sábado, 16 de maio de 2015

XI - Contos Africanos: "Ventos do Apocalipse"


“Mata, que amanhã faremos outro”




Pauline Chiziane




Este é o ditado dos tempos do velho Império de Gaza, que se tornou célebre, sobrevivendo muitos sóis e muitas luas e, como o grão, semeando de boca em boca, até aos nossos dias.

Há mais de cem anos, as terras de Mananga foram invadidas por guerreiros de tronco nu, pés descalços, orelhas furadas e saiotes de pele, ornamentadíssimos com colares multicolores, amuletos, braçadeiras felpudas, trazendo longas zagaias à direita e escudos de pele à esquerda. Os generais deste exército, os verdadeiros ngunis, laureados com coroas de penas, marchavam na retaguarda e em segurança, enquanto o grosso do efectivo formado por changanes marchava à frente, servindo de protecção aos senhores ngunis, pois em caso de ataque seriam os primeiros a morrer.

Eram os guerreiros do exército de Muzila, marchando de vitória em vitória, espalhando ordem e soberania por essas terras, chacinando os inimigos, submetendo as tribos conquistadas, apoderando-se das suas mulheres e incorporando no exército todos os jovens das terras usurpadas.

Quando os guerreiros de Muzila marchavam, a terra abalava em violentos sismos, o Sol parava, as árvores abriam alas e até soldados de Portugal buscavam abrigo nas trincheiras. As populações em bando fugiam para cá e para lá, procurando refúgio no interior da savana.

Os grupos em fuga estabeleceram normas de segurança: é proibido falar, tossir ou espirrar no esconderijo. Podes borrar-te, ou mijar-te, mover-te é que não, porque é perigoso. As crianças são livres, nada as detém. Quando têm fome, choram até enrouquecer a voz. Quando têm sede berram até enervar, e quando estão felizes cantam até de mais. Não suportam a fome, a sede e o calor e choram. As vozinhas dos meninos ouviram-se no espaço, em direcção aos tímpanos atentos dos heróicos guerreiros, que seguiram as ondas do som até descobrir o esconderijo. A vingança foi implacável, e até os fetos foram estripados dos ventres das mães. Deste modo estabeleceram-se novas normas de segurança: é preciso silenciar o choro dos meninos.

A caminho do novo abrigo os maridos aproximavam-se delicadamente das esposas com crianças no colo e transmitiam a ordem: mulher, o menino vai chorar e seremos descobertos. Mata este, que depois faremos outro.

Nos momentos de perigo, a solidariedade é a lei: ou morre um por todos ou todos por um.

Com gestos desesperados, a mulher puxava a ponta da capulana, sufocando a crença que se batia até a paragem respiratória. O menino morto era escondido na vegetação, não havia tempo para enterrar os mortos. Cuidado, mulher, é proibido chorar, mas também não vale a pena, a quem comovem as lágrimas no tempo de guerra?

O marido abraçava carinhosamente a mulher, sussurrando ao ouvido: coragem, mulher, tinha que ser assim. Esse já morreu, amanhã faremos outro.





________________________________




Paulina Chiziane, dizem que foi a primeira mulher moçambicana a escrever um romance (Balada de Amor ao Vento, 1990), mas ela afirma que é contadora de estórias e não romancista. Escreve livros com muitas estórias, estórias grandes e pequenas. Inspira-se nos contos à volta da fogueira, sua primeira escola de arte. Nasceu em 1955 em Manjacaze. Frequentou estudos superiores que não concluiu. Actualmente vive e trabalha na Zambézia.




Chiziane, Paulina. Ventos do Apocalipse / Paulina Chiziane; design gráfico de José Serrão; capa: Malangatana, Minhas Máscaras (1983), pormenor recortado, editorial Caminho, SA, Lisboa – 1999. 2ª Edição.

Nenhum comentário:

Postar um comentário