quinta-feira, 11 de novembro de 2021

D. Quixote - Cervantes Vol 1 - 1ª Parte L2 Capitulo XI: Do que a D. Quixote sucedeu com uns cabreiros.

  D. Quixote de la Mancha



Miguel de Cervantes

Vol 1



O Engenhoso Fidalgo 
D. Quixote de la Mancha 

Miguel de Cervantes



PRIMEIRA PARTE

LIVRO SEGUNDO

CAPÍTULO XI


Do que a D. Quixote sucedeu com uns cabreiros.


Com boa sombra foi dos cabreiros recolhido o nosso cavaleiro. Sancho acomodou, o melhor que pôde, a Rocinante e ao jumento, e deixou-se ir atrás do cheiro que despediam de si certos tassalhos de cabra, que estavam numa caldeira a ferver ao lume. Ainda que o seu gosto seria logo ali sem mais detença ver se estavam prontos para se trasladarem da vasilha ao estômago, absteve-se de o fazer, porque os cabreiros os tiraram da lareira e, estendendo na terra uns velos de ovelha, aparelharam azafamados a sua mesa rústica, e convidaram aos dois com mostras de muito boa vontade para o que ali havia.

Seis sentaram-se à roda das peles, que era quantos se contavam na malhada, depois de haverem com grosseiras cerimônias rogado a D. Quixote que se sentasse numa gamela que lhe puseram com o fundo para cima. Sentou-se D. Quixote, ficando Sancho de pé para lhe ir servindo o copo, que era feito de pau do ar. O amo, reparando-lhe na postura, disse-lhe:

— Para que vejas, Sancho, o bem que encerra a andante cavalaria, e quão a pique estão os que em qualquer ministério dela se exercitam, de virem em pouco tempo a ser nobilitados e estimados do mundo, quero que te sentes aqui ao meu lado e em companhia desta boa gente, e que estejas tal qual como eu, que sou teu amo e natural senhor, que comas no meu prato, e bebas por onde eu beber, porque da cavalaria se pode dizer o mesmo que se diz do amor: todas as condições iguala.

— Viva muitos anos — respondeu Sancho — mas sou por dizer a vossa Mercê que, tendo eu bem de comer, tão bem e melhor o comeria em pé e sozinho, como sentado à ilharga de um Imperador; e até (se hei-de dizer toda a verdade) muito melhor me sabe comer no meu cantinho, sem cerimônias, nem respeitos, ainda que não seja senão pão e cebola, que os perus de outras mesas com a obrigação de mastigar devagar, beber pouco, limpar-me a miúdo, não espirrar nem tossir quando me for preciso, nem fazer outras coisas, que a solidão e liberdade trazem consigo. E portanto, senhor meu, essas honras que Vossa Mercê me quer dar, por eu ser ministro e aderente da cavalaria andante, como escudeiro que sou de Vossa Mercê, troque-as noutras coisas que me sejam mais cômodas e de melhor proveito; que estas agradeço-lhas, mas dispenso-as desde já até ao fim do mundo.

— Apesar disso hás-de te sentar, porque quem mais se humilha mais se exalta.

E puxando-lhe pelo braço, o obrigou a sentar-se-lhe a par.

Não entendiam os cabreiros aquele palavreado de escudeiros e cavaleiros andantes, e não faziam senão comer e calar e olhar para os hóspedes, que, com muito garbo e gana, iam embutindo para baixo tassalhos como punhos. Acabado o serviço da carne, estenderam sobre as peles cruas grande quantidade de bolotas aveladas, e meio queijo mais duro que se fosse de argamassa.

Não estava entretanto ocioso o copo; andava em roda tão a miúdo, já cheio já vazio como alcatruz de nora, que depressa se despejou uma quartola, de duas que presentes eram.

Depois que D. Quixote se deu por bem repleto, tomou um punhado das bolotas, e considerando-as atentamente, soltou a voz dizendo:

— Ditosa idade e afortunados séculos aqueles, a que os antigos puseram o nome de dourados, não porque nesses tempos o ouro (que nesta idade de ferro tanto se estima!) se alcançasse sem fadiga alguma, mas sim porque então se ignoravam as palavras teu e meu! Tudo era comum naquela santa idade; a ninguém era necessário, para alcançar o seu ordinário sustento, mais trabalho que levantar a mão e apanhá-lo das robustas azinheiras, que liberalmente estavam oferecendo o seu doce e sazoado fruto. As claras nascentes e correntes rios ofereciam a todos, com magnífica abundância, as saborosas e transparentes águas. Nas abertas das penhas, e no côncavo dos troncos formavam as suas repúblicas as solícitas e discretas abelhas, oferecendo a qualquer, sem interesse algum, a abundosa colheita do seu dulcíssimo trabalho. Os valentes sobreiros despegavam de si, sem mais artifícios que a sua natural cortesia, as suas amplas e leves cortiças, com que se começaram a cobrir casas sobre rústicas estacas, sustentadas só para reparo contra as inclemências do céu. Tudo então era paz, tudo amizade, tudo concórdia. Ainda se não tinha atrevido a pesada relha do curvo arado a abrir e visitar as entranhas piedosas da nossa primeira mãe, que ela, sem a obrigarem, oferecia por todas as partes do seu fértil e espaçoso seio o que pudesse fartar, sustentar, e deleitar, aos filhos que então a possuíam. Então, sim, que andavam as símplices e formosas pastorinhas de vale em vale, e de outeiro em outeiro, com singelas tranç\as ou em cabelo, sem mais vestidos que os necessários para encobrirem honestamente o que a honestidade quer, e quis sempre, que se encubra. Não eram seus adornos, como os que ao presente se usam, exagerados com a púrpura de Tiro, e com a por tantos modos martirizada seda; eram folhagens de verde bardana e hera entretecidas; com o que talvez andavam tão garridas e enfeitadas como agora andam as nossas damas de corte com as raras e peregrinas invenções que a indústria ociosa lhes tem ensinado. Então expressavam-se os conceitos amorosos da alma simples, tão singelamente como ela os dava, sem se procurarem artificiosos rodeios de fraseado para os encarecer. Com a verdade e lhaneza não se tinha ainda misturado a fraude, o engano, e a malícia. A justiça continha-se nos seus limites próprios, sem que ousassem turbá-la nem ofendê-la o favor e interesse, que tanto hoje a enxovalham, perturbam e perseguem. Ainda se não tinha metido em cabeça a juiz o julgar por arbítrio, porque ainda não havia nem julgadores, nem pessoas para serem julgadas. As donzelas e a honestidade andavam, como já disse, por toda a parte desguardadas e seguras, sem medo de que a alheia desenvoltura e atrevimentos lascivos as desacatassem; se se perdiam era por seu gosto e própria vontade. E agora, nestes nossos detestáveis séculos, nenhuma está segura, ainda que a encerre e esconda outro labirinto de Creta, porque lá mesmo, pelas fendas ou pelo ar, com o zelo do maldito cuidado lhes entra o amoroso contágio, e as faz dar com todo o seu recato à costa. Para segurança delas, com o andar dos tempos, e crescendo mais a malícia, se instituiu a ordem dos cavaleiros andantes, defensora das donzelas, amparadora das viúvas, e socorredora dos órfãos e necessitados.

Desta ordem sou eu, irmãos cabreiros, a quem agradeço o bom agasalho e trato que me dais a mim e ao meu escudeiro; pois, ainda que por lei natural todos os viventes estão obrigados a favorecer aos cavaleiros andantes, contudo sei que vós outros, ignorando esta obrigação, me acolhestes e obsequiastes; e razão é que eu vos agradeça quanto posso a vossa boa vontade.

Toda esta larga arenga (que se pudera muito bem dispensar) improvisou-a o nosso cavaleiro, em razão de lhe ter vindo à lembrança, a propósito das bolotas que lhe deram, a idade de ouro; por isso lhe pareceu fazer todo aquele inútil arrazoado aos cabreiros, que, sem lhe responderem palavra, apatetados e suspensos, o estiveram escutando.

Sancho também não falava, e ia comendo bolotas, e visitando muito a miúdo a segunda quartola, que tinham pendurada num carvalho para ter o vinho mais fresco.

Mais durou a parlanda de D. Quixote, do que a ceia. Depois dela, disse um dos cabreiros:

— Para com mais verdade poder Vossa Mercê dizer, senhor cavaleiro andante, que o agasalhamos de boa mente, queremos regalá-lo dando-lhe a ouvir um companheiro nosso que está para chegar. Isso é que é pastor entendido e enamorado; até sabe ler e escrever, e toca arrabil, que não há mais que desejar.

Mal acabava o cabreiro, quando se ouviu com efeito um arrabil, e pouco depois se viu entrar o arrabileiro, que era um moço dos seus vinte e dois anos, de aprazível presença. Perguntaram-lhe os companheiros se tinha ceado; e, respondendo ele que sim, tornou-lhe o que havia feito os oferecimentos:

— Visto isso, Antônio, poderás dar-nos gosto cantando um pouco, para que este senhor hóspede veja que também cá pelos montes e matas há quem saiba de música. Já lhe dissemos as tuas boas habilidades; desejamos que tu agora lhas mostres, e nos não deixes mentirosos. Por vida tua te rogo que te assentes e cantes o romance dos teus amores, como to compôs o Beneficiado teu tio, e que muito bem pareceu no povo.

— De boa vontade — respondeu o moço.

E sem fazer-se mais rogado, assentou-se num cepo de azinheira; e, temperando o arrabil, dali a pouco começou de cantar com muita boa graça desta maneira:


ANTÔNIO

Sei, Olala, que me adoras,
sem nunca mo teres dito,
nem co’os olhos, línguas mudas,
que entendem os amorios.

Sei-o sim, porque és discreta;
por isso em tal me confirmo;
todo o amor alcança paga,
salvo se é desconhecido.

Verdade é que tenho, Olala,
em ti descoberto indícios
de teres a alma de bronze,
e o peito de gelo frio.

Mas, através das repulsas
e honestíssimos desvios,
talvez se enxergue da esp’rança
um vislumbre fugitivo.

O meu amor se abalança
a esperar, sem ter podido
nem minguar por enjeitado,
nem crescer por escolhido.

Se amores têm cortesia,
da que tu mostras colijo
que o fim das minhas esp’ranças
há-de ser qual imagino.

E se o bem servir consegue
tornar um peito benigno,
já tenho em que funde a crença
de obter os bens a que aspiro;

porque, se nisso reparas,
às vezes me terás visto
vestido à segunda-feira
com as galas do domingo.

As louçainhas e amores
seguem o mesmo caminho;
e eu sempre quis aos teus olhos
apresentar-me polido.

Por teu respeito não bailo;
as músicas não te cito,
que a desoras, e acordando
os galos, terás ouvido.

Não te encareço os louvores
com que os teus dotes sublimo,
que, se bem que verdadeiros,
me fazem de outras malquisto.

Teresa do Barrocal
já, louvando-te eu, me há dito:
— Há quem pense adorar anjos,
estando a adorar bugiosa;

milagres dos arrebiques
mais dos cabelos postiços,
hipócritas formosuras,
que enganam até Cupido.

Desmenti-a; ela enfadou-se;
pôs-se por ela seu primo;
desafiou-me, e bem sabes
qual saiu do desafio.

Nem por demais te cortejo,
nem para mal te cobiço:
a melhor fim se endereçam
minhas atenções contigo.

Na Igreja há prisões de seda
para os casais bem unidos;
mete o pescoço na canga,
que eu sigo o mesmo caminho.

Quando não, desde aqui juro,
pelo Santo mais bendito,
não sairei destas serras
senão para capuchinho.


Com isto deu o cabreiro remate ao seu cantar; e, ainda que D. Quixote lhe pediu cantasse mais alguma coisa, opôs-se Pança, que estava mais para dormir que para ouvir cantorias; e assim disse ao amo:

— Bem pode Vossa Mercê arranjar-se logo, e já onde tem de ficar esta noite, que o trabalho, em que estes bons homens levam o dia todo, não consente noitadas de cantarola.

— Bem percebo, Sancho — respondeu D. Quixote — as visitas à quartola pedem mais paga de cama que de músicas.

— A todos sabe ela bem, louvado seja Deus! — respondeu Sancho.

— Não digo menos — replicou D. Quixote — mas acomoda-te lá tu onde quiseres, que os da minha profissão melhor parecem velando, que dormindo. Mas, apesar de tudo, bom seria, Sancho, que me tornasses a curar esta orelha, que me está doendo mais do que era preciso.

Fez Sancho o que se lhe mandava. Um dos cabpéiros, vendo a ferida, lhe disse que não tivesse cuidado, que ele lhe poria um remédio, com que breve sararia; e, tomando algumas pontas de rosmaninho, que por ali era mui basto, as mastigou, misturou-as com um pouco de sal, e aplicandoas à orelha, a ligou muito bem, certificando-lhe que não havia precisão de mais nenhum curativo; e o caso é que assim sucedeu.


continua página 68...



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D. Quixote - Cervantes Vol 1 - Ao Livro de D. Quixote de la Mancha
D. Quixote - Cervantes Vol 1 - 1ª Parte L1 Capitulo I
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D. Quixote - Cervantes Vol 1 - 1ª Parte L1 Capitulo IV
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D. Quixote - Cervantes Vol 1 - 1ª Parte L1 Capitulo VII
D. Quixote - Cervantes Vol 1 - 1ª Parte L1 Capitulo VII
D. Quixote - Cervantes Vol 1 - 1ª Parte L1 Capitulo VIII
D. Quixote - Cervantes Vol 1 - 1ª Parte L2 Capitulo IX
D. Quixote - Cervantes Vol 1 - 1ª Parte L2 Capitulo X
D. Quixote - Cervantes Vol 1 - 1ª Parte L2 Capitulo XI
D. Quixote - Cervantes Vol 1 - 1ª Parte L2 Capitulo XII

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D. QUIXOTE 
VOL. I 
Cervantes 
D. Quixote de La Mancha — Primeira Parte 
(1605) 
Miguel de Cervantes [Saavedra] 
(1547-1616)
Tradução: 
Francisco Lopes de Azevedo Velho de Fonseca Barbosa Pinheiro Pereira e Sá Coelho (1809- 1876) Conde de Azevedo 
Antônio Feliciano de Castilho (1800-1875) 
Visconde de Castilho


Edição 
eBooksBrasil www.ebooksbrasil.com 
Versão para eBook 
eBooksBrasil.com 

Fonte Digital 
Digitalização da edição em papel de Clássicos Jackson, Vol. VIII Inclusões das partes faltantes confrontadas com a edição em espanhol da eBooksBrasil.com 
(1999, 2005)
Copyright 
Autor: 1605, 2005 Miguel de Cervantes 
Tradução Francisco Lopes de Azevedo Velho de Fonseca Barbosa Pinheiro Pereira e Sá Coelho 
António Feliciano de Castilho 
Capa: Honoré-Victorin Daumier (1808-1879) 
Retrato de Cervantes: Eduardo Balaca (1840-1914) 
Edição: 2005 eBooksBrasil.com


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