvo en ocasiones, son motivos que cualquiera puede admitir. Pero olvídese ahora, padre. Considérelo y perdónelo como quizá Dios lo haya perdonado. 

Puso sobre el reclinatorio un puño de monedas de oro y se levantó: 

-Reciba eso como una limosna para su iglesia.

La iglesia estaba ya vacía. Dos hombres esperaban en la puerta de Pedro Páramo, quien se juntó con ellos, y juntos siguieron el féretro que aguardaba descansando sobre los hombros de cuatro caporales de la Media Luna. 

El padre Rentería recogió las monedas una por una y se acercó al altar. 

-Son tuyas -dijo-. Él puede comprar la salvación. Tú sabes si éste es el precio. En cuanto a mí, Señor, me pongo ante tus plantas para pedirte lo justo o lo injusto, que todo nos es dado pedir... Por mí, condénalo, Señor. 

Y cerró el sagrario. 

Entró en la sacristía, se echó en un rincón, y allí lloró de pena y de tristeza hasta agotar sus lágrimas. 

-Está bien, Señor, tú ganas -dijo después.



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El mexicano Juan Rulfo (1918-1986) figura, a pesar de la brevedad de su obra, entre los grandes renovadores de la narrativa hispanoamericana del siglo XX. De formación autodidacta, trabajó como guionista para el cine y la televisión. Con sólo dos obras de ficción publicadas -el libro de relatos El llano en llamas y la novela Pedro Páramo-, ha ejercido una decisiva influencia en la literatura en castellano del último medio siglo. En 1983 recibió el premio Príncipe de Asturias de las Letras.


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8. Pedro Páramo: Na mina d'água as gotas caem uma atrás da outra.




Na mina d'água as gotas caem uma atrás da outra. A gente ouve, saída da pedra, a água clara cair no cântaro. A gente ouve. Ouve rumores; pés que raspam o chão, que caminham, que vão e que vêm. As gotas continuam caindo sem parar. O cântaro transborda fazendo a água rodar sobre um solo molhado. 

“Acorda!”, dizem a ele. 

Reconhece o som da voz. Trata de adivinhar quem é; mas o corpo afrouxa e cai adormecido, esmagado pelo peso do sono. Umas mãos esticam a coberta agarrando-se nela, e debaixo de seu calor o corpo se esconde procurando paz. 

“Acorda!”, tornam a dizer. 

A voz sacode seus ombros. Faz o corpo se erguer. Entreabre os olhos. Ouvem-se as gotas de água que caem da mina d’água no cântaro raso. Ouvem-se passos que se arrastam... E o pranto. 

Então ouviu o pranto. Aquilo o despertou: um pranto suave, delgado, que talvez por ser delgado tenha passado pela teia do sono, chegando ao lugar onde os sobressaltos se aninham. 

Levantou-se devagar e viu a cara de uma mulher recostada contra o batente da porta, ainda escurecida pela noite, soluçando. 

— Por que você chora, mamãe? — perguntou, pois assim que pôs os pés no chão reconheceu o rosto de sua mãe. 

— Seu pai morreu — disse ela. 

E depois, como se tivessem disparado os gatilhos de sua pena, deu volta sobre si mesma uma e outra vez, uma e outra vez, até que algumas mãos chegaram aos seus ombros e conseguiram deter o remexer de seu corpo. 

Pela porta via-se o amanhecer no céu. Não havia estrelas. Só um céu de chumbo, cinzento, ainda não clareado pela luminosidade do sol. Uma luz parda, como se o dia não fosse começar, mas como se apenas estivesse chegando o princípio da noite. 

Lá fora, no pátio, os passos, como de gente que ronda. Ruídos calados. E aqui, aquela mulher, de pé no umbral; seu corpo impedindo a chegada do dia; deixando aparecer, através dos seus braços, fiapos de céu, e debaixo de seus pés réstias de luz; uma luz borrifada como se o chão debaixo dela estivesse inundado de lágrimas. E depois o soluço. E outra vez o pranto suave mas agudo, e a dor fazendo seu corpo se contorcer. 

— Mataram seu pai. 

— E quem matou você, minha mãe? 



Tem ar e sol, e tem nuvens. Lá em cima um céu azul e talvez atrás dele existam canções; talvez melhores vozes... Há esperança, enfim. Há esperança para nós, contra o nosso penar. 

“Mas não para você, Miguel Páramo, que morreu sem perdão e não alcançará graça alguma.” 

O padre Rentería deu as costas e entregou a missa ao passado. Apressou-se para terminar logo e saiu sem dar a bênção final para aquela gente que lotava a igreja. 

— Padre, queremos que o abençoe para nós!

 — Não! — disse ele mexendo a cabeça e negando. — Não vou fazer isso. Foi um homem ruim, e não entrará no Reino dos Céus. Deus irá me levar a mal se eu interceder por ele. 

Dizia isso, enquanto tentava conter as mãos para que não mostrassem seu tremor. Mas foi. 

Aquele cadáver pesava muito na alma de todos. Estava sobre um tablado, no meio da igreja, rodeado de círios novos, de flores, de um pai que estava atrás dele, sozinho, esperando que terminasse o velório. 

O padre Rentería passou ao lado de Pedro Páramo procurando não roçar seus ombros. Levantou o aspersório com gestos suaves e orvalhou a água benta de alto a baixo, enquanto de sua boca saía um murmúrio que podiam ser orações. Depois se ajoelhou e todo mundo se ajoelhou com ele: 

— Tem piedade do teu servo, Senhor. 

— Que descanse em paz, amém — responderam as vozes. 

E quando ele começava a se encher de raiva de novo, viu que todos saíam da igreja levando o cadáver de Miguel Páramo. 

Pedro Páramo aproximou-se, ajoelhando-se ao seu lado: 

— Eu sei que o senhor o odiava, padre. E com razão. O assassinato do seu irmão, que pelo que se rumoreja por aí foi cometido pelo meu filho; o caso da sua sobrinha Ana, que o senhor acha que foi violada por ele; as ofensas e faltas de respeito que ele às vezes teve com o senhor são motivos que qualquer um pode reconhecer. Mas esqueça isso agora, padre. Pense e perdoe como talvez Deus já tenha perdoado. 

Pôs sobre o genuflexório um punhado de moedas de ouro e levantou-se: 

— Receba isso como uma ajuda para a sua igreja. 

A igreja já estava vazia. Na porta dois homens esperavam Pedro Páramo, que se juntou a eles, e juntos seguiram o féretro que aguardava descansando sobre os ombros de quatro caporais da Media Luna. 

O padre Rentería apanhou as moedas uma por uma e se aproximou do altar. 

— São tuas — disse. — Ele pode comprar a salvação. Tu saberás se o preço é este. Quanto a mim, Senhor, me ponho aos teus pés para pedir o justo ou o injusto, que tudo nos é dado pedir... Por mim, condena-o, Senhor. 

E fechou o sacrário. Entrou na sacristia, jogou-se num canto, onde chorou de pena e de tristeza até esgotar as lágrimas. 

— Está bem, Senhor, tu ganhas — disse depois.




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Rulfo, Juan Pedro Páramo / tradução e prefácio de Eric Nepomuceno. — Rio de Janeiro: BestBolso, 2008. Tradução de: Pedro Páramo ISBN 978-85-7799-116-7 1. Romance mexicano. I. Nepomuceno, Eric. II. Título

Pedro Páramo – Romance mais aclamado da literatura mexicana, Pedro Páramo é o primeiro de dois livros lançados em toda a vida de Juan Rulfo. O enredo, simples, trata da promessa feita por um filho à mãe moribunda, que lhe pede que saia em busca do pai, Pedro Páramo, um malvado lendário e assassino. Juan Preciado, o filho, não encontra pessoas, mas defuntos repletos de memórias, que lhe falam da crueldade implacável do pai. Vergonha é o que Juan sente. Alegoricamente, é o México ferido que grita suas chagas e suas revoluções, por meio de uma aldeia seca e vazia onde apenas os mortos sobrevivem para narrar os horrores da história. O realismo fantástico como hoje se conhece não teria existido sem Pedro Páramo; é dessa fonte que beberam o colombiano Gabriel Garcia Márquez e o peruano Mario Vargas Llosa, que também narram odisseias latino-americanas.

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Leia também:

7. Pedro Páramo: El día que te fuiste

9. Pedro Páramo: Durante la cena tomó su chocolate - Juan Rulfo


terça-feira, 19 de abril de 2016

Dom Casmurro: O administrador Interino

Machado de Assis

Dom Casmurro




CAPÍTULO XVI
O ADMINISTRADOR INTERINO




 Pádua era empregado em repartição dependente do ministério da guerra. Não ganhava muito, mas a mulher gastava pouco, e a vida era barata. Demais, a casa em que morava, assobradada como a nossa, posto que menor, era propriedade dele. Comprou-a com a sorte grande que lhe saiu num meio bilhete de loteria, dez contos de réis. A primeira idéia do Pádua, quando lhe saiu o prêmio, foi comprar um cavalo do Cabo, um adereço de brilhantes para a mulher, uma sepultura perpétua de família, mandar vir da Europa alguns pássaros, etc.; mas a mulher, esta D. Fortunata que ali está à porta dos fundos da casa, em pé, falando à filha, alta, forte, cheia, como a filha, a mesma cabeça, os mesmos olhos claros, a mulher é que lhe disse que o melhor era comprar a casa, e guardar o que sobrasse para acudir às moléstias grandes. Pádua hesitou muito; afinal, teve de ceder aos conselhos de minha mãe, a quem D. Fortunata pediu auxílio. Nem foi só nessa ocasião que minha mãe lhes valeu; um dia chegou a salvar a vida do Pádua. Escutai; a anedota é curta. 

O administrador da repartição em que Pádua trabalhava teve de ir ao Norte, em comissão. Pádua, ou por ordem regulamentar, ou por especial designação, ficou substituindo o administrador com os respectivos honorários. Esta mudança de fortuna trouxe-lhe certa vertigem; era antes dos dez contos. Não se contentou de reformar a roupa e a copa, atirou-se às despesas supérfluas, deu jóias à mulher, nos dias de festa matava um leitão, era visto em teatros, chegou aos sapatos de verniz. Viveu assim vinte e dois meses na suposição de uma eterna interinidade. Uma tarde entrou em nossa casa, aflito e desvairado, ia perder o lugar, porque chegara o efetivo naquela manhã. Pediu à minha mãe que velasse pelas infelizes que deixava; não podia sofrer a desgraça, matava-se. Minha mãe falou-lhe com bondade, mas ele não atendia a coisa nenhuma. 

— Não, minha senhora, não consentirei em tal vergonha! Fazer descer a família, tornar atrás... Já disse, mato-me! Não hei de confessar à minha gente esta miséria. E os outros? Que dirão os vizinhos? E os amigos? E o público? 

— Que público, Sr. Pádua? Deixe-se disso; seja homem. Lembre-se que sua mulher não tem outra pessoa... e que há de fazer? Pois um homem... Seja homem, ande. 

Pádua enxugou os olhos e foi para casa, onde viveu prostrado alguns dias, mudo, fechado na alcova, — ou então no quintal, ao pé do poço, como se a idéia da morte teimasse nele. D. Fortunata ralhava: 

— Joãozinho, você é criança? 

Mas, tanto lhe ouviu falar em morte que teve medo, e um dia correu a pedir à minha mãe que lhe fizesse o favor de ver se lhe salvava o marido que se queria matar. Minha mãe foi achá-lo à beira do poço, e intimou-lhe que vivesse. Que maluquice era aquela de parecer que ia ficar desgraçado, por causa de uma gratificação menos, e perder um emprego interino? Não, senhor, devia ser homem, pai de família, imitar a mulher e a filha... Pádua obedeceu; confessou que acharia forças para cumprir a vontade de minha mãe. 

— Vontade minha, não; obrigação sua. 

— Pois seja obrigação; não desconheço que é assim mesmo. 

Nos dias seguintes, continuou a entrar e sair de casa, cosido à parede, cara no chão. Não era o mesmo homem que estragava o chapéu em cortejar a vizinhança, risonho, olhos no ar, antes mesmo da administração interina. Vieram as semanas, a ferida foi sarando. Pádua começou a interessar-se pelos negócios domésticos, a cuidar dos passarinhos, a dormir tranqüilo as noites e as tardes, a conversar e dar notícias da rua. A serenidade regressou; atrás dela veio a alegria, um domingo, na figura de dois amigos, que iam jogar o solo, a tentos. Já ele ria, já brincava, tinha o ar do costume; a ferida sarou de todo. 

Com o tempo veio um fenômeno interessante. Pádua começou a falar da administração interina, não somente sem as saudades dos honorários, nem o vexame da perda, mas até com desvanecimento e orgulho. A administração ficou sendo a hégira, donde ele contava para diante e para trás. 

— No tempo em que eu era administrador... 

Ou então: 

— Ah! sim, lembra-me, foi antes da minha administração, um ou dois meses antes... Ora espere; a minha administração começou... É isto, mês e meio antes; foi mês e meio antes, não foi mais. 

Ou ainda: 

— Justamente; havia já seis meses que eu administrava... 

Tal é o sabor póstumo das glórias interinas. José Dias bradava que era a vaidade sobrevivente; mas o padre Cabral, que levava tudo para a Escritura, dizia que com o vizinho Pádua se dava a lição de Elifás a Jó: "Não desprezes a correção do Senhor; Ele fere e cura".




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Texto de referência:

Obras Completas de Machado de Assis, vol. I,
Nova Aguilar, Rio de Janeiro, 1994.

Publicado originalmente pela Editora Garnier, Rio de Janeiro, 1899.

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Leia também:

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Memórias Póstumas de Brás Cubas: UM EPISÓDIO DE 1814

Machado de Assis


Memórias Póstumas de Brás Cubas








CAPÍTULO XII / UM EPISÓDIO DE 1814 







Mas eu não quero passar adiante, sem contar sumariamente um galante episódio de 1814; tinha nove anos. 

Napoleão, quando eu nasci, estava já em todo o esplendor da glória e do poder; era imperador e granjeara inteiramente a admiração dos homens. Meu pai, que à força de persuadir os outros da nossa nobreza, acabara persuadindo-se a si próprio, nutria contra ele um ódio puramente mental. Era isso motivo de renhidas contendas em nossa casa, porque meu tio João, não sei se por espírito de classe e simpatia de ofício, perdoava no déspota o que admirava no general, meu tio padre era inflexível contra o corso; os outros parentes dividiam-se: daí as controvérsias e as rusgas. 

Chegando ao Rio de Janeiro a notícia da primeira queda de Napoleão, houve naturalmente grande abalo em nossa casa, mas nenhum chasco ou remoque. Os vencidos, testemunhas do regozijo público, julgaram mais decoroso o silêncio; alguns foram além e bateram palmas. A população, cordialmente alegre, não regateou demonstrações de afeto à real família; houve iluminações, salvas, Te-Deum, cortejo e aclamações. Figurei nesses dias com um espadim novo, que meu padrinho me dera no dia de Santo Antônio; e, francamente, interessava-me mais o espadim do que a queda de Bonaparte. Nunca me esqueceu esse fenômeno. Nunca mais deixei de pensar comigo que o nosso espadim é sempre maior do que a espada de Napoleão. E notem que eu ouvi muito discurso, quando era vivo, li muita página rumorosa de grandes idéias e maiores palavras, mas não sei por que, no fundo dos aplausos que me arrancavam da boca, lá ecoava alguma vez este conceito de experimentado: 

— Vai-te embora, tu só cuidas do espadim. 

Não se contentou a minha família em ter um quinhão anônimo no regozijo público; entendeu oportuno e indispensável celebrar a destituição do imperador com um jantar, e tal jantar que o ruído das aclamações chegasse aos ouvidos de Sua Alteza, ou quando menos, de seus ministros. Dito e feito. Veio abaixo toda a velha prataria, herdada do meu avô Luís Cubas; vieram as toalhas de Flandres, as grandes jarras da Índia; matou-se um capado; encomendaram-se às madres da Ajuda as compotas e as marmeladas; lavaram-se, arearam-se, poliram-se as salas, escadas, castiçais, arandelas, as vastas mangas de vidro, todos os aparelhos do luxo clássico. 

Dada a hora, achou-se reunida uma sociedade seleta: o juiz-de-fora, três ou quatro oficiais militares, alguns comerciantes e letrados, vários funcionários da administração, uns com suas mulheres e filhas, outros sem elas, mas todos comungando no desejo de atolar a memória de Bonaparte no papo de um peru. Não era um jantar, mas um Te-Deum; foi o que pouco mais ou menos disse um dos letrados presentes, o Dr. Vilaça, glosador insigne, que acrescentou aos pratos de casa o acepipe das musas. Lembra-me, como se fosse ontem, lembra-me de o ver erguer-se, com a sua longa cabeleira de rabicho, casaca de seda, uma esmeralda no dedo, pedir a meu tio padre que lhe repetisse o mote, e, repetido o mote, cravar os olhos na testa de uma senhora, depois tossir, alçar a mão direita, toda fechada, menos o dedo índice, que apontava para o teto; e, assim posto e composto, devolver o mote glosado. Não fez uma glosa, mas três; depois jurou aos seus deuses não acabar mais. Pedia um mote, davam-lho, ele glosava-o prontamente, e logo pedia outro e mais outro; a tal ponto que uma das senhoras presentes não pôde calar a sua grande admiração. 

— A senhora diz isso, retorquia modestamente o Vilaça, porque nunca ouviu o Bocage, como eu ouvi, no fim do século, em Lisboa. Aquilo sim! que facilidade! e que versos! Tivemos lutas de uma e duas horas, no botequim do Nicola, a glosarmos, no meio de palmas e bravos. Imenso talento o do Bocage! Era o que me dizia, há dias, a senhora Duquesa de Cadaval... 

E estas três palavras últimas, expressas com muita ênfase, produziram em toda a assembléia um frêmito de admiração e pasmo. Pois esse homem tão dado, tão simples, além de pleitear com poetas, discreteava com duquesas! Um Bocage e uma Cadaval! Ao contato de tal homem, as damas sentiam-se superfinas; os varões olhavam-no com respeito, alguns com inveja, não raros com incredulidade. Ele, entretanto, ia caminho, a acumular adjetivo sobre adjetivo, advérbio sobre advérbio, a desfiar todas as rimas de tirano e de usurpador. Era à sobremesa; ninguém já pensava em comer. No intervalo das glosas, corria um burburinho alegre, um palavrear de estômagos satisfeitos; os olhos moles e úmidos, ou vivos e cálidos, espreguiçavam-se ou saltitavam de uma ponta à outra da mesa, atulhada de doces e frutas, aqui o ananás em fatias, ali o melão em talhadas, as compoteiras de cristal deixando ver o doce de coco, finamente ralado, amarelo como uma gema, — ou então o melado escuro e grosso, não longe do queijo e do cará. De quando em quando um riso jovial, amplo, desabotoado, um riso de família, vinha quebrar a gravidade política do banquete. No meio do interesse grande e comum, agitavam-se também os pequenos e particulares. As moças falavam das modinhas que haviam de cantar ao cravo, e do minuete e do solo inglês; nem faltava matrona que prometesse bailar um oitavado de compasso, só para mostrar como folgara nos seus bons tempos de criança. Um sujeito, ao pé de mim, dava a outro notícia recente dos negros novos, que estavam a vir, segundo cartas que recebera de Loanda, uma carta em que o sobrinho lhe dizia ter já negociado cerca de quarenta cabeças, e outra carta em que... Traziaas justamente na algibeira, mas não as podia ler naquela ocasião. O que afiançava é que podíamos contar, só nessa viagem, uns cento e vinte negros, pelo menos. 

— Trás... trás... trás... fazia o Vilaça batendo com as mãos uma na outra. O rumor cessava de súbito, como um estacado de orquestra, e todos os olhos se voltavam para o glosador. Quem ficava longe aconcheava a mão atrás da orelha para não perder palavra; a mor parte, antes mesmo da glosa, tinha já um meio riso de aplauso, trivial e cândido. 

Quanto a mim, lá estava, solitário e deslembrado, a namorar certa compota da minha paixão. No fim de cada glosa ficava muito contente, esperando que fosse a última, mas não era, e a sobremesa continuava intata. Ninguém se lembrava de dar a primeira voz. Meu pai, à cabeceira, saboreava a goles extensos a alegria dos convivas, mirava-se todo nos carões alegres, nos pratos, nas flores, deliciava-se com a familiaridade travada entre os mais distantes espíritos, influxo de um bom jantar. Eu via isso, porque arrastava os olhos da compota para ele e dele para a compota, como a pedir-lhe que ma servisse; mas fazia-o em vão. Ele não via nada; via-se a si mesmo. E as glosas sucediam-se, como bátegas d'água, obrigando-me a recolher o desejo e o pedido. Pacientei quanto pude; e não pude muito. Pedi em voz baixa o doce; enfim, bradei, berrei, bati com os pés. Meu pai, que seria capaz de me dar o sol, se eu lho exigisse, chamou um escravo para me servir o doce; mas era tarde. A tia Emerenciana arrancara-me da cadeira e entregara-me a uma escrava, não obstante os meus gritos e repelões. 

Não foi outro o delito do glosador: retardara a compota e dera causa à minha exclusão. Tanto bastou para que eu cogitasse uma vingança, qualquer que fosse, mas grande e exemplar, coisa que de alguma maneira o tornasse ridículo. Que ele era um homem grave o Dr. Vilaça, medido e lento, quarenta e sete anos, casado e pai. Não me contentava o rabo de papel nem o rabicho da cabeleira; havia de ser coisa pior. Entrei a espreitá-lo, durante o resto da tarde, a segui-lo, na chácara, aonde todos desceram a passear. Vi-o conversar com D. Eusébia, irmã do sargento-mor Domingues, uma robusta donzelona, que se não era bonita, também não era feia. 

— Estou muito zangada com o senhor, dizia ela. 

— Por quê? 

— Porque... não sei por quê... porque é a minha sina... creio às vezes que é melhor morrer. 

Tinham penetrado numa pequena moita; era lusco-fusco; eu seguios. O Vilaça levava nos olhos umas chispas de vinho e de volúpia. 

— Deixe-me! disse ela. 

— Ninguém nos vê. Morrer, meu anjo? Que idéias são essas! Você sabe que eu morrerei também... que digo?... morro todos os dias, de paixão, de saudades... 

D. Eusébia levou o lenço aos olhos. O glosador vasculhava na memória algum pedaço literário e achou este, que mais tarde verifiquei ser de uma das óperas do Judeu: 

— Não chores, meu bem; não queiras que o dia amanheça com duas auroras. 

Disse isto; puxou-a para si; ela resistiu um pouco, mas deixou-se ir; uniram os rostos, e eu ouvi estalar, muito ao de leve, um beijo, o mais medroso dos beijos. 

— O Dr. Vilaça deu um beijo em D. Eusébia! bradei eu correndo pela chácara. 

Foi um estouro esta minha palavra; a estupefação imobilizou a todos; os olhos espraiavam-se a uma e outra banda; trocavam-se sorrisos, segredos, à socapa, as mães arrastavam as filhas, pretextando o sereno. Meu pai puxou-me as orelhas, disfarçadamente, irritado deveras com a indiscrição; mas no dia seguinte, ao almoço, lembrando o caso, sacudiu-me o nariz a rir: Ah! brejeiro! ah! brejeiro!
                                                                                                                                                                          


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Texto-fonte: 
Obra Completa, Machado de Assis, 
Rio de Janeiro: Editora Nova Aguilar, 1994. 


Publicado originalmente em folhetins, a partir de março de 1880, na Revista Brasileira.


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