sexta-feira, 14 de outubro de 2016

14. A Metamorfose - E lá ficava ele novamente mergulhado na escuridão - Franz Kafka

Franz Kafka


Capítulo 3

14 A Metamorfose - E lá ficava ele novamente mergulhado na escuridão - Franz Kafka



E lá ficava ele novamente mergulhado na escuridão, enquanto na sala ao lado as duas mulheres misturavam as lágrimas ou, quem sabe, se deixavam ficar à mesa, de olhos enxutos, a contemplar o vazio. 

De dia ou de noite, Gregório mal dormia. Muitas vezes assaltava-o a ideia de que, ao tornar a abrir-se a porta, voltaria a tomar a seu cargo os assuntos da família, como sempre fizera; depois deste longo intervalo, vinham-lhe mais uma vez ao pensamento as figuras do patrão e do chefe de escritório, dos caixeiros-viajantes e dos aprendizes, do estúpido do porteiro, de dois ou três amigos empregados noutras firmas, de uma criada de quarto de um dos hotéis da província, uma recordação, doce e fugaz, de uma caixeira de uma loja de chapéus que cortejara com ardor, mas demasiado lentamente - todas lhe vinham à mente, juntamente com estranhos ou pessoas que tinha esquecido completamente. Mas nenhuma delas podia ajudá-lo a ele nem à família, pois não havia maneira de contatar com elas, pelo que se sentiu feliz quando se desvaneceram. Outras vezes não estava com disposição para preocupar-se com a família e apenas sentia raiva por nada se ralarem com ele e, embora não tivesse ideias assentes sobre o que lhe agradaria comer, arquitetava planos de assaltar a despensa, para se apoderar da comida que, no fim de contas, lhe cabia, apesar de não ter fome. A irmã não se incomodava a trazer-lhe o que mais lhe agradasse; de manhã e à tarde, antes de sair para o trabalho, empurrava com o pé, para dentro do quarto, a comida que houvesse à mão, e à noite retirava de novo com o auxílio da vassoura, sem se preocupar em verificar se ele a tinha simplesmente provado ou — como era vulgar acontecer — havia deixado intacta. A limpeza do quarto, procedia sempre à noite, não podia ser feita mais apressadamente. As paredes estavam cobertas de manchas de sujidade e, aqui e além, viam-se bolas de sujidade e de pó no soalho. A princípio, Gregório costumava colocar-se a um canto particularmente sujo, quando da chegada da irmã, como que a repreendê-la pelo fato. Podia ter passado ali semanas sem que ela fizesse fosse o que fosse para melhorar aquele estado de coisas; via a sujidade tão bem como ele; simplesmente, tinha decidido deixá-la tal como estava. E numa disposição pouco habitual e que parecia de certo modo ter contagiado toda a família, reservava-se, ciumenta e exclusivamente, o direito de tratar do quarto de Gregório. Certa vez a mãe procedeu a uma limpeza total do quarto, o que exigiu vários baldes de água — é claro que esta baldeação também incomodou Gregório, que teve de manter-se estendido no sofá, perturbado e imóvel —, mas isso custou-lhe bom castigo. A noite, mal a filha chegou e viu a mudança operada no quarto, correu ofendidíssima para a sala de estar e, indiferente aos braços erguidos da mãe, entregou-se a uma crise de lágrimas. Tanto o pai, que, evidentemente, saltara da cadeira, como a mãe ficaram momentaneamente a olhar para ela, surpresos e impotentes. A seguir, reagiram ambos: o pai repreendeu, por um lado, a mulher por não ter deixado a limpeza do quarto para a filha e, por outro lado, gritou com Grete, proibindo-a de tomar a cuidar do quarto; enquanto isso, a mãe tentava arrastar o marido para o quarto respectivo, uma vez que estava fora de si. Agitada por soluços, Grete batia com os punhos na mesa. Gregório, entretanto, assobiava furiosamente, por ninguém ter tido a ideia de fechar-lhe a porta, para o poupar a tão ruidoso espetáculo. 

Admitindo que a irmã, exausta pelo trabalho diário, se tivesse cansado de tratar de Gregório como anteriormente fazia, não havia razão para a mãe intervir, nem para ele ser esquecido. Havia a empregada, uma velha viúva cuja vigorosa ossatura lhe tinha permitido resistir às agruras de uma longa vida, que não temia Gregório. Conquanto nada tivesse de curiosa, tinha certa vez aberto acidentalmente a porta do quarto de Gregório, o qual, apanhado de surpresa, desatara a correr para um lado e para outro, mesmo que ninguém o perseguisse, e, ao vê-lo, deixara-se estar de braços cruzados. De então em diante nunca deixara de Abrir um pouco a porta, de manhã e à tarde, para o espreitar. A princípio até o chamava, empregando expressões que certamente considerava simpáticas, tais como: Venha cá, sua barata velha! Olhem-me só para esta barata velha do Gregório não respondia a tais chamados, permanecendo imóvel, como se nada fosse com ele. Em vez de a deixarem incomodá-lo daquela maneira sempre que lhe dava na gana, bem podiam mandá-la fazer todos os dias a limpeza ao quarto! Numa ocasião, de manhã cedo, num dia em que a chuva fustigava as vidraças, talvez anunciando a chegada da Primavera. Gregório ficou tão irritado quando ela principiou de novo que correu no seu encalço, como se estivesse disposto a atacá-la, embora com movimentos lentos fracos. A empregada, em vez de assustar-se, limitou-se a erguer uma cadeira que estava junto da porta e ali ficou de boca aberta, na patente intenção de só a fechar depois de a abater sobre o dorso de Gregório.

— Então, não te aproximas mais?, perguntou, ao ver Gregório afastar-se novamente. Depois, voltou a colocar calmamente a cadeira no seu canto.





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A Metamorfose
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