Albert Camus
3. Nas escadas, explicou-me
Nas escadas, explicou-me: "Leva mo-la para a nossa morgue particular. Para não impressionar os outros. Cada vez que algum morre, os outros ficam nervosos durante dois ou três dias, o que torna o serviço difícil".
Atravessamos um pátio onde havia muitos velhos, conversando em grupos, uns com os outros. Ao passarmos, calavam-se.
E atrás de nós as conversas recomeçavam.
Dir-se-ia um papaguear atordoado de periquitos. À porta de uma pequena construção, o diretor deixou-me.
"Deixo-o agora, senhor Meursault". Estou às ordens, no escritório. Em princípio, o enterro estava marcado para as dez horas da manhã. Pensamos que o Senhor podia assim passar a noite a velar.
Uma última coisa: parece que a sua mãe exprimiu várias vezes aos amigos o desejo de ter um enterro religioso. - Tomei à minha conta este encargo. Mas queria pô-lo a par.
Agradeci-lhe. Embora sem ser ateia, enquanto viva a mãe nunca pensara na religião: Entrei: Era uma sala muito clara, caiada, e coberta por uma vidraça. Mobiliavam-na algumas cadeiras e cavaletes em forma de X. Dois deles, ao meio da sala, suportavam um caixão coberto.
Viam-se apenas parafusos brilhantes, mal enterrados, destacando-se da madeira pintada de casca de noz. Perto do caixão estava uma enfermeira árabe, de bata branca, com um lenço colorido na cabeça. Neste momento, o porteiro entrou por detrás de mim. Devia ter corrido: Gaguejou.
"Fecharam-no, mas eu vou desparafusá-lo, para que o senhor a possa ver". Aproximava-se do caixão, quando eu o detive.
Disse-me: "Não quer?" Respondi: "Não". Calou-se e eu estava embaraçado porque sentia que não devia ter dito isto. Ao fim de uns momentos, ele olhou-me e perguntou: "Por quê?", mas sem um ar de censura, como se pedisse uma informação. Eu disse: "Não sei". Então, retorcendo os bigodes brancos, declarou sem olhar para mim: "Compreendo". O homem tinha uns bonitos olhos azuis claros e uma pele um pouco avermelhada. Deu-me uma cadeira e sentou-se também, um pouco atrás de mim. A enfermeira levantou-se e dirigiu-se para a porta. Neste momento, o porteiro disse-me: "O que ela tem, é um cancro".
Não percebi o que ele dizia, até reparar que a enfermeira trazia por debaixo dos olhos uma ligadura que dava a volta à cabeça. No sítio do nariz, não se via nenhuma saliência. Apenas a brancura do penso, sobre a cara.
Depois dela sair, o porteiro falou: "Vou deixá-lo sozinho".
Não sei bem que gesto fiz, mas deixou-se ficar em pé, atrás de mim. Esta presença nas minhas costas incomodava-me. A sala estava cheia de uma bonita luz de fim de tarde. Dois besouros zumbiam, de encontro à vidraça. E eu sentia-me invadido pelo sono. Disse ao porteiro, sem me voltar para ele: "Está cá há muito tempo?" Ele respondeu imediatamente: "Cinco anos", como se estivesse desde sempre à espera da minha pergunta.
Em seguida, pôs-se a falar sem parar. Muito se teria espantado se alguém lhe houvesse dito, no seu tempo, que acabaria como porteiro de um asilo, em Marengo. Tinha sessenta e quatro anos e era parisiense. Neste momento interrompi-o:
"Ah, o senhor não é daqui?" Depois lembrei-me de que, antes de me levar ao diretor, estivera a falar da minha mãe.
Dissera-me que era preciso enterrá-la depressa, porque na planície fazia muito calor, sobretudo nesta terra. Fora então que me confiara ser de Paris e que dificilmente o esquecia. Em Paris fica-se com o morto, às vezes três ou quatro dias. Aqui não há tempo, mal nos habituamos à ideia e temos logo que correr atrás do carro funerário. A mulher dele dissera-lhe então: "Cala-te, não são coisas que se digam ao senhor". O velho corara e desculpara-se. Eu interviera para dizer: "Não, não..." Achava o que ele estava dizendo verdadeiro e interessante.
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A Constatação do Absurdo
Nascido e criado entre contrastes fundamentais, Albert Camus desde cedo aprendeu que a miséria engendra uma solidão que lhe é típica, uma austeridade toda sua, uma desconfiança da vida - mas a paisagem desperta uma rica sensualidade, uma eufórica sensação de onipotência, um orgulho desmedido de possuir a beleza inteiramente gratuita. Este aprendizado, feito a meio caminho entre a miséria e o sol, levou-o à consciência do que existe de mais trágico na condição humana: o absurdo, essa irremediável incompatibilidade entre as aspirações e a realidade.
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Camus, Albert, 1913-1960.
O Estrangeiro
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Leia também:
4.O Estrangeiro: Na pequena morgue - Albert Camus
Capítulo 1
3. Nas escadas, explicou-me
Nas escadas, explicou-me: "Leva mo-la para a nossa morgue particular. Para não impressionar os outros. Cada vez que algum morre, os outros ficam nervosos durante dois ou três dias, o que torna o serviço difícil".
Atravessamos um pátio onde havia muitos velhos, conversando em grupos, uns com os outros. Ao passarmos, calavam-se.
E atrás de nós as conversas recomeçavam.
Dir-se-ia um papaguear atordoado de periquitos. À porta de uma pequena construção, o diretor deixou-me.
"Deixo-o agora, senhor Meursault". Estou às ordens, no escritório. Em princípio, o enterro estava marcado para as dez horas da manhã. Pensamos que o Senhor podia assim passar a noite a velar.
Uma última coisa: parece que a sua mãe exprimiu várias vezes aos amigos o desejo de ter um enterro religioso. - Tomei à minha conta este encargo. Mas queria pô-lo a par.
Agradeci-lhe. Embora sem ser ateia, enquanto viva a mãe nunca pensara na religião: Entrei: Era uma sala muito clara, caiada, e coberta por uma vidraça. Mobiliavam-na algumas cadeiras e cavaletes em forma de X. Dois deles, ao meio da sala, suportavam um caixão coberto.
Viam-se apenas parafusos brilhantes, mal enterrados, destacando-se da madeira pintada de casca de noz. Perto do caixão estava uma enfermeira árabe, de bata branca, com um lenço colorido na cabeça. Neste momento, o porteiro entrou por detrás de mim. Devia ter corrido: Gaguejou.
"Fecharam-no, mas eu vou desparafusá-lo, para que o senhor a possa ver". Aproximava-se do caixão, quando eu o detive.
Disse-me: "Não quer?" Respondi: "Não". Calou-se e eu estava embaraçado porque sentia que não devia ter dito isto. Ao fim de uns momentos, ele olhou-me e perguntou: "Por quê?", mas sem um ar de censura, como se pedisse uma informação. Eu disse: "Não sei". Então, retorcendo os bigodes brancos, declarou sem olhar para mim: "Compreendo". O homem tinha uns bonitos olhos azuis claros e uma pele um pouco avermelhada. Deu-me uma cadeira e sentou-se também, um pouco atrás de mim. A enfermeira levantou-se e dirigiu-se para a porta. Neste momento, o porteiro disse-me: "O que ela tem, é um cancro".
Não percebi o que ele dizia, até reparar que a enfermeira trazia por debaixo dos olhos uma ligadura que dava a volta à cabeça. No sítio do nariz, não se via nenhuma saliência. Apenas a brancura do penso, sobre a cara.
Depois dela sair, o porteiro falou: "Vou deixá-lo sozinho".
Não sei bem que gesto fiz, mas deixou-se ficar em pé, atrás de mim. Esta presença nas minhas costas incomodava-me. A sala estava cheia de uma bonita luz de fim de tarde. Dois besouros zumbiam, de encontro à vidraça. E eu sentia-me invadido pelo sono. Disse ao porteiro, sem me voltar para ele: "Está cá há muito tempo?" Ele respondeu imediatamente: "Cinco anos", como se estivesse desde sempre à espera da minha pergunta.
Em seguida, pôs-se a falar sem parar. Muito se teria espantado se alguém lhe houvesse dito, no seu tempo, que acabaria como porteiro de um asilo, em Marengo. Tinha sessenta e quatro anos e era parisiense. Neste momento interrompi-o:
"Ah, o senhor não é daqui?" Depois lembrei-me de que, antes de me levar ao diretor, estivera a falar da minha mãe.
Dissera-me que era preciso enterrá-la depressa, porque na planície fazia muito calor, sobretudo nesta terra. Fora então que me confiara ser de Paris e que dificilmente o esquecia. Em Paris fica-se com o morto, às vezes três ou quatro dias. Aqui não há tempo, mal nos habituamos à ideia e temos logo que correr atrás do carro funerário. A mulher dele dissera-lhe então: "Cala-te, não são coisas que se digam ao senhor". O velho corara e desculpara-se. Eu interviera para dizer: "Não, não..." Achava o que ele estava dizendo verdadeiro e interessante.
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A Constatação do Absurdo
Nascido e criado entre contrastes fundamentais, Albert Camus desde cedo aprendeu que a miséria engendra uma solidão que lhe é típica, uma austeridade toda sua, uma desconfiança da vida - mas a paisagem desperta uma rica sensualidade, uma eufórica sensação de onipotência, um orgulho desmedido de possuir a beleza inteiramente gratuita. Este aprendizado, feito a meio caminho entre a miséria e o sol, levou-o à consciência do que existe de mais trágico na condição humana: o absurdo, essa irremediável incompatibilidade entre as aspirações e a realidade.
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Camus, Albert, 1913-1960.
O Estrangeiro
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Leia também:
4.O Estrangeiro: Na pequena morgue - Albert Camus
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